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A formação
do mundo
moderno
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www.elsevier.com.br
A formação
do mundo
moderno
© 2006, Elsevier Editora Ltda.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei no 9.610 de 19/12/1998.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora,
poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados:
eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Copidesque: Marina Vargas
Editoração Eletrônica: Estúdio Castellani
Revisão Gráfica: Marilia Pinto de Oliveira e Danielle Machado
Projeto Gráfico
Elsevier Editora Ltda.
Conhecimento sem Fronteiras
Rua Sete de Setembro, 111 – 16º andar
20050-006 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
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04569-011 – Brooklin – São Paulo – SP – Brasil
Serviço de Atendimento ao Cliente
0800-0265340
sac@elsevier.com.br
ISBN 13: 978-85-352-1296-9
Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação,
impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento
ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão.
Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou
bens, originados do uso desta publicação.
CIP-Brasil. Catalogação na fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
R611f
2.ed. Rodrigues, Antonio Edmilson Martins
A formação do mundo moderno / Antonio Edmilson M.
Rodrigues, Francisco José Calazans Falcon. – 2.ed. –
Rio de Janeiro: Elsevier, 2006 – 3a reimpressão.
il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-352-1296-9
1. História moderna. I. Falcon, Francisco José Calazans,
1933-. II. Título
06-0754. CDD 909.08
CDU 94"15/19"
Aos nossos alunos de tempos idos e vividos,
aqueles que com certeza são cúmplices neste trabalho.
Nota Introdutória
Este livro é resultado de duas longas trajetórias pelo ensino universitário durante as quais o
que aqui apresentamos foi experimentado, criticado, revisado e renovado. Por isso, dedica-
mos este livro a todos os nossos alunos de ontem e de hoje da UFF, UERJ, UFRJ,
PUC-Rio e demais instituições nas quais atuamos. Muitos deles são hoje nossos colegas e
nessa condição ajudaram ainda mais na feitura deste trabalho.
A narrativa e a estratégia de escrita deste livro seguem o livre jogo das forças intelectuais.
Não quisemos que as partes feitas por cada um de nós recebessem uma marca de unidade
uma em relação à outra, de forma tal que aqueles que nos conhecem e os que passaram a nos
conhecer sentirão a diferença na abordagem dos temas e na forma de apresentá-los.
Como somos adeptos da renovação, o que pode parecer paradoxal, exploramos
nossos temas de maneira aberta e, na maioria das vezes, ensaística. Esperamos que gos-
tem da forma, pois neste livro a história não passa na porta ou ao léu. Mergulhamos fun-
do nela e aproveitamos todas as ondas, mesmo as menores, aquelas marolinhas que quase
não fazem movimento.
Devemos também registrar que boa parte das questões conceituais aqui apresenta-
das decorreram dos resultados da pesquisa sobre a história da historiografia cultural bra-
sileira apoiada pela FINEP e pelo CNPq na forma do PRONEX e vinculada ao Progra-
ma de Pós-Graduação em História Social da Cultura.
Por último, queremos agradecer ao nosso editor Ricardo, que esperou os originais
deste livro pacientemente, sem se irritar em nenhum momento, e que soube entender
os nossos motivos. A ele, o nosso carinho e a nossa admiração.
Como é um livro em aberto, em tempos de Internet, os autores esperam o retorno
para que as faltas possam ser explicadas e aclaradas.
Façam bom uso do livro e tomara que gostem de lê-lo.
Niterói, novembro de 2005
C a p í t u l o 1
Introdução
O estudo da formação da Idade Moderna pressupõe, como é natural, alguns esclareci-
mentos preliminares, introdutórios mesmo, acerca daquelas noções presentes nesse
mesmo título, isto é, as de Idade Moderna e de formação.
A ideia de Idade Moderna remete-nos a uma antiga concepção tripartida do tempo
histórico, ou seja, sua divisão em idades ou eras sucessivas, cronologicamente, conforme
tradição que remonta ao século XVII; temos, então, a existência de três tempos ou ida-
des: Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna.
Não é de hoje que se debate quer sobre as relações entre Antigos e Modernos, quer
entre Tempos Modernos e Época Medieval. Neste último caso, por exemplo, a discus-
são tradicionalmente recai ora sobre a escolha de acontecimentos considerados marcos
decisivos do início dos Tempos Modernos, ora sobre a definição de certas características
distintivas do medieval e do moderno tomados como realidades históricas absolutamen-
te diversas, quando não antinômicas.
No capítulo dos chamados acontecimentos decisivos, cabe um lugar de destaque ao
conjunto das Grandes Navegações e Descobrimentos realizados nos séculos XV e XVI,
principalmente pelos povos ibéricos. Mas não está assim tão distante o tempo em que se
associava o início dos Tempos Modernos à influência das grandes invenções – a pólvora, o
papel, a bússola e a imprensa – ou a determinados acontecimentos bastante conhecidos –
a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453; a invenção da impressão
com tipos móveis por Gutenberg, nos anos de 1440; a descoberta da América pelo ge-
novês Cristóvão Colombo, a serviço de Castela, em 1492; os começos da Reforma Pro-
testante na Alemanha, em 1517, com a divulgação das famosas teses contra as indulgên-
cias, na catedral de Wittenberg.
Todavia, tanto o recurso ao possível impacto das chamadas grandes invenções como a
crença no poder decisivo de certos fatos históricos mais célebres tenderam a ser substituí-
dos pela referência, como elemento explicativo, aos processos e transformações mais
abrangentes, quer de natureza estrutural, quer conjuntural. Exemplo desse último tipo
foram as transformações ocorridas na conjuntura econômica europeia entre a segunda
metade do século XV e o final do XVI, entre as quais se convencionou atribuir um lugar
de destaque ao chamado deslocamento do eixo econômico da Europa do Mediterrâneo para o
Atlântico, o consequente declínio das principais cidades mercantis e manufatureiras da
Itália, e a rápida ascensão das economias ibéricas – sobretudo a do comércio flamengo –,
logo seguida pela dos comércios holandês e inglês.
As explicações estruturais, baseadas ou não em pressupostos teóricos marxistas,
identificam essa passagem da Idade Média para a Idade Moderna com o começo de um
longo período de transição do feudalismo para o capitalismo, em função da denominada
crise geral do feudalismo; teríamos aí, portanto, a identificação da Idade Moderna com o
período da transição feudal-capitalista, cujas características e cronologia são bastante dife-
renciadas nas diversas formações sociais europeias.
Enfim, parece lícito ainda hoje supor que ocorreram certas transformações bastante
significativas nas sociedades europeias ao longo dos séculos XV e XVI, embora talvez
não mais seja possível interpretá-las daquela maneira um tanto otimista e radical, como o
fez Henri Hauser (1963), há muitos anos, quando escreveu o livro A modernidade do sécu-
lo XVI. Afinal, nem a modernidade propriamente dita, tal como nós hoje a identifica-
mos, instaurou-se naquela época, nem se processou uma ruptura completa e abrupta en-
tre a cultura medieval e a moderna.
Atividades econômicas, estruturas e relações sociais, formas políticas, ideologias, ma-
nifestações culturais, tudo afinal se modificou em maior ou menor grau, embora em rit-
mos e proporções bastante diferenciados entre si. Tal conjunto permite-nos considerar
essa época o começo de um período distinto do medieval, quaisquer que tenham sido as
permanênciase continuidades então verificadas. Explica-se assim o hábito há muito di-
fundido entre os historiadores de procurar sintetizar todas as transformações do período
que então se iniciava utilizando a noção de moderno. No entanto, essa noção está muito
longe de constituir um conceito unívoco. A ideia de moderno significa apenas, em sua
acepção mais ampla, de hoje, do momento atual, sendo plausível supor que para os homens
dos séculos XV e XVI a visão de seu próprio tempo como moderno contivesse um certo
sentido de diferença absoluta em relação ao tempo anterior e, ao mesmo tempo, de come-
ço de um tempo totalmente novo. Generalizou-se então, a partir dessas ideias, típicas da
autoconsciência renascentista, a alusão ao assim chamado início dos Tempos Modernos, ou
ainda ao começo ou surgimento da modernidade. Quanto a esta última, no entanto, con-
vém que se tenha em vista que a nossa noção atual a respeito das suas origens tende a situar
a época decisiva de seu aparecimento nas últimas décadas do século XVIII, em conexão
com o Iluminismo, a Revolução e o advento do capitalismo industrial.
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s2 ELSEVIER
A Idade Moderna, tal como aqui a entendemos, constituiu um período decisivo,
culminando no advento da modernidade. Tomada em si mesma, porém, essa época
pode ser descrita/analisada como tendo sido a de transição do feudalismo para o capitalismo
ou, ainda, num sentido mais específico, como a era mercantilista.
Ao denominarmos era mercantilista o período cronológico correspondente aos
Tempos Modernos ou à Idade Moderna, estamos evidentemente sublinhando os as-
pectos econômicos dessa época assim como a indissociabilidade entre o econômico e o
político, que constitui uma de suas principais características. No entanto, convém se ter
presente o fato de que temos aí, na verdade, a fase final do feudalismo e, portanto, a tran-
sição do feudalismo para o capitalismo, o que nos situa teoricamente em uma perspecti-
va marxista.
Ao longo da década de 1970, surgiram novas abordagens no panorama historiográ-
fico as quais divergem bastante da linha explicativa por nós adotada, já que trabalham
com a hipótese segundo a qual ter-se-ia estruturado, já a partir do século XVI, uma eco-
nomia mundo europeia (F. Braudel, 1979), ou um sistema mundial moderno (I. Wallerstein,
1974), com características capitalistas.
