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CAPÍTULO lntroducão ao Direito ,, das Sucessões Sumário • 1. A ·sucessão enquanto fenômeno jurídico - 2. Objeto da sucessão hereditária (causa mortis): a transmissão patrimonial: 2.1 A transmissão das relações juridicas patrimoniais em razão da mort_e do titular e a não transmissão das relações personalíssimas; 2.2 Exceções à regra geral da transmissibilidade das relações patrimoniais; 23 A questão da (in)transmissibili- dade dos alimentos no campo sucessório; 2.4 A situação especial das obrigações propter rem; 2.5. Contas bancárias conjuntas; 2.6, Seguro de vida - 3. O direito das sucessões: 3.1 O Direito Civil entrecortado pela norma constitucional: a diQnidade humana como motor de impulsão da ordem jurídica; 3.2 A sucessão na perspectiva constitucional; 3.3 Noções conceituais sobre o Direito das Sucessões a partir da propalada bipartição das normas jur.ídicas (normas-regras e normas-princípios); 3.4 A função social da sucessão; 3.5 Fundamentos justificadçires do Direito das Sucessões; 3.6 Conteúdo do Direito das Sucessões - 4. Terminologias essenciais: 4.1 Autor da herança ou de cujus; 4.2 Sucessor: herdeiro ou legatário; 4.3 Herdeiro legítimo (necessário ou facultativo) e herdeiro testamentário;4.4 A legítima (garantia mínima reservada aos herdeiros necessários) e uma necessária visão crítica do instituto; 4.5. A preservação da legítima e a doação inoficlosa; 4.6 Herdeiro universal; 4.7 Herança e espólio; 4.8 Herança e meação; 4.9 Herança e a aceitação com benefício de inventário; 4.10 Inventário e partilha - 5. A desconsideração da personalidade jurídica no Direi~o das Sucessões - 6. O planejamento sucessório. "Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida Com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida. De uma América a outra consigo passar num segundo, Giro um simples compasso e num drcufo eu faço o mundo. Um menino caminho e caminhando chega no muro E ali logo em frente, a esperar pela gen'te, o futuro está. E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar, Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença mudo nossa vida, depois convida a n·r ou chorar. Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá. O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar. Vamos todos numa linda passarela De uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá." (Toquinho, Aquarela, de Toquinho, Vinfdus de Moraes, Maurizio Fabrizio e Guido Morta)1 1. Relatando a relevância de Aquarela em sua vida pr-OflSSional, após-revelar que a música ~alerta para o enigma do futuro que guarda em seu bojo a implacáVel ação do tempo, fazendo tudo perder a cor, perder o viço, LARA Caixa de texto ATENÇÃO!! BSERVE AS CAIXAS DE COMENTÁRIO AO LONGO DO CAPÍTULO QUE FORAM COLOCADAS ASSIM POR NÃO HAVER ESPAÇO PARA OBSERVAÇÕES NAS MARGENS. Guia grifos: • Só sublinhado: observação com menos pouca importância; • Só grifado: observação importante; • Grifado e sublinhado: observação muito importante. Guia de cores: • Enunciados de súmulas, jurisprudência e Jornadas; • Observações que merecem atenção redobrada e curiosidades; • Observações corriqueiras ao longo do texto; • Artigos ou leis; • Opinião de Cristiano Chaves (críticas doutrinárias). 30 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald 1. A SUCESSÃO ENQUANTO FENÔMENO JURÍDICO O fenômeno sucessório é extremamente corriqueiro nas relações jurídicas e transcende o campo do Direito das Sucessões. j O que se assevera .com isso é que o vocábulo sucessão é uma expressão plurivoca, não unívoca, comportando diferentes significados e não se restringindo à esfera da transmissão de herança. Buscando inspiração etimológi.ca, sucessão vem do latim sucessio, do verbo succedere (sub + cedere), significando substituição, com a ideia subjacente de uma coisa ou de uma pessoa que vem depois de outra. 2 Volvendo a visão para o particular de uma relação jurídica (e lembrando que toda relação jurídica, necessariamente, é composta de um sujeito, de um objeto e de um vínculo entre eles), observa-se que o sujeito ou o objeto podem, eventual- mente, sofrer uma substituição por outro sujeito ou por outro objeto. É exatamente o fenômeno sucessório. A sucessão, assim, é a substituição do sujeito ou do objeto de uma relação jurídica. ' Quando se trata da substituição do objeto de uma relação juridica, tem-se a sub-rogação real. O objeto de uma relação jurídica é substituído por outro sem al- terar a natureza do vínculo existente. É o interessante exemplo da sub-rogação do bem de família convencional, autorizada pelo art. 1.719 do Código Civil.' Em sendo assim, percebi'da a impossibilidade de manutenção da proteção do bem de família convencional no imóvel que foi constituido como tal (ou nos bens móveis que servem para a manutenção do lar), é cabível a sub-rogação, substituindo o bem sobre o qual incidirá a tutela jurídica por outro. É o caso de um imóvel instituído como bem de família voluntário e que se encontra depreciado ou desvalorizado. Nessa hipótese, permite, então, que a proteção seja deslocada para outro bem, que já pertence ao núcleo familiar ou que venha a ser adquirido. É um evidente caso de sub-rogação real: substituição do objeto de uma relação jurídica. Um outro exemplo de sub-rogação real é a substituição do bem gravado com cláusula restritiva em doação ou testamento. O art. 1.911 do Código Reale permite que um bem seja transmitido com cláusula limitadora (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade). Aliás, convém a lembrança de que a cláusula de inalienabilidade perder a força~ Toquinho narra que a música foi sucesso primeiramente em solo italiano, onde mereceu o título de Acquarel/o. La, o disco saiu com 30 mil cópias que se esgotaram no segundo dia. NEssa música tem realmente um aspecto emocional muito forte, um apelo comercial, as pessoas ouvem e se envolvem~ como consta do site oficial do artista, http://www.toqulnho.com.br/epocas.php?cod~menu""11&sub=46. 2. A explicação de Clóvis Beviláqua é lapidar: Nsucessão em sentido geral e vulgar é a sequência de fenôme- nos oU fatos, que aparecem uns após outros, ora vinculados por uma relação de causa, ora conjuntos por outras relações~ BEVILÁQUA, Clóvis, cf. Direito dos Sucessões, dt., p. 54. 3. Art. 1.719, Código CiviJ:NComprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo ou autorizara sub-rogação dos bens que o constituem em outros,-ouvidos o instituidor e o Ministério Público:' ! i 1 ' ! ~ i 1 i 1 LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce ! 1 1 ' 1 ~ i 1 1 1 Cap. I • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 31 faz presumir as demais,4 embora a reóproca não seja verdadeira. Pois bem, gravado com cláusula restritiva um imóvel, é possível, posteriormente, por decisão judicial, a pedido do interessado, substituir o imóvel por outro, sub-rogando a restrição. A toda evidência, trata-se de uma sub-rogação real (substituição do imóvel que foi clausulado), em situações excepcionais, como em casos de perigo de perecimento da coisa, ~ara garantir utilidade do bem ou mesmo para assegurar a dignidade humana do titular do patrimônio. Seria o exemplo do beneficiário do ato que esteja acometido de uma doença grave, sendo inaceitável que um valor patrimonial sobrepuje a proteção da dignidade humana. Com este espírito, o § 2' do art. 1.848 da Codificação' é de clareza solar ao contemplar a possibilidade de levantamento ou sub-rogação da cláusula restritiva, através de autorização judicial, proferida pelo juiz da vara de registros públicos, ouvido o Ministério Público, em procedimento especial de jurisdição voluntária. A outro giro, quando se tratar de substituição do sujeito de uma relação jurí- dica, caracterizar-se-á a sub-rogação pessoal. Carlos Roberto Gonçalves destaca se tratar da "permanência de uma relação de Direitoque perdura e subsiste a despeito da mudança dos respectivos titulares".' Essa substituição do sujeito da relação jurídica (sub-rogação pessoal) pode decorrer de um ato inter vivos. É o interessante exemplo do pai que assume uma obrigação pecuniária do seu filho, que não possui condições de honrar o débito. Também é o caso da sub-rogação locatícia, prevista no art. 12 da Lei nº 8.245/91 - Lei de Locação de Imóveis Urbanos.' De acordo com o dispositivo legal, em caso de óbito do locatário na constância da relação locatícia, o seu cônjuge ou com- panheiro sobrevivente, assim como os herdeiros necessários, ficarão sub-rogados automaticamente nos direitos e obrigações concernentes ao contrato, desde que residentes no imóvel. Trata-se de típica hipótese de sub-rogação pessoal, imposta por lei, independentemente da anuência das partes. Mas a sub-rogação legal não ocorre apenas em razão do falecimento de um dos cônjuges ou companheiros. Também no caso de dissolução do casamento ou da união estável, o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel sub-roga-se, automaticamente, nos direitos contratuais, mesmo que não conste, expressamente, na relação contratual locatícia originária. Os exemplos revelam interessantes hipóteses de sub-rogação pessoal por ato inter vivos. Para além de tudo isso, impende ressaltar a possibilidade de substituição do sujeito de uma relação jurídica por conta da morte do seu titular, seja o sujeito ativo, seja o passivo. E é exatamente aqui que exsurge o Direito das Sucessões: 4. Art. 1.911, Código Civil: HA cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabitidade e incomunicabilidade." • 5. Art. 1.848, § 2°, Código Civ!I: nMediante autorização judicia! e havendo justa causa, podem ser alienados os bens gravados, convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão sub-rogados nos ónus dos primeiros.H 6. GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro: Direito das. Sucessões, cít., p. 19. 