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Autor: Prof. Vinícius Carneiro de Albuquerque Prof. Ricardo Felipe Di Carlo Colaboradora: Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito História da América Independente Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Professores conteudistas: Vinícius Carneiro de Albuquerque/ Ricardo Felipe Di Carlo Vinícius Carneiro de Albuquerque Historiador, formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e licenciado pela Faculdade de Educação da mesma universidade. Obteve o título de mestre pelo programa de História Social, para o qual apresentou, em 2007, a dissertação Ceará: 1824. A Confederação das Províncias Unidas do Equador contra o Império do Brasil. Suas áreas de interesse são relacionadas à história política e social, principalmente no século XIX, mas também no Brasil e na América Latina nos séculos XX e XXI. Atualmente é professor do Colégio e Curso Pré‑vestibular Objetivo, instituição na qual atua há mais de dez anos, tendo amplo contato com modernas tecnologias utilizadas na preparação de aulas digitais em diversas plataformas midiáticas. No Colégio e Curso Pré‑vestibular Objetivo também desenvolveu um vasto trabalho na preparação de material didático para turmas de Ensino Médio. É também professor da Universidade Paulista, na qual trabalha com especial interesse na área de ensino a distância voltado para a formação de professores de História (licenciatura). Ricardo Felipe Di Carlo Formado em bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de São Paulo (USP) no fim de 2007. Defendeu sua dissertação de mestrado em 2011, no programa de História Econômica da USP. O mestrado foi a continuidade da pesquisa feita como iniciação científica. Em Exportar e abastecer: população e comércio em Santos, 1775–1836, trabalhou com a economia colonial e seu quadro de crise. É professor do Colégio e Curso Pré‑vestibular Objetivo. Em 2013, recebeu o convite para escrever para a Universidade Paulista, UNIP, atividade à qual tem se dedicado com grande honra e satisfação. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A345c Albuquerque, Vinicius Carneiro de História da América Independente. / Vinicius Carneiro de Albuquerque, Ricardo Felipe di Carlo. – São Paulo: Editora Sol, 2015. 172 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2‑040/15, ISSN 1517‑9230. 1. História. 2. América. 3. Independência. I. Carlo, Ricardo Felipe di. II. Título. CDU 97/98 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Giovanna Oliveira Juliana Mendes Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Sumário História da América Independente APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A COLONIZAÇÃO E SUAS TRANSFORMAÇÕES: O ILUMINISMO, O REFORMISMO ILUSTRADO E A CRISE DO ANTIGO REGIME ........................................................... 11 1.1 Império Colonial Espanhol: entre a decadência e o reflorescimento – As reformas borbónicas ................................................................................ 19 1.2 Império Colonial Português: entre a decadência e o reflorescimento – As medidas pombalinas ................................................................................ 27 2 A GESTAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA ........................................................................................................... 31 2.1 A gestação da independência – Insatisfações e revoltas ..................................................... 31 3 POSSIBILIDADES DE INDEPENDÊNCIAS EM CONSTRUÇÃO ............................................................ 42 3.1 Os modelos de independências ...................................................................................................... 42 3.1.1 Estados Unidos – Republicanismo ................................................................................................... 42 3.1.2 Haiti – Ruptura da ordem escravista .............................................................................................. 49 4 OS PROCESSOS DE INDEPENDÊNCIA NA AMÉRICA ESPANHOLA E NA PORTUGUESA .................................................................................................................. 53 4.1 Crise geral e Era Napoleônica .......................................................................................................... 53 4.2 Lutas de independência na América Espanhola ...................................................................... 56 4.3 Família Real no Brasil e o processo de independência ......................................................... 59 Unidade II 5 A AMÉRICA EM TEMPOS DE INDEPENDÊNCIAS E A QUESTÃO DOS NACIONALISMOS .......................................................................................................... 65 5.1 Colômbia e Venezuela: Simón Bolívar ......................................................................................... 73 5.1.1 Bolivarismo ................................................................................................................................................ 85 6 AMÉRICA ANDINA E PLATINA .................................................................................................................... 89 6.1 Chile ........................................................................................................................................................... 89 6.2 Região Platina ........................................................................................................................................ 95 6.3 O caudilhismo ......................................................................................................................................101 6.4 A construção de “heróis nacionais” ............................................................................................103 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III 7 O SÉCULO E A DIFÍCIL CONSOLIDAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS .........................................111 7.1 EUA – Aspectos da expansão territorial ....................................................................................111 7.1.1 EUA – Lincoln e a Secessão ..............................................................................................................1147.2 México – Da independência às lutas internas ........................................................................121 7.2.1 O México e as perdas territoriais para os Estados Unidos .................................................. 124 7.2.2 México, Benito Juárez e as Leis da Reforma ............................................................................. 129 7.2.3 O México e o porfiriato: modernização econômica e crise social ................................... 134 8 IMPERIALISMOS NAS AMÉRICAS ............................................................................................................137 8.1 A consolidação do Brasil como Estado Nacional e o choque de imperialismos na América do Sul..........................................................................138 8.1.1 Brasil – Estruturação política .......................................................................................................... 138 8.1.2 Brasil – Guerra do Paraguai ............................................................................................................. 140 8.2 Imperialismos sobre a América Latina: Inglaterra, França e Estados Unidos .............147 8.2.1 EUA – Construção da liderança continental ............................................................................ 148 8.2.2 EUA – Intervencionismo e a independência de Cuba ............................................................151 8.2.3 Cuba e Martí .......................................................................................................................................... 154 7 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a APRESENTAÇÃO A disciplina História da América Independente, cujo livro‑texto agora se apresenta, tem como objetivo primordial oferecer um olhar crítico sobre a história das Américas no decorrer do século XIX. A abordagem de aspectos relativos às diferentes nações levou à necessidade de considerar a relevância de alguns problemas gerais apresentados na historiografia, a fim de poder desenvolver uma visão ao mesmo tempo ampla nas discussões e rigorosa nas abordagens. A ideia de problematizar diversas trajetórias aparentemente tão díspares não afastou, em momento algum, a noção de que existem convergências que são fundamentais para se entender aspectos muito significativos na formação dos diferentes Estados nacionais americanos. Acrescente‑se a isso que a trajetória dos Estados Unidos também precisa ser abordada sob essa ótica, uma vez que, mesmo tendo sua independência no século XVIII, permaneceu como referencial para outros povos na construção de suas nações, que, além disso, enfrentaram momentos cruciais na consolidação de seu Estado nacional, ainda não estruturado e pronto até pelo menos a metade do século XIX. Recentemente vem se apresentando uma preocupação historiográfica com as abordagens que trabalham não com o viés nacionalista e laudatório de cada história nacional isoladamente, mas que se preocupam em perceber movimentos muito mais amplos e profundos, que envolvam dinâmicas populacionais e regionais que, por diversas vezes, ultrapassaram fronteiras