Wallerstein, embora adote uma postura teórica basicamente weberiana, defende
que o seu conceito de capitalismo como fenômeno mundial – e sistêmico – tem amparo
também em algumas passagens do próprio Karl Marx em O Capital. Trata-se aqui de ci-
tações bastante conhecidas de O Capital, e que não devem ser tomadas, no nosso enten-
der, como afirmações capazes de invalidar o conceito de capitalismo enquanto modo de
produção.
Na visão de Wallerstein, entretanto, o que deve ser posto de lado é o próprio con-
ceito de capitalismo como modo de produção, pois, no seu modo de ver, capitalismo sig-
nifica produção para lucro em um mercado, ou, se assim preferirmos, a busca e a realização do
lucro por meio da comercialização de mercadorias. Logo, de acordo com tal raciocínio, as for-
mas de organização do trabalho e da produção criadas ou postas sob o controle do capi-
talismo, nas mais diversas regiões e sociedades do globo, ou, em linguagem marxista, os
variados modos de produção subordinados ao capitalismo mundial moderno nada mais
são do que as maneiras mais lucrativas que o capitalismo trata de organizar, em cada tem-
po e lugar, para atingir aquilo que constitui o seu único objetivo: o lucro na comerciali-
zação de mercadorias produzidas em condições diversas.
Ao adotarmos esse tipo de abordagem, teremos de admitir: 1o) que o papel dos Esta-
dos modernos europeus, como formações sociais distintas, na constituição do mercado
internacional e em suas disputas, assim como o papel do mercantilismo, típicos de uma
época pré-capitalista, tornam-se de certa maneira irrelevantes; 2o) no âmbito daquele
sistema mundial moderno, capitalista e europeu que se teria constituído já nos começos
da Idade Moderna, o que está em jogo é a articulação, pelo mercado, de diversos modos de pro-
dução, ou seja, de formas diferenciadas de recrutar e remunerar mão de obra – tais como
o escravismo, a servidão, a encomienda, a parceria, o arrendamento e o assalariamento.
I N T R O D U Ç Ã O 3
Logo, para concluirmos esta breve digressão, teria ocorrido somente uma transição,
aquela que, no século XVI, originou o sistema; assim, a acumulação deve ser encarada
como processo único em escala mundial (Gunder Frank, 1977).
Bem, nosso intuito foi tão somente alertar o leitor para a possibilidade de outros ca-
minhos interpretativos e expositivos diferentes daqueles que adotamos aqui. Nossas
preferências, certamente mais tradicionais, serão apresentadas nos tópicos a seguir, e que
têm como território comum a noção de Idade Moderna identificada com a transição do
feudalismo para o capitalismo.
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s4 ELSEVIER
C a p í t u l o 2
O Novo Tempo: Circulação Econômica
e Conhecimento do Mundo – Transição,
Expansão Comercial e Mercantilismo
Os três séculos (XVI-XVIII) correspondentes cronologicamente à Idade Moderna ca-
racterizam-se no plano da história econômica por dois processos distintos, embora es-
treitamente inter-relacionados: as transformações estruturais que marcam a transição do
feudalismo para o capitalismo e a expansão mercantil que constitui a primeira etapa
do processo de unificação do mundo – ou de estabelecimento do assim denominado
“sistema mundial (capitalista) moderno”.
No caso do primeiro desses processos, há pelo menos três aspectos a sublinhar:
1. O conjunto do processo histórico desse período considerado em termos de fase final
do feudalismo, ou ainda, se assim se preferir, como a época pré-capitalista por exce-
lência.
2. As atividades de caráter mercantil, inclusive suas conexões e ramificações financei-
ras e coloniais, que, vistas em conjunto, correspondem ao mercantilismo ou ao sistema
mercantil.
3. Os processos relacionados com a acumulação “primitiva” do capital, cujas formas
variáveis, conforme o setor produtivo considerado, constituem as assim chamadas
precondições da Revolução Industrial.
Em relação ao segundo desses processos, caracterizado pela construção do mercado
mundial, trata-se do desenvolvimento dos mercados europeus e extraeuropeus que de-
finem a estruturação de diferentes circuitos mercantis mais ou menos articulados à ex-
ploração colonial segundo as variadas formas assumidas por esta última.
A CRISE DO VELHO SISTEMA: A FASE FINAL DO FEUDALISMO
A fim de melhor situarmos esta fase, convém termos em mente a divisão do feudalismo
europeu, especialmente nas regiões centro-ocidentais da Europa, em três grandes perío-
dos ou fases:
1a. Desde os séculos IV-V até os séculos X-XI d. C. – uma etapa de formação marcada pe-
los variados aspectos constitutivos da transição do escravismo antigo para o feudalismo (me-
dieval).
2a. Dos séculos X-XI até o início do século XIV, constituindo a fase de apogeu ou de maior
desenvolvimento das estruturas feudais, simultaneamente à expansão das cidades e das ativi-
dades típicas da chamada economia urbana.
3a. A partir dos séculos XIV-XV e estendendo-se até o século XVIII ou mesmo o XIX, em
alguns casos, sendo esta a fase final do feudalismo propriamente dita, cuja principal característi-
ca é a transição do feudalismo para o capitalismo como processo geral.
Trata-se, portanto, no caso da transição feudal-capitalista, de um processo muito
longo em termos cronológicos, além de destituído de uma verdadeira uniformidade.
Começando com os primeiros sinais da crise do feudalismo, termina, séculos mais tarde,
com o advento do capitalismo, o que nos permite detectar nesse processo de transição
inúmeros aspectos componentes, alguns dos quais contraditórios, configurando-se aí
dois tipos básicos de transformações:
� As transformaçõesassociadas às formas ou estruturas socioeconômicos de nature-
za feudal presentes na sociedade do Antigo Regime na época do Estado absolu-
tista, típicas do mundo rural, mas presentes também nas organizações corporati-
vas urbanas.
� As transformações mais ligadas ao surgimento e à expansão de formas socioeco-
nômicas de natureza pré-capitalista, tanto no campo como nas cidades, em geral
mais ligadas à manufatura e às atividades mercantis.
Se quisermos pensar de um ponto de vista histórico mais preciso a ocorrência de tais
transformações, considerando-se sobretudo as variações conjunturais da economia, po-
deremos delimitar, no bojo da fase final do feudalismo, os seguintes períodos:
1o. O período correspondente à chamada crise do final da Idade Média, durante os séculos
XIV e XV, que atingiu muitas das antigas formas tradicionais das relações feudais na
agricultura e que se fez acompanhar de sensível declínio demográfico e de significativos
descensos no âmbito das atividades manufatureiras e mercantis. Daí, certamente, as nu-
merosas manifestações de tensões e conflitos sociais, assim como as expressões de uma
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s6 ELSEVIER
verdadeira crise ideológica. Constituindo o conjunto dessa crise ou, segundo outros, sua
verdadeira essência, encontraremos ao lado da depressão econômica a presença da trilo-
gia trágica: a fome, a peste e a guerra.
Foi em fins da Idade Média que se inseriu, na liturgia campestre das Rogações, a nova
invocação: A Fame, bello et peste, libera nos Domine.
Fome, peste e guerra, tais são os perigos que a todo instante ameaçam o homem, tal é a
trilogia dos flagelos que se encontram no lamento, convencional ou sincero, pouco impor-
ta, do poeta bretão João Meschinot:
“O misérable et très dolente vie.
La guerre avons, mortalité, famine,
Le froid, le chaud, le jour, la nuit nous mine.”1
2o. Dos meados do século XV até o começo do século XVII, um período de expansão
econômica corresponde àquilo que alguns historiadores vêm denominando de o longo sé-
culo XVI. Temos aí uma relativa expansão das atividades industriais, artesanais, é claro, bem
como da produção agrícola, em estreita conexão com a retomada do crescimento demo-
gráfico e o início da expansão mercantil – marítima e colonial. Importantes mudanças cul-
turais – como aquelas diretamente ligadas ao Humanismo e ao Renascimento – e religio-
sas – como as Reformas – marcam a ruptura com diversos aspectos do universo medieval
abrindo caminho para a revolução científica e para o advento da modernidade.2
O século XVI conheceu três épocas. A primeira, entre 1500 e 1530, é a do triunfo dos
portugueses no mercado das especiarias. O Mediterrâneo, esmagado pelos turcos, cede lugar
ao Atlântico. É o tempo dos Fugger. A segunda vai de 1530 a 1560. É o tempo da primeira
prata da América. Carlos V pratica a sua grande política. Tenta salvar a unidade da cristanda-
de. Vêm enfim as crises, com a abdicação do imperador, a catástrofe financeira de 1559 e a
paz de Cateau-Cambrésis, o desmoronar de Lyon, de Toulouse, de Antuérpia, enfim as
guerras de religião... Mas é também a época da pré-Revolução Industrial na Inglaterra. É
também o período em que o afluxo da prata recomeçou, de Potosí e do México, mantendo
a Espanha na liderança do mundo, a Espanha, cujo soberano é rei de Portugal, aonde chega,
em péssimas naus, o açúcar do Brasil.3
3o. Do início do século XVII ao final desse mesmo século ou, em alguns casos, às prime-
iras décadas do XVIII, ocorre, em diversos países europeus, a chamada crise do século
XVII, cuja natureza e alcance constituem motivo de intermináveis debates entre os his-
toriadores. Para alguns, trata-se de uma fase de ajustamento, ou mesmo de recuo, do de-
senvolvimento do capital comercial, ao passo que, segundo outros, foi um dos dois mo-
mentos decisivos da história do capitalismo, em termos econômicos, políticos e sociais –
a Revolução Inglesa. Do ponto de vista da primeira dessas perspectivas, a crise é um
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M U N D O – T R A N S I Ç Ã O , E X P A N S Ã O C O M E R C I A L E M E R C A N T I L I S M O 7
processo geral que abrange todos os aspectos da vida das sociedades europeias; já sob a
ótica da segunda, a crise teria sido, na verdade, a viragem decisiva que abriu caminho para
o triunfo do capitalismo.
