Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
No Brasil, a presença africana é marcada pela diversidade que se manifesta tanto na língua quanto na religião, na cultura, nos hábitos, costumes e na resistência coti- diana e histórica dos afrodescendentes. É justamente pela extrema importância do estudo da história e da cultura africana e suas manifestações que se justifica a elaboração deste livro, que visa apresentar os aspectos mais importantes dessa trajetória e reflexões sobre sua vasta influência. Para esclarecer esses diferentes aspectos, esta obra foi subdividida didaticamente em oito capítulos. Os temas aqui abordados incluem, entre outros: as fontes de pes- quisa e os debates teórico-metodológicos da historiografia da África; o estudo sobre a presença humana no continente africano; a religiosidade africana; a dinâmica escra- vista no continente africano; a África no contexto da expansão mercantil; o processo de colonização e a diáspora africana nas Américas; o neolocolonialismo e a partilha da África; os processos de independência dos países africanos; as culturas africanas e afro-brasileira; o movimento negro no Brasil, suas dinâmicas e conquistas. História da África e da cultura afro-brasileira Andréa Maria Carneiro Lobo / Eucléia Gonçalves Santos Código Logístico 57308 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6410-6 9 788538 764106 História da África e da cultura afro-brasileira IESDE BRASIL S/A 2018 Andréa Maria Carneiro Lobo Eucléia Gonçalves Santos Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ L782h Lobo, Andréa Maria Carneiro História da África e da cultura afro-brasileira / Andréa Maria Carneiro Lobo, Eucléia Gonçalves Santos. - [2. ed]. - Curitiba [PR]: IESDE Brasil, 2018. 154 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6410-6 1. África - História. 2. África - Usos e costumes. 3. Negros - Brasil - História. I. Título. 18-49892 CDD: 960 CDU: 94(6) © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito das autoras e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Kudryashka/iStockphoto Andréa Maria Carneiro Lobo Doutora e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Imagens, Linguagens e Ensino de História pela UFPR e graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela mesma instituição. Possui experiência em ensino de História, Metodologia Científica e Filosofia para alunos de graduação em Direito e História, com ênfase em história do pensamento ocidental, atuando especialmente na análise do pensamento filosófico contemporâ- neo (Nietzsche, Benjamin, Foucault, Deleuze) e teoria da história. É autora de livros didáticos nas áreas de história, filosofia, política e arte. Eucléia Gonçalves Santos Doutora e mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e gradua- da em História pelas Faculdades Integradas Católicas de Palmas (Facipal). Tem experiência no ensino de História para alunos de cursos de graduação, especificamente em História da Educação, Patrimônio Histórico e História Regional, História do Direito e História da Comunicação. Atua principalmente nos seguintes temas de pesquisa: história da educação no Brasil, história inte- lectual, construção da nação, raça e identidade nacional, trajetórias e biografias intelectuais, inter- pretações do Brasil. Sumário Apresentação 7 1 Historiografia sobre a África 9 1.1 Historiografia da África 9 1.2 Aspectos da Pré-História africana: a expansão bantu 15 2 A África subsaariana: do século I ao século XIV 25 2.1 A cultura Nok 25 2.2 Os iorubás 27 2.3 O reino de Axum 31 3 O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade 37 3.1 A África Mediterrânea antes e depois do Império Cartaginês 37 3.2 A latinização e a cristianização da África Mediterrânea no contexto da expan- são romana 43 3.3 A expansão árabe e a islamização do Magreb: efeitos sociais, econômicos e culturais 46 4 A dinâmica escravista anterior à presença portuguesa 53 4.1 O reino do Congo: aspectos políticos, econômicos e sociais 54 4.2 A escravidão na África antes da chegada dos portugueses 57 4.3 A expansão marítima portuguesa e a exploração do litoral africano: especifici- dades da escravidão introduzida pelos portugueses 61 5 A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 69 5.1 O tráfico atlântico e a condição social do escravizado no Brasil 69 5.2 Os principais grupos étnico-linguísticos africanos no Brasil e suas características 79 5.3 A resistência africana à escravidão no Brasil 82 6 O neocolonialismo e a partilha da África no século XIX 89 6.1 O neocolonialismo do século XIX: motivações e características 89 6.2 A Conferência de Berlim e a partilha da África 97 6.3 As estratégias da dominação europeia da África no século XIX 99 7 Os processos de independência na África do século XX 103 7.1 O pós-guerra e a independência das nações africanas 103 7.2 A situação econômica, política e social dos países da África subsaariana após 1950 107 7.3 Guerras civis na África subsaariana contemporânea e sua relação com o lega- do do Imperialismo 115 Gabarito 123 7 Apresentação O continente africano pode ser considerado o berço da humanidade. Foi na África que sur- giram os primeiros representantes da espécie Australopithecus, considerados os precursores do gênero Homo, nossos ancestrais. De narrativas feitas por filósofos e historiadores europeus do século XIX, em que se sobres- saía o olhar do colonizador, permeado pelo imperialismo e pelo eurocentrismo, a historiografia africana passou por mudanças, relacionadas a uma outra forma de conceber a história. Ao longo de muitas décadas, a história da África que circulava ao redor do mundo era pro- duzida sob a ótica dos saberes ocidentais, particularmente de