nacionais. Nos debates relativos às Américas, não se pode mais aceitar a construção de mitos para a fundação dos países como objetivo da construção do conhecimento histórico e historiográfico. Ao contrário, é necessário desconstruir tais mitos pois, dessa maneira, abordamos a construção das figuras clássicas americanas tais como as dos “Libertadores” e a de Lincoln, sob uma perspectiva crítica. O período relativo ao século XIX, nosso foco principal, precisa ser pensado a partir da crise do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial. Desse modo, as referências ao século XVIII são fundamentais. Pensando ainda nas barreiras temporais, que sempre são arbitrárias, chegamos às discussões de como o imperialismo no século XIX foi percebido nas Américas. Isso significa fazer um convite para se pensar como realidades no final de um século podem ser tão relevantes para o nascimento do próximo. Iniciamos nossa discussão com pontos relativos à colonização das Américas em suas mais diversas realidades, pois isso influenciou diferentes aspectos da crise que provocou a derrubada do Sistema Colonial. As intensas transformações dos séculos XVII e XVIII – perpassando pelo iluminismo e pelo reformismo ilustrado – contribuem para o entendimento mais geral da Crise. Os malogrados esforços para superar as dificuldades do momento permitem‑nos questionar os sentidos das independências que se iniciam com as Treze Colônias Britânicas e atingem os impérios coloniais de Espanha, Portugal e França. Dessa maneira, discutimos as possibilidades em aberto nas independências, com diferentes projetos se apresentando, alguns dos quais se consolidam e outros são descaracterizados ou abortados. 8 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Os contrastes entre opções monarquistas e republicanas, por exemplo, nos auxiliam nesse questionamento, e como modelo de inversão da ordem apresentamos o caso do Haiti, demonstrando a necessidade de se pensar a existência de múltiplas possibilidades fora da ordem escravista, por exemplo. Depois disso nos voltamos ao desenvolvimento da temática das independências de maneira crítica, debatendo visões tradicionalistas e abordagens contemporâneas referentes a Bolívar, San Martín e outros. Há, além disso, intensas discussões presentes a respeito da centralização e da descentralização, bem como da difícil tarefa de construir e consolidar os Estados nacionais por todas as Américas. Ainda nessa perspectiva, abordamos regiões como o Prata ou a Grã‑Colômbia, pensando em dinâmicas maiores do que os Estados Nacionais resultantes dos processos, que não podem ser vistos, de maneira alguma, como causas das independências, mas sim como seus frutos, suas consequências mais evidentes. O papel dos caudilhos na Hispano‑América e também o da construção dos heróis são abordados como componentes das discussões dos sentidos nacionais. Por fim, apresentamos os processos de consolidação dos Estados nacionais que envolveram guerras civis, tal como é o caso da Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Abordamos ainda o processo de construção da sociedade industrial e capitalista nesse mesmo país e de que maneira isso foi fundamental na construção da ideia de potência em relação aos Estados Unidos – procurando sempre ressaltar que, apesar de nossa familiaridade com a noção consolidada de que os Estados Unidos já eram superpotência, é fundamental perceber os confrontos internos e observar esse país antes mesmo de ser uma potência de escala continental. Considerando o que foi exposto, ressaltamos a nossa preocupação com as diversas visões a respeito das realidades na América Latina e também nos Estados Unidos que precisam contemplar questões contemporâneas relevantes. Esperamos que possam contribuir para o desenvolvimento e o refinamento de um senso crítico relativo a realidades que, de alguma maneira, são extremamente relevantes para o Brasil. INTRODUÇÃO A disciplina de História da América Independente tem como objetivo primordial oferecer diferentes olhares sobre a história da América no século XIX. Para tanto, recorreremos ao quadro geral da Crise do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial para compreender os movimentos de independência e os aspectos importantes que marcaram a história de diversos países de nosso continente. Dessa maneira, esmiuçaremos aspectos relevantes desde antes do século XIX e observaremos desdobramentos que adentraram o século XX e se desenvolvem até os dias atuais, embora nosso foco seja o século XIX. A observação da América Independente partiu da proposta de considerar a existência de múltiplos processos se desenvolvendo que, embora em diversos sentidos apresentassem pontos em comum, levaram às independências com suasparticularidades, fossem os envolvidos povos latinos ou não. 9 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a A dimensão dos conflitos existentes e das dinâmicas próprias da América não será tratada como aspecto negativo de uma região convulsionada por revoltas e interesses particulares de pequenos potentados locais. Nossas discussões se darão muito mais para problematizar o que nos é peculiar e entender que a América foi feita justamente desses contatos entre as diversas regiões. Uma preocupação que perpassa por todo o texto é a busca da análise desses acontecimentos à sombra da construção dos Estados nacionais e, para tanto, valorizar principalmente os discursos produzidos nas nações sobre suas origens e questionar as influências de figuras históricas do século XIX até os dias atuais. Estamos nos referindo, por exemplo, aos usos políticos de Simón Bolívar, San Martín e mesmo de Abraham Lincoln. Levando em consideração que nos últimos anos o estudo sobre a América tem avançado significativamente, novos problemas e abordagens são sugeridos na mais recente historiografia, e procuraremos incorporar seus aspectos mais relevantes em vez de nos preocuparmos em construir os mitos nacionais, tão na moda no século XIX e tão questionáveis posteriormente. Aproximamo‑nos das figuras tidas como as dos Libertadores das Américas para entender os processos envolvidos no estabelecimento dessas imagens. O período que abordamos é longo, um século, e apresenta diferentes ritmos históricos, políticos, econômicos e industriais. Quando pertinente, abordaremos esses aspectos diversos que tanto contribuíram para a construção da América. É preciso salientar que este texto não tem a pretensão de abordar absolutamente todos os processos de independência, posto que não trabalhamos apenas com esse momento histórico. Elegemos, assim, momentos, personagens e conflitos que pudessem contribuir para problematizar melhor as diferentes ideias possíveis de América. Nossa discussão se iniciará com a apresentação do quadro geral de crise do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial. Na sequência, serão analisadas, também sob uma ótica americana, e não apenas das consequências das mudanças para as metrópoles, as principais transformações que provocaram o fim do Antigo Sistema Colonial. As influências das Revoluções Burguesas do século XIX, o sentido das mudanças, as expectativas, os projetos e o aprofundamento das crises que provocaram as independências são o assunto desse trecho do material. Nossa preocupação, como você pode perceber, é trazer as independências como parte de um movimento mais amplo, e não simplesmente como processos isolados de cada um dos países constituídos depois. Dando continuidade a essas reflexões, proporemos a abordagem dos sentidos históricos atribuídos a personagens apresentadas tradicionalmente como os “pais da nação” em seus países. Consideramos relevante discutir mais profundamente o contexto da América Espanhola e mais sucintamente o restante dos processos de construção dos Estados nacionais – vale dizer, dos Estados Unidos e do Brasil. O resgate das trajetórias individuais, dos projetos políticos em confronto, das tensões entre centralização e descentralização serão tratados nessa perspectiva crítica e numa análise mais apurada dos usos sociais que foram atribuídos na América hispânica aos seus “libertadores”. Os confrontos entre 10 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a os caudilhos na América de língua castelhana e as dificuldades de afirmação dos Estados nacionais, comuns a toda a América, serão temas de reflexão. Logo em seguida nos debruçaremos sobre aspectos relevantes das Américas no século XIX, pensando em articulações e em como as histórias, cada vez mais, se interligam, se influenciam e se “contaminam”. Para tanto, abordaremos a expansão territorial dos Estados Unidos no ponto em que tem importância para o vizinho México. Vamos também trabalhar a consolidação dos Estados Unidos Pós‑Guerra de Secessão no que concerne a permitir condições para sua expansão capitalista, que influenciou o Caribe e contribuiu para sua liderança nas Américas. O caso mexicano será analisado em função de dinâmicas conflituosas entre elites e povo, de esforços de modernização e de seus enfrentamentos com os Estados Unidos. Dois aspectos importantes do século XIX foram o choque de imperialismos e a afirmação de algumas nações sobre as demais com relação a sua economia ou a seus sistemas de valores. Desse modo, o confronto da Guerra do Paraguai e a emancipação cubana são pontos importantes, concluindo um século conturbado, mas também deixando a sugestão da problematização de muito do que será importante nos séculos XX e XXI. Nas palavras de Fernando Antonio Novais (1985), o mestre de muitos mestres de historiadores e de professores de História, conhecer o passado é a única maneira de nos libertarmos dele, isto é, destruir os seus mitos, frase breve que nos serve como norte nas muitas discussões que aqui apresentamos. Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino (2014) afirmam, com muita propriedade, que os brasileiros, de modo geral, conhecem muito pouco sobre a rica e complexa História da América Latina. Ressaltam, ainda, que é importante abordar aspectos variados de cada momento histórico, pensando em política, sociedade, questões étnicas e de gênero, economia, cultura e assim podendo pensar as intrincadas relações entre a América Latina e o mundo ocidental. Sobre o tema, uma observação aparentemente singela dá a dimensão da necessidade de pensarmos em nós mesmos como participantes dessa realidade: o Brasil, como todos sabem, faz parte da América Latina. Como importante lição, as autoras reafirmam a necessidade de lembrar que os vocabulários e as falas têm historicidade – as datas de invenção e quais disputas políticas e ideológicas estão contidas nesses usos são importantes para compreendê‑los. Nossa concepção de História é pontuada o tempo todo pela ideia de que, para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da História e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história. Assim, esclarecemos que essas são as maiores preocupações que conduzirão nossas discussões a respeito da América Independente no século XIX, que é latina (origem hispânica), portuguesa ou francesa, mas também anglo‑saxônica (caso dos Estados Unidos), além de indígena e mestiça. 11 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE Unidade I Nesta unidade vamos apresentar uma visão da crise do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial que vai levar às independências. Vamos desenvolver a ideia de que o fracasso das reformas nos Impérios Coloniais contribuiu com o agravamento da crise e de que as novas concepções de liberdade política, derivadas do Iluminismo, vão se propagar na Europa, mas também na América. Depois de apresentar as tentativas de emancipação duramente reprimidas, concluiremos com os movimentos definitivos de independência política. 1 A COLONIZAÇÃO E SUAS TRANSFORMAÇÕES: O ILUMINISMO, O REFORMISMO ILUSTRADO E A CRISE DO ANTIGO REGIME Foram os espanhóis os grandes conquistadores e colonizadores ao longo dos séculos XVI e XVII. Por meio de algumas centenas de homens, conseguiram dominar impérios em pleno esplendor que contavam com milhares de nativos. Os famosos versos do poeta Pablo Neruda sintetizaram a destruição empreendida pelos europeus: “la espada, la cruz y el hambre iban diezmando la família salvaje” – “a espada, a cruz e a fome iam dizimando a família selvagem(NERUDA, [s.d.], tradução nossa). O interesse central do domínio desses povos, na lógica do capitalismo mercantilista, era o acúmulo primitivo de capitais para a metrópole, bem como o enriquecimento dos empreendedores dessa ação, como sintetiza a frase atribuída ao comandante Hernán Cortés: “eu e meus companheiros sofremos de uma doença de coração que somente pode ser curada com ouro” (apud ELLIOT, 2012, p. 167). Não demorou muito para que as ações espanholas propiciassem a satisfação desse interesse. O uso das armas de fogo, a proliferação de doenças que não existiam na América e, sobretudo, o uso das rivalidades internas foram fundamentais para o êxito espanhol. A destruição foi um marco terrível na história do nosso continente. O objetivo central do enriquecimento da metrópole era o acúmulo primitivo de ouro e prata (conhecido como metalismo), capaz de demonstrar a riqueza dos Estados nacionais que se formam e se consolidam na época moderna. Através da intervenção do rei a economia se torna capaz de propiciar enriquecimento para o país, e assim é que se estabelecem os moldes das ações coloniais. Não se podem perder de vista, porém, as contradições e relações estabelecidas, inventadas ou recriadas do imenso processo colonial estabelecido a partir daí. Como afirma Nathan Wachtel (2012): Temos de aceitar que, após o choque inicial da conquista, a história da sociedade colonial, tanto na Nova Espanha quanto no Peru, foi a de um longo processo de reintegração em todos os níveis: econômico, social e político, ideológico. Conforme a herança pré‑colombiana e a força dos 12 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I adversários, o processo assumiu formas muito diferentes: sincretismo, resistência, mestiçagem e hispanização. Mas continua até hoje o conflito entre a cultura espanhola dominante – que tentava impor seus valores e costumes – e a cultura nativa dominada – que insistia em preservar seus próprios valores e costumes (WACHTEL, 2012, p. 239). A Igreja Católica tornou‑se o grande sustentáculo ideológico para os países ibéricos, visando garantir a dominação e impedir a propagação do protestantismo, como se via na Europa. A relação de padroado da Igreja, promovendo certa relação bastante estreita entre Estado e Igreja, manteve‑se até o século XIX. A Igreja possuía funções políticas, como o arbítrio papal nas questões internacionais; entretanto, a Coroa podia indicar toda a hierarquia religiosa. Isso fazia o Estado pagar os salários do clero, além de construir e manter monumentos, igrejas e catedrais. Isso não era visto como prejudicial pela Igreja. A divisão política estabelecida era também aquela a que a Igreja obedecia. As funções exclusivas do Estado eram as econômicas (garantir a exploração e o pagamento de impostos) e militares (defender o território a todo custo). Após a queda das expedições de conquista, os espanhóis, já maravilhados com o ouro e a prata, rapidamente perceberam que poderiam angariar um sistema exploratório desses minérios tão cobiçados. Cortés rapidamente entendeu que poderia criar uma estrutura simbólica de poder ao gerar a Cidade do México por cima das ruínas de Tenochtitlán. A perspectiva era a de continuidade de domínio: dos astecas para os espanhóis. Já entre os incas, Cuzco ficava em um local de difícil acesso, daí a construção da nova capital, Lima, no litoral. Mas o pior eram as tentativas de poder paralelo inca, que demoraram certo tempo para serem completamente extirpadas. A mesma perspectiva de continuidade não era vista no sul. O sistema de repartimiento, mita na área andina ou cuatequil entre os astecas, foi o mais utilizado e importante sistema de trabalho. Era caracterizado pela mão de obra compulsória, temporária e planejada utilizando os indígenas. Os homens se deslocavam para as minas e, depois de certo tempo, voltavam para as suas comunidades. Essa mobilidade gerava um problema: a lucratividade não era tão grande, pois, logo que o nativo aprendia as técnicas de mineração, acabava seu tempo, e um novo grupo era iniciado. Da tradição incaica, era pago um salário para a subsistência. Não havia a ideia de acumulação. Inclusive, essa já tradição do repartimiento facilitou seu uso com os nativos – daí a Coroa ter adotado esse sistema. Contudo, a lucratividade agora era gerada para fins privados e para a metrópole, ou seja, não mais para a redistribuição. A intensidade de trabalho e o tempo foram aumentando ao longo da dominação espanhola. No início, o compromisso durava seis meses, e os trabalhadores eram convocados de sete em sete anos. Com o tempo, os períodos de trabalho passaram a durar até doze meses, e o tempo de rodízio foi diminuindo. Em Potosí, principal centro mineratório, o trabalho era tão duro e desgastante que, para cada duas semanas de trabalho, uma era destinada ao descanso. A colonização do restante da América adquiriu traços específicos. A América Portuguesa, ainda que inicialmente não ocupada pelo interesse de Portugal na rota das especiarias do Oriente, logo passou a ser explorada sistematicamente. Foi adotado o uso da escravidão negra como forma de otimizar o processo 13 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE exploratório da lavoura de exportação. Já os franceses e ingleses, atrasados em relação aos países ibéricos na expansão marítimo‑comercial, promoveram ataques para garantir territórios no Novo Mundo. A América do Norte, local central onde perduraram domínios desses países, foi a menos apreciada por Portugal e Espanha. A região do Canadá foi ocupada pela França, e a área mais ao sul formou as 13 Colônias da Inglaterra. Com especial destaque, o norte das colônias inglesas (também conhecido como Nova Inglaterra), por causa de seu clima temperado, não propiciou condições para a produção tropical – formada pelos típicos artigos que poderiam gerar lucro para a metrópole. Por isso, acabou vivenciando um processo de desenvolvimento bastante específico (chamado de colônia de povoamento). Como não atraíam os olhos da Coroa, as colônias dessa região acabaram criando uma estrutura própria, quase à revelia do sistema (chamado de self government). Isso porque os habitantes tinham pequenas e médias propriedades, com relativa facilidade de acesso à terra, que abasteciam o mercado interno, e comercializavam os excedentes. Pescavam, vendiam peles, usavam a madeira. Os produtos agrícolas eram diversificados (policultura), e alguns proprietários investiam até mesmo em pequenas manufaturas – como navios ou rum. A mão de obra bastante comum era a familiar, ou seja, todos da casa tinham funções específicas e deveriam fazer a sua parte para o sustento. Havia também o