O século XVII é a época de uma crise que afeta o homem todo, em todas as suas ativi-
dades, econômica, social, política, religiosa, científica, artística, e em todo o seu ser, no
âmago de seu poder vital, da sua sensibilidade e da sua vontade. A crise é permanente...
Tendências contraditórias coexistiram longamente, misturadas... Não só coexistem na
mesma época na Europa, mas ainda no mesmo Estado, no mesmo grupo social, no mesmo
homem, contraditórias e dilaceradas.4
Quando examinamos a história do capitalismo concebida desse modo, torna-se claro
que devemos datar sua fase inicial na Inglaterra, não no século XIII..., nem mesmo no século
XIV..., mas na segunda metade do século XVI e início do XVII, quando o capital começou
a penetrar na produção em escala considerável, seja na forma de uma relação bem amadure-
cida entre capitalista e assalariados, ou na forma menos desenvolvida da subordinação dos ar-
tesãos domésticos que trabalham em seus próprios lares para um capitalista no chamado ‘sis-
tema de trabalhar caseiro...’5
4o. A partir de meados do século XVIII, ou mesmo duas ou três décadas antes de 1750,
conforme o autor considerado, o capitalismo tende a se expandir com rapidez na Euro-
pa Ocidental. Diversas revoluções econômicas assinalam a expansão europeia, também ve-
rificável do ponto de vista do comércio e da exploração coloniais. Sintetizando tais
transformações está o conceito de revolução burguesa ou de dupla revolução – as grandes
mudanças econômicas e sociais abrangidas pelo conceito de Revolução Industrial e as
mudanças políticas, sociais e ideológicas que correspondem ao conceito de Revolução
Liberal. Temos aqui, na verdade, a Revolução Industrial Inglesa e as revoluções liberais – ou
democrático-burguesas, segundo uma terminologia mais tradicional –, isto é, a Revolução Ameri-
cana e a Revolução Francesa:
A grande revolução de 1789-1848 representou o triunfo não da indústria como tal, mas
da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da sociedade liberal
burguesa ou de classe média; não da economia moderna ou do Estado moderno, mas das
economias e Estados de uma região geográfica do mundo particular (parte da Europa e algu-
mas áreas da América do Norte), cujo centro eram os Estados vizinhos e rivais – Grã-
Bretanha e França. A transformação de 1789-1848 é essencialmente a convulsão social ger-
minada que teve lugar nesses dois países e propagou-se a partir daí para o mundo inteiro.
Mas não é errado encarar essa revolução dualista – a Revolução Francesa, bem mais po-
lítica, e a Revolução Industrial (britânica) – não tanto como algo que pertence à história dos
dois países que foram seus portadores e símbolos, mas como as crateras gêmeas de um vulcão
regional bem mais amplo.6
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s8 ELSEVIER
Vista como um todo, a fase final do feudalismo correspondeu historicamente a trans-
formações as mais variadas, associadas tanto à progressiva desestruturação das relações
feudais como ao avanço lento, não raro irregular, das relações capitalistas. Quando a
nossa atenção se concentra nessas últimas, a tendência é sempre destacar aquelas que
constituem as manifestações de processos e tendências cujo sentido vem a ser o do
advento do capitalismo, daí o hábito de intitulá-las precondições da Revolução Industrial:
a acumulação (primitiva) de capital; a liberação da mão de obra e os progressos técni-
co-científicos.
Na realidade, a fase final do feudalismo corresponde a uma fase de transição caracte-
rizada pela coexistência de elementostípicos do feudalismo, em processo de progressiva
desagregação, e de outros, propriamente capitalistas, ainda emergentes.
NOVOS CAMINHOS E NOVOS MUNDOS:
A EXPANSÃO COMERCIAL
Os antecedentes medievais
Durante os séculos XI e XIII verificou-se nas atividades agrícolas e artesanais na Europa
Centro-Ocidental um conjunto de transformações, por vezes definidas como uma es-
pécie de revolução econômica, que repercutiram no crescimento das trocas mercantis. Si-
tua-se aí historicamente o chamado renascimento urbano medieval. As cidades que mais
prosperaram foram as da Itália centro-setentrional, as do sul dos Países Baixos e aquelas
situadas às margens do Báltico. Acumulação de capital, ampliação da circulação monetá-
ria, surgimento de novos instrumentos de crédito, aumento dos empréstimos aos prín-
cipes e às instituições eclesiásticas, circulação cada vez maior de mercadorias, quer no
Mediterrâneo, quer pelo vale do Reno, entre o norte da Itália e o mar do Norte, são
contemporâneos do crescimento e da multiplicação das feiras, sobretudo as da região de
Champagne, na França.
A crise do final da Idade Média (séculos XIV-XV) interrompeu por algum tempo o
surto de prosperidade e expansão demográfica. Todavia, já a partir dos meados do sécu-
lo XV são evidentes os sinais de recuperação econômica, com o início da expansão ma-
rítima, comercial e colonial, liderada pelos países ibéricos.
Para que se possa realmente entender essa passagem dos tempos medievais aos mo-
dernos, ou o começo da transição feudal-capitalista, talvez seja conveniente dividir esta
exposição em três tópicos principais: a natureza socioeconômica, política e cultural das
transformações ocorridas entre os séculos XI e XV; as características dos grandes circui-
tos comerciais na época moderna; a expansão extraeuropeia e as hegemonias mercantis
ao longo da era mercantilista.
O N O V O T E M P O : C I R C U L A Ç Ã O E C O N Ô M I C A E C O N H E C I M E N T O D O
M U N D O – T R A N S I Ç Ã O , E X P A N S Ã O C O M E R C I A L E M E R C A N T I L I S M O 9
As principais transformações socioeconômicas, políticas
e culturais durante a chamada Baixa Idade Média
O feudalismo, como modo de produção, significa a separação entre a propriedade da terra e
sua posse ou exploração, isto é, entre senhores e camponeses (servos ou não). A expansão
econômica desencadeada a partir do século XI esteve estreitamente ligada às pressões demo-
gráficas crescentes, à introdução de técnicas novas ou aperfeiçoadas e a um movimento in-
tenso de ocupação de novas áreas para o cultivo agrícola. Como uma das consequências de
tais mudanças, alteraram-se algumas das características das relações entre senhores e servos
em algumas regiões, com a tendência, por exemplo, à substituição das prestações em trabalho
gratuito na chamada reserva senhorial por pagamentos em produtos ou mesmo, em certos ca-
sos, em moeda ou algum tipo de equivalente monetário. Alguns historiadores denominam
esse processo liberação da mão de obra camponesa, sendo considerado por eles o efeito mais
importante daquela comutação de serviços antes descrita. Para outros, porém, o conjunto for-
mado por todas essas transformações configuraria uma verdadeira revolução agrícola.
Do século XI ao XIII, um conjunto de progressos na economia rural constituiu uma
verdadeira revolução agrícola. A difusão dos moinhos a água e a vento, a elevação do rendi-
mento do trabalho dos animais de tração, os aperfeiçoamentos da charrua, os progressos da
rotação trienal dos solos, o aparecimento de novas culturas, são seus principais aspectos. To-
das essas novidades concorrem para o vasto movimento de ocupação de novas terras que au-
menta consideravelmente a superfície das terras cultivadas da Cristandade.7
Há ao mesmo tempo um grande crescimento da população, uma verdadeira revolução
demográfica. A revolução agrícola lhe está, aliás, intimamente ligada, pois ela responde à de-
manda ampliada de produtos alimentares. Essas transformações contribuem para modificar
as condições econômicas e jurídicas da exploração dominial e para melhorar as condições
jurídicas e sociais dos camponeses: as corveias são substituídas por pagamentos em dinheiro,
os servos são em certos casos liberados.8
As mudanças ocorridas no setor agrícola não devem ser separadas de outras duas não
menos decisivas: o surto comercial, favorecido pela expansão rural, e o renascimento
urbano, em estreita conexão com o surto agrícola e mercantil. Teria então ocorrido,
como propõem alguns, uma verdadeira revolução comercial e uma revolução urbana?
Uma revolução comercial e uma revolução urbana acompanharam a revolução agrí-
cola. Um comércio de grande raio de ação desenvolveu-se no Ocidente e entre o Ociden-
te e as regiões bizantinas e muçulmanas: transportes por terra e sobretudo por mar (graças à
bússola e a um novo tipo de leme). As moedas difundiram-se, e foram cunhadas para o co-
mércio internacional novas peças de ouro e de prata. Certas regiões especializaram-se na
produção de artigos e mercadorias para exportação (vinho, sal, lã, panos) (...) As cidades se
desenvolveram e obtiveram privilégios e liberdades que conduziram com frequência, na
França e na Itália, à formação de comunas autoadministradas. As cidades foram o centro de
organizações onde triunfou a divisão do trabalho.9
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s10 ELSEVIER
Um dos efeitos mais evidentes do crescimento das cidades foi o aumento das transa-
ções comerciais entre campo e cidade, cabendo a esta última o papel de centro integra-
dor das atividades mercantis e artesanais. Teríamos aí então, conforme velha e quase es-
quecida tese, a passagem de uma economia dita de subsistência, ou natural, para uma
outra, mercantil e monetária.