viajantes e exploradores europeus que, em excursões ou expedições pelo continente, elaboravam uma série de narrativas sobre a existência desses povos e dessas civilizações. Entretanto, a supremacia da narrativa europeia não impediu que surgissem narrativas históricas realizadas pelos próprios africanos, sobre suas experiências. Da mesma maneira que Heródoto narrou as peripécias gregas na Antiguidade, a África também conheceu seus narradores. Além dos inúmeros narradores nativos, que produziram histórias significativas sobre o continente, há, ainda, as narrativas do ponto de vista da arte, da literatura, da crônica e dos poemas que rende- ram diversas obras, muitas das quais chegaram até os dias atuais. Foi, portanto, na esteira dos movimentos de libertação do território africano e na neces- sidade de estabelecer um conhecimento histórico que fizesse frente às interpretações puramente eurocêntricas que, a partir da segunda metade do século XX, a historiografia africana passou a ser produzida no continente. Na atualidade, essa historiografia busca problematizar o modo de viver e ser das populações africanas que existiram antes da presença de povos estrangeiros – fenícios, macedônicos, romanos, árabes, portugueses, belgas, ingleses... – ou apesar dela, percebendo a complexidade e a especifici- dade de reinos, civilizações, povos e costumes das diferentes regiões, tanto da África Mediterrânea – situada próxima ao Mar Mediterrâneo – quanto da subsaariana – situada ao sul do Deserto do Saara. No Brasil, a presença africana é marcada pela diversidade que se manifesta tanto na língua quanto na religião, na cultura, nos hábitos, costumes e na resistência cotidiana e histórica dos afrodescendentes. É justamente pela extrema importância do estudo da história e da cultura africana e suas manifestações que se justifica a elaboração deste livro, que visa apresentar os aspectos mais impor- tantes dessa trajetória e reflexões sobre sua vasta influência.Para esclarecer esses diferentes aspectos, esta obra foi subdividida didaticamente em oito capítulos. Os temas aqui abordados incluem, entre outros: as fontes de pesquisa e os de- bates teórico-metodológicos da historiografia da África; o estudo sobre a presença humana no continente africano; a religiosidade africana; a dinâmica escravista no continente africano; 8 a África no contexto da expansão mercantil; o processo de colonização e a diáspora africana nas Américas; o neolocolonialismo e a partilha da África; os processos de independência dos países africanos; as culturas africanas e afro-brasileira; o movimento negro no Brasil, suas dinâmicas e conquistas. Boa leitura! 1 Historiografia sobre a África Neste capítulo, trataremos sobre as origens do ser humano no continente africano. Foi na África que surgiram os primeiros representantes da espécie Australopithecus, con- siderados os precursores do gênero Homo. Nesse continente, foram encontrados os mais antigos indícios arqueológicos da espécie Homo, da qual descendemos. Embora a origem dos primeiros hominídeos e dos primeiros seres humanos tenha sido a África, a Pré-História dos povos africanos ainda é pouco explorada pela historiogra- fia ocidental. Neste capítulo, além de abordarmos aspectos da Pré-História africana, dis- cutiremos sobre a historiografia da África, tanto a mais tradicional quanto a mais recente, problematizando as razões pelas quais os estudos sobre a história da África por tanto tempo desconsideraram aspectos importantes da formação dos povos africanos, tanto os da região mediterrânea quanto os da região subsaariana. 1.1 Historiografia da África O que você conhece sobre a história da história da África? O que isso significa? A forma de conceber e contar a história da África também tem uma história. Ao conjunto de escritos históricos sobre um determinado tema chamamos de historiografia. Essa historiografia passou por mudanças ao longo do século XX e após as duas grandes guerras mundiais, o que trouxe outra forma de se conceber os estudos de História, advinda da revolução historiográfica promovida pelos Annales; e outra forma de conceber a África, advinda dos escritos de historiadores africanos e africanistas cujos estudos se desenvolveram em concomitância com os movimentos de descolonização dos países europeus, após a década de 1950. É sobre isso que trata o tópico a seguir. 1.1.1 A África aos olhos da historiografia europeia do século XIX Desconfiemos daqueles que nos redigem narrativas bem ordenadas dos tempos remotos [...]. Estes pecam pelo gosto detestável de querer, por for- ça, tornar claro o que é confuso [...]. A história dos homens e dos países antigos parece uma roupa cheia de furos e cada orifício representa as coisas que ignoramos. De que serve, afinal, ostentar um saber que dá a impressão de que o narrador conhece tudo, ao passo que o leitor pouco sabe?1 (IBN KHALDUN apud FAGE, 2010, p. 3) 1 Ibn Khaldun foi, segundo Fage, um grande historiador africano que viveu entre 1332-1406 no norte da África. Nas- cido em Túnis, a sua obra retrata a África e as suas relações com os outros povos do Mediterrâneo e do Oriente próximo. Da compreensão dessas relações, ele induziu uma concepção que faz da história um fenômeno cíclico, contada a partir da sedentarização e nomadismo constantes de diversas etnias africanas. Marc Bloch, importante historiador francês, utilizou os escritos de Ibn Khaldun para narrar a história da Europa no início da Idade Média. A esse respei- to, consultar Fage (2010). História da África e da cultura afro-brasileira10 A afirmativa do historiador norte-africano do século XIV da nossa era é significativa do sen- timento que paira sobre a escrita da história: a dificuldade