trabalho servil, conhecido como indenturent servant. Na prática, em troca do pagamento de sua passagem, o colono trabalhava temporariamente – em geral quatro a sete anos – para depois ser livre e ter suas próprias terras. Esse sistema garantia o uso de mão de obra e, ao mesmo tempo, trazia esperança de uma nova vida para os mais pobres, ainda que tivessem de dispor de alguns anos. Foi assim que muitos elementos pobres e marginais na sociedade inglesa vieram para a América. Ao mesmo tempo, realizavam tratos comerciais com outras regiões, muitas vezes, até mesmo à revelia da metrópole – o que ficou conhecido como comércio triangular. Partes das áreas do centro também acabaram formando esse sistema. O sul inglês, no entanto, de clima temperado, adquiriu as características próprias do sistema exploratório colonial com a orientação exportadora da grande lavoura escravista. Figura 1 – As 13 Colônias Inglesas e seus sistemas de colonização 14 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Por fim, a colonização holandesa seguiu as características quese estabeleceram nessa região europeia, que era uma área de grande trato mercantil. Em Amsterdã, grandes banqueiros e comerciantes promoviam negócios para as diversas regiões do globo, sobretudo, com as extensas possibilidades desenvolvidas pelas Grandes Navegações. As relações econômicas pareciam ilimitadas. Ao mesmo tempo, Amsterdã abrigou aqueles que debandavam de outros países por questões religiosas, mesmo com grandes cabedais financeiros – um dos grupos principais, nesse sentido, foi o dos judeus ibéricos. Outra parte significativa dos comerciantes batavos era protestante calvinista. A ideia de uma ética capaz de valorizar as atividades do trabalho como um serviço a Deus, aliada a um estilo de vida ascético, isto é, não dado aos prazeres do mundo e da ostentação, promovia um enorme enriquecimento e recursos propícios para o aumento mercantil. Diferentemente da Igreja Católica, que condenava o lucro e a usura, segundo alguns protestantes do período, o trabalho e a acumulação demonstravam a ação de Deus em suas vidas – comprovando a sua eleição aos céus. Uma das parcerias importantes para os comerciantes holandeses era o açúcar português. Os batavos financiaram a montagem dos engenhos em troca de benefícios bastante significativos, como o monopólio do açúcar no transporte, último refino e venda na Europa. Na prática, não só o lucro direto era bem‑vindo: também o eram a construção e o uso de uma marinha mercante e de guerra capaz de atravessar o Atlântico trazendo os produtos com toda a segurança diante dos corsários e piratas – essa rede de transporte foi se expandindo e estava cada vez mais relacionada às diversas áreas de comércio com várias regiões da Europa. Quando, no entanto, a Holanda procurou se libertar do domínio espanhol, acabou perdendo esse trato em razão do contexto da União Ibérica – período em que os países ibéricos estavam unidos sob a Coroa da Espanha. A decisão decorrente disso foi a invasão da América Portuguesa: os holandeses efetivamente procuraram, nesse momento, garantir áreas de exploração colonial dentro dos moldes centrais do mercantilismo da época moderna. 15 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE Figura 2 – As investidas holandesas de colonização foram fundamentalmente promovidas na América Portuguesa, em torno da importância do açúcar As ações perduraram e reconfiguraram a economia da América. Isso porque, quando os holandeses foram expulsos da região, acabaram levando o know‑how de produção do açúcar – plantio da cana, tempo de colheita, técnicas de produção de açúcar no engenho –, o que foi utilizado por eles mesmos e vendido para ingleses e franceses para uma nova área de colonização: o Caribe. Na realidade, a região, palco dos primeiros contatos de europeus e ameríndios, teve sua população nativa dizimada e era pouco interessante para os espanhóis. Assim, foi ocupada e passou a maximizar a plantation da grande lavoura escravista – já no final do século XVII a produção caribenha superava a da América Portuguesa (então em clara crise). Enquanto o Caribe adquiria grande importância econômica, o Império Colonial Espanhol já não tinha o mesmo brilho de outrora – a produção de metais já não era como antes. Mais do que isso, em pouco tempo, alguns passam a falar da decadência espanhola. Ao mesmo tempo, Portugal havia reconfigurado suas relações políticas para conseguir se desvencilhar da União Ibérica e desenvolver novas ações econômicas após o declínio de seu açúcar. Um amplo aspecto de mudanças passava a ser discutido com a propagação de novas ideias, em um novo contexto europeu. O século XVIII foi um momento de significativa ruptura de valores, crenças e convicções sedimentadas pela tradição de séculos. O Século das Luzes, como foi chamado, a partir da razão, viu nascer a ideia de que o homem podia explicar o mundo. Esse século teve como ponto de partida a crise de consciência europeia (1680‑1715), analisada por Paul Hazard – o colapso do conhecimento imanente levava ao nascimento do método a partir da dúvida, fazendo surgir um novo rumo intelectual e cultural. Todo o clericalismo, base de sustentação ideológica da Época Moderna, era criticado. O racionalismo e o cientificismo eram exaltados – e o exemplo mais forte era a Enciclopédia, livro que reunia todo o conhecimento da época. 16 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Figura 3 – A Enciclopédia era um esforço enorme de reunião de todo o conhecimento Como explica Eric J. Hobsbawm (1977), a obra em questão tinha uma proporção muito maior: A grande Enciclopédia de Diderot e d’Alembert não era simplesmente um compêndio do pensamento político e social progressista, mas do progresso científico e tecnológico. Pois, de fato, o “iluminismo”, a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza – de que estava profundamente imbuído o século XVIII – derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos. E seus maiores campeões eram as classes economicamente mais progressistas (HOBSBAWM, 1977, p. 40‑1). É esse o contexto econômico fundamental para a burguesia. Seus empreendimentos geravam grandes acumulações, e seu destaque era indiscutível. Mais do que isso, esse grupo social sabia que o Estado absolutista era sustentado por suas atividades, mas a sociedade mantinha seus valores estamentais – nascimento garantindo privilégios e isenções. Era muito incômoda, além disso, sobretudo após a Revolução Industrial, a intervenção do Estado na economia. As novas ideias, por um lado, defendidas por Adam Smith em A Riqueza das Nações, proclamavam que a Lei da Oferta e da Procura controlaria o sistema econômico sem necessidade de intervenção do Estado. O trabalho era o grande gerador de riquezas (SMITH, 2008). Em contrapartida, franceses defendiam a fisiocracia, ou seja, que a agricultura era a única grande forma de se gerar riqueza para um país – pois o alimento é imprescindível para qualquer tipo de atividade –, logo sempre teria mercado. De qualquer maneira, os economistas franceses também entendiam que as relações econômicas não dependiam do Estado – seu lema era “laissez faire, laissez passer” (“deixe fazer, deixe passar”). A partir dessa nova mentalidade econômica, os burgueses passaram a desejar o liberalismo econômico, a criticar o Estado absolutista e, por extensão, todas as demais bases do mercantilismo. Mais do que 17 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE isso, aspiravam a uma sociedade de direitos capaz de garantir a liberdade, a igualdade, a propriedade e a rebelião contra qualquer tirania. Na prática, essas ideias de direitos surgiram com John Locke, filósofo inglês da época da Revolução Gloriosa inglesa. Suas ideias tiveram enorme propagação, atingindo uma grande força revolucionária. A força das ideias iluministas atingiu níveis impressionantes. Na política, dois grandes autores se destacaram. Montesquieu, com sua obra O Espírito das Leis, defendia que a única forma de se garantir a harmonia política eram as leis e, com elas, a divisão de poderes. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com suas funções específicas, garantem autonomia e a independência em relação ao governo absolutista (MONTESQUIEU, 2005). Já Jean‑Jacques Rousseau defendia a bondade do homem em seu estado natural e a legitimação do poder relacionada a um contrato social feito pelos homens em nome de todos – daí a vontade geral de permitir a garantia da liberdade (ROUSSEAU, 2002). Nesse aspecto, Rousseau foi uma grande exceção – defendia a vontade geral, ao passo que os outros pensadoresentendiam que uma minoria letrada (relacionada com a burguesia) era quem deveria participar da política. Observação Na prática, podemos considerar as ideias iluministas como precursoras da sociedade de direitos e Rousseau como o pai da democracia moderna, pela defesa da vontade geral elegendo seus representantes no poder. Claro que, na prática, essas ideias atingiram forças variadas ao longo da Europa e da América. A estrutura do Antigo Regime, em todos os seus aspectos, estava em jogo – os elementos mais fortes a fazê‑la desmoronar foram provenientes justamente desse momento: a Revolução Industrial, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Para o que nos interessa aqui, por ora, basta dizer que o capitalismo industrial nasceu com a Revolução Industrial. O uso da máquina transformou completamente o processo produtivo. A riqueza passou a ser vista como infinita. Tudo dependia da produtividade. As relações econômicas poderiam ser promovidas em todos os lugares e se garantiriam os seus valores, já que a oferta aumentava pela abertura de mercados (a Lei da Oferta e da Procura). Foi a partir dessa revolução que a Inglaterra se tornou um país liberal por excelência. Esse eco bateria de frente com os valores protecionistas do mercantilismo e seu Antigo Sistema Colonial. Variou a maneira como as novas ideias alcançaram os diversos países: em alguns, contagiou milhares, em outros, as monarquias europeias se aproveitaram dessas ideias para uma tentativa de reformar o Estado absolutista e promover o desenvolvimento econômico e social. Contudo, nunca se pensava em alterar as relações políticas – havia um enorme temor de governos representativos ou, mais adiante, da propagação do ideário da Revolução Francesa. Esse movimento ficou conhecido como despotismo esclarecido. Dois dos países que promoveram esse sistema foram justamente os ibéricos. 