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Idade Média e Época Moderna

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1 
Idade Média e Época Moderna: fronteiras e problemas 
publicado em: Signum, nº 7 (2005), pp. 223-248. 
Laura de Mello e Souza 
Universidade de São Paulo 
 
 
 
1. A longa Idade Média 
 
Aquela que se convencionou chamar de a terceira geração dos Annales foi 
profundamente marcada pela idéia braudeliana da temporalidade longa 1. Em 1974, 
Emmanuel Le Roy Ladurie chamou a atenção para a história imóvel e ofereceu uma 
interpretação geral para o período que vai do século XI ao XIX, situado entre dois 
intervalos de inovação e expansão – nove séculos em que a vida das populações européias 
permaneceu praticamente inalterada2. 
No Prefácio a Pour un autre Moyen-Age e dizendo-se ancorado na etnologia, 
Jacques Le Goff defendeu, três anos depois, a idéia de uma Idade Média longuíssima, 
iniciada no século II ou III de nossa era e encerrando-se com a revolução industrial. “Essa 
longa Idade Média”, diz-nos, “ é a história da sociedade pré-industrial”. Não se trata de 
hiato, como viram os humanistas do Renascimento e tantos outros, nem de ponte, mas de 
grande impulso criador, mesmo se entrecortado por crises: “momento de criação da 
sociedade moderna, de uma civilização moribunda ou morta sob suas formas camponesas 
tradicionais mas viva pelo que criou de essencial em nossas estruturas sociais e mentais:” a 
cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho e a máquina, a hora e o relógio, o livro, 
o garfo, a roupa branca, a pessoa, a consciência e finalmente a revolução. Não se trata, 
tampouco, de substituir uma Idade Média de trevas por uma Idade Média áurea, mas de 
propor “uma outra Idade Média”, como diz o título: total, longa mas estruturada em sistema 
 
1 Ver, entre outros, Peter Burke, A escola dos Annales – 1929-1989. São Paulo: UNESP, 1991. 
2 Emmanuel Le Roy Ladurie, “L’histoire immobile” em Annales – E.S.C., 29 (1974), pp. 673-682. Para um 
comentário, ver “The Renaissance and the drama of Western History” in William J. Bouwsma, A usable past 
– essays in European Cultural History, Berkeley, Los Angeles e Oxford, University of California Press, 
1990, pp. 348-365. 
 2 
que, “no essencial”, funciona do Baixo Império Romano à revolução industrial dos séculos 
XVIII-XIX” 3. 
 Por mais substantiva que seja a proposta de Le Goff, ancorada numa vida de estudos 
medievais, e ainda que postule a apreensão de nexos internos capazes de captar o sistema 
Idade Média, há, nela, um intuito desperiodizador: “lanço aqui as bases de uma nova 
ciência cronológica”: não apenas linear, mas capaz de comparar de modo legítimo 
condições científicas que sejam comparáveis. Le Goff não o cita, mas não há como deixar 
de pensar que Marc Bloch é o seu inspirador, obstinado que foi na busca dos nexos 
comparáveis entre sociedades feudais, sistemas de exploração rural, sistemas de crença que, 
na sua totalidade, integraram o sistema maior que foi a Idade Média4. Na formulação de Le 
Goff há ainda um pendor hegemônico, expresso de modo direto num grande medievalista 
brasileiro: “Sem o risco de exagerar, pode-se dizer que o medievalismo se tornou uma 
espécie de carro-chefe da historiografia contemporânea, abrindo caminhos ao propor temas, 
experimentar métodos, rever conceitos, dialogar intimamente com outras ciências 
humanas”5. 
 Em 1985, Le Goff voltou à carga com muito mais força, retomando a proposta de 
uma Idade Média longa de dezessete séculos. Argumentou com base nas continuidades da 
economia, invocadas por Armando Sapori e ignoradas pelo clássico de J. Burckhardt, bem 
como no caráter medieval de muitos dos fenômenos considerados renascentistas. 
Qualificou o Renascimento de incerto, valorizando antes a Reforma enquanto momento de 
clivagem, e deu à Época Moderna o estatuto de “terceiro painel [significando fase] dessa 
longa Idade Média”6. “Essa longa Idade Média é a do cristianismo dominante, um 
cristianismo que é, ao mesmo tempo, religião e ideologia, que estabelece, pois, uma relação 
muito complexa com o mundo feudal, contestando-o e justificando-o ao mesmo tempo”7. 
 Pensar uma longa Idade Média fere o âmago de todas as grandes problemáticas 
invocadas pelos historiadores da chamada Época Moderna e corrói-lhe a própria identidade. 
No que, ao fim e ao cabo, a Época Moderna é distinta da Medieval? Na proliferação de 
 
3 Jacques Le Goff, Pour um autre Moyen-Age – temps, travail et culture en Occident – 18 essais. Paris, 
Gallimard, 1977, citações às pp. 10 e 11. 
4 Ver, entre outros, La société féodale, Paris, Albin Michel, 1949, 2 vols; “Pour une histoire comparée des 
societés européenes”. In Revue de Synthèse Historique, nouvelle série, vol. 20, dec. 1928. 
5 Hilário Franco Jr., A Idade Média e o nascimento do Ocidente, São Paulo, Editora Brasiliense, 1986 p. 20. 
6 J. Le Goff, L’imaginaire médiéval – essais, Paris, Gallimard, 1985, “Préface”, p. XIII e anteriores. 
 3 
cidades, bafejadas pelo crescimento da economia de mercado? Na intensificação das trocas 
entre o Ocidente e o Oriente, cada vez mais conectados por viagens terrestres e marítimas? 
Na desagregação do sistema feudal, onde a relação servil passa a ser crescentemente 
solapada pelo salariato – sobretudo a oeste da Europa? Na emergência de uma nova 
espiritualidade e, por outro lado, da secularização da vida? Na revivescência do direito 
romano, na proliferação de um novo grupo social formado por homens de letras que 
assessoram o poder real, no fortalecimento do próprio poder real, que transcende o âmbito 
privado da casa – a corte, com toda a gama de serviçais diretamente ligados à vida e às 
atividades do monarca – e ganha o espaço público da política de estado? 
 Se os elementos invocados – e seria possível lembrar outros mais – servem ao 
historiador da Época Moderna para reiterar o argumento da ruptura e da originalidade do 
período configurado a partir do século XV, não faltaram medievalistas que, para cada um 
desses pontos, puxaram a brasa para a sua sardinha. O estudo da pujança citadina da Idade 
Média produziu clássicos como os de Henri Pirenne8, enquanto a idéia, do mesmo autor, de 
que cessaram as comunicações entre mundo ocidental e oriental, sobretudo entre 
Cristandade e Islão, vem sendo relativizada há tempos9. Aliás, o que é a mesquita de 
Córdoba senão o monumento à memória do entrecruzar medieval de mundos e culturas? As 
viagens não são testemunhadas pelas trajetórias de homens como Pian Del Carpine, 
Guilherme de Rubruck, Marco Polo, Monte Corvino, Odorico de Pordenona e toda a legião 
dos cruzados que foram ficando nas imediações da Terra Santa?10 A servidão não 
permaneceu, afinal, sendo uma das formas de exploração do trabalho vigentes na sociedade 
moderna, e a sua crise não gerou arranjos novos – sem falar que, em essência, vigorou em 
regiões mais orientais da Europa até a segunda metade do século XIX? Cátaros, 
 