de ordenar datas, eventos, fatos e sujeitos históricos em uma ordem inteligível, tendo como material uma sucessão de eventos desconexos, de- sordenados e, por vezes, inapreensíveis. Se a expressão serve perfeitamente para pensarmos a historio- grafia ocidental, da qual partilhamos – por força do ofício e da hegemonia eurocêntrica –, o desafio se intensifica quando nos deparamos com a história do continente africano. Ao longo de muitas décadas, a história da África que chegava até os outros continentes era produzida sob a ótica dos saberes ocidentais, particularmente de viajantes e exploradores euro- peus que, em excursões ou expedições pelo continente, elaboravam narrativas sobre a existência de povos e de civilizações no continente solitário2. Essa ordenação dos saberes teve como protago- nistas as civilizações ocidentais, particularmente as europeias, que estabeleceram, na maior parte das vezes, a maneira de ordenar, narrar e registrar as histórias dos povos. Entretanto, a supremacia da narrativa europeia não impediu que surgissem narrativas históricas realizadas pelos próprios africanos, sobre suas experiências. Da mesma maneira que Heródoto narrou as peripécias gregas na Antiguidade, a África também conheceu seus narradores. Além dos inúmeros narradores nativos, que produziram histórias significativas sobre o continente, há ainda as narrativas do ponto de vista da arte, da literatura, da crônica e dos poemas que rende- ram diversas obras, muitas das quais chegaram até a atualidade. É o caso, por exemplo, dos escritos sobre rotas e roteiros de viagens organizados por árabes acerca do continente africano ou os roteiros descritos por portugueses e italianos como a crônica Esmeraldo de situ orbis, do português Duarte Pacheco Pereira, descrevendo a Costa de África no século XVI. Ou ainda, a escrita de As verdadeiras informações sobre as terras de Prestes João das Índias, do padre Francisco Alvares, que viveu entre os séculos XV e XVI. Cada uma dessas narrati- vas apresenta elementos fundamentais da vida, dos costumes, da geografia, da cultura e da religião de diferentes povos africanos. Todavia, nos padrões da “história como ciência” reivindicada pelos historiadores do século XIX, a África só surgiu como passível de agregar a história universal da humanidade a partir da segunda metade do século XX. Tal carência pode ser justificada pelo fato de a História, como disciplina acadê- mica, cuja justificativa seria a de narrar as experiências humanas vividas ao longo dos tempos, ter suas primeiras manifestações nas universidades europeias. Dispondo da legitimidade da invenção, os euro- peus delegaram-se à função de constituir os materiais historiográficos, os métodos e as abordagens que dariam sentido a uma escrita científica da história. Não é à toa, portanto, que desde o fim do século XIX até a segunda metade do século XX, grande parte da historiografia conhecida, produzida, registrada e 2 A expressão continente solitário é utilizada pelo historiador africano de Burkina Faso, Joseph Ki-Zerbo, para exem- plificar a solidão a que estiveram relegadas a África e sua história por tantos anos. Segundo o historiador, “na verdade, as dificuldades específicas da história da África podem ser constatadas na observação das realidades da geografia física desse continente. Continente solitário, se é que existe algum, a África parece dar as costas para o resto do Velho Mundo, ao qual se encontra ligada apenas pelo frágil cordão umbilical do istmo de Suez. No sentido oposto, ela mergulha integralmente sua massa compacta na direção das águas austrais, rodeada por maciços costeiros, que os rios forçam através de desfiladeiros ‘heroicos’ que constituem, por sua vez, obstáculos à penetração. A única passagem importante entre o Saara e os montes abissínios encontra-se obstruída pelos imensos pântanos de Bahr el-Ghazal. Ventos e corren- tes marítimas extremamente violentos montam guarda do Cabo Branco ao Cabo Verde”. O isolamento físico resultaria no isolamento historiográfico. Para saber mais a respeito, ver: Ki-Zerbo (2010) Historiografia sobre a África 11 editada circulava com base no trabalho de historiadores europeus e legitimava esse olhar diante do resto do mundo.Tal fenômeno foi conceituado como eurocentrismo. A historiografia da África muito sofreu com esse paradigma, em virtude das imensas extensões territoriais do continente, da grande diáspora causada pelo processo de escravização de africanos ou pela condição política outorgada pelo imperialismo do século XIX, que impediu ou dificultou a escrita e a circulação de materiais historiográficos autóctones. Além do mais, a vigência do pensamento evolucionista e positivista, que predominou na Europa do século XIX e a partir da qual se originam as ciências sociais europeias, atribuíam às civilizações africanas a impossibilidade de possuir história, porque estariam mais ligadas ao mun- do natural do que cultural. Conforme afirmou o historiador inglês Hugh Trevor-Roper, em uma famosa entrevista cedida ao canal BBC de Londres, em 1961, não haveria história da África subsaa- riana, mas somente a História dos europeus no continente, porque, segundo Silva, o restante per- manecia envolto em “escuridão”, algo ainda desconhecido, e o que assim se manifesta, não costuma constituir objeto de estudo da História (SILVA, 2005)3. A afirmativa do historiador inglês tem origem em um pensamento de longa duração, ins- pirado em Hegel, filósofo alemão do século XIX. Mapeando o continente africano de maneira superficial e equivocada, Hegel afirmou sobre a inexistência de história entre os povos africanos em virtude da inexistência de registros escritos sobre as experiências dos povos