18 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Observação O despotismo esclarecido tinha contradições claras. Um exemplo era a defesa básica dos iluministas do princípio da explicação racional para todas as instituições, o que não ocorria com o poder do monarca, garantido pela Teoria do Direito Divino, como vimos. Até a segunda metade do século XVIII, a Península Ibérica estava mergulhada no Barroco. A especificidade da Ilustração na região foi a condução controlada pelo Estado, filtrando as ideias segundo seus interesses. A circulação de livros era restrita, pois somente aqueles que obtivessem a autorização da Inquisição poderiam ter determinadas obras iluministas. Todavia, não podemos deixar de mencionar a existência de “contrabando de ideias”, que não era visto pela Inquisição. “Guardado, fechado, entretanto, não podia permanecer de modo absoluto. Por um motivo ou outro (o comércio, a diplomacia) os homens circulam para fora da Península, e com os homens as ideias” (NOVAIS, 2006, p. 220). Os pensadores iluministas da Península Ibérica eram chamados de estrangeirados por terem vivido parte de suas vidas em outros países europeus e, em decorrência disso, adquirido contato e se tornado adeptos de ideias da Ilustração que corriam naqueles lugares. Esses pensadores teriam sido os responsáveis por trazer o Iluminismo para Portugal e Espanha. De qualquer maneira, na prática, os novos conceitos deixavam os países ibéricos em uma encruzilhada: De repente, os sete séculos de história da Península, comandados pela ideia de missão evangelizadora e civilizadora e por um territorialismo reiterativo de uma determinada ordem social, deixavam de se apresentar como fonte de dinamismo e lastro para um novo protagonismo ibérico. As possibilidades de um renascimento pareciam residir fora do passado e da tradição, deslocadas para o novo horizonte que se consolidava na Europa. O século XVIII na Europa Central traz um desafio à Ibéria: o de se tornar efetivamente Europa, depois de ter tentado hispanizá‑la (BARBOZA FILHO, 2000, p. 372). Esse novo tempo era visto a partir de um movimento de modernização para a Península, com base na reforma do Estado e numa reorganização política e econômica das possessões no continente americano, ou seja, em questões de Estado, com as medidas pombalinas (Portugal) e a reforma dos Bourbons (Espanha). Foi um projeto desenvolvido a partir do Estado, sendo promovido, portanto, “de cima para baixo”, mantendo a tradição com o objetivo de constituir completamente o Estado, renovando o sistema, mas não a estrutura. A seguir discutiremos as especificidades da Ilustração tanto em Portugal quanto na Espanha. 19 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE 1.1 Império Colonial Espanhol: entre a decadência e o reflorescimento – As reformas borbónicas Para boa parte dos historiadores, o Império Espanhol atingiu seu ápice no reinado de Felipe II (1556‑ 1598), quando, inclusive, houve o início da União Ibérica (1580‑1640). Nesse momento, esse monarca controlava sozinho as grandes possessões coloniais do Novo Mundo, angariando recursos tanto das minas espanholas quanto do açúcar português, além das áreas da Ásia e da África. Ao mesmo tempo, ele se intitulava um bastião da Igreja católica exatamente no contexto da explosão da Reforma e das Guerras de Religião. Contudo, a política opressora em seus domínios, como na Holanda, acabou permitindo um movimento de independência. No desenvolvimento desse embate, os holandeses atacaram as possessões de domínio português e imprimiram uma mudança gigantesca no comércio do açúcar. Importantes confrontos se sucederam contra a Inglaterra. O maior deles foi a investida da chamada Invencível Armada, em 1588, contra a costa britânica. Felipe II alegou que atacaria a rainha herege, Elizabeth I, que sempre apoiara as lutas dos holandeses, mas, na prática, suas pretensões estavam profundamente relacionadas ao patrocínio da Coroa Inglesa às ações de saque dos corsários aos galeões da prata. A Invencível Armada, na ocasião, contava com uma frota bastante substancial justamente por reunir os navios portugueses. A derrota espanhola foi um marco importante. Por um lado, as despesas da Coroa Ibérica foram de grande vulto e impediam novos avanços – até mesmo os embates com os holandeses ficaram mais problemáticos, o que culminou em sua independência. Em contrapartida, a vitória assinalou o avanço naval inglês, que ficaria cada vez mais evidente e preponderante no século XVII – propiciando ações mercantis maiores e constantes a ponto de contribuir para a substancial acumulação de capitais do país. Após o reinado de Felipe II, como assinalou J. H. Elliott (1989), no período de 1590 a 1620, a região de Castela sofreu com o detrimento de diversas bases pelas quais erigiu seu império. A quantidade de pessoas, a produtividade e a riqueza já não eram as mesmas. Ao mesmo tempo, os níveis de desenvolvimento do mercado americano perdiam força – a dependência quase completa de produtos da metrópole passou a ser substituída, em certa medida, pelas produções locais nos circuitos do México e do Peru. Assim, os galeões de Sevilha já não vendiam como antes. Por fim, a prata, pela primeira vez, em 1601, começava a diminuir. Portanto, o comércio e o crédito já não eram os mesmos de antes. Ao mesmo tempo, ao longo do século XVII, a Espanha teve um problema quase constante: os diversos conflitos europeus em que estava envolvida. Os gastos eram avultantes, os resultados, variáveis, e nada de proveitoso era obtido. Um dos confrontos centrais aconteceu justamente no início desse período: a Guerra dos Trinta Anos (1618‑1648). Em um momento de razoável equilíbrio nas forças da Europa, os países se dividiram por um conflito que ainda se declarava por razões religiosas – apesar de haver interesses econômicos e imperialistas envolvidos. No bojo dessa disputa a trégua com a Holanda foi finalizada;o país, então, passou a invadir as áreas do Império Atlântico da União Ibérica. Mais do que isso, os próprios portugueses iniciaram uma revolta para retomar sua independência, sobretudo, após uma política de impostos bastante opressora (tudo para manter a luta). Apesar de essa ser a última guerra na 20 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Europa imbuída de questões religiosas, os conflitos não pararam – e se prolongaram rotineiramente no século XVIII (com a Guerra de Sucessão Espanhola ou mesmo a Guerra dos Sete Anos, para ficar apenas com os exemplos mais marcantes). Lembrete A divisão da Europa cristã entre protestantes e católicos, no florescer do século XVI, gerou diversas guerras em torno de um viés religioso, mas também misturou questões políticas. A Guerra de Sucessão Espanhola garantiu a vitória dos Bourbons e o tratado de paz de Utrecht, em 1713. Fazer os Habsburgos desistirem do trono teve um preço. Além da entrega de diversos territórios na Europa, a Inglaterra recebeu o direito do asiento – seria a única responsável pelo tráfico de escravos na América Hispânica até 1748. Além disso, poderia, anualmente, ter um navio de comércio – era o fim do monopólio comercial metropolitano de mais de dois séculos, era o permiso. Na prática, a Espanha já não era a grande potência do mundo, sobretudo depois de perder tantas forças na Europa, e via seus rivais partirem para práticas mercantis e para o domínio de territórios no Novo Mundo. Desse modo, ou avançava para a revivescência colonial, ou o brilho do passado jamais retornaria. Assim, o século XVIII, com as ideias iluministas e sua adaptação para o despotismo esclarecido, traziam a esperança de que reformas pudessem ser empregadas para reflorescer o Império Hispânico. Foi exatamente isso o que ocorreu fundamentalmente a partir do reinado de Carlos III (1759‑1788). Figura 4 – O reinado de Carlos III marcou o desenvolvimento das reformas para o reflorescer do lucro na metrópole. Repare, contudo, que o quadro apresenta as mesmas bases de postura do monarca em relação ao absolutismo As ações se delinearam a partir da criação de um amplo aparato de estrutura burocrática para reativar as rendas reais, para garantir o território existente (já que os diversos conflitos na Europa geravam desdobramentos na América) e sua expansão no momento oportuno. A partir do Estado se 21 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE estabelecia todo o conjunto de determinações. O objetivo era angariar fórmulas capazes de fazer a colônia voltar a gerar um acúmulo