7 Le Goff, “Pour um long Moyen Age” in L’imaginaire médiéval…, p. 11. 
8 Por exemplo, as considerações de Henri Pirenne sobre o crédito em particular e o capitalismo em geral na 
Idade Média em História econômica e social da Idade Média, trad., São Paulo, Editora Mestre Jou, s/d.. 
Sobre o continuum entre as cidades medievais e as do Antigo Regime, ver Pirenne, As cidades da Idade 
Média, trad., 2a edição, [Lisboa], Publicações Europa-América, [1964]. 
9 Trata-se do belo livro de Pirenne, Maomé e Carlos Magno, trad., Lisboa, Publicações D. Quixote, s/d, 
que postula a idéia da interrupção: “O Ocidente é engarrafado e forçado a viver sobre si mesmo, fechado” : o 
império romano de Carlos Magno “consagra a ruptura do Ocidente e do Oriente” (p. 252). . 
10 Para uma introdução ao assunto, ver o livrinhode Jean-Paul Roux, Les explorateurs au Moyen-Age, 
Paris, Seuil, 1967, que arrola os contatos freqüentes e ininterruptos entre Oriente e Ocidente desde o início 
do século XIII, tanto individuais – como as referidas viagens- quanto coletivos e “institucionais”: :missões 
pontifícias, embaixadas, como as dos mongóis no ocidente. 
10 Le Goff, “Préface”, p. 12. 
 4 
albigenses, joaquimitas, franciscanos não foram reformadores medievais, expressões do 
anseio inequívoco de humanizar a religião por meio da crítica ao caráter excessivamente 
temporal da Igreja11? As universidades, viveiros de intelectuais, não foram um dos frutos 
privilegiados do movimento urbano, os universitários trazendo, por sua vez, problemas 
análogos aos desencadeados por seus contemporâneos, os mercadores?12. Filipe o Belo, 
Luís XI, Frederico II, João I de Avis centralizaram em suas mãos um poder bastante 
centralizado que em nada lembrava a fragmentação feudal. Os primeiros corpos legais 
datam da Idade Média: a Magna Carta dos Plantagenetas, as Sete Partidas de Afonso o 
Sábio, as Ordenações Afonsinas do período tardio dos Borgonhas portugueses. 
 Evidentemente, a questão é muito mais complexa do que este intróito pode deixar 
entrever. Tradicionalmente considerado como forma política surgida dos escombros do 
feudalismo, o estado centralizado, moderno – como os da Itália renascentista – ou absoluto 
– como o das monarquias dos séculos XVI, XVII e XVIII - traz à baila o problema da Idade 
Média longa. Em O imperador Frederico II , clássico de 1927, Ernst Kantorowitz 
destacou o papel desempenhado por este monarca Hohenstaufen na constituição do estado 
monárquico como forma política original. Trinta anos depois, em Os dois corpos do rei, 
procurou desvendar a constituição da realeza européia com base no entrelaçamento do 
conteúdo místico e político da figura real, tecido na longuíssima duração e capaz de fazer 
da Idade Média – quando o processo se inicia, no século X - e da Época Moderna - quando, 
no século XVII, se fecha - um verdadeiro continuum13. Em Os reis taumaturgos, para 
muitos a obra magna da historiografia francesa, Marc Bloch também buscou motivos não-
racionais para compreender a gênese do poder real e do estado monárquico, enfocando a 
questão do toque taumatúrgico dos reis de França e Inglaterra do século XII ao XIX14. 
Num livro fascinante e paradoxal, Linhagens do Estado Absolutista, o historiador 
marxista Perry Anderson arrolou argumentos e exemplos que ajudam a compreender a 
 
11 O célebre colóquio de Royaumont, ocorrido em 1962, defende, na sua concepção, a idéia de uma longa 
Idade Média herética, correspondente ao mundo pré-industrial e se estendendo do século XI ao XVIII. 
Jacques Le Goff (org), Hérésies et sociétés dans l’Europe pré-industrielle, Paris – La Haye, Mouton & CO, 
1968. Para um interessante estudo de caso, ver Grado G. Merlo, Eretici e inquisitori nella società 
piemontese del trecento, Torino, Claudiana Editrice, 1977. 
12 Le Goff, “Préface”, p. 12. Do mesmo autor, ver ainda Les intellectuels au Moyen-Age, Paris, Seuil, 1957. 
13 Ernst Kantorowicz, L’empereur Frédéric II , (1927), trad. Francesa, Paris, Gallimard, 1987. E. 
Kantorowicz, Les deux corps du roi (1957), trad. Francesa, Paris, Gallimard, 1989. 
14 Marc Bloch, Les rois thaumaturges – etude sur le caractère surnaturel attribué à la puissance royale 
particulièrement en France et en Angleterre (1923). Paris, Armand Colin, 1961. 
 5 
modernidade do estado absoluto mas, vendo a nobreza como sua classe fundamental, 
acabou, a contrapelo dos argumentos elencados, concluindo tratar-se de um estado feudal15. 
 Apesar de um dos dogmas da historiografia da Época Moderna ser, com obras 
desse quilate, arranhado ou pelo menos relativizado desde o início do século XX, a boa 
maioria dos especialistas continuou, então, vendo o estado dos séculos XVI, XVII e XVIII 
como quase sempre absolutista, associado à ascensão burguesa ou à necessidade de arbitrar 
os conflitos políticos e sociais da época, dotado de aparato legal e burocracia unificados e, 
na maior parte das vezes, identificado a uma nação.16 
 
2. Transição: uma saída? 
 
Abraçando uma perspectiva mais matizada, contudo, houve quem preferisse pensar 
antes em termos de transição, forma de reflexão intermediária entre o endosso da 
homologia absolutismo-modernidade e o reconhecimento da longa duração monárquica. O 
estado que Jacob Burckhardt, referência obrigatória no assunto, viu como “obra de arte” 
não foi necessariamente o monárquico, mas aquele que, polissêmico, multiforme e, mais 
que tudo, assentado no cálculo, nasceu na península italiana sem contudo ser capaz de 
consumar sua unificação 17. Cabe ao historiador estabelecer a separação entre a 
modernidade do estado e o seu caráter absolutista, que, este sim, pode, dependendo no 
enfoque, ser visto como rebento da Idade Média: em teoria e em direito, como argumentou 
Mousnier, a monarquia foi absoluta muito antes da Modernidade18. 
Uma das reflexões mais instigantes sobre a possibilidade de ter existido uma forma 
política transitória partiu, no final dos anos 50, de Federico Chabod. Destacando o 
 
15 Perry Anderson, El Estado Absolutista (1974), trad. espanhola, Madrid, Siglo Veintiuno, 1979. 
16 Para citar alguns exemplos: Immanuel Wallerstein, El moderno sistema mundial – la agricultura 
capitalista y los orígenes de la economía mundo europea en el siglo XVI. (1974). Trad. Espanhola. 
México, Siglo XXI, 1979 (apesar do título não deixar transparecer, o livro discute em profundidade a natureza 
do estado moderno absoluto). Roland Mousnier, Les institutions de la France sous la Monarchie Absolue – 
1598-1789. (1974).. 2a. edição, Paris , 1990. Robert Mandrou, L’Europe ‘Absolutiste’ – raison et raison 
d’Etat: - 1649-1775. Paris, Fayard, 1977. Emmanuel Le Roy Ladurie, L’Etat Royal – 1460-1610. Paris, 
Hachette, 1987. Emmanuel Le Roy Ladurie, L’Ancien Régime – I – 1610-1715 . Paris, Hachette, 1991. 
Emmanuel Le Roy Ladurie, L’Ancien Régime – II – 1715-1770. Paris, Hachette, 1991. 
17 J. Burckhardt, A cultura do Renascimento na Itália – um ensaio (1860). Trad. Brasileira, São Paulo, 
Companhia das Letras, 1991. 
18 F. Hartung e R. Mousnier, “Quelques problèmes concernant la monarchie asbolue” em Atti Del X 
Congresso internazionale di scienze storiche, Roma, 1957, pp. 429ss. 
 6 
surgimento de uma nova estrutura – a burocracia e o mercenarismo militar – e de um novo 
modo de atuação – a diplomacia e a busca do equilíbrio – no estado do renascimento, 
concluiu que este pode ser visto como antecipação do chamado estado moderno19. Outros, 
depois dele, pensaram a questão sem a mesma originalidade, recolocando, entretanto, a 
questão das formas transitórias20. 
O atual debate sobre a efetiva centralidade de poder do estado absolutista arranha 
tanto a idéia de que o absolutismo é especificamente moderno quanto a que o vê como 
originário das formas medievais, acentuando o caráter híbrido e, em última instância, 
transitório da formação estatal. Se há os que destacam com certa ligeireza o aspecto mítico 
do absolutismo – que nunca teria existido, os reis sempre alternando, na prática, o uso do 
poder pessoal e a consulta às assembléias21 - há outros que, de fato, trazem contribuições 
substantivas para se entender a natureza do estado que é anterior à Ilustração e à teoria dos 
três poderes, quando nasce de fato a forma moderna de governar. Muitos destes autores 
inspiram-se na historiografia constitucional alemã, voltada para as análises jurídicas 
tributárias dos escritos de Otto Brunner, utilizada tanto para evidenciar a indistinção entre 
público e privado, própria ao mundo do Antigo Regime, quanto as especificidades de uma 
ordenação social estamental e corporativa. Na Itália, onde, como se viu, a discussãosobre 
o Estado teve um momento importante nos estudos de Federico Chabod, o assunto continua 
na ordem do dia, girando em torno da perplexidade quanto ao fato de os italianos terem 
organizado o poder no “momento ideal e genético” dos Principados sem, contudo, 
“produzirem” formações monárquicas absolutistas22. Com suas peculiaridades – entre elas, 
o papel “cimentador” que nela teve o “império multipolar” espanhol - , a Itália do 
Seiscentos, como ocorrera já nos séculos anteriores, continua sendo, na convicção de 
 