africanos ao longo dos tempos. Tomando a possível ausência de fontes escritas como indicador da inexistência de ação humana de caráter histórico, o pensador alemão concluiu apressadamente que os africanos esta- vam mais próximos da natureza do que da cultura e, consequentemente, desprovidos de história. A afirmação de Hegel estava inserida em um contexto ideológico no qual as sociedades humanas eram vistas mediante uma escala que partia de um estágio mais primitivo para outro mais civilizado (conforme uma concepção de história linear que ia das sociedades menos desen- volvidas para as mais desenvolvidas), sendo esse percurso entendido por meio do aprimoramento técnico-científico alcançado pelo mundo europeu ocidental. Além disso, Hegel vivenciava as pri- meiras tentativas de forjar um pensamento científico sobre as sociedades humanas, do presente e do passado, cuja inspiração se dava pela crença na supremacia das vivências europeias. Destituir os povos africanos de cultura, de sociedade, de política, de arte, de educação e de história era uma estratégia colonialista que justificava as atrocidades cometidas pelos europeus junto às populações africanas em nome da civilização e do progresso, na segunda metade do sécu- lo XIX. A hegemonia desse pensamento político estava tão arraigada que perpassava quase toda a sociedade civil, encontrando respaldo inclusive nas ideias dos pensadores, literatos, intelectuais4. 3 Essa afirmativa é reiterada diversas vezes e em diversas entrevistas e participações acadêmicas do historiador afri- canista Alberto da Costa e Silva. Essa passagem foi retirada da entrevista cedida por Alberto Costa e Silva à Revista de História da Biblioteca Nacional. 4 A respeito da questão de não se ter uma historiografia única acerca da África e sobre as novas temáticas abordadas por escritores africanos na atualidade, sugerimos as obras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Nascida em 1977, publicou obras como Hibisco roxo, Meio Sol amarelo e Sejamos todos feministas. Nesta última obra, compartilha sua experiência como escritora feminista africana e sua percepção acerca das visões atuais sobre gênero e sexualidade. Para conhecer algumas das suas principais ideias, sugerimos o vídeo de sua apresentação, gravado no TED Talks, intitulado Todos devemos ser feministas. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_ be_feminists?language=pt-br#t-220432>. Acesso em: 17 abr. 2018. autóctones: originá- rios da região onde são encontrados. História da África e da cultura afro-brasileira12 Por força e obra da prevalência de ideias imperialistas e devido à complexa arquitetura de dominação colonial, diversos povos ficaram impedidos (tanto por restrições políticas quanto pelas intrincadas amarras de construção do campo historiográfico, enquanto saber institucionalizado) de narrar e registrar suas próprias histórias pelos métodos científicos requisitados a partir do sécu- lo XIX para a escrita historiográfica. Nesse sentido, os escritos que se definiam como filosofia da história ou teoria da história construíam interpretações evolutivas das sociedades humanas, baseadas no progresso da histó- ria europeia-ocidental. Assim, o padrão de civilização era estabelecido pelo olhar europeu, bem como as definições dos saberes e das histórias de povos que importavam para o patrimônio uni- versal de conhecimentos da humanidade e mereciam ser registrados pela historiografia universal. O historiador ou filósofo social que olhasse para o passado das civilizações e não encon- trasse a “modernidade ocidental” descartava, na maioria das vezes, a possibilidade de um fazer histórico. O viés evolucionista ou positivista da história pressupunha a narrativa de sociedades que se enquadrassem nos moldes do progresso definido pelos saberes europeus. Como consequência desses padrões de ideias, entre o século XVIII e XIX, pouco se escreveu sobre a história de outros povos além do europeu. 1.1.2 O século XX e um outro olhar sobre a história da África Foi nas primeiras décadas do século XX que a supremacia europeia sobre o mundo começou a ser contestada. Essa possibilidade para tal contestação e a superação da Europa como lugar de centro da civilização moderna foi possível após a Primeira Guerra Mundial. Esse momento histó- rico colocou o mundo europeu no banco dos réus. Como uma civilização que clamava para si a perspectiva de modelo do mundo proporcionou a si as atrocidades cometidas na guerra? Como confiar em um modelo de civilização que se autodestruiu? Para alguns, a tragédia da guerra comprovou a decadência da cultura ocidental e mostrou a urgência de um pensamento que se deslocasse do eurocentrismo ou que ao menos apontasse um repensar do lugar da Europa no mundo, juntamente com os valores defendidos pela civili- zação europeia. A primeira resposta ao novo reordenamento do mundo pós-guerra se deu, no campo histo- riográfico, com o movimento da Escola de Annales, renovação do pensamento historiográfico francês nascido em 1929 com a publicação da revista Annales. A proposta dos historiadores franceses ligados aos Annales era a de que se tornava necessá- rio avançar no campo historiográfico, renovando os saberes, as abordagens, os métodos e as fontes para as narrativas históricas. Segundo eles, a história precisaria integrar novos horizontes, possíveis por meio da interdisciplinaridade e, ainda, precisava ampliar o universo das perspectivas e dos sujeitos históricos. Segundo o historiador Alberto Costa e Silva (2005), foi por meio da renovação no campo das ciências sociais e fruto delas que se produziram os primeiros trabalhos de história da África pro- priamente ditos. Após a Segunda Guerra Mundial, essa