primitivo para a metrópole – já que desde o final do século XVII a renda vinha decrescendo em razão da menor capacidade de exploração das minas e da propagação do contrabando. Este último, inclusive, tomou proporções tamanhas que, em partes do século XVIII, chegou a ser maior que o comércio legal no interior das colônias. Com isso, o comércio declarado ilegal pela Coroa estava minando os monopólios e a fiscalização, além de receber apoio de colônias concorrentes (como Jamaica e Haiti) ou mesmo das potências rivais. Na prática, as relações internas contavam com significativa autonomia. Lembrete Devemos lembrar que o Estado Moderno é absolutista. Assim, era natural que o despotismo ilustrado fosse conduzido por sua figura para a manutenção da concentração de poder. Nesse momento, a base da manutenção do poder espanhol na América estava relacionada ao equilíbrio entre três grandes grupos: a administração, a Igreja e os criollos (a elite local). A administração era dotada de forte poder político, porém pouco efetivo militar. Sua força residia na soberania da Coroa e na sua função burocrática. A Igreja confirmava o poder secular e pautava sua missão religiosa, mas tudo era garantido pelo seu imenso valor econômico e jurídico. No entanto, eram os criollos os maiores detentores da riqueza, já que eram os grandes comerciantes, advogados, donos de propriedades na cidade e no campo ou mesmo clérigos. Há que se dizer que existia com eles, como elite local, também um pequeno grupo de nativos da Espanha que tentavam empreender seu desenvolvimento econômico no Novo Mundo. A fraqueza do governo da Coroa e a necessidade de renda propiciavam a esses grupos condições de efetivamente resistir ao governo imperial. Um dos principais vetores de atuação da reforma proposta pelos Bourbons foi a reestruturação de toda a burocracia. Para obter um maior controle, a Coroa promoveu um amplo processo de reformulação de toda a hierarquia administrativa. Diversos novos cargos e instituições foram promovidos com a perspectiva de garantir a cobrança de impostos e o devido incremento da renda real. Com isso, em grande medida, os selecionados para essas novas funções eram chapetones, pois, segundo o comentário na metrópole, era fundamental ter confiança total nas ações desse funcionalismo. Observação Os chapetones eram espanhóis nascidos na Espanha e, por causa dessa condição, os únicos autorizados a ocupar os grandes cargos administrativos na colônia. A divisão completa dos Vice‑Reinos foi feita nesse momento. Até então, apenas a Nova Espanha (na Mesoamérica) e o Peru (na área andina), locais dos dois grandes impérios pré‑colombianos, existiam. Foram separadas as áreas periféricas, para melhor governo. Assim, em 1717, surgiu o Vice‑Reino da Nova 22 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Granada, e, em 1776, o da Prata. No primeiro, era imperativo melhorar as relações administrativas e de defesa. No segundo, um privilégio importante tentava promover as ações econômicas: a prata de Potosí sairia, a partir de então, por Buenos Aires – situação que criava uma constante rivalidade com Lima. O cargo de vice‑rei permanecia como o mais importante das colônias. Contudo, a partir da metade do século XVIII, cada vez mais, estava relacionado a grandes oficiais especialmente selecionados pelo rei, ou seja, o cargo demonstrava uma forte preocupação com a garantia das ações militares e uma reorganização rígida da estrutura administrativa. As audiências, entre o final e o início do século XVIII, tinham seus cargos vendidos a qualquer um que tivesse as qualificações necessárias e a renda para sua aquisição. Com isso, muitos criollos foram capazes de assumir boa parte desses postos na metade do século XVIII. Entretanto, as medidas borbónicas começaram a retirar essa elite local de tais postos avançados de justiça – através de subterfúgios, aos poucos, os detentores desses postos eram afastados ou transferidos, mesmo que ainda mantivessem um bom número dessas funções na época das lutas pelas independências. Uma das novas instâncias promovidas nas principais capitais foram os superintendentes subdelegados de real hacienda, responsáveis por todas as questões financeiras nessas cidades de grande vulto comercial. Na prática, aliavam‑se as enormes funções do vice‑rei e, ao mesmo tempo, comissões eram promovidas para fiscalizar todas as ações. Na verdade, fiscalizar era uma das palavras de ordem da reforma. Garantir os impostos era uma questão fundamental que estava plenamente relacionada à exploração local. Assim, um amplo grupo de fiscais assalariados foi criado. A ideia era a proximidade, em cada uma das regiões, como vetor da vigilância máxima. À medida que as reconfigurações administrativas eram realizadas, a Igreja Católica era enfraquecida. Muitos dos membros do clero, tanto regular como secular, acabavam tendo enorme influência nas relações estabelecidas na sociedade da América, pois além de líderes espirituais (o que já era um peso bastante significativo), eram conselheiros intelectuais (pela sua formação e por um contexto de poucos letrados). Uma das questões centrais era o fim dos privilégiosespeciais, dos quais era justamente a Igreja que mais desfrutava. Seus fueros garantiam a imunidade dos religiosos à jurisdição civil e a fonte de riqueza – transformando a Igreja na maior fonte de capital de investimento na América Espanhola. Não eram, de modo algum, os aspectos doutrinários colocados em jogo, mas sim o enorme poder estabelecido. As ações tentaram atacar diretamente o clero, ao buscar submetê‑lo à jurisdição dos tribunais seculares, e, nesse processo, reduziram progressivamente as imunidades clericais para, a seguir, com a Igreja enfraquecida, apropriar‑se de seus bens. Em 1767, a Coroa deu um golpe exemplar para mostrar sua força: os jesuítas foram expulsos dos domínios da Espanha. Os membros dessa ordem clerical eram particularmente vistos como o símbolo da habilidade de se aproveitar os meandros da administração. Com isso, garantiam mais recursos econômicos, por meio de um ótimo gerenciamento e de indígenas a seu lado. Por fim, sempre garantiram fidelidade absoluta ao papa. A ação trazia, entretanto, um baque para a elite local – já que grande parte desses religiosos eram criollos. 23 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE O clero reagiu, e o baixo clero, cujo fuero era praticamente seu único recurso material, passou a, continuamente, apoiar insurreições. Esse confisco de bens da Igreja foi entendido como um grande exemplo de mau governo e de corrupção dos funcionários espanhóis, além do péssimo uso do dinheiro mexicano. O confisco demonstrava a dependência mexicana de uma política externa na qual não tinha voz nem interesse e acabou unindo ricos e pobres, espanhóis e criollos, em oposição ao controle da metrópole. A Coroa precisava promover uma estrutura militar capaz de garantir seus domínios, ou seja, repelir eventuais movimentos internos, como rebeliões e levantes, e, ao mesmo tempo, ser capaz de garantir as possessões diante da constante ameaça estrangeira – que vinha de diversos lados. A defesa envolvia as rebeliões dos índios pueblos no Novo México, as várias insurreições ao longo das áreas de concentração indígena na região andina, os conflitos de fronteira com os portugueses na bacia do Prata e ainda incursões estrangeiras no Caribe. Uma das maneiras mais importantes de fortalecer o corpo militar foi criar tropas regulares e, ao mesmo tempo, promover várias milícias (forças locais), que “significavam que a maioria esmagadora dos homens que serviam ao Exército eram americanos nativos e que uma boa parcela dos oficiais, de capitão para baixo, era constituída por crioulos [ou criollos]” (BRADING, 2012, p. 403). Uma das ações mais importantes desse grupo foi a tomada da colônia de Sacramento, em 1776. Essa região era um centro de disputa de fronteiras com os portugueses em virtude de sua localização estratégica na área de comércio (e muito contrabando) promovido próximo à Bacia do Prata. Outra ação bastante significativa foi a vitória das milícias sobre as invasões inglesas de 1806 e 1807, em Buenos Aires. Contudo, o acesso à promoção militar estava cada vez mais restrito para impedir, de qualquer maneira, a força dos criollos, mesmo que as ações militares justificassem honrarias – coisas que os homens das tropas bem percebiam. Como comentamos, combater o contrabando e as atividades estrangeiras era questão central para reconfigurar os ganhos da Espanha. Nesse sentido, monopólios também foram estabelecidos. Um deles, criado em 1768, foi a plantação de fumo na Nova Espanha. Toda a produção deveria ser vendida para o núcleo central, que manufaturava e vendia o charuto para as diversas regiões. A Coroa privilegiou o uso do exclusivo como forma de atacar diretamente as grandes casas comerciais existentes. Devemos lembrar aqui que a França já havia conseguido, em 1704, o permiso de comércio nas áreas do Pacífico (com Peru e Chile). Pouco tempo depois, os ingleses também o conseguiram, inclusive com o asiento. A primeira ação importante foi a tentativa de retomar o monopólio comercial e o sistema de frotas para o Porto de Cádiz. Claro que as hostilidades de franceses e ingleses foram bastante significativas. Apenas na metade do século a Coroa conseguiu recuperar as amarras do exclusivo metropolitano e, assim, propiciar condições de acúmulo de capital à metrópole, dentro dos ideais do mercantilismo. 