7. Art. 12, Lei n° 8.245/91: ~Em casos de separação de fato, separação judicia!, divórcio ou dissolução da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel." LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce 32 CURSO DE DIREílú CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rasenvald regulamenta a substituição do sujeito (ativo ou passivo) de uma relação jurídica em razão do óbito do seu titular. Nessa arquitetura, é possível imaginar q~e falecendo o proprietário de um imóvel, os seus sucessores vão substituí-lo na titularidade do bem ou, ainda, que o óbito do credor de uma obrigação permitirá aos seus herdeiros reclamar o seu cumprimento regular, com o esperado pagamento. Nota-se, com isso, que o Direito das Sucessões diz respeito, efetivamente, à substituição do sujeito de um a relação jurídica por conta da morte do seu titular. É o princípio. Porém, nem toda sucessão (rectius, substituição) diz respeito ao Direito das Sucessões. Isso porque a substituição do objeto (sub-rogação real) e a substituição do sujeito de uma relação jurídica em razão de um ato inter vivos (sub-rogação pessoal) são evidentes fenômenos sucessórios, que não dizem respeito ao Direito das Sucessões. Para fixação, insista-se: o Direito das Sucessões diz respeito à sucessão (rectius, substituição) do sujeito de uma relação jurídica patrimonial que falece~; mas nem toda sucessão concerne ao Direito das Sucessões - por conta da possibilidade de substituição do objeto da relação jurídica ou do sujeito por ato entre vivos. Em linha de harmonia com essa compreensão, Washington de Barros Monteiro esclarece que na esfera do Direito das Sucessões "emprega-se o vocábulo num sentido mais restrito, para designar tão somente a transferência da herança, ou do legado, por morte de alguém, ao herdeiro ou legatário, seja por força de lei, ou em virtude de testamento. A sucessão, no questionado ramo do Direito Civil, tem, pois, como pressuposto, do ponto de vista subjetivo, a morte do autor da herança".' O Direito das Sucessões, portanto, diz respeito à sucessão (substituição, repita-se à exaustão) do sujeito da relação jurídica por conta do falecimento do seu titular. Sub-rogaçào real Substituição do objeto da relação jurídica Sub-rogação pessoal Substituição do sujeito da relação jurídica por ato inter vivos Direito das Sucessões Substituição do sujeito da relação jurídica por ato causa mortis 2. OBJETO DA SUCESSÃO HEREDITÁRIA (CAUSA MORTIS): A TRANSMISSÃO PATRIMONIAL 2.1 A transmissão das relações jurídicas patrimoniais em razão da morte do titular e a não transmissão das relações personalíssimas Fixada a ideia fundamental de que o Direito das Sucessões diz respeito à subs· tituição do sujeito de uma relação jurídica por conta do óbito do titular, sobreleva destacar que nem toda relação jurídica comporta essa aludida substituição. B. MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil: Direito das Sucessões, cit., p. 1. LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce i ! 1 ! 1 1 1 Cap. I • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 33 Como pontua o bom (e notável) baiano Orlando Gomes, "o conteúdo do direito de sucessão não é ilimitado. Posto assuma o herdeiro a posição jurídico-econômica do defunto, não se lhe transmitem todos os direitos de que este era, ou podia ser, titular".' Iss~ porque somente as relações jurídicas patrimoniais (de natureza econô- mica) admitem a substituição do sujeito da relação jurídica quando da morte do seu titular. Até mesmo porque, naturalmente, as relações jurídicas personalíssimas serão extintas quando do falecimento do seu titular, em face de seu caráter intuÍto personae.10 É o exemplo dos direitos da personalidade, afinal de contas a morte do titular põe fim, seguramente, ao exercício da titularidade do direito de imagem, da integridade física ou da vida privada. Igualmente, o estado familiar se extingue com a morte do titular. Também é o exemplo dos direitos políticos, que estão atrelados umbilicalmente ao titular, e das sanções de qualquer índole (civil, penal, adminis- trativa ... ) que não podem transpassar à pessoa do apenado, por conta do princípio da intranscendência da pena. Ainda ilustrativamente, será o exemplo das obrigações de fazer personalíssimas (CC, art. 247), cujo adimplemento depende exclusivamente da conduta do devedor. Não há, via de consequência, qualquer transmissão de direitos quando se tratar de uma relação jurídica personalíssima. · Com isso, percebe-se que o herdeiro não é um ''mero continuador da personali- dade do falecido, ou seu representante, até porque o morto não o pode ter". 11 Com efeito, o sucessor assume a titularidade das relações patrimoniais de quem morreu, em uma verdadeira mutação. subjetiva. ' Diferentemente, a outro giro, quando se tratar de uma relação jurídica patri- monial, a morte do sujeito (ativo ou passivo) implicará na transmissão dos direitos e/ou obrigações respectivas do falecido aos seus sucessores. 9. GOMES, Orlando, d. Sucessões, cit., p. 1 O. 10. De qualquer sorte, lembre-se que em se tratando de lesão dirigida à personalidade de alguém que já morreu, atinge-se diretamente o falecido. Mas, para aléin disso, também é atingida, por via oblíqua, a personalidade dos seus familiares vivos, conforme a compreensão do Parágrafo Único do art. 12 da Co- dificação de 2002. São os chamados lesados indiretos. Ou seja, são as pessoas que possuem legitimidade própria {autônoma) para requerer a medida de proteção quando a ofensa se dirigiu à personalidade de uma Pessoa já falecida, após o seu ôbito. Ou seja, pode o familiar vivo defender, em nome próprio, a personal[dade de alguém de sua família que já faleceu. Não há, a toda evidência, qualquer transmissão de direito da-personalidade.Na hipótese, o familiar vivo {cônjuge ou companheiro, descendente, ascendentes ou colateral até o quarto grau} defende um direito próprio, consubstanciando em proteger a personali- dade de um familiar já falecido. t o exemplo do filho que defende, judicialmente, a honra ou a imagem do pai falecido, Indevidamente violadas após o óbito. Nesse caso, Insista-se, o titular defende um direito próprio, até porque o morto já não mais titulariza qualquer direito da personalidade. Sobre o assunto, seja consentido remeter, para maior aprofundamento, ao que escrevemos na análise da Parte Geral do Direito Gvil, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, NefsonJ. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB, cit., p. 198 e ss. 11. ALMADA, Ney de Mello, cf. Sucessões, cit., p. 27. LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Sendo assim, nota-se que o falecido transmitirá aos seus herdeiros tanto direitos, quanto obrigações relativas às relações jurídicas que não tiverem caráter personalíssimo. LARA Linha 34 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Esse conjunto de relações jurídicas patrimoniais que eram titularizadas pelo falecido e que se transmite aos seus sucessores é o que se denomina herança - e que serve de objeto para o Direito das Sucessões. Em nosso sistema jurídico, a herança é alçada à altitude de garantia constitucio- nal fundaj11ental, como,eza o inciso)()()( do art. 5° da Lex Fundamentallis.'' Trata-se, por conseguinte, de cláusula pétrea que não pode ser afrontada, sequer, pelo poder constituinte derivado. Efetivamente, o direito de herança é o desdobramento natural do direito à propriedade privada, que será transmitida com a morte do respectivo titular." Confirma-se, pois, a transmissibilidade das relações jurídicas de conteúdo econômico. , Ademais, a herança é um bem jurídico imóvel, universal e indivisível. Formada a herança, com a transmissão do conjunto de relações patrimoniais pertencentes ao falecido, atribui-se a esse bem uma natureza imóvel, universal e indivisível, mesmo que formada somente por bens móveis, singulares e divisíveis. Com isso, a herança estabelece um condomínio e uma compasse dos bens in- tegrantes do patrimõnio transmitido, que somente ~erão dissolvidos com a partilha do patrimônio. 2.2 Exceções à regra geral da transmissibilidade das relações patrimoniais Conquanto a regra geral seja a transmissão de todas as relações jurídicas pa- trimoniais pertencentes ao falecido, nã? se pode ignorar a existência de exceções, nas quais determinadas relações de conteúdo econômico· não serão transmitidas, em razão de especificidades. São as hipóteses de morte do titular de um direito autoral (lei nº 9.610/98, art. 41), de um usufruto, uso ou habitação (CC, art. 1.410, I) e, ainda, de falecimento do titular de uma enfiteuse (CC/16, art. 692, III). No que diz respeito à proteção do direito autoral, impende recordar consistir na tutela dedicada às obras intelectuais pela originalidade ou criatividade de forma, independente do meio fisico em que se encontre (livro, CD's, DVD's, vídeos, Internet ... ). Enfim, é a proteção da criação intelectual. A relação jurídica autoral é, a toda evidên- cia, privada, baseada na própria personalidade humana, somente merecendo proteção por conta do próprio ato criador, representando, de certo modo, a própria pessoa do autor. Todavia, o direito autoral é um direito sui genen's, possuindo uma evidente natureza híbrida, mista. Isso porque, nos termos do art. 22 da Lei nº 9.610/98, a um só tempo, o direito de autor traz consigo um caráter de direito da personalidade (pela ótica da criação intelectual, que decorre da inteligência humana) e, lado outro, também evidencia uma natureza de direito real sobre bem imaterial. Equivale a dizer: 12. Art. 5", XXX, Constituição da República: "é garantido o direito de herança': 13. ªO direito de herdar está profundamente vinculado ao direito de propriedade~ como bem percebe a doutrina da Colômbia, FUERTES, Ramírez, Suce5ione.s, cit., p. 3. 