renovação avançou em qualidade e quanti- dade, particularmente diante do crescente relativismo europeu perante seus próprios valores. Historiografia sobre a África 13 Na segunda metade do século XX, surgiram importantes publicações especializadas em his- tória da África, por exemplo o The Journal African History, na Inglaterra, primeira revista científica a se dedicar exclusivamente ao entendimento, pesquisa e análise da história da África nas univer- sidades europeias. Também surgiram o Bulletin de l’Institut Français de l’Afrique Noire, na França, e uma série de livros escritos entre os anos de 1950 e 1960 por historiadores europeus e que apre- sentaram ao público importantes estudos sobre a história da África. Segundo Muryatan Santana Barbosa (2008),as principais obras escritas nesse momento sobre a temática africana foram: A velha África redescoberta (1959), de Basil Davidson; História dos povos da África Negra (1960), de Robert Corvenier; Breve história da África, de R. Oliver e J. Fage (1962) e História da África Negra (1961), de Jean-Suret Canale (BARBOSA, 2008, p. 51). A principal característica dessas produções historiográficas sobre o continente africano era o fato de elas serem produzidas por historiadores europeus, particularmente, britânicos. Ou seja: tratava-se de um olhar do colonizador. A África e os africanos eram objetos da história e não os seus sujeitos. Segundo Guilherme Oliveira Lemos, “no saber ocidental sobre África, era preciso desenvol- ver conhecimentos acerca da geografia, dos domínios e das possibilidades de exploração material” (LEMOS, 2015, p. 159), ou seja, tratava-se de um saber que corroborava a prática imperialista. O historiador Alberto Costa e Silva nos alerta: precisamos ficar atentos às primeiras pro- duções historiográficas realizadas por africanos sobre a história do continente, porque elas ainda estavam muito vinculadas com um saber europeizado. Este estudioso ainda afirma que, diversos intelectuais africanos saíram de suas terras de origem, principalmente a partir da década de 1950, e estudaram em universidades francesas, inglesas, alemãs, russas e, ao retornarem, estavam com o olhar eivado pelos saberes, métodos e abordagens que vigoravam nos meios acadêmicos nos quais se formaram, mesmo que apresentassem um ponto de vista diametralmente oposto aos dos coloni- zadores e escrevessem como estratégia de enfrentamento ao domínio colonial. 1.1.3 A historiografia da África sob o olhar de historiadores africanos e brasileiros Para fazer frente aos olhares europeus lançados sobre a África, surgiram as primeiras pro- duções historiográficas realizadas por africanos. O que ditava o tom do enfrentamento era a resis- tência ao domínio colonial e imperialista. Nesse ponto, a historiografia africana passou por outro grande desafio para ser reconhecida. Segundo Lemos (2015), para descaracterizar as produções africanas cogitou-se que os afri- canos seriam incapazes de pensar e de produzir conhecimento pela falta de estruturas físicas e de conhecimentos acadêmicos arraigados. “Se antes eles eram impossibilitados de um pensamento autônomo pelas barreiras raciais naturais, agora, eram pelos empecilhos da falta de universida- des, de centros acadêmicos de excelência e do subdesenvolvimento imposto pelo colonialismo” (LEMOS, 2015, p. 173). Esses ataques eram infundados, isso porque, desde fins do século XIX, havia instituições acadêmicas em diversas regiões da África, que foram retomadas a partir de 1950, sendo criados, inclusive, os departamentos de História. Mesmo assim, o discurso que deslegitimava as produções historiográficas africanas teve prevalência por um longo período. História da África e da cultura afro-brasileira14 Foi, portanto, na esteira dos movimentos de libertação do território africano e na neces- sidade de estabelecer um conhecimento histórico que fizesse frente às interpretações puramente eurocêntricas que, a partir da segunda metade do século XX, a historiografia africana passou a ser produzida no continente. O historiador John Donnelly Fage nos lembra que o primeiro diretor africano de um departa- mento de História foi o professor Kenneth Onwuka Dike, nomeado em 1956, em Ibadã. O período em questão, pós-Segunda Guerra Mundial, coincidiu com a formação dos países africanos, recém- -libertos do colonialismo europeu. Foi nesse contexto que se formaram muitos estudantes africanos de História (FAGE, 2010, p. 21). As pesquisas históricas no continente eram orientadas pelas perspectivas teórico-metodológicas da Escola dos Annales, conforme afirmou Barbosa (2008), ou seja, por uma perspectiva de história problematizadora e multidisciplinar: “Afinal, para reconstruir o passado africano era preciso recons- truir o passado de outras formas. E essas formas não se restringiam à África” (BARBOSA, 2010, p. 56). O norte que guiava as pesquisas históricas produzidas pelos historiadores nativos pós-colonialismo era o de descolonizar a história para projetar uma “verdadeira” história da África. Os movimentos de inde- pendência, nesse sentido, foram os motivadores para a ampliação de difusão dos estudos africanos em todo o mundo. Entretanto, foi na década de 1960 que os estudos históricos sobre a África ganharam fôlego e corpo. Em 1966 surgiu a ideia, proposta pela Unesco, da elaboração de uma obra que abordasse a história da África, intitulada História Geral da África, iniciada no ano de 1969. Além dessa ini- ciativa, historiadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, iniciaram, na mesma década, a elaboração de outro trabalho expressivo sobre história da África, disposto em oito volumes com mais de mil páginas cada um, lançado na década de 1970. A perspectiva