24 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Figura 5 – O Porto de Cádiz, na Espanha, tinha importância central no século XVIII até o comercio libre Outro elemento importante foi a criação de companhias de comércio. Uma das questões centrais do uso dessas instituições era contar com o apoio de particulares para tentar extirpar o contrabando – já que, desta feita, ele atava seus interesses. Não raro, conseguiram navios de guerra e recuperaram muito do trato mercantil para a Coroa. Contudo, isso era cada vez pior e mais distante dos interesses locais. Em diferentes áreas foi restabelecido o sistema de frotas, o que retomava um ideal de segurança para os grandes empreendimentos no Atlântico, mas batia de frente, mais uma vez, com os interesses locais. Casas de comércio já estavam razoavelmente enraizadas e conseguiam suprir a demanda, pois os comerciantes espanhóis tinham de promover altíssimos investimentos para um trato mercantil capaz de acumular grande vulto. Diante dessas dificuldades, as reformas passam a dar um passo à frente. Em 1778, foi autorizado o comercio libre. Eram abolidas as frotas, bem como o monopólio de comércio de Cádiz, ou seja, qualquer comerciante espanhol poderia promover ações no Novo Mundo. Entretanto, claro que esse trato livre não era geral. Houve fases para, aos poucos, autorizar determinados portos espanhóis a fazer comércio com a América. Apesar disso, rapidamente, houve uma enxurrada de produtos importados. As consequências disso foram preços cada vez mais baixos e lucro em decréscimo para os comerciantes locais. Muito dos metais preciosos utilizados como moeda se tornaram pagamento dos artigos importados. Contudo, inegavelmente, o trato mercantil de grande cabedal era revigorado. Um dos exemplos mais marcantes dessa relação foi o desenvolvimento de Buenos Aires – em consonância, como vimos, com as novas relações administrativas. Ali, especificamente, o comércio com a prata de Potosí propiciou um grande grupo mercantil cujos membros eram chamados de porteños (“os que vêm do porto”). Os repartos foram reconhecidos pela Coroa em 1751. Eram promovidos em áreas indígenas e garantiam a venda de produtos. Na prática, os corregedores, responsáveis locais, desejavam rapidamente receber de volta os gastos para a aquisição do posto. Além de cobrarem os preços que desejavam, eram bastante odiados por serem, na maioria das vezes, chapetones. A justificativa dos funcionários era a de que esse instrumento era capaz de realizar o trato mercantil e, assim, impedir a existência de uma economia puramente rural. 25 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE É certo que o comercio libre rapidamente fomentou novas rotas comerciais. Propagar as novidades importadas gerava um amplo desenvolvimento e se relacionava diretamente com a revivescência das atividades econômicas. Apesar do avanço agrícola, a mineração ainda era preponderante por excelência na América Hispânica – tanto na Nova Espanha quanto na área andina, incluindo Chile e Colômbia. O grande sucesso das reformas foi revigorar as minas. Para a retomada da atividade no México, a Coroa promoveu ações capazes de incrementar, a passos largos, a produção de mercúrio na mina de Almadén – através de novas técnicas e investimento, a produção saltou em mais de 800%. Ao mesmo tempo, seu preço na América foi bastante reduzido. Novos empreendimentosforam incentivados por benefícios tributários. No extremo, até mesmo um colégio de minas, criado em 1792, traria especialistas para a utilização das melhores técnicas conhecidas. A mesma proporção não foi vista nos Andes. Apesar de medidas semelhantes às da região do Norte, inclusive com novas áreas exploradas, a concretização do desenvolvimento não foi igual. A mina de Huancavelica não conseguiu aumentar sua produção de mercúrio. Ao mesmo tempo, faltavam investimentos e não havia tecnologia moderna. Ressaltava‑se, além disso, boa parte das atividades comerciais que partiam para as zonas de fronteira que se expandiam em torno dos pampas, das fazendas ao norte do México, das áreas férteis do Chile, dos vales venezuelanos com sua produção de cacau e, mais no final do século, do sistema da plantation açucareira em Cuba. A mão de obra preponderante era o trabalho assalariado, com exceção, claro, do sistema cubano, baseado na escravidão africana. Na área tradicional andina, sobretudo em Potosí, a mita atingia exploração ainda mais terrível, fora a exploração dos repartos. Vale destacar ainda Cuba, a partir da segunda metade do século XVIII, que teve estímulos diretos para o desenvolvimento do açúcar. O governo promoveu a chegada maciça de escravos (que chegavam a representar um terço da população), além de conceder diversos latifúndios para a produção. Empreendedores modernizaram as técnicas do engenho com a introdução da energia a vapor. Com as conturbadas relações políticas, econômicas e sociais relacionadas às lutas de independência no Haiti, rapidamente, Cuba ocupou a preponderância do mercado internacional desse produto. Foi um desenvolvimento assustador para uma região que vivia à margem de seus rivais no Caribe. Observação É interessante ainda assinalar que Cuba, desde o século XVIII, tinha a permissão de importar determinados produtos dos Estados Unidos, o que iniciou a atração do trato mercantil, que se desdobraria em problemáticas relações nos séculos seguintes. Essa explosão de novas relações, tratos mercantis e atividades para o acúmulo de capital metropolitano foi acompanhada por outro avanço, mais silencioso, de pouco destaque inicial, mas de enorme importância local: o mercado interno. A produção de gêneros dedicados ao abastecimento da população cresceu nas mais diversas regiões periféricas e em outras inter‑relacionadas. O exemplo mais significativo foi a pecuária. 26 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Eram diversas as produções ao longo de todo o território. Animais de especificidades locais ou o gado e mulas eram conduzidos para feiras locais capazes de abastecer os grandes centros urbanos da América. Na verdade, era inevitável que esse mercado se expandisse, na medida em que as atividades mais centrais do Antigo Sistema Colonial se reconfiguravam, atraindo mais mão de obra e ampliando as necessidades internas. Claro que parte dessa produção eventualmente poderia ser exportada, como o couro argentino, mas isso não diminui o papel de destaque do mercado interno. Nesse trato mais local, de menor vulto, as diversas formas regionais de trabalho livre e assalariado ganharam corpo. Há de se ter em vista que esse tipo de trabalhadores não propicia nenhum gasto inicial ao patrão – algo fundamental nas relações de pequeno trato da pecuária. Os mais variados grupos sociais existiam aqui: mestiços, mulatos, espanhóis pobres ou ainda índios aculturados. A Coroa procurou, inclusive, regulamentar as relações da terra e da mão de obra. A Real Instrução de 1754 criou uma espécie de reforma agrária que confirmava as apropriações ilegais e as legais. A partir de então, para ter acesso a terra, deveriam ser pagos direitos. Essa medida gerou diversos conflitos, criando oposições: índios, que foram beneficiados com o fim das encomiendas, tornavam‑se proprietários da terra onde trabalhavam, mas passavam a pagar tributos – o que era excelente para a Espanha. Contudo, os criollos ficavam extremamente descontentes, por perderem certos domínios e o controle das relações de trabalho em algumas áreas. A manufatura têxtil local também foi profundamente afetada. Os produtos europeus lotavam as regiões comerciais com preços incrivelmente baixos. Os obrajes andinos, para ainda ter alguma relação de comércio, aumentavam continuadamente a exploração da mão de obra indígena pela mita para tentar obter o máximo de produção e venda. Assim se inter‑relacionavam as diversas áreas de atuação. Como assinala D. A. Brading (2012): A era dos Bourbons constituiu um período relativamente curto de equilíbrio entre o setor externo e o interno da economia, no qual, se a curva ascendente da produção de prata sem dúvida ajudou a financiar a revivescência do poder militar da Coroa e deu às colônias condições de importar da Europa grandes quantidades de tecido fino, também gerou uma extensão considerável de empregos, que, por sua vez, criaram um mercado ativo para a indústria e a agricultura domésticas. Na verdade, foi a existência dessa complexa e variada economia interna que possibilitou o surgimento de uma sociedade colonial igualmente complexa e única (BRADING, 2012, p. 439). O sucesso geral foi absolutamente evidente: a receita da Coroa subiu de 5 milhões de pesos, em 1700, para 36 milhões de pesos, em 1790. Em quase um século, o crescimento foi de mais de 700%. Contudo, o preço pago era alto. Proliferaram‑se revoltas indígenas contra a exploração. Os criollos, que haviam alcançado uma ampla estrutura de desenvolvimento econômico em suas diversas áreas de atuação, foram expulsos, transferidos, impedidos de continuar na mesma ação e passaram a perceber que seus interesses eram razoavelmente diferentes dos da Coroa. Por fim, todo o avanço acabou sendo de curto período. 27 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE Já no início do século XIX, as questões políticas europeias rapidamente romperiam as novas relações. 