19 F. Chabod, Escritos sobre el Renacimiento (1967), Trad. Española, México, Fondo de Cultura 
Económica, 1990, “Existe un Estado del Renacimiento?”, pp. 523-548 . Toda a parte terceira, “Los orígenes 
del Estado Moderno”, interessa muito a essa discussão. 
20 Russell Major, From Renaissance Monarchy to Absolute Monarchy – French Kings, Nobles and 
Estates (1994). Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1997. 
21 Nicholas Henshall, The Myth of Absolutism – change & continuity in Early Modern European 
Monarchy, Londres e Nova Iorque, Longmans, 1992. 
22 Cf. Pierangelo Schiera, “Legitimità, disciplina; istituzioni: tre presupposti per la nascita dello Stato moderno” in G. 
Chittolini, A . Molho e P. Schiera (org), Origini dello Stato. Processi di formazione statale in Italia fra Medioevo ed 
età moderna, Bolonha, Il Mulino, 1994. Giuseppe Petralia, “ ‘Stato” e ‘moderno’ in Italia e nel rinascimento” in Storica, 
n. 8, 1997, pp. 7-48. 
 7 
Aurelio Musi, “um extraordinário laboratório político”23. Há que destacar, ainda, os estudos 
sobre o papel dos ministros na consolidação do poder monárquico absoluto: 
“Institucionalmente, o valido surgiu na fase de transição entre uma burocracia privada e 
uma burocracia pública, entre uma concepção jurisdicionalista e instrumentalista do 
governo, entre o Rechtsstaat e o Verwaltungsstaat, entre a República Cristã e a raison 
d’état” 24. 
Na vertente portuguesa, inspirado tanto por Michel Foucault quanto pela história do 
Direito acima referida, Antonio Manuel Hespanha ressaltou a importância da estrutura 
polissinodal do Estado – quase que desprovido de centro - e dos afetos – tais como o amor 
– no estabelecimento e consolidação dos laços entre rei e súditos. Aquele era um mundo 
onde os “atos informais” importavam tanto ou mais do que os formais, onde os “poderes 
senhoriais”, a “autonomia municipal”, “os órgãos periféricos da administração real” eram 
decisivos25. No mundo ibérico, o paradigma jurisdicionalista teria limitado muito a ação da 
Coroa, e o esquema polisionodal fez com que cada um defendesse veementemente a sua 
esfera de competência, gerando conflitos cotidianos e contribuindo de modo decisivo “para 
a paralisia e a ineficácia da administração central da Coroa” 26. 
Sem ser elemento determinante na questão, os impasses sofridos pelo estado 
nacional na Europa de hoje ajudam a entender a voga desses estudos, intensos sobretudo 
entre o início da década de 1970 e a de 1990, e que, na sua versão mais radical e pós-
moderna, implodem a própria possibilidade de existência de um Estado moderno. O que 
interessa ao argumento deste ensaio é ressaltar que há uma tendência historiográfica 
contemporânea empenhada em limitar a especificidade do estado moderno, sobretudo o 
absolutista e que, ao faze-lo, subtrai ou pelo menos relativiza um dos melhores argumentos 
dos “modernistas” ante a idéia de uma Idade Média longa. 
Até aqui, deu-se destaque às discussões sobre o estado por serem mais recentes, mas 
foi no campo da economia que se travou, talvez, a mais encarniçada das batalhas sobre a 
transição da Idade Média para a Época Moderna. Muito mais do que a periodização, o que 
 
23 Cf. os ensaios do autor que compõem o interessantíssimo L’Italia dei Viceré – integrazione e resistenza 
nel sistema imperiale spagnolo, (2000) 2a. edição, Nápoles, Avagliano Editore, 2001, citação à p. 223. 
24 I.A.A. Thompson, “El contexto institucional de la aparición del ministro-favorito” in John Elliott e 
Laurence Brockliss (org), El mundo de los validos (1999), trad. Española, 2ª. Edição, Madrid, Taurus, 
2000, p. 37. . Todo o livro trata da questão dos validos, em diferentes partes da Europa. 
25 As vésperas do Leviathan, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 33 e segs. 
 8 
estava em jogo era a reflexão sobre o surgimento do capitalismo: quando se poderia falar, 
com segurança, de que este sistema triunfara sobre o feudal: quando as trocas comerciais 
começaram a gerar acumulação de capital ou quando a forma de trabalho assalariado se 
generalizou? Como qualificar a fase intermediária: pré-capitalismo, capitalismo mercantil 
ou comercial, mercantilismo? O marxismo desempenhou papel central na polêmica, não 
raro colocando questões instigantes mas teleológicas, como a que abre uma das partes do 
célebre ensaio de E.J. Hobsbawm: “Por que a expansão de finais do séculos XV e XVI não 
conduziu diretamente à época da Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX? Em outras 
palavras, quais foram os obstáculos para a expansão capitalista?”27. A explicação recaiu 
freqüentemente sobre a crise geral do século XVII, período transitório por excelência, 
fustigado pelos horrores da Guerra dos Trinta Anos, pela estagnação econômica e por um 
sem-número de revoltas sociais: nobres, como a Fronda dos Príncipes franceses; burguesas, 
como a inglesa de 1640; camponesas, como a dos croquants e a dos nu-pieds ; 
“nacionalistas”, como as da Catalunha (fracassada) e a de Portugal (vitoriosa)28 . 
Questão análoga à de Hobsbawm sobre o surgimento hipotético da Revolução 
Industrial a partir da expansão do comércio nos séculos XV-XVI coloca-se para a 
consolidação da burguesia enquanto classe dominante: nem poderia ser diferente, na 
medida em que os burgueses comerciantes foram os principais agentes da acumulação 
primitiva de capital. Análoga, igualmente, é a célebre explicação de Braudel: a burguesia 
fracassou ou traiu, preferindo investir em terras ou em cargos o dinheiro ganho com a 
 