historiográfica que guia as produções desde o fim da década de 1970 e, parti- cularmente, nos anos 1980 e 1990, concentraram-se em consolidar os estudos gerais sobre a África por meio da reconstituição da história em longo prazo, bem como nos temas modernos e contem- porâneos, relacionados ao tráfico escravista, ao colonialismo e à descolonização. No Brasil, os debates em história da África só chegaram efetivamente a partir do ano 2000. Antes disso, grande parte dos estudos que abordavam a história da África eram conduzidos dentro de outros temas geradores, como o tráfico negreiro, a sociedade escravista, a formação da socieda- de brasileira e a contribuição do negro para a formação do Brasil. Os estudos que abordavam exclusivamente a história da África eram conduzidos por re- duzido número de pesquisadores, muitas vezes de maneira personalista e solitária. É o caso, por exemplo, do grande africanista brasileiro Alberto Costa e Silva que, até o fim da década de 1990, não tinha seus trabalhos disseminados no mundo acadêmico, a não ser com raras exceções. A partir da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira, esse quadro alterou-se profundamente. As universidades públicas e parti- culares foram obrigadas a inserir em seus currículos a disciplina de História da África, originando uma ampla demanda pelos estudos nessa área. Historiografia sobre a África 15 Revisitar a história das Áfricas, no plural, como requisita Silva (2005), tem proporcionado compreender o processo histórico das sociedades africanas e, principalmente, da sociedade bra- sileira. Um país que recebeu mais de cinco milhões de africanos, de diversas etnias, ignorou, por muito tempo, o processo que não só gerou e nutriu o sistema escravista no Brasil, mas desconsi- derou as estruturas africanas transportadas para a “nova África”, para a África que veio carregada nos navios negreiros. Sem dúvida nenhuma, o tecido que constitui o passado está recheado de furos, que aumen- taram em virtude do descaso e do longo período em que eles foram relegados ao esquecimento e à ignorância. Mas esses furos continuam compondo o tecido histórico das nossas vidas, sedentos por serem notados, explorados e descobertos. 1.2 Aspectos da Pré-História africana: a expansão bantu Foi a partir do Homo sapiens sapiens, espécie surgida na África, que o ser humano desen- volveu a linguagem. A língua é um dos aspectos mais significativos de uma cultura. É por meio da linguagem que significamos o mundo ao nosso redor, atribuindo-lhe sentido, valor. A realidade passa a existir a partir do momento em que a significamos por meio da linguagem, seja ela pictó- rica, falada ou escrita. A língua, muitas vezes, constitui uma das únicas manifestações de sobrevivência da singula- ridade de um povo. E essa singularidade atravessa os séculos, por vezes, os milênios, e se manifesta, pela linguagem, em diferentes épocas e sociedades, atestando a origem e a sobrevivência de um grupo humano no tempo. Foi assimcom a língua bantu (banto) uma das matrizes linguísticas mais antigas do mundo e que teve suas origens na África. No seu idioma original, a palavra bantu é o plural de muntu (homem) e significa povo ou homens. 1.2.1 A língua banto em nosso dia a dia O banto é considerado um tronco linguístico, assim como o latim, uma família linguística maior, a partir da qual se desenvolveram muitas outras línguas africanas. Indivíduos pertencentes a povos africanos que falavam línguas aparentadas do banto (como os africanos de Angola) foram trazidos à força de suas terras entre os séculos XVI e XIX por traficantes de escravizados, portu- gueses e depois brasileiros. Com esses indivíduos vieram costumes, práticas religiosas, hábitos, ritos e língua. Mesmo tendo sido obrigados a falarem o português, a língua de origem deles sobreviveu em algumas pala- vras, que foram incorporadas à língua falada no Brasil. Assim, o banto, tronco linguístico ancestral africano, é parte do nosso dia a dia graças à maciça presença da cultura africana em nossa sociedade. Observe, no Quadro 1, algumas das palavras presentes em nosso cotidiano, originadas do tronco banto. História da África e da cultura afro-brasileira16 Quadro 1 – Palavras que têm origem no tronco banto. Vocábulo Brasil Origem Significado Angu Papa de milho que pode ser doce ou salgada ou, ainda, sem tempero Kk. Angu Mingau. Babáu (gir.) Acabou-se, fim. Kb. Babau Foi-se. Bamba (gir.) Famoso, bom no que faz. Kk. Bamba Rico. Banzo Tristeza Kb. Mbanzo Pena (sentimento), enrascada. Bengala Bastão de apoio. Kk. Bangala Kb. Kiabengala Bastão torto. Cacimba Poço, reservatório de água. Kb. Kisimbi ou Kiximbi Fonte, nascente. Cacunda Costas, ombros, corcunda Kb. Kakunda Corcova. Caçula O filho mais novo. O último filho. Kb. Kasule O mais novo. O último filho. Calango Pequeno lagarto. Comum em climas temperados a quentes. Kb. Dikalanga Lagartixa. Calundú Tristeza, mau humor. Kb. Kalundu Cemitério. Cambada (pej.) Grupo de pessoas com os mes- mos interesses escusos, bando. Kb. Kamba Amigo, camarada. Camundongo Rato de pequeno porte. Kb. Kamundongo Observador, o que estuda, esperto. Candeia Lamparina, lâmpada de azeite Kb. Kandeia Lamparina. Cansanção Urtiga Kb. Kasau-sau Urtiga. Carimbo Peça, em geral de madeira e bor- racha, para marcação. Kb. Kirimbu Sinal, marca gravada. Catana Facão usado no corte de cana. Kb. Katana Foice. Catinga Mau cheiro. Kb. Kk. Katinga Mau cheiro. Caxitu Nome de um bairro em Maricá (RJ). Kb. Kaxitu Caça pequena. Dendê Fruto do dendezeiro. Azeite de dendê. Kb. Ndende Fruto da palmeira ndenden. Óleo de palma, óleo de dendê. Dengo Carinho, carícia, maneira delicada de falar. Kb. Ndenge Pequeno. (Continua) Historiografia