1 1 1 1 1 1 LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce 1 1 1 1 1 1 e~ ':!;? . \ Cap. I • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES \:>:, v'_ .. ,, d ~ 5' '}'' \V~y ~-~ o direito autoral é, concomitantemente, direito da personalidade, no que ta~ criação (ao invento), e é, também, direito real (a chamada propriedade intelectual, quanto ao seu exercício). Bipartem-se, pois, os direitos autorais em dois diferentes feixes, que estão, necessariamente, interligados, formando um todo, uno e indivisível: os direitos morais do autor (de essência personalíssima) e os direitos patrimoniais do autor (de índole material, produzindo efeitos na esfera dos direitos reais, por conta da caracterização de um modelo específico de propriedade). Exemplificando, são de ordem personalíssima o direito à paternidade e o direito à nominação da obra, dentre outros (art. 24), por não trazerem consigo caráter econômico. De outra sorte, têm natureza real, por conta do conteúdo patrimonial, o direito à exploração do direito autoral, bem como a prerrogativa de utilizar, fruir e dispor da obra (art. 28). E é exatamente por conta desse caráter eclético, diferenciado, que o direito autoral possui uma regra própria para a transmissão por morte, distinta da normativi- dade do Código Civil. É que, conforme a legislação específica (art. 41),14 os aspectos materiais do direito autoral serão transmitidos pelo prazo de setenta anos, a contar do dia 01 de janeiro do ano subsequente à morte do autor. No caso de coautoria, o prazo. fluirá a partir do primeiro dia do ano seguinte à morte do último dos coautores. Depois desse prazo, previsto em lei, a obra cairá em domínio público. Não é à toa, portanto, que diversos estabelecimentos empresariais, pelo Brasil afora, optam por tocar músicas clássicas antigas ou obras outras que já estejam em domínio público, evitando a incidência da taxa decorrente da execução pública. Por outro turno, o óbito do titular de um direito real de usufruto, de uso e de habitação implicará na extinção da relação jurídica existente. No ponto, o inciso I do art., 1.410 da Lei Civil15 é alvejante ao afirmar que a morte do usufrutuário extin- guirá o usufruto - o que se aplica, por igual, ao uso e à habitação (CC, arts. 1.413 e 1.416). A 'morte do beneficiário, portanto, é o limite máximo de duração do usufruto, do uso e da habitação. A justificativa é simples: o usufruto, o uso e a habitação são direitos reais sobre uma coisa alheia concedidos em razão das particularidades do beneficiário, para que se beneficie pessoalmente das vantagens de um determinado beni. Com isso, falecendo o titular, não se justifica transmitir o direito para os seus sucessores, na medida em que foi constituído em favor da pessoa morta. Trilhando essas pegadas, infere-se, com tranquilidade e segurança, que o usufruto, o uso e a habitação são direitos reais na coisa alheia personalíssimos e, consequentemente, intransmissíveis. Inexiste sucessão de usufruto, de uso ou de habitação. E, por isso, a permanência dos herdeiros do titular no imóvel após o óbito do titular caracteriza esbulho por precariedade, ensejando a possibilidade de uso de uma ação possessória . • 14. Art. 41, Lei nº 9.610/98: "Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a q~e alude o caput deste artigo:' 15. Art. 1.41 O, Código Civil: uo usufruto extingue-se, cancelando o registro no Cartório de Registro de Imóveis: 1 - pela renúncia ou morte do usufrutuário~ LARA RealceLARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce 36 CURSO DE DIREITO CIV!L • Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Outrossim, falecendo o titular de uma enfiteuse, sem deixar sucessores, gera a extinção do direito real, consoante a previsão do inciso III do art. 692 do Código Civil de 1916," com ultratividade normativa no ponto, por força do que consta no art. 2.038 do Codex de 2002.17 O motivo é lógico: morrendo o enfiteuta (também chamado de foreiro) sem deixar sucessor e aplicando as regras comuns do Código Civil, o direito de enfiteuse seria arrecadado pelo Poder Público, em nítido prejuízo ao proprietário do imóvel (chamado de senhorio)." Assim sendo, para impedir que o Estado adquira a titularidade da enfiteuse, a legislação prevê que a morte do en- fiteuta, sem deixar sucessor, implicará na extinção imediata do direito real na coisa alheia, consolidando a propriedade nas mãos do senhorio. Resumindo, de forma didática: somente as relações jurídicas patrimoniais estão submetidas à transmissão sucessória; contudo, escapam à incidência das regras do Direito das Sucessões o direito autoral, o usufruto, uso e habitação e a enfiteuse (quando o titular falece sem deixar sucessor) - que possuem regra própria, afastada da norma codificada. Para "além disso, é conveniente destacar a existência de uma outra hipótese na qual as normas sucessórias do Código Civil não serão aplicadas, ensejando a incidência de uma normatividade própria. Trata-se do chamado alvará judicial, disciplinado pela lei nº 6.858/80, regulamentada pelo Decreto nº 85.845/81, a partir do que reza o art. 666 do Código de Processo Civil de 2015. O alvará judicial (expressão de origem árabe - al-barã - significando carta e que, em linguagem jurídica se refere a uma autorização do juiz) é um procedimento especial de jurisdição voluntária tendente a disciplinar a transmissão do patrimônio de alguém que faleceu deixando, tão somente, valores pecuniários (dinheiro) não excedentes a 500 OTN's (obrigações do Tesouro Nacional). Considerando que se trata de uma unidade fiscal não mais existente no país, será necessário fazer um cálculo transformador para a obtenção do valor atuaL Em moeda corrente, o valor remonta a algo em torno de vinte mil reais e pode ter diferentes origens, como FGTS, PIS/PASEP, saldo de salário, restituição de imposto de renda etc. Equivale a dizer: se uma pessoa falecer, sem deixar qualquer outro bem a ser partilhado, e transmitindo, apenas, valores pecuniários não superiores ao aludido limite, será caso de liberação por meio de alvará judicial, sem a necessidade de abertura de um procedimento de inventário. Havendo bens a partilhar, além dos valores pecuniários, o entendimento dos Tribunais vem sendo cimentado no sentido de que seria necessária a abertura de um inventário para que se promova a partilha 16. Art. 692, Código Civil de 1916: "A enfiteuse extingue-se: Ili - falecendo o enfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores." 17. Art. 2.038, Código Civil: "Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1° de janeiro de 1916, e leis posteriores:' 18. O prejuízo do senhorio se agrava ainda mais quando se lembra que o bem público é imprescritível e inalienável. Com isso, lhe seria impossível recuperar a plenitude da propriedade, salvo por conta da edição de uma lei aut~rizando a alienação do bem público. LARA Caixa de texto Enfiteuse é o direito real em contrato perpétuo, alienável e transmissível para os herdeiros, pelo qual o proprietário atribui a outrem o domínio útil de imóvel, contra o pagamento de uma pensão anual certa e invariável; aforamento. LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Caso uma pessoa faleça e só transmita valores pecuniários não superiores a 500 OTN's, será caso de liberação por alvará judicial. LARA Linha cap. 1 • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 37 do patrimônio transmitido. 19 Em nosso viso, no entanto, considerando que os proce- dimentos de jurisdição voluntária admitem o julgamento por equidade, sem apego à legalidade estrita, consoante autorização do Parágrafo Único do art. 723 do Código de Processo Civil de 2015, 20 vislumbramos a possibilidade de concessão de alvará mesmo quando existem outros bens a serem partilhados (como um automóvel ou mesmo ações de um* empresa), dês que respeitado o limite pecuniário estabelecido no antes referido Diploma Legal. Ao fim e ao cabo da análise do alvará judicial, pontue-se uma questão a exigir interpretação conforme a Constituição. É que o art. 1' da Lei n' 6.858/80" dispõe que os valore.s pecuniários deixados pelo falecido serão pagos aos "aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação espeáfica dos servidores civis e militares" e, somente na falta deles, "aos. sucessores previstos na lei civil". Com efeito, mostra-se absurdo garantir o pagamento aos dependentes habilitados no Órgão Previdenciário em prejuízo dos filhos do falecido eventualmente não habilitados no INSS, por qualquer motivo. Violaria a isonomia constitucional entre os filhos, a mais não poder, manter esse entendimento. Por isso, observando a afronta à igualdade entre os filhos, assegurada pela Lex Mater, enxergamos que o dispositivo legal não foi recepcionado pelo Texto Magno, impondo-se afirmar que os valores serão pagos aos descendentes do falecido, em condições de igualdade. 