26 Idem, pp. 286, 288-289. 
27 E.J.Hobsbawm, “La crisis general de la economía europea en el siglo XVII” em En torno a los orígenes de 
la revolución industrial. Trad. Española, 2ª. Edição, Buenos Aires, Siglo XXI, 1972, p. 19. No Brasil, 
fizeram época certos escitos sobre a passagem do feudalismo para o capitalismo, como Maurice Dobb, A 
evolução do capitalismo (1963), trad., Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Theo Santiago (org.),Capitalismo – 
Transição, Rio, Livraria Eldorado, 1974. Seria impossível arrolar todos os títulos que se ativeram ao assunto. 
Cito, à guisa de exemplo, algumas coletâneas: Paul M. Sweezy, Maurice Dobb, H.K.Takahashi, Rodney 
Hilton, Christopher Hill – Do feudalismo ao capitalismo, , trad. Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom 
Quixote, 1971 ; J. Godechot, M. Garaud, A. Soboul et allii – La abolición del feudalismo em el mundo 
occidental (1971), trad. Espanhola, Madrid, Siglo XXI, 1979. Giuliano Conte, Da crise do feudalismo ao 
nascimento do capitalismo (1976), Lisboa, Presença, 1979. 
28 É extensíssima a bibliografia sobre a crise do século XVII e as revoltas de natureza variada que sacudiram a 
Europa de ocidente a oriente no século XVII e início do XVIII. Para um balanço bibliográfico mais completo, 
remeto a meu artigo “Notas sobre as revoltas e as revoluções da Europa Moderna” in Revista de História, São 
Paulo, 2º semestre de 1996, nº 135, pp.9-17. Para a problemática do mercantilismo, veja-se o clássico de Eli 
F. Heckscher, La época mercantilista – historia de la organización y las ideas economicas desde el final 
de la Edad Media hasta la Sociedad Liberal. (1931). Trad. Espanhola,México,Fondo de Cultura 
Económica, 1943. Pierre Deyon, O mercantilismo, (1969), tradução brasileira, São Paulo, Persapectiva, 
1973. 
 9 
mercancia, “enorme revanche da terra e dos campos sobre as cidades”. Na Toscana, a volta 
à terra dos grandes comerciantes é “imagem loquaz” desse processo, um século apenas após 
Lourenço, o Magnífico; quando Stendhal visitou a Itália, o “antigo cenário burguês havia se 
esboroado”29. Braudel relativiza: “Traição semi-inconsciente, pois não existe ainda uma 
classe burguesa que sinta de fato constituir-se como classe”. De qualquer modo, é fato que, 
por toda parte, “os burgueses de todas as origens são atraídos pela nobreza; ela é o seu sol. 
Sua ambição é galgar as fileiras nobres, misturar-se com elas, pelo menos nelas introduzir 
suas filhas ricamente dotadas”30. 
O melhor retrato do burguês arrivista que deseja parecer o que não é encontra-se no 
Monsieur Joudain de O burguês fidalgo, comédia de Molière representada pela primeira 
vez em 1673. Por outro lado, numa explicação engenhosa, a tragédia de Racine, bem como 
a filosofia de Pascal, expressam o dilaceramento, próprio à nobreza togada – que é uma 
burguesia enobrecida - entre o valor do dinheiro e o da honra31. Análises mais matizadas, 
como a de Braudel, agora em Civilização material, economia e capitalismo, escandem os 
limites entre burguesia e nobreza, entre trabalho e ócio, entre honra e dinheiro: os nobres 
comerciaram, os grandes burgueses nem sempre valorizaram os atributos da nobreza de 
espada e acabaram por criar seu modo próprio de vida32. A burguesia consagrada pelo 
século XIX e pelo romance – quando, para usar a terminologia marxista, é classe em si e 
para si - não tem muito a ver com a burguesia hesitante da Época Moderna, 
economicamente poderosa, mas, muitas vezes ainda, eclipsada pela nobreza, ou a ela 
convertida. 
Se o Estado, a economia e a sociedade alternam os traços que os aproximam da 
modernidade com os que os puxam de volta para o mundo medieval, a esfera da alta cultura 
apresenta clivagens mais nítidas, mesmo assim passíveis de discussões acaloradas, como se 
verá no próximo tópico. O universo da cultura, da religiosidade e das crenças populares, 
por sua vez, é um dos aspectos mais ambíguos e enigmáticos dessa fase. Não por acaso, 
 
29 Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris, 
Librairie Armand Colin, 1949, p.616. 
30 Idem, ibidem, p. 619. 
31 Lucien Goldmann, Le dieu caché – étude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le 
théatre de Racine. Paris, Gallimard, 1969. 
32 Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme – XVe – XVIIIe siècle, Paris, Armand 
Colin, 1979, vol 2, Les jeux de l’échange, cap. 5, “La société ou l’ensemble des ensembles”, pp. 407-536. 
 10
muitos dos medievalistas que, como Le Goff, reivindicaram para a Idade Média uma 
duração de dezessete séculos foram ou são estudiosos desse universo. 
Como ressaltaram os tranalhos da escola dos Annales e de muitos outros 
historiadores europeus não diretamente ligados a ela, a religião e o conto popular 
continuaram encantados até o coração do mundo industrial – se é que, hoje, se 
desencantaram, como indagam os estudiosos que, na contemporaneidade, se debruçam 
sobre esses fenômenos. Uma das grandes constatações do Concílio de Trento foi a de que 
se abria um fosso incontornável entre o cristianismo dogmático e o do povo, entre religião e 
religiosidade. Como viu Delumeau, a religião era eivada de “folclorismos”, imperfeita, 
talvez33. Os jesuítas, missionários de primeira hora no mundo americano, chamavam os 
campos europeus de “as nossas Índias”34. Ninguém sabia as orações de praxe – Pai Nosso, 
Credo, Ave-Maria – ou os mandamentos da Lei de Deus, para não falar de tópicos bem 
mais complicados, como a ordem das pessoas da Santíssima Trindade ou o dogma da 
concepção de Maria, que continuou virgem após o parto. A Reforma Católica reforçou o 
papel das dioceses e dos bispos, obrigados desde então a visitar regularmente suas ovelhas 
para melhor vigiar e normatizar as populações européias, que continuavam misturando 
magia e religião, indistinguindo natureza e cultura: no dizer de Bartolomé Bennassar, foi o 
tempo da “pedagogia do medo”35. No mundo popular, animais infratores deviam sofrer 
julgamento e punição, reservando-se a bênção e o acolhimento nas igrejas para os bichos 
doentes ou para os bem-comportados36. Amantes inseguros murmuravam as palavras da 
 
