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TEMPO DO CRIME1 Tão importante quanto saber qual lei deverá ser aplicada em determinado momento é saber em que momento considera-se cometido o delito. Expliquemos com um exemplo: Imaginemos que Tício, pretendendo matar Mévio, efetua contra este alguns disparos de arma de fogo. Entretanto, por ter sido socorrido, Mévio não morre no momento dos disparos, mas somente alguns dias depois, no hospital. Qual seria o momento do cometimento do crime? O momento em que houve os disparos ou o momento em que a vítima veio a óbito? É importante que se defina o momento do crime para saber, por exemplo, qual lei será aplicável em um caso concreto. Ainda com base no exemplo acima, imaginemos que a lei sobre homicídio tenha sido alterada, exatamente naqueles dias em que Mévio ficou no hospital entre a vida e a morte, e tenha majorado a pena do referido crime2. É essencial que se saiba qual foi o momento do crime para que se possa saber qual das duas leis lhe seria aplicável. Se considerarmos o momento do crime aquele dos disparos, aplicaremos a lei anterior. Se considerarmos o momento do crime aquele da morte da vítima, aplicaremos a lei posterior, ainda que mais grave. O mesmo raciocínio serve, ainda com base no exemplo acima, se imaginarmos que quando Tício efetuou os disparos contava com 17 anos, 11 meses e 26 dias, dias, e quando a vítima morreu, já tivesse completado 18 anos. Mais uma vez, se considerarmos como momento do crime o dos disparos, Tício, por ser menor de idade, não será processado com base no Código Penal, mas sim com base no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente); já se considerarmos o momento do crime o da morte da vítima, Tício já será considerado maior de idade e será processado com base no Código Penal3. Durante a evolução do Direito Penal desenvolveram-se basicamente três teorias sobre o tempo do crime: Teoria da Ação; Teoria do Resultado e Teoria da Ubiquidade. 1 Texto adaptado da obra Introdução ao direito penal: criminologia, princípios e cidadania 2. ed. - São Paulo: Atlas, 2012, (p. 206-211). 2 Atente-se ao fato de que se a lei fosse alterada em benefício do réu, o exemplo não serviria, posto que retroagiria para beneficiar o réu. 3 Nos tempos da legislação brasileira, os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, o que significa que não cometem crimes, mas sim atos infracionais. Isso significa que os menores de idade não estão sujeitos ao Código Penal, mas sim ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Os menores de 18 anos jamais recebem pena, as sim medida socioeducativa. Tais diferenciações decorrem diretamente do artigo 228 da Constituição Federal, que tem a seguinte redação: "São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” A "legislação especial" a que se refere o artigo é exatamente o ECA. Segundo a Teoria da Ação, considera-se como momento do crime o da ação ou omissão do agente, ou seja, o momento em que ele praticou a conduta proibida (ação) ou o momento em que ele deveria ter agido e não agiu (omissão). Segundo a Teoria do Resultado, considera-se como momento do crime aquele em que sobreveio o resultado exigido pelo crime. No caso do homicídio, por exemplo, seria o da morte da vítima. Já a Teoria da Ubiquidade é uma mistura das duas teorias anteriores, pois considera como momento do crime tanto o momento da ação ou omissão, quanto o momento do resultado. Embora nosso Código Penal seja de 1940, somente com a reforma da Parte Geral ocorrida em 1984 é que o legislador resolveu de vez a questão, adotando expressamente no artigo 4º a Teoria da Atividade, "espancando as dúvidas doutrinárias".4 De fato, o artigo 4º do Código Penal tem a seguinte redação: "Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. Pode-se dizer, portanto, que o legislador não só adorou a Teoria da Atividade, como afastou expressamente a Teoria do Resultado. Assim, no exemplo que apresentamos, o momento do crime é aquele em que Nelson fez os disparos, de forma que na primeira hipótese seria processado pela lei menos grave e na segunda seria processado pelo ECA. Importante atentarmos que em relação ao instituto da prescrição5, o Código Penal transigiu com a Teoria do Resultado, posto que o prazo prescricional somente tem seu início com a consumação do delito6. Em relação ao Tempo do Crime existem algumas questões que precisam ser tratadas, especialmente no que se refere aos crimes permanentes e aos crimes continuados. Entende-se por crime permanente aquele que se prolonga no tempo, ou seja, a consumação não é instantânea, mas perdura enquanto perdurar a ofensa ao bem jurídico, como por exemplo, os crimes de extorsão mediante sequestro7 e cárcere privado8, em que se considera que o crime está sendo praticado enquanto houver a restrição da liberdade da vítima, podendo o autor do crime ser preso em flagrante enquanto houver essa restrição. Nessa hipótese, surge a seguinte dúvida: se um crime de extorsão mediante sequestro se inicia na vigência de uma determinada lei penal, mas, em virtude de durar alguns meses, entra em vigor uma outra lei penal, enquanto o crime ainda está sendo praticado, qual lei deverá ser aplicada? 4 COSTA. JUNIOR, Paulo J. Curso de Direito Penal. 2. ed. Editora Saraiva. São Paulo. 1992. v. 1. p 34. 