22 Exceções à regra gerar da transmissão das relações jurídicas patrimoniais Direito autoral - Lei nº 9.610/98, art. 41 Usufruto, uso e habitação - CC, art. 1.410, I Enfiteuse - CC/16, art. 692, III Alvará jt'.tdicial - lei nº 6.858/80 19. Ilustrativamente: u1. O pedido autônomo de expedição de alvará é cabfvel quando inexistir bens. 2. Na exis- tência de bens, necessário o ajuizamento de inventário com arrolamento de bens ... u (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., ApCív 70062359955 - comarca de Soledade, Rei. Desa. Liselena Schifino Robles Ribeiro, j. 4.11.14, DJRS 6.11.14). 20. Art. 723, Código de Processo Civil: "Ó juiz decidirá o pedido no prazo de dez dias. Parágrafo único. O juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna:' 21, Art. 1", Lei n° 6.858/80: "Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas iridivlduais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em quotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Pr'eyidéncia Social ouna forma da legislação espedfica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento.n 22. O entendimento já tem precedente jurisprudenclal no mesmo diapasão: HOs valores depositados em nome da de cujus junto a instituições bancárias, relativos ao FGTS, ao PIS/PASEP e verbas rescisórias, devem ser levantados igualmente por todos os filhos dela. Atenção ao principio constitucional da isonomia. A Lei n" 6.858/80 não pode afastar direito fundamental co11stitucionalmente assegurado à herança. A referida Lei não alterou a ordem de vocação hereditária" (TJ/RS, Ac-8ª é:ãm. Cív., ApClv. 70035087394 - comarca de Porto Alegre, Rei. Oes. Rui Portanova, j. 10.6.10, DJRS 18.6.10). LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Caixa de texto OBS LARA Linha 38 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald 2.3 A questão da (in)transmissibilidade dos alimentos no campo sucessório Na estrutura do Código Civil de 1916, o caráter intransmissíveldos alimentos parecia induvidoso, decorrendo da redação emprestada ao seu art. 402. Realmentej parecia bem lógica a intransmissibilidade dos alimentos como con- sequência de sua natureza personalíssima, fazendo com que o "óbito de quem os prestava ou recebia implicava a extinção do encargo", como pondera Bertoldo Mateus de Oliveira Filho." Todavia, inflamando um debate que se iniciou com o advento da Lei nº 6.515/77 - Lei do Divórcio (especificamente por conta de seu art. 23, também revogado), o Código Civil de 2002, em seu art. 1.700, optou por uma regra bastante diversa, afirmando, textualmente, que "a obrigação de prestar alimentas transmite··se aas herdeiros do devedor". Com isso, a controvérsia se torna aguda, gerando intensos debates e martirizando a natureza intuitu personae da obrigação alimentar. Em nosso entender, partindo da análise da natureza jurídica dos alimentos, tratando-se de uma obrigação personalissima, não se deveria admitir a transmissão da obrigação alimentícia, em razão da morte do devedor. Em uma perspectiva onto- lógica, o óbito de um dos sujeitos da relação (o devedor de alimentos, alimentante, ou o credor, alimentando) deveria importar na sua automática extinção, em face de sua natureza intuito personae. Somente as prestações velicidas e não pagas é que se transmitiriam aos herdeiros, dentro das forças do espólio, por se tratar de dívida do falecido, transferidas juntamente com o seu patrimônio (relações ativas e passivas), em conformidade com a regra da transmissão operada por saisine (CC, art. 1.784). Não vemos, portanto, com bons olhos a opção do legislador civil, des- provida de sustentação teórica, deve.ndo gerar a sua automática extinção pelo fale- cimento do alimentante ou mesmo do alimentando. Somente as prestações vencidas e não pagas é que se transmitiriam aos herdeiros, dentro das forças do espólio, por se tratar de dívida do falecido, transmitida juntamente com o seu patrimônio, em conformidade com a transmissão operada por saisine (CC, art. 1.784). Não vemos, portanto, com bons olhos a opção do legislador civil, desprovida de sustentação jurídica e atentatória à natureza personalíssima da obrigação. Não fosse suficiente, é de se encalamistrar, ainda, que a transmissão da obrigação de prestar alimentos poderá ensejar uma desconfortável situação, que é a diminuição da herança, que foi transmitida, para o pagamento de uma dívida, não vencida, que não é devida pelo titular do patrimônio recebido. A opção do legislador pela transmissibilidade da obrigação alimentar pode nos deparar, inclusive, com situações desconfortáveis e muito. estranhas juridicamente. Anuindo a isso, Yussef Said Cahali sugere uma interpretação comedida do referido art. 1.700 do Código, utilizando-se de prudência e razoabilidade para evitar absurdo como "o caso de um irmão do falecido que, passados muitos anos da abertura da sucessão,"viesse a reclamar alimentos a serem fixados 'na proporção das necessidades 23. OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de, cf. Alimentos e investigação de paternidade, cit., p. 29. LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce Cap. I • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 39 do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada' (art. 1.694, § 1 º), dirigindo a sua pretensão contra os herdeiros legítimos e testamentários do devedor, aos quais se teria transmitido a obrigação".24 Também para evitar a situação de um irmão que recebe, além da herança, alimentos, esvaziando o espólio em prejuízo dos demais que somente serão herdeiros. De qualquer maneira, ainda que promovendo uma interpretação literal do texto codificado, seja admitida a transmissão da obrigação de prestar os alimentos vin- cendos, alguns limites precisam ser construídos para que se admita a transmissão da obrigação alimenticia. Primeiramente, para que ocorra a transmissão post mortem da obrigação alimenticia não é preciso que o direito cobrado (direito à percepção de alimentos) tenha sido reconhecido, antes, judicialmente, uma vez que o espólio pode ser acionado depois da abertura da sucessão. Isto é, se não tinha sido prolatada uma decisão judicial impondo a obrigação ao falecida, ela pode ser proferida depois, considerando, inclusive, que o falecido poderia estar cumprida, voluntariamente, a obrigação." Para tanto, será preciso a propositura de uma ação de alimentos pelo interessado contra o espólio. De outra banda, o espólio do falecido somente responderá pela dívida trans- mitida no limite das forças da herança, considerando que a dívida é oriunda do morto, não senda obrigação originária dos herdeiros. É o que emana do art. 1,792 da Codificação, ao estabelecer que o herdeiro não responde par enca'rgos superiores às forças da herança. 26 Sem dúvida, não há razoabilidade em obrigar os herdeiros a responder por dívida transmitida pelo falecido além dos valares que compõem o patrimônio transmitido. 27 Importa, demais disso, ainda estabelecendo limites objetivos à transmissão da obrigação de prestar alimentos vincendos, sublinhar que a responsabilidade pela obrigação alimentar transmitida somente incidirá sabre os frutos dos bens transmi- tidos, uma vez que o direito à herança está garantido constitucionalmente (art. 5°, XXX). Por isso, não havendo bens frugívoros (que produzam frutos) no patrimônio transmitido, não será possível exigir o cumprimento da obrigação alimentícia que, antes, vinculava o falei:ido. Somente quando o patrimônio produz frutos, como no claro exemplo de transmissão de cotas sociais de uma empresa. Outrossim os legitimados a responder pelos alimentos transmitidos (fixados judicialmente em favor de quem não seja herdeiro do morto) serão todos aqueles 24. CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos, op. cit., p. 95. 25. Igualmente, Maria Berenice Dias. Manual d~ Direito das Famílias, op. cit., p. 456. Em sentido inverso, enten- dendo imprescindível que já tenha sido profe~ida uma decisão judicial, Zeno Veloso. Código Civil Comentado, op. cit., p. 40, e Sérgio Gischkow Pereira. Estudos de Direito de Familia, op. cit., p. 152. 26. A ideia. é compartilhada, dentre outros, por Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro, op. cit., p. 451, e por Yussef Said Cahali. Dos Alimentos, op. cit., p. 95-96. · 27. Bem por isso, foi consolidado, no Enunciado 343 da Jornada de Direito Civil, o entendimento de que "a transmissibilidade da obrigação alimentar é limitada às forças da herança". LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Cristiano Chaves entende que deve haver alguns limites a serem respeitados para que haja a transmissão post mortem da obrigação alimentícia, quais sejam: • se uma decisão judicial impondo a obrigação ao falecido ainda não haja sido protocolada, ela pode ser proferida posteriormente, após a propositura de uma ação de alimentos pelo interessado contra o espólio; • o espólio do falecido somente responderá pela dívida no limite das forças da herança; • os legitimados a responder pelos alimentos transmitidos serão todos aqueles que possuam direitos sucessórios em relação ao espólio (herdeiro legítimo, legatário ou testamentário). 40 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que possuírem direitos suces5orios em relação ao espólio, seja herdeiro legítimo ou testamentário ou mesmo legatário (e não apenas os herdeiros, corno insinua o artigo multicitado), • Urna discussão relevante diz respeito à legitimidade ativa para a cobrança dos alimentos ao espólio. Posição mais cautelosa e comedida, à qual aderimos expressamente, sustenta que somente haverá transmissão das obrigações em favor de alirnentandos que não sejam herdeiros do espólio deixado pelo falecido, sob pena de violação, por via oblíqua, do princípioconstitucional da igualdade entre os filhos. Seria o caso de um irmão que, além de herdeiro, estaria recebendo alimentos do espólio, em detrimento. dos demais irmãos, que se restringiriam à qualidade de herdeiros. Assim, o art. 1. 