33 Jean Delumeau, Le catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris, PUF, 1971; do mesmo autor, Un chemin 
d´Histoire – Chrétienté et christianisation, Paris, Fayard, 1981, livro muito interessante por revelar as 
mudanças sofridas pelas concepções teóricas do autor, que evolui de uma visão segundo a qual a religiosidade 
popular é “imperfeita” porque folclorizada para outra, mais próxima à da terceira geração dos Annales, que 
relativiza a idéia de sobrevivência em benefício de uma idéia positiva de “vivência religiosa” (“Não existe 
sobrevivência: tudo é vivência, ou não é”, diria Jean-Claude Schmtt em “ ‘Religion populaire’ et culture 
folklorique”, Annales, E.S.C., 31e année, no 5, set-oct. 1975). Não me deterei na problemática da Reforma, 
que acompanha quase sempre a do Renascimento como se constituíssem, com ele, um nexo. Discordo de 
posições como as de Le Goff em “Pour um autre Moyen Age”, que vêm a Reforma como ruptura mais 
plausível com o mundo medieval. 
34 Enviado à Córsega em 1553, o jesuíta Silvestro Landini escreveu a Santo Inácio: “Non ho mai provato terra 
che sai piú bisognosa delle cose dil Signor di questa. Vero è quello che me scrisse il P. Maestro Polanco,che 
questa isola sara la mia Índia, meritória quanto quella dil preste Giovanni, perché qua c’è grandíssima 
ignorantia di Dio” in Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza – inquisitori, confessori, missionari. 
Turim, Einaudi, 1996, cap. 28, “Le nostre Indie”, pp. 551-599, citação à p. 555. 
35 “L’Inquisition ou la pédagogie de la peur” in Bartolomé Bennassar (org.), L’Inquisition Espagnole – Xve-
XIXe siècle. Paris, Hachette1979. 
36 E.P. Evans, The criminal prosecution and capital punishment of animals – the lost history of 
Europe´s animal trials (1906). Londres, Faber and Faber, 1987. O autor apresenta um apêndice documental 
 11
consagração junto à boca do parceiro, durante o ato sexual, certos de, assim, garantirem 
afeição por muito tempo. Mundo em que sapos viravam príncipes, moças malcriadas 
punham lagartixas e imundícies pela boca, curandeiros extraíam novelos de espinhos, unhas 
e cabelos dos corpos doentes, padres exorcizavam os demônios imundos escondidos nas 
possessas e bruxas freqüentavam conventículos cavalgando vassouras37. 
Aliás, a feitiçaria é um objeto privilegiado para se pensar o problema da passagem 
do mundo medieval para o moderno, e poucos se deram conta disso tão bem como Hugh 
Trevor-Roper, num ensaio muito brilhante, apesar de entremeado de equívocos: “A obsesão 
das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII é um fenômeno surpreendente: um aviso a todos 
aqueles que pretendem simplificar os estágios do progresso humano. A partir do século XVIII, tem 
havido uma certa tendência para considerar a história da Europa, da Renascença em diante, como a 
história do progresso, e de um progresso que tem parecido constante. Pode ter havido variações 
locais, obstáculos locais, recuos ocasionais, mas o padrão geral é o de um avanço persistente. A luz 
conquista terreno às trevas, contínua, se bem que irregularmente. A Renascença, a Reforma, a 
Revolução Científica assinalam os estádios da nossa emancipação das grilhetas medievais.” 
Olhando retrospectivamente e de forma rápida, diz o autor, é compreensível que a 
apreensão seja esta. De perto, e mais detidamente, vê-se, contudo,um outro padrão: “Nem a 
Renascença, nem a Reforma, nem a Revolução Científica são, de acordo com os nossos termos, 
pura ou necessariamente progressivas. Cada uma delas tem uma face de Jano. Cada uma delas é 
composta de luz e trevas. [...] E por debaixo da superfície de uma sociedade cada vez mais 
sofisticada, que paixões obscuras e credulidades inflamáveis não encontramos, umas vezes libertas 
acidentalmente, outras deliberadamente mobilizadas. A crença nas bruxas é uma dessas forças. Nos 
séculos XVI e XVII não era apenas o vestígio de uma antiga superstição prestes a desaparecer, 
como poderiam supor os profetas do progresso. Era uma força nova e explosiva, que com a 
passagem do tempo se expandia contínua e assustadoramente. Naqueles anos de aparente 
iluminação, as trevas estavam a ganhar terreno sobre a luz em pelo menos um quarto do céu”38. 
 
com uma relação de animais excomungados e processados entre o século IX e o XIX: um caso de longuíssima 
duração! Cf. pp. 265-286. 
37 É extensíssima bibliografía sobre o conto e a cultura popular. Lembro aqui a ótima introdução de Peter 
Burke, Popular culture in Early Modern Europe, Londres, Temple Smith, 1978, e o estudo clássico de 
Pierre Saintyves, Les contes de Perrault et les récits paralèles (leurs origines) (1923), Paris Editions 
Robert Laffont, 1987. 
38 Hugh Trevor Roper, “A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII” (1967) in Religião, 
reforma e transformação social, tradução portuguesa, Lisboa, Editorial Presença/Martins Fontes, 1981, pp. 
73-, citações à p. 73. 
 12
Não cabe aqui arrolar as explicações plausíveis para a intensificação da caça às 
bruxas entre o final do século XV e a primeira metade do XVIII, nem sobre as variações 
regionais e temporais que conheceu – foi tardia na Rússia e em Portugal, mais intensa na 
Alemanha e em algumas regiões da França, etc39. Explicar por que o povo acreditava em 
bruxas, mesmo que tais crenças tenham se mostrado crescentemente demonizadas no 
período, também não vale a pena: afinal, elas têm enraizamento milenar em mitologias e 
cosmogonias várias, pertencentes a múltiplas tradições40. O que de fato intriga, e ajuda a 
pensar o problema da periodização, é que o momento áureo da caça – entre 1580 e 1630 – 
coincidisse com períodos da vida de Bacon, Montaigne e Descartes. Que a vanguarda do 
pensamento europeu da época e a demonologia – verdadeira ciência que então se constituiu 
– andassem de mãos dadas: Jean Bodin escreveu obras decisivas sobre economia e política, 
sendo também autor de um célebre tratado demonológico; o rei Jaime I da Inglaterra foi, 
simultaneamente, demonólogo e teórico do Estado; Martín del Rio, demonólogo jesuíta, era 
homem de vasta cultura. Considerando em conjunto a obra de todos eles, lembra Roper, 
“verificamos que escreveram sobre demonologia não porque se interessassem especialmente por 
esse campo da ciência, mas porque tiveram de o fazer. Homens que procuravam exprimir uma 
filosofia consistente da natureza não podiam excluir esse prolongamento necessário e lógico, se 
bem que pouco edificante, da mesma”41. 
 Contrariamente a Febvre, para quem o platonismo renascentista, “na medida em que 
postulava um mundo de demônios”, teria ajudado na crença em bruxas, Roper o considera 
logicamente incompatível com tais crenças, definidas pelos demonólogos com base no 
aristotelismo escolástico que as Reformas prolongaram e trouxeram até o século XVII42. 
Com a vitória da ciência moderna, esse ramo medieval seria para sempre decepado. 
 Tendo bebido em Roper, mas também em Evans-Pritchard e no contextualismo 
britânico de Poccock, Stuart Clark publicou, há poucos anos, um estudo fundamental sobre 
a feitiçaria européia, para ele, constitutiva de um momento específico do pensamento 
 
39 A bibliografía sobre feitiçaria é enorme. Uma boa introdução é a de Brian Levack, The Witch-hunt in 
Early Modern Europe, Londres e Nova York, Longman, 1987, e o belo livro de Julio Caro Baroja, Las 
brujas y su mundo, Madrid, Revista de Occidente, 1961. 
40 Carlo Ginzburg deteve-se sobre os aspectos morfológicos da crença em bruxas em Os andarilhos do bem 
– feitiçarias e cultos agrários (1966), tradução brasileira, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, e em 
História Noturna – decifrando o sabá,1989), tradução brasileira, São Paulo, Companhia das Letras, 1991. 
Este último trabalho coloca também o problema da difusão das crenças no contexto euro-asiático. 
41 Trevor-Roper, op. Cit., p. 136. 
42 Idem, ibidem, p. 103, nota 1 
 13
europeu - a primeira modernidade - e presente em todas as suas manifestações: na 
linguagem, na ciência, na história, na religião e na política43. 
Como se vê, a feitiçaria é um objeto especial para se pensar a transição, e autores 
diferentes podem puxar essa sardinha para brasas medievais ou modernas. Um dos 
elementos invocados por Le Goff para caracterizar sua longa Idade Média foi, afinal, a 
onipresença de Deus e do Diabo: “Sobretudo, essa longa Idade Média é dominada pela luta, 
no homem ou em torno dele, de dois grandes poderes quase iguais, apesar de um deles ser, 
teoricamente, subordinado ao outro, Satã e Deus. A longa Idade Média feudal é a luta do 
Diabo e do Bom Deus. Satã nasce e morre nas duas extremidades do período”44. 
 