sobre a África 17 Vocábulo Brasil Origem Significado Fubá Farinha de milho. Kb. Fuba Farinha. Fundanga Pólvora, queimação. Kb. Fundanga Explosivo, pólvora. Ginga Malemolência, maneira de balan- çar os quadris sem parar, rebolado. Kb. Jinga Incessante. Nome de uma antiga rainha do território de Matamba. Maconha Cannabis sativa, fumo cujo uso é ilegal, droga. Kb. Makanha Fumo de rolo, folhas de tabaco. Mandinga Feitiço, feitiçaria. Kb. Mandinga Cólera, ira, mau humor. Marimbondo Inseto cuja picada é muito dolorida. Kb. Marimbondo Enxame de zangãos. Matuto Caipira, interiorano. Kb. Matutu Camponês Minhoca Verme cujas fezes servem de adubo (húmus). Kb. Kinhoka Cobra, serpente. Moleque Menino, pessoa brincalhona, s.pej. pessoa irresponsável. Kb. Muleke Jovem, jovial. Moqueca Caldeirada preparada com frutos do mar. Kb. Mukeka Ensopado Mochila Bolsa de duas alças que se leva às costas. Kb. Muxila Saco de viagem, sacola de peregrino. Quitanda Local onde são vendidos legumes, verduras e frutas. Kb. Kitanda Mercado. Fonte: Chaia, 2006. Vamos agora saber um pouco mais sobre a expansão banto na África, pois foi a partir dela que se originaram diferentes povos e línguas, alguns dos quais estão presentes no Brasil desde a imigração forçada promovida pelos traficantes de escravizados no período colonial e imperial. 1.2.2 A expansão banto No início do II milênio a.C., grupos que falavam línguas aparentadas entre si e pertencentes ao tronco linguístico banto começaram a se expandir a partir da fronteira do que seriam os atuais países da Nigéria e de Camarões (Figura 1), para vastas extensões da África Central e Meridional, chegando até o sul do continente e à região dos Grandes Lagos – onde fica o Lago Vitória –, na porção oriental da África, onde atualmente é a Tanzânia. História da África e da cultura afro-brasileira18 Figura 1 – A expansão banto (2000 a.C. a 500 a.C.) ne go w or ks /i St oc kp ho to Fase I Fase II Fase III Legenda: Fonte: IESDE Brasil S/A. Inicialmente, esses grupos viviam da agricultura e da criação de animais e obtinham alimen- to de outras formas, tais como a caça, a pesca e a coleta. Pelo fato de serem recoletores e pelo tipo de agricultura que praticavam – abandonavam a área cultivada, assim que o solo se exauria, a cada três ou quatro anos –, movimentavam-se muito, explicando sua expansão por uma vastidão tão grande de territórios. Alguns estudiosos acreditam ainda que alguns grupos de origem banto já sabiam forjar o ferro por volta do primeiro milênio a.C., fato que explica terem desbravado tantos territórios: pro- vavelmente dispunham de ferramentas feitas de ferro – como machados – para abrir caminho por quilômetros de mata fechada. A expansão banto se subdividiu em duas frentes, dando origem a dois subgrupos linguísti- cos diferentes: uma para o Oeste – expansão ocidental – e outra para o Leste – expansão oriental. Achados arqueológicos indicam que a expansão do banto ocidental se deu a partir do su- deste da Nigéria e o sul do Camarões. Além de praticarem a caça, a pesca e a coleta, cultivavam dendezeiro, inhame, vagens e abóboras. Não conheciam o uso do ferro, mas usavam artefatos de cerâmica. Criavam animais, como o cachorro e a cabra, conforme destaca Alberto da Costa e Silva: Historiografia sobre a África 19 Num ambiente propício e variado, entre savana e floresta, entre mar e serra, com abundância de chuvas e de sol, cresceram em número e começaram a expandir-se e diferenciar-se linguisticamente, ao longo do oceano, por entre manguezais e rio acima. Atravessaram o mar e foram ter à ilha de Bioko (ou Fernando Pó). Subiram o Gabão, o Oguê e outros cursos d’água, sempre em busca de paisagens que lhes eram habituais e onde pudessem exercer a agricultura a que estavam acostumados. Assim chegaram ao rio Zaire e o foram pontuando, contracorrente, com suas al- deias. E avançaram pela ramagem dos afluentes. Sempre junto das águas. A seguir, o espinhaço e a costela dos rios. Sem se afastar do tipo de hábitat que desde há muito conheciam. Entraram pelo Cuango, pelo Quilu, pelo Cassai. Alguns, nos planaltos do sul do Congo e de Angola, adaptaram-se à vida de savana: reduziram a agricultura a uma atividade marginal e se converteram em caçadores. Assim atingiram a Namíbia, ao sul, e, a leste, os lagos Malavi e Tanganica e o rio Zambeze. (SILVA, 2006, p. 216) Ainda segundo o historiador Alberto da Costa e Silva, a expansão banto oriental se deu para a região dos Grandes Lagos, onde as populações que falavam línguas aparentadas desse tronco linguístico dedicavam-se, sobretudo, à criação de animais e à forja do ferro: Quanto ao banto oriental, ele foi desenvolver-se na região dos Grandes Lagos. Os que o falavam já conheciam possivelmente o cultivo de cereais desde que deixaram os Camarões e seguiram para leste pela borda setentrional da floresta. Nos Grandes Lagos, converteram-se à pecuária e passaram a fundir o ferro. Com milhetes, sorgo, bois e instrumentos de ferro, foram descendo a África. Por volta do ano 100 da nossa era, já se haviam imposto em partes da Zâmbia e de Chaba habitadas por bantos ocidentais. E, com os milhetes e o sorgo, o ferro e o boi, foram ocupando as áreas ondenão prosperavam o inhame e o dendê, até as praias do Atlântico. (SILVA, 2006, p. 216) As populações bantas da África Oriental falavam formas diferentes do mesmo idioma, mas não chegaram a estabelecer um Estado unificado. Os árabes, que por lá passavam para estabelecer comércio, chamavam esses povos de suaílis, cujo significado, em árabe, se aproxima da expressão planície costeira. A partir do século IX da nossa era, nota-se uma grande dinamização comercial empreendida por esses povos costeiros, cujo contato com