Ampliaram-se assim tanto as transações locais e regionais como, em muitos casos, aque-
las realizadas com regiões mais ou menos distantes através de extensas rotas terrestres e/ou
marítimas. Sob o controle das guildas e corporações mercantis e artesanais, o domínio eco-
nômico urbano sobre o campo circundante tendeu a ampliar-se – é o domínio da chamada
política econômica urbana, monopolista e fiscalista. Os núcleos urbanos foram também refúgios
privilegiados para aqueles que desejavam escapar às imposições servis, pois, conforme se di-
zia então, o ar da cidade torna o homem livre. Entretanto, sabe-se hoje, seria muito arriscado
imaginar uma oposição ou contradição radical entre cidades e propriedades feudais.
Desde cedo os comerciantes procuraram integrar aos circuitos mercantis regiões
cada vez mais distantes e periféricas em relação aos dois principais polos econômicos de
então: as cidades italianas – Veneza, Gênova, Florença, Milão, Pisa, entre outras – e as
cidades flamengas – Bruges, Gand, Yprès, Liège e Antuérpia. Assim, as rotas mercantis
avançam para o leste, através das regiões eslavas, para as margens orientais do Mediterrâ-
neo, sobretudo a partir das Cruzadas. Acumulando capitais, desenvolvendo ou criando
novos métodos e técnicas comerciais, como a letra de câmbio, os comerciantes euro-
peus empreendem também algumas formas de colonização no Mediterrâneo, em uma
espécie de antecipação ou prelúdio da expansão atlântica.
A colonização do mundo atlântico é geralmente considerada um fenômeno sem prece-
dentes e portanto inteiramente novo. Esse ponto de vista é errôneo, pois existiram, no final
da Idade Média, colônias no Mediterrâneo oriental ou Levante e é de lá que são originárias as
técnicas de colonização que se expandiram através do mundo atlântico. Quando se estuda
as concessões de terra feitas nas colônias atlânticas, constata-se as filiações com a colonização
medieval de um lado, e, de outro, as adaptações de instituições metropolitanas medievais ao
novo meio colonial.10
[Os historiadores da colonização] desconhecem certos aspectos da colonização medi-
terrânea medieval que anunciam a colonização atlântica na época moderna, notadamente as
atividades agrícolas e industriais. Uma combinaçãodesses dois aspectos caracteriza a produ-
ção do açúcar de cana pela qual as repúblicas italianas se interessaram desde que, após a pri-
meira Cruzada, adquiriram possessões na Palestina.11
À primeira vista, as relações entre a escravidão colonial e a história social da Europa me-
dieval não são evidentes, pois, em geral, acredita-se que a escravidão desapareceu da maior
parte dos países europeus no final da Antiguidade. Na realidade, se a servidão foi, muito mais
do que a escravidão, uma estrutura característica da sociedade medieval, aquela última con-
tudo subsistiu em numerosos países europeus durante todo o período que separa a queda do
Império Romano do Ocidente da epopeia das grandes descobertas.12
O N O V O T E M P O : C I R C U L A Ç Ã O E C O N Ô M I C A E C O N H E C I M E N T O D O
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Cabe também mencionar aqui a importância para esse surto mercantil e urbano
do desenvolvimento do conceito de luxo, da ostentação de riqueza entre os membros
da elite senhorial e a alta burguesia. Novos hábitos de consumo, em parte associados à
importação de produtos orientais, valorizaram diversos tipos de mercadorias, como os
tecidos de seda e algodão, louças, pedras preciosas, tapeçarias, bronze etc. Bem mais
conhecidas vieram a ser, porém, as chamadas especiarias, de preço unitário elevado e
consumidas em pequenas quantidades na culinária, na perfumaria e na medicina.
Por especiarias e drogas designa-se um conjunto de produtos na quase totalidade ve-
getais e em pequeno número animais ou mistos, que servem de condimentos, mezinhas,
masticatórios (betel, areca), excitantes (cubebas, pedra bazar), ou estupefacientes (ópio),
perfumes e unguentos, e cores de tinturaria (pau-brasil, açafrão, anil). A maior parte tem
polivalência de funções (....) Deste conjunto de dezenas de especiarias e drogas destaquemos
as seis que representam de longe o maior volume de tráfego (...) pimenta, gengibre, canela,
maçãs, noz-moscada e cravo (...)13
Os grandes circuitos comerciais
Os circuitos medievais
Diversas rotas terrestres e marítimas ligavam os grandes centros comerciais europeus en-
tre si bem como às áreas por eles abastecidas ou nas quais se abasteciam de mercadorias.
Considerando-se os dois grandes polos econômicos já citados – as cidades italianas e fla-
mengas – verifica-se que até o final do século XIII o comércio entre eles, através dos
Alpes e da Champanhe, constituía o principal eixo econômico intraeuropeu. Já no sé-
culo XIV, condições políticas adversas – sobretudo os efeitos devastadores da chamada
Guerra dos Cem Anos – levaram ao declínio das grandes feiras daquele eixo ao passo que
se intensificavam as comunicações marítimas entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte,
fato que beneficiou enormemente os portos ibéricos do Atlântico. Verificou-se tam-
bém nessa época o deslocamento das comunicações terrestres norte-sul para o Vale do
Reno, origem da prosperidade de diversas cidades do sul da Alemanha, como Nurem-
berg, Augsburgo e Colônia.
Do centro-norte da Itália partiam as rotas marítimas exploradas pelos venezianos,
genoveses, pisanos, entre outros, para as regiões do Mediterrâneo oriental (Constanti-
nopla, Trebizonda, Alexandria, São João d’Acre), bem como para o ocidental, estabele-
cendo contatos com os comerciantes de Barcelona, Marselha, Narbona, Baleares etc.
Por outro lado, no norte da Europa, inúmeras rotas mercantis ligavam Flandres aos por-
tos franceses, ao vale do Reno, ao Báltico, com destaque aqui para as cidades hanseáticas
– Lübeck, Bremen, Hamburgo, Dantzig, entre muitas outras. Já naquela época, o valor
das mercadorias negociadas e o lucro propiciado pelas transações situavam em primeiro
lugar as relações das cidades italianas com os portos do Mediterrâneo oriental e do Egito,
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pois era para lá que afluíam as mercadorias transportadas por caravanas vindas das mais
diversas e distantes regiões da Ásia.
Modernos
O capital comercial expandiu-se com rapidez em consequência das novas e crescentes
oportunidades de lucro geradas pelo estabelecimento de rotas mercantis transoceânicas,
pela conquista e exploração de terras no Novo Mundo e pelo tráfico de escravos africanos.
Na Europa, um capital financeiro ainda incipiente movimentava as primeiras bolsas
(Antuérpia, Londres, Lyon), ao mesmo tempo que estimulava práticas especulativas varia-
das. Intensificavam-se as associações de interesses entre comerciantes-banqueiros e prínci-
pes (os Fugger, de Augsburgo, e o imperador Carlos V, por exemplo). Com a Reforma
religiosa, em países como a Inglaterra, por exemplo, as secularizações das propriedades
eclesiásticas propiciaram boas oportunidades de investimento do capital comercial.
Entre os séculos XV-XVI e o século XVIII, o desenvolvimento do capital comer-
cial pode ser resumido em termos da formação/expansão de dois grandes circuitos ou
complexos de rotas e trocas comerciais: o intraeuropeu e o extraeuropeu.
O circuito intraeuropeu predominou até por volta de 1750 e compreendia qua-
tro complexos regionais: do Mediterrâneo, do Atlântico, do Báltico e da Europa Cen-
tro-Oriental. As diferenças regionais, tanto naturais como socioeconômicas, faziam
transitar nesses circuitos intraeuropeus os cereais, os vinhos, o sal, as lãs, o peixe salgado,
madeiras, metais e sabão, além de relógios, livros e artigos de luxo. O gado deslocava-se
“em pé”, e certos artigos eram extraídos ou fabricados em locais específicos, o que pro-
duziu uma certa especialização no interior de cada um desses circuitos regionais.
O comércio dessas regiões europeias com aquelas que se poderia chamar de transo-
ceânicas compreendia um pequeno leque de exportações e um apreciável e sempre
crescente volume de importações, geralmente reexportadas para outros portos e regiões
da Europa. Dentre as exportações pode-se mencionar certas manufaturas – panos de lã,
artigos de metal, ferro, couro e madeira, além de artigos de vidro, papel e seda. Havia
ainda a exportação de armas de fogo, panos de algodão e bugigangas para a costa africana
e também, em alguns casos, para a Ásia, sendo importante lembrar que o comércio com
as regiões asiáticas tendia a consumir quantidades cada vez mais significativas de prata.
Por volta de 1750 os mercados europeus ainda deixavam muito a desejar em termos
de articulação, e a economia monetária convivia com enormes bolsões de economia natural.
Os circuitos extraeuropeus, cujo auge se situa no século XVIII, compreendiam
três grandes áreas além das respectivas subdivisões regionais: América, Índias e China. A
América abrangia as colônias inglesas da América do Norte, as colônias ibéricas e as cha-
madas “Índias Ocidentais” – as ilhas antilhanas e o Caribe. Sob a designação genérica de
Índias estão englobados a Índia propriamente dita, ou o subcontinente indiano, a Insu-
líndia ou Indonésia, a região da Malásia ou península malaia, e o arquipélago das Filipi-
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nas. Em relação ao comércio da China, trata-se na verdade não só do Império Chinês,
mas também do arquipélago japonês e das áreas do chamado Sudeste da Ásia.
Quanto ao continente africano, deve-se distinguir até certo ponto as regiões oci-
dentais, mais articuladas com as regiões americanas – em função, sobretudo, do tráfico
de escravos –, das regiões orientais, no Índico, mais ligadas ao comércio com a Índia, o
Mar Vermelho e o Golfo Pérsico, embora participassem também do tráfico de escravos
através do Atlântico.
O desenvolvimento de cada um desses circuitos constitui uma história ligada às res-
pectivas formas de inserção no mercado internacional, às variações conjunturais deste,
bem como a fatores e circunstâncias típicos de cada um deles.