3. O Renascimento: periodização e conceito. 
 
Dada a impossibilidade de analisar em detalhe cada uma das questões passíveis de 
serem desperiodizadas e reperiodizadas, darei ênfase ao papel desempenhado pelo 
Renascimento nessa discussão45. Independente do fato de as fronteiras entre a Idade Média 
e a Época Moderna serem flexíveis, difusas, sob constante disputa e reinventadas a cada 
momento histórico, o Renascimento é um fenômeno desperiodizador por excelência, e 
desta maneira recolocado em voga nos anos 40 e 50 do século XX46. Fenômeno, por outro 
lado, constitutivo, como os demais referidos até aqui, da Época Moderna: como bem viu 
Delio Cantimori, a renovação do interesse pelo Renascimento não pode ser visto 
isoladamente. Se envolveu historiadores da arte, da literatura, da filosofia, do pensamento 
político ou, mais genericamente, “das idéias”, ocorreu no mesmo contexto em que 
historiadores econômicos, no geral marxistas, debateram o problema do fim do feudalismo 
e dos começos do capitalismo ou da preeminência burguesa. Em síntese, a periodização do 
 
43 Stuart Clark, Thinking with demons – the idea of witchcraft in Early Modern Europe, Oxford, 
Clarendon Press, 1997. A obra de Pritchard é, evidentemente, Witchcraft, Oracles and Magic among the 
witchcraft , Oxford, Clarendon Press, 1937, que analisa a bruxcaria Azande como forma de explicação causal. 
44 Le Goff, “Pour um long Moyen Age”, p. 11. 
45 Ver, como exemplo da quase sempre estéril “busca das origens”, Walter Ullmann, “The medieval origins of 
the Renaissance”, in André Chastel et alii, The Renaissance – essays in interpretation, (1979), trad. do 
italiano, Londres e Nova York, Methuen, 1982, pp. 33-82. 
46 E. Panofsky, “Renacimiento: autodefinición o autoengaño?” in Renacimiento y renacimientos en el arte 
occidental (1960), trad., 3ª edição, Madrid, Alianza Universidad, 1981, p. 35. Delio Cantimori, op. Cit.,, p. 
345. 
 14
Renascimento é, no fundo, uma problematização sobre o onde e o como das mudanças 
estruturais47. 
Infindáveis seriam os argumentos acerca das origens medievais dos fenômenos 
artísticos considerados como eminentemente renascentistas, invocados – e discutidos – 
com raro brilho em um dos melhores textos já escritos sobre o assunto: “Renacimento e 
Renascimentos” , de Erwin Panofsky. Não detalharei os argumentos, mas, em seu devido 
tempo,voltarei a este escrito do autor48. 
 Instrumento imprescindível para a reflexão sobre a História, pois tenta agrupar as 
temporalidades de modo lógico e sistêmico – ou, como diz Delio Cantimori, por delimitar e 
subdividir “um processo histórico dado (de história ‘universal’, de história nacional, de 
história de uma instituição, etc) em termos cronológicos” - a periodização carrega em si, 
por um lado, um grau considerável de arbitrariedade e, por outro, implica, 
obrigatoriamente, em critérios de interpretação49. Todo historiador digno do nome 
periodiza: à sua maneira, quando o trabalho tem viés mais específico, monográfico, ou na 
forma tradicional e acadêmica, que é a que interessa aqui. Com muita propriedade, 
Cantimori lembra que a diferença entre uma e outra forma – a própria e a tradicional – 
reside no fato de, no primeiro caso, seus adeptos estarem conscientes de que interpretam 
quando optam por um determinado corte cronológico, o que, no segundo caso, quase nunca 
ocorre. 
 Poucas discussões sobre periodização trazem, pois, tantas questões interpretativas e 
conceituais como a que envolve os limites entre Idade Média e Época Moderna. Em que 
pesem as considerações sobre o caráter intermediário da Antigüidade Tardia, Antigüidade e 
Idade Média são considerados períodos distintos: Le Goff, por exemplo, assim o fez nos 
textos acima referidos. Também pouco se questionam as características constitutivas da 
Época Contemporânea, cujo período mais recente começa agora a se esfumar ante a 
velocidade vertiginosa de mudanças que, com certeza, já indicam uma outra temporalidade, 
ainda impossível de qualificar. Não entrarei na discussão sobre o viés ocidentalizante e 
 
47 Delio Cantimori, , “La periodización de la época renacentista” (1955), in Los historiadores y la historia, 
trad., Barcelona, Península, 1985, pp. 343-, citação à p. 345. 
48 “Renacimiento y Renacimientos” in op. Cit., pp. 83-173. 
49 Obviamente, defino periodização de modo simples e meramente operacional, com vistas apenas o 
desenvolvimento de minha argumentação. Para uma definição muito mais complexa, remeto a Delio 
Cantimori, op. Cit., em quem me baseei para os comentários que seguem. A citação acima é sua, p. 343. 
 15
redutor da periodização acadêmica, muito em voga na Pós-Modernidade – como 
compatibilizar essa periodização com a história africana, indígena, chinesa, indiana, etc – 
porque o objeto que aqui se trata é eminentemente ocidental. 
Mantendo tal escopo, talvez a primeira questão cabível seja a do caráter 
mutuamente referido dos dois períodos em questão: Idade Média e Época Moderna só são 
definíveis com relação uma à outra, já que, historicamente, foram os homens do 
Renascimento que começaram a qualificar os seus antecessores imediatos para, 
simultaneamente, serem capazes de se distinguir: como bem viu Erwin Panofsky, uma das 
características marcantes do Renascimento é a auto-consciência50, que, para Eugenio Garin, 
manifestou-se sobretudo entre os humanistas. Não foram poucos os que, como Leon 
Battista Alberti - o homem universal de J. Burckhardt – sentiram com tristeza que viviam 
um momento único, em que a insegurança e a transformação contínuas impunham limites 
às obras: “...o mito do renascimento, da nova luz e, portanto, da obscuridade correspondente que 
teve de precedê-la foi produto, precisamente, da polêmica dos humanistas contra a cultura dos 
séculos precedentes. É indiscutível que os escritores do século XV insistiram até o paroxismo na 
sua revolta contra uma situação de barbárie e em favor de um renascimento da humanitas. Também 
é indiscutível que nunca, até então, havia existido uma impressão tão viva de estar-se assistindo a 
um giro radical do curso da história.. Por todas as partes surge a idéia de que se está produzindo a 
submersão de um mundo, e por todas as partes aparecem elementos que a confirmam. Uma visão de 
mundo que parecia já cristalizada se desfazia, não obstante, inevitavelmente51”. 
 Gerações sucessivas de italianos se autodenominaram “modernos”, opondo-se aos 
“velhos” – os medievais - mas identificando-se com os “antigos” – os gregos e romanos. 
Fazendo-o, construíram a imagem – positiva - de si próprios como especiais, e 
caracterizaram o período imediatamente anterior como idade das trevas, tenebrae: dava-se 
início ao processo de detração de um longo período histórico, hiato tenebroso que 
repudiara ou esquecera o legado da brilhante Antiguidade clássica, agora reclamado pelos 
renascentistas. 
 
50 “Renacimiento: autodefinición o autoengaño?” in Renacimiento y renacimientos en el arte occidental, 
pp. 31-81. 
51 J. Burckhardt, A cultura do Renascimento na Itália, parte 2, “O desenvolvimento do indivíduo”, p. 117. 
Eugenio Garin, “Interpretaciones del Renacimiento”, em Medioevo y Renacimiento (1973), tradução 
espanhola, Madrid, Taurus, 1986, pp. 69-81, citação à p. 77.. 
 16
Petrarca teria sido o autor dessa verdadeira inflexão na teoria da história, 
substituindo a idéia de um desenvolvimento contínuo, originado com a criação do mundo, 
pela idéia de interrupção: entre a história antiga e a história nova, estendia-se uma idade 
obscura e decadente, iniciada “quando o nome de Cristo começou a ser venerado em Roma 
e adorado pelos imperadores romanos”: “...ao transferir para o estado da cultura intelectual 
exatamente os termos que os teólogos, os Padres da Igreja e inclusive a Sagrada Escritura aplicavam 
ao estado da alma (lux e sol em oposição a nox e tenebrae, ‘vigília’ em oposição a ‘torpor’, ‘visão’ 
em oposição a ‘cegueira’) e sustentar que os romanos pagãos tinham vivido na luz enquanto os 
cristãos caminhavam na escuridão, [Petrarca] revolucionou a interpretação da história de modo tão 
radical quanto Copérnico, duzentos anos mais tarde, haveria de revolucionar a interpretação do 
universo físico”52. 
 A convicção de que se verificara uma mudança não foi generalizada, ocorrendo 
paulatinamente entre os séculos XIV e XVI: Petrarca viu renovação no âmbito da palavra, 
Boccaccio pensou-a para a experiência visual, Lorenzo Valla incorporou-a à arquitetura e à 
escultura. Por fim, em 1550, Vasari enfrentou o renascimento artístico enquanto fenômeno 
total, dividido em três idades, e o batizou, conforme Panofsky, com um nome coletivo: La 
Rinascita53. 
Na época de Vasari, havia grande confusão terminológica entre velho, antigo e 
moderno. Afinal, como lembra Panofsky – guia imprescindível neste trajeto -, “os termos 
que nomeiam relações temporais são imprecisos por natureza”54. Moderno, palavra 
cunhada provavelmente por Cassiodoro no século VI (modernus), denotava apenas algo 
recente ou do presente, “mas não necessariamente algo moderno por oposição a algo 
distinto e definido, que haja ocorrido antes”55. Acepção próxima à que se encontra ainda 
hoje entre a população de algumas regiões do Brasil, para quem o irmão mais jovem é “o 
mais moderno”. Para complicar as coisas, usava-se moderno também para qualificar as 
obras arquitetônicas dos mestres transalpinos, que hoje chamaríamos de góticos e que eram, 
então, designados como os adeptos da maniera tedesca. Antigo, por sua vez, designava, 
em geral, algo do passado, e se confundia com velho. Por meio de uma terminologia 
complicada mas coerente, Vasari procurou tornar os conceitos mais claros: a expressão 
 