700 da Lei Civil "só pode ter aplicação se o alimentando não é, por sua vez, herdeiro do devedor da pensão", como aduz Zeno Veloso." Levando a situação a urna compreensão prática, considerando que o cônjuge ou companheiro tenha participação na herança do falecido (CC, arts. 1.829 e 1. 790), não poderá requerer os alirnentôs do espólio, pois dele já terá um quinhão a título de hereditário. Trata-se de entendimento que obsta um desequilíbrio nos valores recebidos por pessoas que estão, rigorosamente, na mesma situação juridica. Em posição antagônica, entrementes, alguns julgados admitem que, falecido o alimentante, o alimentando (seja ele quem for, inclusive um filho que participará, também, da herança) terá o direito de exigir do espólio o curnpril)lento da obrigação, até ultimado o inventário, com o trânsito em julgado da partilha, em face da ampla dicção do art, 1.700 da Lei Civil. 29 O absurdo gerado pela tese é evidente: permitiria que um herdeiro que, eventualmente, recebesse alirne.ntos fizesse jus a um quinhão superior àquele devido aos demais herdeiros, o que ressoa atentatório à regra cons- titucional da igualdade substancial. Em verdade, admitida a transmissibilidade dos alimentos vincendos, por força do texto legal, a melhor solução é afirmar que somente poderá receber alimentos do espólio aquele que não tiver direito à herança. Se o alimentando é herdeiro, todo e qualquer valor que venha a receber do espólio deverá ser reputado antedpaçãa da tutela jurisdicional e, por conseguinte, abatido do seu quinhão, quando da partilha.30 28. VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado, op. dt., p. 40. 29. O próprio Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de afirmar:"O espólio tem a obrigação de prestar alimentos àquele a quem o de cujus devia, mesmo vencidos após a sua morte. Enquanto não encerrado o inventário e pagas as quotas devidas aos sucessores, o autor da ação de alJmentos e presumível herdeiro não pode ficar sem condições de subsistência no decorrer do processo. Exegese do art. 1.700 do novo Código Civilº (STJ, Ac. 2ª Seção, REsp. 219.199/PB, Rei. Min. Fernando Gonçalves, j. 10.12.2003, DJU 3.5.2004, p. 91). 30. Parecendo anuir ao que se sustenta aqui, veja-se a cátedra de Sérgio Gischkow Pereira, propondo que na hipótese do alimentando ser herdeiro do próprio espólio a quem se transmitiu a obrigação, será o caso de ~fazer as devidas compensações patrimoniais, para que o alimentando-herdeiro não receba duplamente" (Estudos de Direito de Famf/ia, op. cit., p. 151 ). LARA Sublinhado LARA Realce LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Lembrando que essa é uma posição doutrinária adotada por Cristiano Chaves, mas que julgados, eventualmente, entendem essa situação de forma diversa. LARA Linha LARA Realce LARA Realce LI o s e n J s ) J J Cap. I · INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 41 São considerações ofertadas como tentativa de uma interpretação construtiva do art. 1.700 do Codex, estabelecendo limites objetivos à tese que admite a transmissão da obrigação de prestar os alimentos vincendos, e não somente os vencidos. Insista- -se, a propósito, que, em nossa percepção, a melhor solução interpretativa é afirmar que somente os alimentos vencidos, e não pagos pelo devedor enquanto vivo, é que se transmitem ao e!pólio, por se tratar de dívida da falecida, no limite das forças da herança, sendo recebida pelo seu credor, antes da partilha, como mecanismo de recomposição do seu patrimônio. A respeito do tema, depois de intensos debates, o Superior Tribunal de Jus- tiça conferiu a interpretação mais racional ao dispositivo legal, no sentido de que a transmissão da obrigação alimentícia abrange, tão só, as dívidas vencidas e não pagas, por constituírem débito do próprio espólio: "Observado que os alimentos pagos pelo de cujus à recorrida, ex-companheira, decorrem de acordo celebrado no momento do encerramento da união estável, a referida obrigação, de natureza personalíssima, extingue-se com o óbito do alimentante, cabendo ao espólio recolher, tão somente, eventuais débitos não quitados pelo devedor quando em vida. ·Fica ressalvada a irrepetibilidade das importâncias percebidas pela alimentada." (STJ, Ac. 2ª Seção, REsp. 1.354.693/ SP, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 26.11.14, DJe 20.2.15). 2.4 A situação especial das obrigações propter rem Detecta-se a existência de situações jurídicas especiais, nas quais há uma con- fluência entre os .. direitos reais. e .os-direitos obrigacionais .. São categorias jurídicas ambiguas, qií;~~arregam consigo, concomitantemente, caracterlsticas típicas das relações reais e das obrigacionais. Pois bem, uma importante situação de imbricação entre direito real e obrigacional diz respeito às obrigações prapter rem, também ditas abrem. Conhecidas também como obrigações mistas ou ambulatórias, constituem uma figura peculiar, pois se inserem entreõs-éíireii:éis'reais e os direitos obrigacionais, assimilando características de ambos. São obrigações em que.ª .. Jl.eSSQg_@.sr.l'do.Lou .. do_de.vedor individualiza-se não em razão de um ato deautdnomia privada_,__nias_el!1 f1,mção.da.titularidade de u111 .. direito rea.~. Enfim, é.uma .obnga~ão imposta a .. qu .. em fur.!:it~lª~-d_e uma determinada coisa." - ' -··-· ·-·-·-· --~~ " - __ ,. Sua particularidade consiste na inerência ao objeto da posição do titular ativo ou passivo da relação. O obrigado é o titular do direito real, havendo a possibilida!le. de sucessão no débito fora das hipótese;nQrmaiS<letransmlssão dãs obrigãÇõ~s. -·" -------- -- . - . São exemplos claros de obrigações propter rem a taxa condominial (dever dos condôminos de contribuir para a conservação da coisa comum) e o pagamento dos 31. Para maior aprofundamento a respeito das otírfçjáções propter rem, veja-se FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, cf. Curso de Direito Civil: Reais, cit., p. 21. LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Uma corrente adere à tese de que a transmissão pode se dar tanto em relação aos alimentos vincendos, quanto aos vencidos. No entanto, o STJ, assim como Cristiano Chaves acredita que somente os alimentos vencidos devem ser alvo de transmissão no limite do espólio, por se tratar de dívida do falecido. LARA Riscado LARA Linha LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto É uma obrigação real, que decorre da relação entre o devedor e a coisa. Assim, se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, seja qual for o título translativo. A transmissão é automática, independente da intenção específica do transmitente, e o adquirente do direito real não pode recusar-se a assumi-la. LARA Linha LARA Realce 42 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 ~ Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvafd impostos alusivos à propriedade, bem como todos os direitos de vizinhança, refe- renciados no Código Civil. Como a obrigação propter rem está vinculada à titularidade do bem, sendo esta a razão pela qual será satisfeita determinada prestação positiva ou, negativa, impõe-se a sua assunçãb a todos os que sucedam ao titular na posição transmitida - demonstrando que há uma regra específica de sucessão da obrigação propter rem. Ilustrando: se alguém adquire um imóvel em condomínio edilício, o débito eventualmente existente de taxas condominiais vencidas será pago pelo novo titular do bem,32 com direito de regresso contra o anterior proprietário. Também- será do· novo titular a dívida relativa à violação dos direitos de vizinhança pelo anteriorproprietário. Aliás, como a assunção da obrigação decorre da titularidade da coisa, ao devedor será concedida, em certos casos, a faculdade de se libertar do vínculo, renunciando ao direito real em favor do credor. Trata-se do chamado abandono liberatório ou renúncia liberatória. 2,5. Contas bancárias conjuntas Situação a exigir atenção diz respeito à existência de contas bancárias conjuntas quando um dos.correntistas vem a falecer. Estabelecendo como premissa da compreensão do problema o fato de que o regime juridico norteador das contas conjuntas é a solidariedade obn'gadona/, percebe-se que ambos os correntistas são titulares plenos da movimentação bancária, podendo exercer todos os direitos inerentes. Trata-se de um típico caso de cotitularidade de direitos e de obrigações. A situação é corriqueira. Não é raro encontrar casais que mantém. contas con- juntas, movimentadas por ambos os cônjuges, oü companheiros, com o objetivo de facilitar o pagamento das despesas do lar e o fluxo de repasses financeiros entre eles. Ambos, portanto, são titulares em plenitude, impondo-se à instituição bancária promover pagamentos a partir da ordem· de qualquer deles. Bem por isso, sobrevindo o óbito de um dos cotitulares da conta bancária, o saldo existente na conta deve ser partilhado isonomicamente, independentemente da origem dos depósitos, em razão do regime da solidariedade, existente entre eles, salvo a existência de manifestação expressa das partes em sentido diverso. A orientação que provém da Corte Superior de Justiça é exatamente nessa tocada: 32. Este é também o entendimento da Corte Superior de Justiça: uEsta Corte possui entendimento firmado no sentido de que o legítimo proprietário de imóvel em condomínio responde pelas cotas condominiais em atraso, por se tratar de obrigação propter rem" (.STJ, Ac. unán. 3ª T., AgRg no REsp 1.382.575/PR, Rei. Min. Sidnei Beneti, j. 24.9.13, DJe 8.10.13). 