A economia europeia duranteos séculos XV e XVI
e os efeitos iniciais das grandes navegações e descobrimentos
A expansão da economia europeia
A economia europeia durante a segunda metade do século XV e ao longo de todo o sé-
culo XVI caracteriza-se pela expansão considerável tanto da produção em geral como
das atividades mercantis. É provável que a tendência à alta dos preços, então dominante,
tenha contribuído bastante para o aumento geral das atividades econômicas, além de dar
muito incentivo à especulação monetária e financeira. Outro fator a considerar nessa
expansão foi o rápido crescimento populacional e suas repercussões sobre o consumo e
os movimentos migratórios. Tendo em vista o conjunto dessas transformações, alguns
historiadores criaram a expressão “revolução econômica do século XVI”, ao passo que
outros deram preferência à noção de revolução comercial.
Foi tão radical o deslocamento do comércio internacional, cujo centro passou do Me-
diterrâneo ao Atlântico e especialmente aos portos do Mar do Norte, que nos anais da histó-
ria da Europa se lhe vem dando tradicionalmente o nome de Revolução Comercial do Século
XVI. Foi efetivamente uma das grandes mudanças de centro de gravidade registradas pela
História (...) Significou que, daí por diante e pelo espaço de uns 350 anos, os grandes avan-
ços econômicos haveriam de ser encontrados sobretudo num raio de 500 milhas a partir da
Bélgica.14
As navegações e descobrimentos constituíram, em boa medida, uma das resultantes
dessa expansão geral da economia e contribuíram, por sua vez, para acelerar tal expan-
são. Em um certo sentido, por sinal, a noção mesma de Revolução Comercial sublinha dois
fenômenos muito importantes: a rápida ampliação e diversificação dos mercados e o im-
pacto representado pelo afluxo de metais preciosos. Em ambos os casos, cresceram ex-
ponencialmente as possibilidades de lucro dos empresários, em associação, muitas vezes,
com os negócios dos príncipes.
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s14 ELSEVIER
O impacto dos grandes descobrimentos sobre
a produção agrícola e manufatureira
O afluxo de metais preciosos – que acelerou o movimento de alta dos preços – bem como
o aumento demográfico – que estimulou a demanda do ponto de vista do consumo –
induziram à produção de maiores quantidades de produtos para o mercado – alimentos,
matérias-primas, panos, madeiras, vidros, artigos metálicos etc.
A pressão dessa demanda ampliada sobre a produção levou a algumas inovações sig-
nificativas em certos setores produtivos, embora essas inovações tenham ocorrido com
maior frequência somente em alguns países ou regiões da Europa, como a Inglaterra, a
França, os Países Baixos, e, em menor escala, a Suécia, a região do Reno e algumas das
cidades italianas.
Dentre tais inovações destacam-se a introdução de relações capitalistas de produção
na agricultura – em primeiro lugar, a prática dos cercamentos, mais intensa em algumas re-
giões da Inglaterra –, e a organização das manufaturas – de tipo disperso comuns em di-
versas regiões rurais, ou de tipo concentrado, mais encontradas nas cidades. Não menos
importantes, no entanto, foram certos progressos técnicos a partir da melhor utilização
da energia hidráulica e da invenção de engenhos mecânicos para multiplicar a eficiência
produtiva do trabalho dos artesãos.
Alguns outros aspectos podem ser mencionados, tais como: a introdução de novas
culturas agrícolas, sobretudo o milho e a batata; a tendência ao aumento dos investimen-
tos de capitais na ampliação da produção de mercadorias, sobretudo aquelas destinadas à
exportação; e a multiplicação da atividade de comerciantes e empresários, inclusive com
o estabelecimento de muitas manufaturas.
Bem maior do que a influência dos grandes descobrimentos sobre a produção foi a
que tiveram sobre as atividades mercantis. Houve um aumento quantitativo e qualita-
tivo do comércio europeu, e uma expansão geográfica, quando o Atlântico passou ao
primeiro plano de importância para as atividades comerciais, ao mesmo tempo que se
processou um declínio relativo das principais cidades mediterrâneas, conforme se de-
sarticulava o monopólio italiano do chamado comércio oriental.
O capital comercial fortaleceu-se bastante, atuando sempre, como lhe era caracte-
rístico, na esfera das trocas, ou seja, ganhando na diferença entre o preço de compra e o
de venda das mercadorias. A indústria de construção naval desenvolveu-se rapidamente,
sobretudo nos Países Baixos e na Inglaterra.
Enquanto Portugal estabeleceu, pelo menos por algum tempo, o monopólio sobre
as especiarias e outros produtos orientais, a Espanha concentrou seus esforços na explo-
ração/extração e no transporte da prata e do ouro do Novo Mundo para Sevilha. Os
países ibéricos lançaram-se, em tempos diferentes, à conquista e à colonização das terras
americanas, dando assim origem ao que se poderia chamar de os primeiros impérios co-
loniais da era moderna.
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M U N D O – T R A N S I Ç Ã O , E X P A N S Ã O C O M E R C I A L E M E R C A N T I L I S M O 15
A abertura das grandes rotas do mundo ampliou enormemente o comércio da Europa e
sua riqueza. Os metais preciosos se acumulam no cais de Sevilha; eles farão da Espanha a pri-
meira potência europeia. Mas a partir daí o ouro e a prata irão se esparramar por toda a Euro-
pa. Esse afluxo de metais preciosos multiplica as espécies monetárias: por sua abundância,
elas baixam de valor, o que provoca uma alta geral dos preços das mercadorias durante todo
o século XVI. É a inflação: com a moeda valendo menos, é preciso maior quantidade para
pagar pelo mesmo objeto. O magistrado economista francês, Jean Bodin compreendeu bem
isso quando escreveu: “A principal e quase única causa da carestia é a abundância de ouro e
de prata, que é hoje neste reino maior do que foi nos últimos quatrocentos anos.” No con-
junto, os preços quadruplicam de 1501 a 1601.15
As hegemonias mercantis na Europa
na época do mercantilismo
Os séculos XV e XVI – expansão ibérica e hegemonia flamenga
As grandes navegações oceânicas, os descobrimentos, as conquistas e os primórdios da co-
lonização das terras recém-descobertas constituem as etapas sucessivas de um processo
que se pode denominar empresa mercantil ibérica, que teve como marca característica a
participação das coroas de Portugal e de Castela, bem como a da Igreja Católica, em
todas essas etapas.
Os empreendimentos portugueses tiveram início em 1415, com a conquista de
Ceuta, no Marrocos, e culminaram no final do século XV: com o sucesso da viagem de
Vasco da Gama à Índia, em 1487-1488, e com a chegada de Pedro Álvares Cabral à en-
tão denominada Ilha de Vera Cruz (o futuro Brasil), em 1500. Os castelhanos, afora a
conquista do Arquipélago das Canárias, no começo do século XV, apenas no final desse
mesmo século puderam efetivamente lançar um sério desafio aos portugueses, pois,
com as viagens de Colombo e a consequente descoberta da América, eles puseram em
risco a hegemonia marítima lusitana. Resultou dessa disputa e da intervenção do papado
a assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 1494, que estabeleceu o Meridiano de Tordesi-
lhas, isto é, uma linha divisória imaginária no sentido norte-sul que deveria passar a 370
léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde, separando as terras a oriente – pertencentes à
Coroa de Portugal – daquelas situadas a ocidente – pertencentes a Castela. Entretanto,
somente após a grande viagem de Fernão de Magalhães, entre 1518 e 1522, colocou-se
o problema da divisão através do oceano Pacífico, tendo em vista a disputa pelo Arqui-
pélago das Molucas. Assim, em 1529, pelo Tratado de Saragoça, ficou estabelecido um
meridiano l7 graus a leste daquelas ilhas, ficando Portugal com as regiões orientais e a
Espanha com as ocidentais, em consequência do que coube à coroa lusa o Arquipélago
das Molucas e aos castelhanos, o das Filipinas.
De acordo com Victorino Magalhães Godinho (1968), a expansãoibérica configu-
ra um complexo histórico-geográfico que se define a partir das décadas finais do século XV e
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começa a entrar em crise por volta de 1549 (na Espanha seria um pouco mais tarde), en-
cerrando-se com as vicissitudes associadas à união das coroas ibéricas, no caso portu-
guês, e com a crise financeira do Estado, já no final do reinado de Filipe II, e a subse-
quente queda do afluxo de metais preciosos americanos, entre 1620 e 1630.
Os empreendimentos mercantis ibéricos seguiram caminhos diversos conforme se
tenha em vista a política lusa ou a castelhana e, ainda, suas diferenças em função dos múl-
tiplos espaços por elas abrangidos.
No Oriente, a política portuguesa concentrou-se no comércio das chamadas especiarias,
certamente o mais lucrativo. Os portugueses procuraram apropriar-se, a ferro e fogo, do
comércio do Índico e de suas extensões orientais (Insulíndia e China) com o objetivo de
fazer desse oceano um verdadeiro lago lusitano, controlando suas principais portas
(Ormuz, no Golfo Pérsico, Socotra, no Mar Vermelho, e Malaca, na passagem para o Mar
da China), expulsando ou esmagando todos os comerciantes rivais (árabes, muçulmanos,
indianos e malaios), e tentando estabelecer um verdadeiro monopólio comercial, tanto
regional quanto transoceânico. Foi a época do estabelecimento de fortalezas e da vigilân-
cia naval incessante – um esforço financeiro e humano extraordinário!
É, portanto, de evidência que, em meio à aparente prosperidade, a nação empobrecia.