52 Idem, ib., p. 43 
53 Panofsky, idem, p. 69. 
54 Panofsky, idem, p. 72. 
55 Panofsky, idem, p. 72. 
 17
maniera vecchia (equivalente a “estilo antiquado”) ficava restrita ao estilo dos gregos 
velhos, mas não antigos: os do passado, mas não da Antiguidade, ou em outras palavras, ao 
que hoje se conhece como bizantino ou bizantinizante. Maniera antica, por sua vez, 
identificava-se com “estilo antigo”, com a buonamaniera greca antica (“o bom estilo 
grego antigo”), equivalente ao que hoje se chama de clássico. “E para diferenciar a arte de sua 
própria época, tanto do estilo ‘antiquado’ da Idade Média como do estilo ‘clássico’ da Antiguidade, 
Vasari propôs designa-la com o mesmo termo até então reservado para a arte medieval: o termo 
moderno. Na terminologia de Vasari, pois, esta palavra ainda não denota um estilo oposto à ‘boa 
maneira grega antiga’, mas essa ‘boa maneira grega antiga’ restaurada por oposição ‘a ‘boa 
maneira grega antiga’ propriamente dita. Freqüentemente qualificado com epítetos como ‘bom’ ou 
‘glorioso’ (buona maniera moderna, il moderno si glorioso), o termo ‘moderno’ se converte, 
assim, em sinônimo geral do estilo do ‘Renascimento’ enquanto oposto ao da Idade Média”56. Num 
sentido mais estrito, moderno se aplicou sobretudo ao Alto Renascimento do Cinquecento, 
a “terceira idade”, para Vasari, distinguindo-se das duas outras que compunham a 
Rinascita. 
Foi assim que antigo se tornou uma designação positiva e velho adquiriu tom 
negativo: até hoje, um móvel velho não tem nada a ver com um móvel antigo. Moderno, 
como período da História, tornou-se, por sua vez, sinônimo de Renascimento; no mundo 
acadêmico do Ocidente, a História Moderna (que os ingleses, talvez por originalidade, 
talvez por pragmatismo, chamam de Early Modern), abre-se justamente com essa época. 
 Surgido a partir da auto-consciência humanista, o Renascimento é muito mais do 
que um marco cronológico: desde o primeiro momento, foi um conceito cultural, pois era 
do renascimento da civilização que se tratava. Esse conteúdo, lembra Huizinga num ensaio 
imprescindível57, foi descartado pelos homens do século XVII, afeitos à disciplina, à 
sobriedade e pouco dados à emoção. Mas a primeira geração de ilustrados retomou-o, e o 
Dicionário de Pierre Bayle o formulou do modo que seria daí em diante encontrado até em 
livros didáticos: com a queda de Constantinopla, os sábios migraram para a Itália, levando 
consigo o conhecimento grego. Algumas décadas depois, contudo, Voltaire traria, no 
Ensaio sobre os costumes, uma outra visão do fenômeno: a pujança econômica e a 
liberdade das cidades italianas foram as razões verdadeiras do Renascimento, a Toscana – e 
 
56 Panofsky, idem, p. 73. 
 18
não Constantinopla – sendo a grande força renovadora. A explicação não repousava em 
causas externas, mas internas, o que sem dúvida significava um refinamento analítico. Ao 
longo do primeiro quartel do século XIX, o termo foi usado várias vezes na acepção 
estilística: na Histoire de la peinture en Italie (1817), por exemplo, Stendhal falou de 
renascimento das artes. Huizinga acredita ter sido Balzac quem, de novo, passou a ver “a 
palavra Renascimento como um conceito cultural autônomo, no conto Le bal de Sceaux, 
escrito no final de 1829, no qual se diz de uma das principais personagens que ‘podia 
discorrer fluentemente sobre pintura italiana ou flamenga, sobre a Idade Média ou o 
Renascimento’ ”58. Ia-se delinenado, assim, “o sistema conceitual por meio do qual a 
história da Europa deveria, quase sempre, ser concebida desde então”, e onde a Idade 
Média e o Renascimento apareciam como “antíteses explícitas, cada uma delas constituindo 
uma imagem cultural”59. 
 Um momento decisivo na construção européia do conceito foram as conferências 
proferidas por Jules Michelet no Collège de France, em 1840 e 1841, base para o futuro 
volume sobre o século XVI que, em 1855, integraria, com o subtítulo Renaissance, a sua 
História da França. Lucien Febvre estudou em profundidade essas conferências, e teceu 
sobre elas algumas considerações interessantes, mesmo se arriscadas – o que fosse, talvez, 
bem do gosto do próprio Michelet. Após ter exaltado a Idade Média, diz Febvre, Michelet 
matou-a, “para que a Renascença pudesse viver60”. Para matar a Idade Média, rompeu com 
o cristianismo e criou um conceito civilizacional: “... a sua Renascença não é introduzida, 
simplesmente, no domínio das artes na Itália, por Cimabue e Giotto, florentinos. Nem 
simplesmente, na história literária, pelo êxodo de alguns Hermonymes e Chrysoloras para o 
Ocidente, após a catástrofe de 1453. A renascença de Michelet é a Renascença do homem integral, 
porque a sua história é a história do homem integral, do homem em toda a ação das suas diversas 
faculdades” 61. Criou-se, assim, a bela fórmula que vigora até hoje: o século XVI vai de 
Colombo a Copérnico, de Copérnico a Galileu, da descoberta da terra à descoberta do céu, 
consagrando, pois, a descoberta do mundo e do homem. 
 