1 1 LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto Obrigação inerente ao bem que é transmitido. Ex.: Zé tem um imóvel com IPTU vencido, falece e a seu filho Luiz é dada a titularidade deste, o qual terá que pagar os impostos vencidos. LARA Linha LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Caixa de texto STJ assim entende. 1 1 1 i Cap. 1 • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES "( ... ) Nos depósitos bancários com dois ou mais titulares, cada um dos cor- rentistas, isoladamente, exercita a totalidade dos direitos na movimentação da conta-corrente. No advento da morte de um dos titulares, no silêncio ou omissão sobre a quem pertenciam as quantias depositadas, presume-se que o numerário seja de titularidade dos correntistas em iguais quinhões. A cotitu- laridade gera estado de condominio e como tal, a cada correntista pertence a metade do saldo". (STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp. 1.511.976/MG, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 28.4.15, DJe 12.5.15) 43 Diante desse quadro, infere-se, com tranquilidade, que o falecimento de um dos cotitulares de uma conta bancária conjunta estabelece a transmissão da metade do saldo existente na data do óbito, pertencendo a outra metade ao cotitular sobrevi- vente," que terá direito ao seu percentual de pleno direito, sem qualquer tributação. Por evidente, o cotitular sobrevivo pode levantar a sua parte por simples declaração de vontade, independentemente de inventário ou de autorização judicial. Todavia, vindo a levantar valores superiores à sua fração idea~ responde civilmente perante o espólio, que poderá cobrar a diferença. Por idêntica lógica, havendo saldo negativo na conta, no momento da morte de um deles, o espólio responderá, no limite das forças da herança (CC, art. 1.792), pela cota-parte do falecido, embora a entidade bancária possa cobrar a integralidade do débito do cotitular sobrevivo - que, por sua vez, terá direito regressivo contra o espólio. 2.6. Seguro de vida O contrato de seguro de vida é hipótese clara de estipulação em favor de ter- ceiro, 'Consubstanciada em negócio jurídico pelo qual se beneficia alguém, em razão da morte-de outrem (sinistro), por meio de contrato de risco (aleatório). Por evidente, o pagamento da indenização decorrente do contrato de seguro de vida é posterior ao óbito do segurado. Surge, então, uma curiosa indagação: o valor a ser pago em razão de um contrato de seguro de vida integra a herança do falecido? A resposta é negativa. O valor da indenização decorrente de contrato de seguro de vida, ou de outros ajustes para acidentes pessoais por morte, não integra a herança e, via de conse- quência, não está sujeito ao pagamento de dívidas deixadas pelo falecido. Nessa esteira, inclusive, a clareza solar do comando do art. 794 do Código de 2002: "no seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito". , 33. O entendimento é compartilhado por Maria Berenice Dias;. "-de qualquer modo, se o crédito pertence a ambos os titulares, os valores ou os débitos existentes quando da abertura da sucessão necessitam ser partilhados entre os correntistas, integrando o acervo sucessório do falecldo a metade do saldou (Manual das Sucessões, op. cit., p. 258). LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado 44 CURSO DE DIREITO CIVIL• Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald A mesma lógica, inclusive, é aplicável também ao pagamento do seguro obri- gatório decorrente de acidente com morte causado por veículo automotor, chamado de DPVAT, 34 e ao pagamento de previdênci,il privada contratada pelo morto. Ademais, note-se que os beneficiários do seguro de vida (indicados pelo segu- rado no negócio celebrado) não são, necessariamente, os seus herdeiros legítimos. É perfeitamente possível, portanto, que o beneficiário de um seguro de vida não mantenha qualquer vinculo familiar com o titular do negócio juridico. E, com isso, nota-se que a indenização decorrente de seguro de vida seja paga a pessoas estra- nhas à sucessão legítima do falecido, sem qualquer beneficio para os seus herdeiros previstos em lei." Evidentemente, não tendo sido feita indicação de beneficiário pelo segurado, o valor indenizatório será pago, pela metade diretatne'nte ao cônjuge ou companheiro do segurado (desde que estivesse com ele convivendo no momento de seu óbito), e aos seus herdeiros legítimos, em conformidade com a vocação suces- sória,36 sem, contudo, integrar o espólio. Por conta disso, inclusive, há de se perceber um efeito processual relevante: o espólio do falecido é parte ilegítima para pleitear qualquer medida, judicial ou extrajudicial, para reclamar direitos decorrentes de seguro de vida ou de indeniza- ção decorrente do DPVAT. A legitimatio ad causam, na hipótese, é diretamente dos beneficiários que, como visto, podem não ser herdeiros. 3. O DIREITO DAS SUCESSÕES 3.1 O Direito Civil entrecortado pela norma constitucional: a dignidade huma- na como motor de impulsão da ordem jurídica É certo e incontroverso que a Constituição da República é a norma suprema do sistema juridico, impondo obediência, formal e material, a toda a normatividade infraconstitucional (inclusive ao Código Civil, que não mais está hierarquicamente acima das demais leis civis), convindo, assim, (re)afirmar a necessidade de estudar o Direito Civil sob a perspectiva constitucional." 34, Exatamente por Isso, "o valor oriundo do seguro obrigatório (DPVAD não integra o patrimônio da vítima de acidente de trânsito quando se configurar o evento morte, mas passa diretamente para os beneficiários" (STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp. l.419.814/SC, ret Min. RicardoVlflas Bôas Cueva, j. 23.6.15, DJe 3.8.15). 35. A orientação jurisprudencial caminha nessa senda: N( ••• ) O beneficiário - titular da indenização securitária - é o terceiro designado pelo falecido, por isso é descabido que ta! direito componha o acervo hereditário composto pelos bens da segurada": (STJ, Ac. 4ª T., REsp 1.132.925/SP, rei. Min. Luís Felipe Salomão, j. 3.10.13, OJe 6.11.13). 36. Art. 792, Código Civil: "na falta de indicação da pessoa ou beneficiário, ou se por qualquer motivo não prevalecer a que for feita, o capital segurado será pago pela metade ao cônjuge não separado judicial- mente, e o restante aos herdeiros do segurado, obedecida a ordem de vocação hereditária". 37. Nesse sentido, Pietro Perlingieri assevera que "a Constituição ocupa o lugar mais alto na hierarquia das fontes, precedendo, na ordem[ ... ] as leis ordinárias (e, portanto, os códigos, que são leis ordinárias, incluindo o Código Civil}'; cf. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional, cit., p. 4-5. LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce LARA Sublinhado LARA Realce i- o 1- ;. o ), 1- 15 o LI e ;- ~= LI 1- >5 1- a e e lf le ;" o 3, o 1- " o 1 1 1 j l Cap. 1 • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 45 Trata-se de contundente alteração na estrutura intrínseca dos institutos e conceitos fundamentais de Direito Civil, seja por que lhes confere um "novo gás", seja porque determina uma redefinição de seus conteúdos, à luz da nova tábua va- lorativa imposta pelo texto constitucional. "O juiz das relações privadas é o juiz da Constituição; não a Constituição em sentido formal e sim uma visão substancial da Constituição", como expli~a Paloma Modesto." Detecta-se nitidamente que o Texto Constitucional, sem sufocar a vida privada, conferiu maior eficácia aos institutos fundamentais do Direito Civil, revitalizando-os, à luz de valores fundamentais aclamados como garantias e direitos fundamentais do âdadão. 39 Enfim, promoveu-se verdadeira reconstrução da dogmática civilista, a partir da afirmação da âdadania como elemento propulsor, conforme opção humanista da Lex Mater. Nessa linha de intelecção, é imperativa uma nova compreensão do Direito Civil, a partir da planilha axiológica constitucional. E o valor máximo desta nova ordem jurídica é, sem dúvida, a dignidade da pessoa humana, haurida como motor de impulsão de todo o sistema jurídico, elevando o ser humano ao centro das relações do Direito. As normas devem ser compreendidas em razão da pessoa humana e de sua realizaçãó existencial, garantindo-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para proporcionar-lhe vida com dignidade. Considera-se, pois, a dignidade humana como "qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos", na lúcida observação de Ingo Wolfgang Sarlet." Assim, o reconhecimento do princípio fundamental da dignidade humana im- põe uma nova postura aos civilistas do novo tempo, que devem, na interpretação e aplicação das normas, assegurar a vida humana.de forma integral e prioritária." 3.2 A sucessão na perspectiva constitucional De qualquer modo, não parece suficiente apenas afirmar a prevalência da norma constitucional sobre a regulamentação infraconstitucional. 38. MODESTO, Paloma, uA eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações de direito privado~ cit., p. 408. 39. Sobre o tema, remeta-se a TEPEDINO, Gustavo, "Normas constitucionais e relações de Direito Civil na experiência brasileira~ cit., p. 340. 40. SARLET, !ngo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 60. 