Podiam os empreendimentos da Coroa ser de vantagem para alguns particulares: assim, os
feitos de África rendiam tenças e graças à fidalguia; com o tráfico da Guiné enriqueciam cer-
tos mercadores; mas para que esses lograssem proveitos, recaía sobre os povos o fardo dos
impostos e o agravo das levas, para o serviço militar, que um estado perpétuo de guerras exi-
gia, ao mesmo tempo que no país escasseavam os braços. Sucedeu, porém, que o ganho de
alguns, poucos, depressa se tornou, como sempre, sedução para todos.16
Para os espanhóis, superada, após 1520, a fase das chamadas viagens de reconheci-
mento, iniciou-se a era dos conquistadores, cujos exemplos mais conspícuos são o de Cor-
tez (sobre os astecas, no México) e o de Pizarro (sobre os incas, no Peru). A partir de
1550, a coroa de Castela inicia a retomada dos poderes delegados aos primeiros conquis-
tadores e passa ela mesma a empreender e administrar as novas conquistas com legiões de
militares, missionários e funcionários. Inicia-se assim a organização da colonização pro-
priamente dita: exploração das minas de prata e ouro (Zacatecas e Guanajuato, no Mé-
xico, e Potosi, no Peru), desenvolvimento das grandes plantações tropicais, nas terras
baixas, e grandes haciendas visando a criação extensiva de rebanhos. Tudo isso à custa, na
verdade, de variadas formas de trabalho compulsório impostas aos indígenas, nas terras
altas, e, sobretudo, aos escravos africanos, importados, nas terras baixas.
Voltando ao caso português, verifica-se que a defesa e a ocupação efetiva da Terra
de Santa Cruz significaram, na prática, a conversão da empresa mercantil em empresa
colonizadora, sempre subordinada, é claro, aos objetivos mercantis iniciais. Da utiliza-
ção do indígena como trabalhador submetido a um processo de escravização – eram os
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chamados negros da terra – passou-se à mão de obra escrava africana, assegurada pelo tráfi-
co negreiro em rápida expansão, em conexão com o desenvolvimento do grande lati-
fúndio – a plantation –, dedicado ao cultivo e à produção do açúcar.
Do ponto de vista da coroa portuguesa, na primeira metade do século XVI, principal-
mente, a defesa do seu monopólio no Índico e adjacências revelou ser uma tarefa bastante
dispendiosa: eram necessários recursos para renovar frequentemente as frotas, conservar
em condições de combate as fortalezas, pagar a verdadeira multidão de servidores milita-
res, burocráticos e eclesiásticos, enfrentar a corrupção existente em todos os escalões e as-
sumir os prejuízos dos naufrágios frequentes. Há que se levar na devida conta também os
gastos resultantes de conflitos com potentados muçulmanos na Índia e nas Molucas.
A Coroa foi sendo forçada a contrair sucessivos empréstimos com banqueiros fla-
mengos, italianos e alemães, onerando ainda mais os custos da empresa mercantil. Logo
veio somar-se a tal endividamento o déficit das importações sobre as exportações, pois,
na verdade, era preciso comprar no estrangeiro quase todos os itens constantes das carre-
gações das frotas. Assim, a ruína da feitoria oficial da Casa da Índia, em Antuérpia, em
1545, simboliza bem as consequências da falta de lógica do sistema: para manter o seu
monopólio, a Coroa devia arcar com os custos da obtenção e do transporte das especia-
rias das regiões do Oriente para Lisboa; enquanto isso, a comercialização e a transferên-
cia das especiarias de Lisboa para Antuérpia, muito mais lucrativas, ficavam em mãos dos
comerciantes flamengos e outros, que eram os seus redistribuidores na Europa seten-
trional e central.
No caso da coroa espanhola, se os problemas eram outros, possivelmente os meca-
nismos do sistema não eram muito diferentes. Embora fosse extremamente rica, a Coroa
de Espanha gastava muito – guerras, gastos suntuários, sustento de nobres e burocratas
consumiam as rendas do tesouro real e produziam déficits crescentes –; tornou-se cada
vez mais necessário recorrer aos empréstimos ou adiantamentos de banqueiros alemães
(como os Fuggers, de Augsburgo), genoveses e flamengos. Se as finanças do Estado iam
mal, tampouco a economia das diversas regiões espanholas ia melhor: a alta de preços e
de salários colocava em desvantagem a produção local, favorecendo as importações;
tanto a burguesia mercantil como os burgueses empresários de manufaturas foram víti-
mas da carestia generalizada e, quase ao mesmo tempo, das sucessivas bancarrotas do te-
souro real. Assim, vista como um todo, a trajetória econômica espanhola ao longo do
século XVI configura-se como aquele processo chamado por Vicens Vives (1964) de
meteoro burguês.
Antes de concluirmos essa síntese da economia dos anos quinhentistas é oportuno
fazer algumas observações que relativizem um pouco a noção de hegemonia ibérica por
nós empregada. Os demais países europeus, excluídos então da partilha do mundo ex-
traeuropeu, não cessaram de contestar, na teoria e na prática, aquela hegemonia. Foram
muitas as tentativas de ingleses e franceses, logo seguidos pelos neerlandeses, de estabele-
cer colônias e descobrir rotas oceânicas, pondo em risco a navegação ibérica no Atlânti-
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O
F a l c o n e R o d r i g u e s18 ELSEVIER
co. Ainda durante a primeira metade do século XVI, preocuparam-se tanto ingleses
como franceses em organizar expedições cujo objetivo era encontrar as chamadas passa-
gens do noroeste e do nordeste para o Oriente, singrando as regiões árticas ao norte do
continente americano e da Sibéria, respectivamente. Delas resultaram, apenas para
exemplificar, o início da exploração do bacalhau da Terra Nova e do comércio de peles
do Labrador, assim como os primeiros contatos comerciais com a Moscóvia. Já na se-
gunda metade desse mesmo século, quando pareciam cada vez mais problemáticas as tais
passagens, a tendência passou a ser a do desafio direto ao monopólio ibérico, pois, a
partir de então, divergências políticas e religiosas conjugaram-se no sentido de levar
franceses, ingleses e holandeses a atacar as frotas espanholas e, em seguida, os territó-
rios lusos e hispânicos na América, sobretudo a partir de 1580, quando Filipe II reuniu
as duas coroas. A viagem de Drake (1577-1579) ao redor do mundo revelou a fraqueza
das posições lusas no Oriente, principalmentesuas crescentes dificuldades políticas:
ingleses e holandeses que serviram em naus lusitanas aprenderam quase tudo sobre os
roteiros marítimos, os portos e as realidades políticas dos diversos locais frequentados.
Assim, quando, em 1595, os holandeses e, em 1600, os ingleses organizaram suas
companhias de comércio com a(s) Índia(s), o mistério ou sigilo sobre a rota das especia-
rias há muito deixara de existir.
Hegemonia neerlandesa e desafios anglo-franceses.
A importância de Amsterdã
Declínio ibérico
Durante quase todo o século XVI, as monarquias ibéricas usufruíram das van-
tagens decorrentes da sua prioridade mercantil e colonial em relação às rotas e regiões ex-
traeuropeias. O Tratado de Tordesilhas (1494) dividindo esse mundo extraeuropeu,
tanto suas partes já conhecidas como aquelas ainda por conhecer, entre as coroas de
Portugal e de Castela permaneceu válido ainda por bastante tempo. Contestações à
sua legitimidade, como aquelas promovidas por franceses e ingleses, tiveram efeito
restrito no século XVI.
Os flamengos tiveram uma participação substancial nos lucros do comércio ultra-
marino ibérico, pois, a partir de Lisboa e de Sevilha, asseguravam o fluxo de mercadorias
para Antuérpia, ou seja, as mercadorias e os metais preciosos da Ásia, África e América
eram transportados para os Países Baixos (e também para as cidades italianas, embora em
escala bem menor) e dali redistribuídos para outras regiões europeias.
Com a revolta dos Países Baixos contra o domínio espanhol, sobretudo a partir da
década de 1560, flamengos e holandeses buscaram ampliar o raio de ação de seus navios,
sobretudo a partir de 1580, quando, com a chamada União das Coroas Ibéricas, os portos
lusitanos ficaram praticamente proibidos aos adversários de Filipe II. Coube então aos
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holandeses, líderes da resistência às investidas espanholas, ampliar os seus negócios com
diversas regiões africanas, asiáticas e americanas, entrando em conflito principalmente
com os interesses portugueses. Na esteira dos neerlandeses logo foram também os na-
vios ingleses e, em menor escala, os franceses.
O assalto dos inimigos de Castela às posições em poder dos portugueses, nas costas
africanas e em diversas partes da Ásia, se completaria, na segunda década do século XVII,
com as invasões holandesas na Bahia e, em seguida, em Pernambuco, bem como na
América do Norte. No entanto, não se deve atribuir o declínio ibérico tão somente às
investidas de seus competidores e adversários. A eficácia de tais ataques resultou, em boa
medida, de fatores inerentes às próprias sociedades ibéricas, pois portugueses e espa-
nhóis não conseguiram assimilar e converter em instrumento de poder nacional os lu-
cros de sua hegemonia mercantil.
A noção de declínio ibérico deve ser, portanto, pensada em termos relativos, resul-
tantes das condições socioeconômicas e políticas das duas sociedades, isto é, do fato de
que os capitais produzidos a partir do comércio e das conquistas não propiciaram condi-
ções suficientes para uma transformação capitalista-burguesa em Portugal e na Espanha.
Na verdade, prevaleceu o capital comercial, e mantiveram-se de pé muitas das antigas
estruturas senhoriais no bojo de sociedades tipicamente estamentais.