57 Johan Huizinga, “The problem of the Renaissance” in Men & Ideas – History, the Middle Ages, the 
Renaissance. Tradução inglesa, Londres, Eyre & Spottiswoode, 1960. 
58 Huizinga, op. Cit., p. 253. 
59 Idem, ibidem, pp. 253-254. 
60Lucien Febvre, Michelet e a Renascença. Tradução, São Paulo, Scritta, 1995, p. 263. Os cursos foram 
publicados pela primeira vez na França em 1994. 
61 Idem, ibidem, p. 250 e p. 46. 
 19
Huizinga acredita que, influenciado por Voltaire e por Michelet, J.Burckhardt deu 
ao Renascimento o seu significado conceitual mais pleno. Michelet prendia-se ainda à 
tradição ilustrada, que procurou ver um nexo entre o Renascimento e as Luzes, o primeiro 
constituindo “a aurora festiva” da segunda. A Itália, como viu Febvre, desempenhava papel 
diminuto na sua explicação, que enfatizava também a proximidade entre Renascimento e 
Reforma (que aliás permaneceu freqüente até os estudos contemporâneos, sobretudo no 
mundo protestante)62. Com A Cultura do Renascimento na Itália (1860) dava-se, de fato, 
uma guinada, e a perspectiva, lançada por Michelet, de que ocorrera uma grande 
transformação cultural foi dirigida num sentido diferente: “Foi o primeiro a ver o 
Renascimento independentemente de qualquer conexão com a Ilustração e com o 
Progresso, não mais como prelúdio e anúncio da excelência posterior, mas como ideal 
cultural sui generis”63. 
Huizinga termina sublinhando a fragilidade do conceito Renascimento: não é 
definido nem no que diz respeito a seus limites temporais, nem no que diz respeito à 
natureza e essência dos fenômenos que o constituem. “O Renascimento foi uma virada da 
maré”: a melhor imagem para a transição entre Idade Média e Renascimento “é a de uma 
longa sucessão de ondas que rolam para a praia, cada uma quebrando num ponto e num 
momento diferentes”64 . A possibilidade de múltiplas periodizações esfumaça o conceito: 
“O Renascimento não pode ser considerado mero contraste com relação à cultura medieval, nem 
mesmo como território de fronteira entre a época medieval e a moderna. Entre as linhas básicas que 
dividem a cultura intelectual mais antiga dos povos do ocidente e a cultura intelectual mais 
moderna, algumas separam Idade Média e Renascimento; outras separam o Renascimento e o 
século XVII; outras ainda correm direto ao coração do Renascimento; outras, por sua vez, 
remontam ao século XIII ou avançam até o século XVIII ”65. 
Huizinga, como Ladurie, Le Goff e muitos outros, quis reagir à polaridade que, com 
Michelet e com Burckhardt, ou seja, a partir dos anos de 1840 e 1860 do século XIX, 
estabeleceu-se entre a Idade Média e o Renascimento. Hoje em dia, há certa voga em 
 
62 Ver, por exemplo, Douglas Hay, “Historians and the Renaissance” em André Chastel et allii, The 
Renaissance...: “para muitas crianças protestantes, até meus tempos de escola na Grã-Bretanha, a importância 
do Renascimento residia no fato de ser um prelúdio da Reforma, muito mais importante, como atestam os dois 
primeiros volumes da Cambridge Modern History: I. Renaissance;II. Reformation”, p. 4. 
63 Huizinga, op. Cit., p. 256. 
64 Huizinga, op. Cit., pp. 282-282. 
65 Idem, ibidem, p. 286. 
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rejeitar por completo qualquer periodização, cada época, como quis Witold Kula, 
apresentando uma “coexistência de asincronismos”66. De certo modo, o Pós-Modernismo, 
que é um nominalismo, trouxe à baila uma crítica exacerbada ao anacronismo: cada época 
teria que se definir conforme seus próprios parâmetros. Por válido que seja o alerta, leva-lo 
ao pé da letra anularia belas interpretações históricas, como a de Hobsbawm sobre a crise 
do século XVII ou a de Braudel sobre a traição da burguesia: invalidaria, ao fim e ao cabo, 
qualquer interpretação. Além do que, como lembrou Kristeller, é preciso não esquecer “que 
o chamado período renascentista tem uma fisionomia própria e distinta, e que a 
incapacidade dos historiadores atuais de dar uma definição simples e satisfatória dele não 
nos autoriza a duvidar de sua existência: se o fizéssemos, e na mesma medida, teríamos que 
pôr em dúvida a existência da Idade Média ou do século XVIII” 67. 
“Renascimento: auto-definição ou auto-engano?” e “Renascimento e 
Renascimentos”, de Erwin Panofsky, são estudos referenciais de história cultural porque se 
movem o tempo todo dentro do fenômeno analisado, desvendando-na sua complexidade. 
Ao mostrarem a auto-consciência que os homens do renascimento tinham acerca da sua 
própria modernidade, bem como ao destacarem a originalidade do movimento então 
realizado, colocam limites a qualquer anacronismo. A divisão entre Idade Média e 
Renascimento é constitutiva de uma forma mental e de um momento histórico, mesmo que, 
ainda por muito tempo, tenha havido continuidades – as ondas de Huizinga. 
Mais ou menos na mesma época que Panofsky escrevia esses ensaios – entre 1950 e 
1952 – Eugenio Garin, outro estudioso do Renascimento (voltado, contudo, para a filosofia 
e não para as representações visuais e literárias) terminou um ensaio sobre as interpretações 
acerca do período de forma muito semelhante à utilizada por Panoksky em “Renascimento 
e Renascimentos”. Não é possível, no momento, saber quem influenciou quem. Gostaria 
apenas de concluir com as duas, que dizem muito mais do que eu conseguiria fazer: 
“Por isso, há, na realidade, um abismo entre os que tinham amado os antigos, confundindo-
se com eles numa espécie de amorosa violência [os homens da Idade Média], e esses outros, que 
restauraram a antiguidade com um detalhismo quase pedante. Um mundo acabava, e era descoberto 
justamente porque estava acabando; rosto antigo que já não era usado para uma nova cosntrução, 
 
66 Cf. Krysztof Pomian, “Périodisation” in Jacques Le Goff (org), La Nouvelle Histoire, Paris, 1978, pp. 455-
457. 
67 P.O.Kristeller, The classics and Renaissance Thought, Cambridge, Harvard University Press, 1955, p. 3: 
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mas que se colocava definitivamente na história, separado de nós; que já não se confundia com 
nossa vida, mas que se contemplava na sua verdade. [....] O mito renascentista da antiguidade 
entranha a morte desta última no exato momento em que se alcança a definição de suas 
características próprias. Por isso, não há ruptura entre a antiguidade e a Idade Média, ou, se há, é 
muito menor do que a existente entre a Idade Média e o Renascimento ; porque só este, ou melhor, 
a filologia humanista, tomou consciência de uma ruptura, cuja maturação, não obstante, tinha-se 
produzido – e exacerbado – na Idade Média. Então é, precisamente, quando se colocam as 
exigências mais vivas da nossa cultura: a preocupação em definirmo-nos por meio da definição 
daquilo que de nós se diferencia; a aquisição do sentido da história, que é o sentido do tempo 
[...]68”. 
“A distância criada pelo Renascimento despojou a Antiguidade de realidade. O mundo 
clássico deixou de ser possessão e ameaça ao mesmo tempo para se converter em objeto de uma 
nostalgia apaixonada que encontrou expressão simbólica na reaparição – ao cabo de quinze séculos 
– dessa visão encantadora que é a Arcádia. [...] O Renascimento se deu conta de que Pan tinha 
morrido; de que o mundo da Grécia e a Roma antigas [...] era algo perdido como o Paraíso de 
Milton, e apenas suscetível de ser recordado pelo espírito. Pela primeira vez, o passado clássico 
apareceu como totalidade desligada do presente; e portanto, como ideal ansiado em vez de realidade 
utilizada e, ao mesmo tempo, temida. A Idade Média deixara a Antiguidade insepulta, e 
alternativamente galvanizou e exorcizou o seu cadáver. O Renascimento chorou diante de seu 
túmulo e tratou de ressuscitar sua alma: e, num momento fatalmente propício, conseguiu-o . Por 
isso, o conceito medieval de Antiguidade foi tão concreto e, ao mesmo tempo, tão incompleto e 
deformado; enquanto o moderno, desenvolvido gradativamente ao longo dos últimos trezentos ou 
quatrocentos anos, é completo e conseqüente mas, se me permite dize-lo, abstrato. E por isso, os 
renascimentos medievais foram transitórios, enquanto o Renascimento foi permanente. As almas 
ressuscitadas são intangíveis, mas têm as vantagens da imortalidade e da ubiqüidade”69. 
 
 
 
 
68 Eugenio Garin, “Interpretaciones del Renacimiento”, pp. 80-81. 
69 “Renacimiento y renacimientos”, pp. 172-173.

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