1.2 Império Colonial Português: entre a decadência e o reflorescimento – As medidas pombalinas As medidas reformistas do despotismo esclarecido também foram promovidas pelos portugueses, sobretudo, na figura do primeiro‑ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Proveniente da pequena nobreza, foi embaixador português em Londres de 1739 a 1743. Lá observou o controle inglês sobre o comércio português e manteve contato com a literatura inglesa. Depois da morte do rei D. João V e da ascensão de D. José I, foi nomeado secretário de Estado da guerra e dos negócios estrangeiros no ano de 1750. Com o terremoto de Lisboa de 1755, tornou‑se Primeiro‑ministro para garantir a reconstrução depois da catástrofe de proporções gigantescas. Em 1757, o cargo também passou a ser absolutamente de direito, pois morreu o secretário do Reino, Pedro Motta. Em 1759, recebeu o título de Conde de Oeiras. Em 1769, foi nomeado Marquês de Pombal. Figura 6 – A representação do Marquês de Pombal. Nota‑se a visão da centralidade do desenvolvimento econômico por meio do gesto e do plano de fundo O diagnóstico que o Marquês de Pombal fez em Londres, no ano de 1742, foi bastante significativo para as suas ações quando chegou ao poder. Ele entendia que Portugal assumira uma posição bastante periférica nas questões europeias. Além disso, havia o constante temor das ameaças promovidas pelos ingleses e espanhóis para dominar as possessões portuguesas. O primeiro‑ministro criticava com veemência o comércio anglo‑português, sobretudo, após a assinatura do Tratado de Methuen. A posição central que defendia para a solução dessa realidade era aumentar a renda da Coroa por meio do incremento do comércio entre metrópole e colônia. Na metrópole, o despotismo esclarecido visava a uma profunda transformação em torno da necessidade de otimizar a administraçãoe revitalizar o desenvolvimento econômico. Quanto à primeira dessas duas questões, Pombal procurou promover uma política de renovação dos quadros da nobreza, 28 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I o que gerou uma oposição feroz, desde os primeiros anos, da velha aristocracia. Essa problemática foi agravada em setembro de 1758, com o atentado do Marquês de Távora contra D. José I. Pombal conduziu pessoalmente a investigação e a aproveitou para esmagar a oposição aristocrática tradicional. Ao mesmo tempo, envolveu nesse caso os jesuítas e, em setembro de 1759, expulsou‑os de Portugal por serem declarados inimigos da Coroa. Discutia‑se muito, na época, que os inacianos estavam promovendo um império teocrático no Novo Mundo, que estavam repletos de riqueza e que eram completamente desinteressados em obedecer às metrópoles europeias. A partir daí, era cada vez mais visível a participação dos burgueses no processo administrativo. No ensino, o grande interesse era a laicização, relacionada à garantia do desenvolvimento econômico e de medidas modernizantes. Então, uma profunda reforma pedagógica passou a acontecer a partir dos oratorianos, já que eles eram muito mais envolvidos no conhecimento e no ensino laico e negavam a escolástica (uma vez que defendiam a leitura de filósofos não católicos). O Marquês de Pombal criou o Colégio dos Nobres (que rapidamente fracassou, pois os nobres não desejavam frequentá‑lo) e a Escola de Comércio (da qual participavam alguns burgueses importantes e onde se discutia a economia política). Ao mesmo tempo, intensificou a imprensa régia, inclusive com a criação da Real Mesa Censória, que, aos poucos, tentou sobrepor‑se à Inquisição, que apesar de não ter sido extinta, teve seu papel diminuído, pois eram cada vez mais evidentes as divergências entre as “questões do Estado” e os interesses religiosos. A censura deveria responder às necessidades do Estado e não poderia ser a causa da divisão entre cristãos velhos e novos, para que não ocorressem mais fugas de capital. Quanto à necessidade de revitalizar o desenvolvimento econômico, Pombal procurou retomar a força das manufaturas têxteis, que estavam em enorme desvantagem com relação à concorrência inglesa. Além disso, ele continuou a política de fortalecimento da vinicultura ao criar a Companhia das Vinhas do Alto Douro (1756), que sofreu com a oposição de um levante popular no Porto em 1757 (levante esse duramente reprimido: mais de trinta pessoas foram condenadas à morte). De qualquer modo, a colônia era o local central das medidas pombalinas, e o fortalecimento do poder do Estado daria prioridade à política colonial. Os meses iniciais da administração foram dedicados às preocupações geopolíticas. Era básico, para a expansão econômica, garantir a extensão do Império e, assim, Pombal acabou negociando o Tratado de Madrid de 1750. A questão remetia à importância do comércio do sul e do contato do contrabando da prata. Com a definição desenvolvida, o território da América Portuguesa foi bastante ampliado, garantindo, nesse primeiro momento, os domínios dos sertões e a presença bastante significativa no sul. Segundo Francisco Calazans Falcon (2001), as ações foram norteadas para desenvolver, em um termo emprestado por Guy Martinére, “dupla mutação”, promovendo mutação espacial, econômica e demográfica. Na relação espacial, a base era garantir o centro‑sul e o centro‑oeste da colônia, em constante conflito com os espanhóis. Para isso, era necessário promover o povoamento para manter as forças militares. 29 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a HISTÓRIA DA AMÉRICA INDEPENDENTE A reforma administrativa se iniciou com a extinção das capitanias hereditárias em 1759 e se aprofundou após 1763, com a transferência da sede do Vice‑Reino do Brasil, criado recentemente, para o Rio de Janeiro. Essa transferência teve como finalidades a máxima aproximação da capital ao ouro (a fim de evitar o contrabando) e a defesa do sul da colônia, por meio das fortificações contra os espanhóis. Havia, assim, uma relação bastante estreita entre o reformismo militar e a reforma fiscal. Ao mesmo tempo, na relação econômica, houve a tentativa de revitalizar as áreas da mineração por meio de uma ampliação do crescimento demográfico, tudo em torno de um progressivo arrocho fiscal – vários novos impostos foram criados. Na prática, no entanto, havia o confronto com relação à “contradição tradicional, inerente à administração colonial – escassez de meios em comparação com a ambição dos fins” (FALCON, 2001, p. 230). Uma das medidas importantes a partir daí foram as companhias de comércio criadas para atuar nas colônias. Foram criadas a Companhia‑Geral do Grão‑Pará e Maranhão, em 1755 e a Companhia‑Geral de Pernambuco e Paraíba, em 1759. Ambas foram estabelecidas para fomentar o desenvolvimento econômico por meio da concentração dos recursos e do direcionamento administrativo. Isso era mais voltado para o Nordeste açucareiro, que procurava ser incrementado a partir do avanço do tráfico negreiro. Foi proibida a escravidão dos indígenas, para incentivar esse trato mercantil e, ao mesmo tempo, aumentar os contingentes populacionais locais (até os aldeamentos foram declarados completamente livres e passaram a ser amparados pelo Estado), o que resultaria em maiores capacidades de defesa e de fomento econômico local (pois foi estimulado o casamento misto com portugueses). Na prática, dentro das medidas de monopólios voltadas às companhias de comércio, o governo pombalino decretou a expulsão de comissários volantes das frotas do Brasil. A perspectiva central era nacionalizar o comércio em torno das companhias. Contudo, o problema principal que acabou surgindo foi a participação do capital estrangeiro, o que, na realidade, permitiu, em grande medida, a manutenção do núcleo do comércio luso‑inglês. Observação As companhias de comércio, muitas vezes utilizadas na época moderna, tanto nos primórdios dos processos de colonização quanto em seu momento derradeiro, eram uma forma de garantir o uso do capital privado incentivado pelos benefícios gerados pelo Estado. Em vista do desenvolvimento comercial, especialmente para dinamizar as trocas atlânticas, sedimentando teias mais complexas e garantindo a ampliação mercantil, em 1765, foram abolidos os sistemas de frotas para o Rio de Janeiro e a Bahia. A expectativa de tratos diretos e mais amplos visava fomentar o mercado interno e, ao mesmo tempo, todo o conjunto de relações econômicas. Apesar de as relações estarem bastante centralizadas na metrópole, na colônia, foi favorecida uma certa autonomia das autoridades locais a fim de dar incentivos à economia. 30 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade I Um dos exemplos mais significativos foi o caso de São Paulo. D. Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, foi nomeado governador e capitão‑general de São Paulo entre os anos de 1765 e 1775. A capitania finalmente era resgatada, após a perda da autonomia administrativa, sendo comprada em um processo bastante obscuro. A ação central do Morgado de Mateus era promover um processo civilizador, organizando uma dita “desordem”. Tudo estava estabelecido em torno de um amplo processo: A restauração da autonomia da capitania não obedecia apenas a uma necessidade geral, geopolítica e administrativa (a defesa do Sul e do Oeste, assim como a impossibilidade do Rio de Janeiro de “responder a tudo”), mas também atendia a uma necessidade local e econômica (o estado da economia e da população de São Paulo e a diminuição da mineração). Ademais de pôr fim aos atritos sulinos, a metrópole buscava novas fontes econômicas em vista da decadência das minas. Passava‑se à revalorização das áreas coloniais,
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