Toda a primeira metade do século XVII foi marcada pela perda progressiva das mais
importantes posições portuguesas diante do assalto empreendido por holandeses, ingle-
ses e franceses. A chamada Revolução Restauradora, de 1640, que libertou Portugal do
domínio espanhol, representou o início de uma guerra difícil e longa contra a Espanha e
que exigiu um alto preço em termos de negociações com holandeses e ingleses. Para po-
derem preservar algumas poucas posições na África e na Ásia, bem como para assegurar a
recuperação das capitanias do nordeste da América portuguesa, os portugueses tiveram de
fazer muitas concessões, sobretudo aos interesses mercantis e financeiros dos ingleses: de
1654 a 1703 sucessivos tratados comerciais concederam à Inglaterra e a seu comércio
uma posição altamente privilegiada em Portugal.
O predomínio econômico e político da Grã-Bretanha não se estabeleceu pelo Tratado
de Methuen, como se tem pretendido. Já existia antes, pelo de 1654, que nos impôs obriga-
ções e lhe criou direitos excepcionais. À sombra dele, frutificou o rebento de 1703, e me-
drou entre nós o bretão em fortuna e autoridade.17
O declínio espanhol revela-se com nitidez crescente ao longo do século XVII,
muito embora alguns de seus prenúncios já estivessem manifestos nas sucessivas bancar-
rotas do erário régio à época de Filipe II. Embora tivesse sido a beneficiária imediata do
afluxo metálico do tesouro americano, a Espanha deixou praticamente escorrer entre
seus dedos a maior parte dessa riqueza gigantesca: transformações de tipo capitalista es-
barravam na resistência dos interesses aristocráticos e senhoriais, os quais se traduziam,
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inclusive, em práticas econômicas e políticas quase sempre alheadas daquilo que se po-
deria conceber como sendo os interesses dos setores burgueses ainda pouco numerosos.
Para agravar mais ainda tal situação, houve sucessivas perseguições contra grupos e pes-
soas suspeitos de judaísmo e islamismo – os chamados marranos e mouriscos –, que eram
em geral artesãos, pequenos comerciantes e agricultores (caso dos mouriscos), enfraque-
cendo ainda mais a incipiente burguesia.
Além desses fatores socioeconômicos estruturais, há que se levar em conta aqueles
de natureza conjuntural: os enormes gastos exigidos pelos exércitos e armadas empe-
nhados em constantes guerras e cruzadas foram decisivos para a produção de um déficit
comercial e financeiro em constante crescimento; parte considerável do ouro e da prata
chegados da América era quase que de imediato transferida para fora do país a fim pagar
empréstimos de curto e longo prazos. O brilho do chamado Século de Ouro – correspon-
dente aos reinados de Filipe II e Filipe III – constituía de fato uma fachada que mal con-
seguia ocultar a verdadeira situação da Coroa, de sorte que mais adiante, durante os rei-
nados de Filipe IV e Carlos II, desfizeram-se aos poucos algumas das principais ilusões
acerca da grandeza de Espanha.
Colocada no centro das disputas anglo-francesas em começos do século XVIII, a
Espanha era um mercado cobiçado e a metrópole de um vasto império colonial. A
partir de Filipe V, já, portanto, sob a dinastia dos Bourbons, a Espanha teve um de-
senvolvimento um tanto oscilante durante o Setecentos. A política bourbônica em-
penhou-se em promover sucessivas reformas tendentes à modernização do Estado,
quer em termos de desenvolvimento da economia, quer da reforma do aparelho bu-
rocrático-administrativo, segundo uma perspectiva secularizante, sobretudo duran-
te o reinado de Carlos III, sob a influência de seus grandes ministros partidários do
absolutismo esclarecido.
Ascenso holandês
É costume associar historicamente o século XVII ao apogeu da riqueza e do po-
derio da Holanda, ou seja, a República das Províncias Unidas dos Países Baixos,
constituída a partir de meados do século XVI em função de uma revolta das provín-
cias setentrionais dos Países Baixos Espanhóis contra as imposições fiscais e religiosas
do regime absolutista de Filipe II. Às insatisfações com os abusos e imposições fiscais da
administração espanhola vieram somar-se descontentamentos e oposições religiosas de-
vidos à propagação das ideias reformistas de cunho luterano e calvinista entre os habi-
tantes das principais vilas e cidades neerlandesas. A política de confronto e repressão
posta em prática pelos espanhóis acabou por transformar as diversas revoltas em rebelião
generalizada ou, como preferem alguns, em uma verdadeira revolução burguesa, a qual
deu origem a uma repúblicamercantil oligárquica.
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A República das Províncias Unidas começou atacando as posições portuguesas no
litoral africano e nas Índias, ao mesmo tempo em que assaltava os galeões espanhóis car-
regados com os metais preciosos do Novo Mundo. Como instrumento de suas empresas
mercantis e de conquista os holandeses criaram diversas companhias de comércio, prin-
cipalmente a Companhia Geral das Índias Orientais e a das Índias Ocidentais. Estabele-
cendo numerosos entrepostos comerciais e conquistando algumas colônias, eles firma-
ram-se na Insulíndia (atual Indonésia), em alguns pontos do litoral ocidental da África e
em algumas ilhas do Caribe. Seus estabelecimentos na América do Norte (Nova
Amsterdã), na América portuguesa (nordeste brasileiro), em Angola e na Índia não resis-
tiram às reações de ingleses e portugueses, conforme o caso.
Os pilares da hegemonia holandesa foram o Banco e a Bolsa de Amsterdã, as com-
panhias de comércio e os estaleiros de Roterdã e outros portos neerlandeses. O banco
chegou a possuir durante bastante tempo a maior reserva metálica da Europa, enquanto
a bolsa era responsável por boa parte das transações comerciais e financeiras de então.
Empréstimos privados e oficiais eram realizados na Holanda, devendo-se ainda lembrar
que, já quase no final do Seiscentos, a fundação do Banco da Inglaterra só se tornaria
possível graças aos capitais holandeses investidos nessa operação.
Com o chamado comércio de comissão, os “carreteiros do mar” dominaram durante
muitas décadas o comércio marítimo e fluvial da Europa centro-ocidental, assim como
do Báltico, dos países nórdicos, da Rússia e parte do comércio do Mediterrâneo. Açú-
car, especiarias, chá, artigos de luxo e panos do Oriente, cereais das regiões bálticas, além
de madeiras e metais, eram o forte do comércio holandês, no qual se inclui também a
produção de navios, canhões e mosquetes.
Tema quase obrigatório entre os historiadores dessa supremacia holandesa é a ques-
tão acerca das causas que poderiam explicar o fato de não terem as Províncias Unidas
realizado sua revolução industrial, embora tenham conseguido atingir o máximo desen-
volvimento comercial e financeiro. Segundo a concepção marxista, talvez a mais co-
nhecida, o grande desenvolvimento do capital mercantil não é capaz de assegurar por si
só a passagem à produção capitalista, ou seja, o fator decisivo teria sido a inexistência de
um processo de acumulação primitiva de capital em escala suficiente para desencadear
uma autêntica revolução burguesa. Há, no entanto, diferentes explicações que destacam
outros fatores e circunstâncias igualmente impeditivos para o desenvolvimento de uma
economia capitalista, e que abrangem desde análises relativas à insuficiência de recursos
naturais e humanos até especulações sobre o próprio caráter da sociedade holandesa de
então e o predomínio político e social de uma oligarquia de burgueses rentistas pouco
interessados em investir na produção, e, sim, em aplicar em títulos e ações. Por último,
embora não menos importante, é preciso mencionar o menor ritmo de crescimento ho-
landês em comparação com o de países como a Inglaterra e a França, a partir das décadas
finais do século XVII, origem da noção de estagnação associada à economia e sociedade
holandesas do século XVIII.
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Um exemplo frisante de como os benefícios do comércio externo e dos empréstimos
externos podem ser antagônicos em relação ao crescimento da indústria é oferecido pelos
Países Baixos. A despeito do florescimento precoce do capitalismo nessa fortaleza inicial da
indústria têxtil, o investimento industrial nos séculos posteriores iria marcar passo; e no sé-
culo XVIII a Holanda seria completamente eclipsada pela Inglaterra no progresso da produ-
ção capitalista. As fortunas que podiam ser conseguidas através da manipulação de valores
estrangeiros parecem ter desviado capital e espírito de empresa da indústria. Os títulos britâ-
nicos tornaram-se o principal objeto de especulação na Bolsa de Amsterdã, expulsando dessa
posição mesmo os títulos da Cia. Holandesa das Índias Orientais.18
Não esqueçamos, porém, que, desde meados do século XVII, a supremacia da
Holanda era desafiada por ingleses e franceses. À época de Cromwell, os Atos (Leis) de
Navegação levaram os holandeses a duas guerras perdidas contra a Inglaterra; logo em
seguida, a França colbertista de Luís XIV moveu campanhas militares e uma autênti-
ca guerra (militar e fiscal) contra os holandeses. Tais conflitos exigiram gastos conside-
ráveis e forçaram a elevação dos impostos, causando sérios prejuízos comerciais, os
quais vieram somar-se às perdas da fracassada Companhia das Índias Ocidentais e
às despesas exigidas da Companhia das Índias Orientais pelas sucessivas guerras ja-
vanesas.
Pois o declínio do poderio marítimo da Companhia do Oriente era de alguma forma
um reflexo do declínio do poderio das Províncias Unidas na Europa. A armada que sob o
comando de Michel de Ruyter havia desafiado com êxito as frotas combinadas da Inglaterra
e da França era uma sombra dela mesma um século mais tarde.19
Assim, dado seu caráter de intermediário, o comércio holandês logo se tornou um
alvo predileto das teorias e práticas mercantilistas das demais potências, o que levaria as
Províncias Unidas a perderem sua posição hegemônica no cenário econômico interna-
cional na passagem do século XVII ao XVIII.