41. uA dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na auto- determinação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais': como consignou o Tribunat·Coristitucional da Espanha, apud SARLET, tngo Wolfgang, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, cit., p. 42. 46 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald É mister dar-lhe efetividade, percebendo-se a necessidade de revisitar (e rede- finir) o conteúdo dos clássicos institutos do Direito Civil, uma vez que a Constitui- ção, adquirindo força normativa, passou a funcionar como lastro e filtro de toda a legislação brasileira. Isto é, com a definição 1 de uma nova tábua axiomática pela Constituição da República impõe-se a releitura dos institutos clássicos (fundamentais) do estatuto patrimonial das relações privadas, importando, por conseguinte, em nova percepção, também, do instituto sucessório. Enfim, "qualquer norma jurídica no Direito das Sucessões exige, com muito. mais vigor que em qualquer época anterior, a presença de fundamento de validade constitucional", como dispara, com toda razão, Guilherme Calmon Nogueira da Gama.42 Significa, pois, que todas as relações jurídicas, inclusive no âmbito sucessório, precisam estar funcionalizadas a partir da afirmação da dignidade de cada um das partícipes dela. O raciocínio se justifica porque a pessoa hum0na é o fim almejado pela tutela juridica e não o meio. Assim, as regras jurtdicas criadas para as mais variadas relações intersubjetivas, inclusive sucessórias, devem assegurar Permanentemente a dignidade da pessoa humana, além de promover a solidariedade social e a igualdade substancial. Nessa ordem de ideias, urge afirmar que o campo sucessório é terreno fecundo para o reconhecimento de garantias e direitos fundamentais, daí decorrendo a preo- cupação com a concretização da dignidade da pessoa humana e dos demais valores constitucionais, em especial os direitos e garantias individuais e sociais. A partir da compreensão sobre a dignidade humana" é possível perceber a cone.reta possibilidade do estabelecimento de limitações legais ao exercido de direitos subjetivos sucessórios, com vistas à proteção do núcleo familiar e do próprio titular, que ficam protegidos por um patrimônio minimo, elementar, como corolário de sua dignidade. É o que acontece, exemplificativamente, com a limitação ao direito de celebrar testamento. De fato, o titular não pode testar um volume de patrimônio que comprometa a digni- dade de seu núcleo familiar quando existem herdeiros necessários que dele dependam. Com o mesmo espírito, os direitos~ garantias constitucionais podem, outrossim, servir para uma mitigação ao exercício dos direitos sucessórios, obstando o rece- bimento da herança ou legado, como no exemplo da indignidade e da deserdação do sucessor, por conta de eventual conduta ignóbil contra o autor da herança. A justificativa é lógica: se um sucessor se comporta mal em desfavor do titular do pa- trimônio, mostra-se atentatório à dignidade do proprietário permitir que se mantenha 42. GAMA, Guilherme Ca!mon Nogueira da, Óireito Civil: Sucessões, cit., p. 17. 43. A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a ad· missão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais, inclusive) mlnimosparaque se possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade. Consulte~se, a respeito, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, cf. Curso de Direito Civil: Parte Geral, dt., p. 145. 1 b 1 1 1 LARA Sublinhado LARARealce LARA Realce LARA Realce LARA Realce 1 b i 1 1 1 Cap. 1 • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 47 o direito à herança. Maria Berenice Dias é enfática: "quando a afronta à dignidade ocorre entre pessoas que têm vínculo familiar e afetivo tão estreito, a ponto de um ser herdeiro do outro, a forma encontrada pela lei para inibir tais ações é de natureza patrimonial. Simplesmente autoriza a subtração do direito à herança"." Em casos tais, nota-se que o direito à sucessão (garantido constitucionalmente - CF, art. 5°, XXX) cede espaço para a efetivação da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), cuja primazia é indiscutível, em face da maior relevância e densidade valorativa. Até porque, como já propagava Dürig, "valores relativos às pessoas têm precedência sobre valores de índole material"." De fato, justifica-se a mitigação da proteção patrimonial (direito à herança) para concretizar a tutela juridica existencial da pessoa humana. Enfim, é o ser prevalecendo sobre o ter. 3,3 O Direito das Sucessões na perspectiva de inclusão e garantismo do Direito das Famílias Historicamente, o ordenamento jurídico brasileiro, assim como os países que seguem a tradição do civil law, como a Suíça, a Espanha, Portugal, a França, a Ar- gentina e a Colômbia, esteve alinhado com um ideal patrimonialista, decorrente da Revolução Francesa (que inspirou diretamente o Code de France), procurando conferir uma tutela jurídica de conteúdo vísivelmente econômica. No âmbito das relações particulares, o Direito das Famílias e das Sucessões sempre respiraram esses ares patrimonialistas, mais vocacionados à proteção do patrimônio do que da existência da pessoa. É'.certo e incontroverso, todavía, que, a partir do Texto Constitucional de 5 de Ou- tubro, o Direito das Famílias vem ganhando notória evolução, alterando os seus marcos fundamentais para ganhar base segura na proteção avançada da dignidade humana e na proteção da solidariedade familiar. Figuras novas foram sendo incorporadas pelo sistema familiarista, como a paternidade socioafetiva, a pluriparentalidade, a monoparentalidade etc. Sempre c~m a intenção explícita de maximizar proteção à pessoa humana. A partir de uma multiplicidade e variedade de fatores (de diversos matizes), conclui-se pela inexistência de um conceito monolítico e estático de família, impon- do-se compreendê-to em consonância com os movimentos que constituem as relações sociais no tempo e no espaço. Sobre essa linha evolutiva do conceito de família, a historiadora francesa Michelle Perrot é instigante: "a história da família é longa, não linear, feita de rupturas sucessivas", deixando antever a variabilidade histórica da feição da família, adaptando-se às necessidades sociais prementes de cada tempo." • 44. DIAS, Maria Berenice, cf. Manual das Sucess6es, cit., p. 33. 4S. Apud SILVA, Virgllio Afonso da, cf. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, clt., p. 127. 46. PERROT, Michelle. uo nó e o ninho'; op. cit., p. 7S. No mesmo sentido, luiz Edson Fachin percebe ser"inegável que a família, como realidade sociológica, apresenta, na sua evolução histórica, desde a família patriarcal LARA Realce 48 CURSO DE DIREITO CIVIL• Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald Distintamente, no entanto, o Direito das Sucessões não vem merecendo o mesmo cuidado e evolução metodológica. Os clássicos institutos sucessórios permanecem com as mesmas cores, tons e matizes que lhes foram emprestadas desde.o Código Civil de 1916. Institutos com a deserdação e a indignidade, a legítima, o direito real de habi- tação, dentre outros, possuem a sua normatividade codificada praticamente repetida do Código Civil, com uma distância temporal de um século. Dúvida inexiste, portanto, sobre a premente necessidade de harmonização da i evolução das relações familiares e sucessórias, adequando-as a um tempo em que, ! seguramente, os ideais são a proteção da dignidade humana, da solidariedade fa- , miliar e da liberdade humana. O ponto de interseção, de convergência, existente entre o Direito das Famílias e das Sucessões precisa ser tratado conjuntamente, lembrando, por exemplo, que a admissibilidade da tese da pluripaternidade impõe uma adaptação da sucessão legítima (do descendente e do ascendente) e que a afirmação da liberdade de auto- determinação familiar existe uma nova dimensão da legítima. Equivale a dizer: considerado o modelo plural, aberto e multifacetado de família reconhecido pela legislação e pela jurisprudência brasileira nos últimos anos (a título de exemplo, o reconhecimento da natureza familiar das uniões homoafetivas - STF, Ac. unân. Tribunal Pleno, ADin 4277 /DF, rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 5.5.2010), nota-se uma necessidade de compreensão dos institutos que marcam o Direito das Sucessões com a mesma dinâmica e complexidade. 3.4 Noções conceituais sobre o Direito das Sucessões a partir da propalada bipartição das normas jurídicas (normas-regras e normas-princípios) Partindo da perspectiva de necessária compreensão do Direito das Sucessões con- forme a Constituição, relembre-se que há, na contemporaneidade, um certo consenso doutrinário" (e, de certo modo, aceito também pela jurisprudência") no sentido de que as normas que compõem um ordenamento jurídico se bifurcam em normas-regras e normas-princípios, afastando a antiga visão de que os princípios teriam um papel meramente informativo (auxiliar ou aconselhativo). romana até a famllla nuclear da sociedade Industrial contemporânea, íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais~ FACHIN, Luiz Edson, Elementos crfticos de Direito de Famflia, op. dt., p. 11. 47. A respeito, pelo pioneirismo, faça-se alusão, dentre outros, às obras de CANOTILHO, J. J. Gomes, cf. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit, p. 1159; ALEXY, Robert, d. Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., p. 67-68; MIRANDA, Jorge, d. Manual de Direito Constitucional, clt, p. 224; CUNHA JÚNIOR, Dirley da, cf. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 155. 48. No julgamento de interessante caso, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal aludiu, expressamente, à força normativa dos princípios (notadamente dos prlncfpios constitucionais) para reconhecer "o direito à Lusca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implfcito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humanau (STF, Ac. unân. 2ª T., RE 477.554 AgR/MG, Rei. Min. Celso de Mello, j. 16.8.11, DJe 26.8.11 ). LARA Realce Cap. I · INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES 49 De uma banda, os princípios" são propos1çoes genencas que informam uma ciência. Sua base valorativa. Na conhecida expressão de Robert Alexy, princípios juridicos são "mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades juri- dicas". 50Enfim, sãonormasquedetermin41mquealgosejarealizadonamaiormedidapossível, dentro do contexto jurídico e real existentes. Com um simbolismo quase idílico, Marcos Jorge Catalan propõe uma compreensão dos princípios a partir de uma analogia: "Imagine-se na base da Cordilheira dos Andes, prestes a escalar o Monte Aconcágua, mais alto pico da América do Sul." Superada a fase de preparação fisica, é essencial, para o sucesso do projeto, no mínimo, o material de alpinismo. Assim, principalmente nas escarpas e nas rotas negativas, a cada metro ou dois, será cravado na rocha um pino de sustentação, sem o qual a subida tornar-se-á deveras arriscada, pois, a qualquer momento, o alpinista pode desprender-se da rocha numa viagem fatal ao solo, empurrado pela força da gravidade. Princípios, assim, são fontes imediatas do direito na delicada operação de exegese do caso concreto que venha a ser submetido ao hermeneuta, que necessariamentedeverá perpassar, em cada situação fática que se lhe apresente, por todo o sistema para que assim, por meio de uma análise axiológica sistemática, possa iniciar seu trabalho interpretativo com a certeza de atingir resultados seguros"." São, portanto, as bases sobre as quais se constrói o sistema jurtdico. Em outras palavras: constituem as proposições genéricas que servem de substrato para a orga- nização de um ordenamento jurtdico. Daí a sua induvidosa importância no estudo das ciências jur\dicas. Com isso, não se pode olvidar que os princípios são enunciados com força normativa e, por força disso, tendem à produção de efeitos concretos, que emergem do garantismo constitucional, voltados, em especial, à valorização da pessoa humana e à afirmação de sua dignidade. A outro giro, as regras são relatos descritivos de condutas, com um conteúdo objetivo, certo e especifico, a partir dos quais, mediante uma atividade de verdadeira subsunção, haverá o enquadramento de um fato cotidiano à previsão abstrata na norma atingindo-se um objetivo (conclusão almejada pela regra). 49. Princípio deriva da linguagem geométrica, onde concerne às "verdades primeiras: constituindo as premissas fundamentais de um sistema que se desenvolve more geométrico. Essa formulação é apresentada por Paulo Bonavides, que acrescenta, ainda, uma concepção de princípio oriunda da Corte Constitucional italiana, segundd,~ quat"se devem considerar como princípios do ordenamento jurídiC:o aquelas orientações e aquelas diretivas de caróter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão sistemática, da coordenação e da intima racionalidade das normas, que concorrem para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurldico~ cf. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 255-257. 50. ALEXY, Robert, cf. Teoria dos Direitas Fundamentais, dt, p. 86. 51. Por curiosidade, registre-se que o Monte Aconcágua (cuja tradução indica um sentido de sentiriela de pedra), situado nas proximidades de Mendoza, na Argentina, Terra da uva malbec, com 6.960,8 metros de altitude, é, a um só tempo, o ponto mais alto das Américas, no hemisfério sul, e o mais alto fora da Ásia. 52. CATALAN, Marcos Jorge, cf. Descumprimento contratual, cit., p. 37. LARA Realce LARA Caixa de texto Princípios jurídicos são normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro do contexto jurídico e real existentes. LARA Realce LARA Realce LARA Realce 50 CURSO DE DIREITO CIVIL· Vol. 7 - Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald De fato, distintamente dos princ1p1os (que possuem uma textura aberta), as regras estabelecem soluções apriorísticas, a partir de uma textura fechada, prescre- vendo um comando imperativo. Não há espaço, pois, para um balanceamento, tão somente para uma aferição da validade da regra em relação ao sistema jurídico como um todo. Novamente com Alexy, as rti~gras "são normas que são sempre ou 'satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e prinápios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou ~m pnºnópio". 53 São, portanto, mandados de definição- e não de otimização, tal qual os princípios. Incorporando essas ideias (fundamentais à compreensão de um ramo do sistema infraconstitucional conforme a normatividade do Texto Magno) e volvendo a visão para o campo sucessório em especifico, é possivel, então, prospectar um conceito para o objeto de estudo sub acculis: O Direito das Sucessões é o conjunto de normas-regras e de normas-principias que disciplinam a transmissão do conjunto de relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa que faleceu aos seus sucessores. 54 A ideia vem sendo compartilhada no direito estrangeiro, como se percebe pela proximidade conceitua[ apresentada pelos magistrados espanhóis Luís Díez-Picazo e Antonio Gullón, afirmando que o Direito das Sucessões é "a parte do Direito Privado constituída por um conjunto de normas que regulamentam o destino das relações jurí- dicas de uma pessoa quando morre e as relações que com este motivo se produzem".55 No Brasil e no exterior, trata-se de visão mais contemporânea e aberta do fe- nômeno sucessório, uma vez que reconhece uma necessária complexidade da norma jurídica, incorporando valores (princípios) emanados do Texto Constitucional e do próprio Código Civil. Supera-se, assim, uma visão acanhada do Direito das Sucessões, restringindo os seus quadrantes ao Direito Civil, como um mero ramo regulamentador da transmissão de herança, a partir das regras codificadas. 56 Não se olvide, inclusive, que a Lex Mater termina por constitucionalizar a relação jurídica sucessória ao reconhecer o direito à herança como uma garantia fundamental constitucional, no inciso XXX do art. 5°: "é garantido o direito de herança". 53. ALEXY, Robert, cf. Teoria dos direitos fundamentais, cit, p. 90-91. 54. Em perspectiva muito próxima, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka propõem ser o Direito das Sucessões o uconjunto de regras e complexo de princípios jurídicos pertinentes à passagem da titu[àfidade do património de alguém que deixa de existir aos seus sucessores: CAHALI, Francisco José; HlRONAKA, Giselda Maria Ferndndes Novaes, Direito das Sucessões, cit, p. 20. 55. DfEZ-PlCAZO, Luís; GULLÓN, Antonio. Sistemas de Oerecho Civil: Derecho de Suceslones, op. cit, p. 23. 56. Binder chegou mesmo a afirmar que o Direito das Sucessões é ªa parte especial do Direito Clvi! que regula a destinação do património de uma pessoa depois de sua morte: apud GOMES, Orlando, Sucessões, cit, p. 1. LARA Realce LARA Realce cap. 1 • INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS SUCESSÕES ' '(.':.; - ' "-,-'.>' -;_... "/' Impõe-se, destarte, captar novas cores, tons e matizes para o Direito das"S(rc' cessões, com vistas a que se destine ã proteção avançada da pessoa humana e de sua imprescindível dignidade. Explicita-se, pois, uma necessária compreensão do Direito das Sucessões a partir da normatividade constitucional, promovendo uma interpretação sistêmica, e enriquecendo a sua própria estrutura, para incorporar os valores humanistas do garantismo constitucional. 3.5 A função social da sucessão Partindo de uma necessária compreensão das normas do Direito das Sucessões conforme a legalidade constitucional, já se pode falar em função soda/ da sucessão. Pois bem, contemporaneamente, rios de tinta vêm sendo derramados a respeito da função social nas relações privadas. Sem dúvida, ela vem a reboque da tendência de funcionalização inerente a toda situação jurídica subjetiva. Remotamente, a função social da sucessão deflui da própria função social da p1opriedade, porque a propriedade é, seguramente, a base fundante da herança. Não se olvide, 110 entanto, que a titularidade de bens (adquiridos entre vivos ou por herança) é um fenômeno social e a riqueza não mais se concentra na proprie- dade física. Como tivemos a oportunidade de frisar em outra sede, "a elite global contemporânea domina sem estar presente fisicamente. As utilidades que atraem sãp as que propidam leveza e portabilidade, não há mais interesse na confiabili- dade e solidez dos bens de raiz. Fixar-se ao solo não é importante, se ele pode ser alcam;(ldo e abandonado quando surgem oportunidades financeira sem outros luga- res e atividades. A lógica da durabilidade é substituida pela drculação de ativos e substituição de bens".57-58 Tal como sugeriu Norberto Bobbio,59 ainda na década de 70, a passagem da estrutura à função indica que a liberdade dos privados é circunscrita pelos valores constitucionais, a fim de que o negócio jurldico seja um espaço promocional de determinados fins reputados como valiosos pelo corpo social. O direito se desliga de seu compromisso
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