5 A prescrição nada mais é do que a perda do direito do Estado de punir o criminoso em virtude do decurso de certo lapso temporal. 6 “Art.111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr; I - do dia em que o crime se consumou”. 7 Art. 159. Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos." 8 “Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena -- reclusão, de 0l (um) a 03 (três) anos.” Entende-se que independentemente de a lei nova ser favorável ou desfavorável ao réu deverá ser aplicada ao crime em andamento, pois o fato criminoso ainda está sendo executado, de forma que não se caracteriza uma retroatividade da lei, pois, como já dito, o fato não está consumado, mas sim sendo praticado. Necessário destacar que o novo diploma legal, para ter aplicação imediata, deve entrar em vigor durante a execução do crime permanente, de forma que se este já estiver cessado, aplicar-se- ão os Princípios já estudados, tais como a Irretroatividade da Lei Penal Gravosa e a Retroatividade da Lei Penal Benéfica. Em relação aos crimes continuados é que a questão toma-se controvertida. O crime continuado, nos termos do artigo 71 do Código Penal,9 é aquele em que o agente pratica várias condutas criminosas da mesma espécie, mas que por serem praticadas nas mesmas circunstâncias de tempo, local, modo de execução, ou outras semelhantes, as condutas subsequentes são entendidas como continuação da primeira, de modo que o agente não responde por todos os crimes praticados, mas apenas por um deles, com um aumento de pena em virtude dos demais. O conceito toma-se muito mais claro com um exemplo: imagine-se que um caixa de supermercado, todos os dias, durante um mês, subtrai do seu caixa a quantia de R$ 10,00, para não chamar a atenção de seus superiores. Ao final de 30 dias, o caixa terá praticado 30 furtos de R$ 10,00 cada um. Entretanto, por uma questão de política criminal, nos termos do artigo 71 do Código Penal, por terem os 30 furtos sido praticados nas mesmas circunstâncias de tempo (todo dia), local (supermercado),modo de execução (pegar R$ 10,00 do caixa), faz-se uma ficção jurídica e não se considera que 30 crimes foram praticados, mas apenas um, o primeiro, sendo que todos os 29 subsequentes são considerados como mera continuação. Assim, através dessa ficção jurídica, concede-se um tratamento unitário a uma pluralidade de atos delitivos, determinando uma forma especial de puni-los. Não se soma a pena de 30 crimes de furto, mas sim, aplica-se a pena de um único crime, aumentada de 1/6 até 2/3, em virtude das condutas subsequentes. A dúvida que daqui emana é a mesma em relação ao crime permanente, qual seja: se durante a prática de uma série de crimes em continuidade delitiva sobrevém uma nova lei penal, deverá esta ser aplicada ao crime continuado? 9 "Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplicasse-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.” Assim como em relação ao crime permanente, entendem a doutrina10 e a jurisprudência majoritárias que a nova lei tem aplicação imediata, ainda que mais gravosa, desde que não tenha sido ainda praticado o último ato dos crimes em continuidade. Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 711, que tem a seguinte redação: "A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência" (grifos do autor). Entretanto, não obstante ser essa a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, há muitos autores, com os quais ousamos concordar, que discordam de tal orientação. Conforme apresentamos, nas hipóteses de crime continuado, nos exatos termos do artigo 71 do Código Penal, "devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro", de forma que através da referida "ficção jurídica" há somente um crime, sendo que os crimes subsequentes somente são levados em conta para individualização da pena. Assim, se o agente somente responde pelo primeiro crime e não pelos subsequentes (que somente são considerados para individualização da pena), parece evidente que a lei posterior mais severa, que surge após o cometimento do primeiro crime, não poderá alcança-lo, porque se assim ocorrer, "inverter-se-á o conceito legal de crime continuado lógica e cronologicamente: os últimos crimes serão os primeiros, considerando-se a continuação do final para o início, ou seja, os subsequentes prevalecerão sobre o primeiro e não o contrário: o primeiro prevalecer sobre os subsequentes, como prevê a lei11”. O entendimento esposado pela referida súmula, além de ferir o Princípio da Legalidade por conferir tratamento mais gravoso ao réu, além de ser cronológica e logicamente insustentável,12 ainda é inconstitucional, pois viola o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, pois permite a incidência de nova lei prejudicial a fatos ocorridos antes da sua vigência13. 10 Por todos, Cláudio Brandão, Curso de Direito Penal. Editora Gen-Forense. Rio de Janeiro. 2008. p. 71, e José Frederico Marques, Curso de Direito Penal. Editora Saraiva. São Paulo. 1954. v. 1. p. 192. 11 QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009. p. 127. 12 QUEIROZ, Paulo de S. Direito Penal. 5. ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2009. p. 127. 13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 11. ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007. p.173
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