Os contemporâneos que lamentavam o declínio econômico da República Holandesa
na última metade – mais especialmente no último quartel – do século XVIII inclinavam-se a
atribuir a culpa principal aos rentistas e capitalistas alegadamente autossatisfeitos e de curta
visão, que preferiam investir seu dinheiro no exterior em lugar de impulsionar a indústria e a
navegação no próprio país e assim diminuir o desemprego (...) Já vimos que algumas dessas
queixas eram exageradas (...) A pesquisa histórica recente sobre as razões do declínio eco-
nômico dos Países Baixos setentrionais na segunda metade do século XVIII estabeleceu
que alguns fatores econômicos – muitos deles inevitáveis, tais como o desenvolvimento
da indústria e dos estaleiros nos países vizinhos – foram basicamente responsáveis por isso.
Há, entretanto, algumas outras causas, subsidiárias, que poderiam, talvez, ter sido abranda-
das ou evitadas se a estrutura social da República tivesse sido algo diferente do que de fato
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foi. Em primeiro lugar, havia a tradição comercial preponderante herdada do Século de
Ouro (...) As pessoas que enriqueciam ou melhoravam de vida com a indústria e/ou o arte-
sanato estavam inclinadas a se dedicar ao comércio assim que tivessem capital suficiente para
fazê-lo e a educar seus filhos como comerciantes (...).20
Duelo anglo-francês e crise do antigo sistema colonial
Com o declínio holandês, evidente sobretudo após o término da Guerra de Suces-
são da Espanha (1713-1714), a disputa anglo-francesa passou ao primeiro plano, tendo
como objetivos principais o comércio marítimo internacional, o tráfico de escravos afri-
canos e a ocupação de territórios coloniais. As sucessivas guerras envolvendo potências
europeias, travadas ao longo do século XVIII, repercutiram cada vez com maior inten-
sidade nas colônias americanas, nos entrepostos africanos e nas regiões asiáticas, sobretu-
do na Índia. Velhas e conhecidas querelas e ambições territoriais e dinásticas mistura-
ram-se ao choque de interesses econômicos e políticos em escala mundial. O controle
sobre o comércio de certas regiões; as disputas pelo monopólio do fornecimento de escra-
vos negros para as colônias espanholas;o domínio sobre o tráfico negreiro nos diversos
entrepostos existentes no litoral africano; o comércio de mercadorias as mais diversas, ori-
ginárias do Oriente; as disputas pelo domínio territorial entre colonos ingleses e franceses
na América setentrional; a encarniçada luta pelos arquipélagos e ilhas das Antilhas e do
Caribe – tudo isso fazia parte das rivalidades anglo-francesas.
Na verdade, tratava-se de uma disputa entre duas sociedades muito diversas em
termos sociais, políticos e econômicos. A França vivia ainda sob o Antigo Regime,
enquanto a Inglaterra já era uma monarquia parlamentar. Na França, os interesses
mercantis e coloniais correspondiam sobretudo às perspectivas de uma burguesia mer-
cantil e financeira dotada de razoável influência no âmbito do aparelho do Estado, mas
prisioneira, ainda, das concepções mercantilistas, que só na segunda metade do século
XVIII seriam postas em xeque pela ideologia fisiocrática. Na Inglaterra, ao lado dos in-
teresses tipicamente mercantis e financeiros já se afirmavam os dos empresários capitalis-
tas, e ao livre-comércio para uso interno contrapunha-se o protecionismo aplicado às
relações econômicas externas.
Seja como for, o fato historicamente verificável é que nas sucessivas guerras do Se-
tecentos a política britânica revelou uma constância estratégica impressionante, pois os
recursos em homens, navios e armas foram sempre direcionados prioritariamente para
alcançar objetivos coloniais e comerciais na América, África e Ásia. As lutas propria-
mente europeias foram deixadas a cargo sobretudo de exércitos aliados – variáveis con-
forme as circunstâncias político-diplomáticas – cabendo à Inglaterra fornecer significa-
tivos subsídios financeiros para a manutenção de tais exércitos.
A França foi perdendo assim, uma por uma, suas possessões coloniais na América,
África e Índia, de modo que após o Tratado de Paris (1763), que marcou o término da
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Guerra dos Sete Anos, o antigo império colonial francês ficou reduzido a dimensões
quase insignificantes. Todavia, convém não exagerar esse declínio francês. A partir dos
anos 1760, a França logrou aumentar em muito a sua frota de navios mercantes e o volu-
me do seu comércio exterior, tornando-se uma séria rival para os comerciantes britâni-
cos, situação esta que se encontra certamente nas origens do tratado comercial firmado
em 1786 entre a França e a Inglaterra, motivo de violentas críticas dos comerciantes e
manufatureiros gauleses.
AS POLÍTICAS MERCANTIS
Tanto a noção quanto a própria palavra mercantilismo são posteriores historicamente aos
fenômenos aos quais se referem. Na verdade, foram alguns de seus adversários – os fisio-
cratas, no século XVIII, e os economistas da escola clássica, nos séculos XVIII e XIX –
que de certa maneira construíram a ideia, por meio de expressões como sistema mercantil
e/ou sistema do comércio. Seus admiradores, os economistas da escola histórica alemã de
economia política, no último quartel do século XIX, deram-lhe o nome que acabaria
por se fixar: Merkantilismus.
Ainda hoje, não há um autêntico consenso a respeito do conceito de mercantilismo,
pois, na verdade, a mesma palavra poderá designar, conforme o caso: o capitalismo
mercantil ou comercial, típico da Idade Moderna; a forma ou sistema que caracteriza a
chamada economia nacional, própria dos Estados nacionais modernos e etapa da evolu-
ção econômica caracterizada pela superação da economia urbana medieval; um sistema
econômico, ou, quem sabe, um modo de produção, situado entre o feudalismo e o ca-
pitalismo.
Não concordamos porém com nenhuma dessas perspectivas, pois, no nosso ponto
de vista o mercantilismo deve ser entendido como um conjunto de ideias e práticas
político-econômicas que caracterizam a história europeia e, principalmente, a política
econômica dos Estados modernos europeus entre os séculos XV/XVI e XVIII. Nesse
sentido, pensamos que a definição proposta por Maurici e Dobb (1965) – o mercantilis-
mo foi essencialmente a política econômica de uma era de acumulação primitiva – é
ainda plenamente válida e esclarecedora, entendendo-se tal acumulação primitiva como
sinônimo da acumulação prévia de Adam Smith – como correspondendo a um período
anterior à existência da acumulação capitalista propriamente dita como forma ou modo
de produção dominante, período esse durante o qual diversas formas de acumulação de
capital não capitalistas tiveram lugar.
Não devemos perder de vista, no entanto, que a formação dos chamados Estados
modernos, isto é, as monarquias absolutistas, representou de fato uma intervenção cada
vez maior do poder dos príncipes na vida econômica de seus respectivos reinos. Esse as-
pecto leva-nos a recuperar a afirmação de Eli Heckscher (1955), um dos maiores estudio-
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sos do mercantilismo, segundo a qual o Estado teria sido o verdadeiro sujeito e objeto da
política mercantilista, ou, em outras palavras, o mercantilismo deve ser entendido como
uma política econômica característica dos Estados modernos europeus, absolutistas.
Mercantilismo significa a transferência do lucro capitalista para a política. O Estado
procede como se estivesse única e exclusivamente integrado por empresários capitalistas. A
política econômica para o exterior apoia-se no princípio de comprar o mais barato possível e
vender o mais caro que se possa (...) O mercantilismo implica, portanto, potências constituí-
das na forma moderna, isto é, diretamente pelo incremento do erário público e, indireta-
mente, através da capacidade tributária da população.21
Uma das características originárias do mercantilismo foi o fato de a política econô-
mica urbana medieval, derivada dos interesses mercantis e artesanais dos mercadores e
artesãos habitantes da cidade medieval, especialmente os interesses de seu patriciado, ter
sido retomada (e ampliada) no nível dos Estados monárquicos modernos. Assim, os cha-
mados Estados modernos tomaram de empréstimo às cidades a política econômica que es-
tas há muito implementavam em relação às áreas rurais sob sua influência, aplicando-a
com método e em escala ampliada, enquanto alguns ideólogos cuidavam de justificá-la.
Como disse um escritor a seu respeito (do mercantilismo), este era a primitiva política
urbana ampliada em função dos negócios do Estado. Era uma política de monopólio similar
àquela que, numa época anterior, as cidades tinham posto em prática nas suas relações com o
campo circundante, e que os comerciantes e comerciantes-empresários das companhias pri-
vilegiadas tinham aplicado aos trabalhadores artesanais. Era uma continuação daquilo que
sempre havia sido o principal objetivo da política de empório, e tinha seu paralelo na política de
cidades como Florença, Veneza, Ulm, Bruges ou Lübeck nos séculos XIII e XIV, a qual
num capítulo anterior denominamos colonialismo urbano.22
Denominou-se essa política de intervencionismo estatal, de inspiração francamente
medieval, de política mercantilista (já no século XIX, como ficou visto), a qual conservou
ou adaptou práticas anteriormente existentes, acrescentou-lhes outras mais novas e bus-
cou assegurar, em síntese, dois objetivos principais:
� Objetivos econômicos e sociais – defender o mercado “nacional” em formação e
assegurar à burguesia nascente as condições de monopólio econômico e de mão de
obra indispensáveis à sua expansão, favorecendo assim o processo de acumulação de
capital. O poder estatal foi decisivo: por meio de leis e regulamentos protecionis-
tas, da fiscalização exercida sobre as atividades econômicas a fim de assegurar o
cumprimento das práticas protecionistas e da concessão de auxílios e privilégios
às empresas vistas como merecedoras de apoio para enfrentar a dependência
externa.
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