comerciantes de origem árabe tornou-se mais intenso, em grande parte devido à manufatura do ferro que se tornou característica de suas cidades. Também foi por meio de contatos comerciais com outros povos – dessa vez com os indo- nésios que navegavam pelo oceano em suas canoas, valendo-se de correntes marítimas – que se difundiu na África Índica o cultivo de bananeiras, de um tipo de inhame asiático, do taro e de outros tantos vegetais, sementes e raízes de origem indonésia que as populações suaílis passaram a produzir e comercializar com povos africanos. Na África Oriental e Índica, a movimentação comercial originou importantes cidades – como Zeila e Sofala – que acabaram funcionando como entrepostos de uma intensa troca de produtos de origem africana – locais ou vindos de reinos africanos do interior do continente – árabe e indonésia. As cidades suaílis tinham perspectivas cosmopolitas e acolhiam bem os visitan- tes que viessem em paz. Chegavam a eles chefes e emissários em embaixadas de comércio ou diplomacia vindas de reinos africanos do interior distante. Eruditos História da África e da cultura afro-brasileira20 itinerantes do Egito ou da Arábia, da Índia ou de outras cidades africanas chega- vam para visitas de debate com os colegas suaílis. Todos estes visitantes se podiam encontrar com cidadãos [...] que se dedicavam a muitos ofícios: pescadores, agri- cultores, fruticultores, construtores navais, pedreiros, metalúrgicos e outros. Foi uma civilização que se desenvolveu sem interrupções sérias ou invasões do exte- rior até 1498. Então, vieram do Oceano Atlântico os portugueses. (DAVIDSON apud GIORDANI, 1985, p. 100) Considerações finais Como vimos neste capítulo, há muito sobre a história da África na nossa sociedade e na nossa cultura, mesmo assim, ainda são pouco explorados e difundidos em nossas escolas e univer- sidades os estudos sobre a história dos inúmeros e complexos reinos e povos da África anterior à presença predatória europeia dos séculos XV ao XIX. Essa presença deixou marcas no desenvolvimento econômico, político e social dos povos do continente africano e na forma de se conceber a história desses povos: essa forma, até meados do século XX, era ainda muito influenciada pelo olhar eurocêntrico, que concebia os africanos como primitivos e como pertencentes a uma escala evolutiva socialmente inferior se comparada às nações europeias. Tais ideias legitimaram o imperialismo europeu sobre a África no século XIX e justificaram a exploração de suas populações. Mesmo após a independência das nações africanas, após a Segunda Guerra Mundial, os estudos sobre a África continuaram a ser majoritariamente conduzidos por historiadores de formação europeia, o que, de certa forma, perpetuava uma visão do colonizador acerca do colonizado. Foi somente a partir das décadas de 1960 e 1970, quando estudos sobre a história dos povos africanos começaram a ser conduzidos por historiadores autóctones que a his- toriografia sobre a África passou a adquirir uma outra conotação metodológica e epistemológica. Na atualidade, essa historiografia busca problematizar o modo de viver e ser das populações africanas anteriormente à presença de povos estrangeiros – fenícios, macedônicos, romanos, ára- bes, portugueses, belgas, ingleses etc. – ou apesar dela, percebendo a complexidade e a especifici- dade de reinos, civilizações, povos e costumes das diferentes regiões, tanto da África Mediterrânea – situada ao norte do Deserto do Saara e próxima ao Mar Mediterrâneo – quanto subsaariana – situada ao sul do Deserto do Saara. No Brasil, a presença africana é marcada pela diversidade manifestada tanto na língua quan- to na religião, na cultura, nos hábitos, costumes e na resistência cotidiana e histórica dos afrodes- cendentes. É sobre essas histórias que continuaremos a estudar no próximo capítulo. No próximo capítulo abordaremos algumas das primeiras civilizações surgidas no continen- te africano nesse processo de expansão, entre elas, a cultura iorubá. Ampliando seus conhecimentos O texto a seguir aborda a marca que o passado colonial deixou na produção historiográfica tradicional sobre a África. Esse aspecto não constituiu uma exclusividade dessa historiografia, mas Historiografia sobre a África 21 das historiografias acerca da América e da Ásia. O fato de esses continentes, no passado, terem sido colonizados e explorados por nações europeias repercutiu na forma do seu desenvolvimento econômico, político e social, mas também na forma como se registrou e contou por muito tempo a sua história, ou seja, na sua historiografia. Ultrapassar o colonialismo é também problematizar e romper com as formas tradicionais de se abordar a história de populações africanas, americanas e asiáticas em suas diferentes trajetórias, para além da influência e subjugação europeia. Tendências recentes das pesquisas históricas e contribuição à história em geral (CURTIN, 2010, p. 37-39) O fato de a história da África ter sido deploravelmente negligenciada até os anos [19]50 é apenas um dos sintomas – no domínio dos estudos históricos de um fenômeno mais amplo. A África não é a única região a possuir uma herança intelectual da época colonial que deve ser transcendida. No século XIX, os europeus conquistaram e subjugaram a maior parte da Ásia, enquanto na América tropical o subdesenvolvimento e a dominação exercida pelos povos de origem europeia sobre as populações afro-americanas e indígenas reproduziram as condições do colonialismo nas próprias áreas onde as convenções do direito internacional apontavam um grupo de Estados independentes. No século XIX e no início do século XX, a marca do regime colonial sobre os conhecimentos históricos falseia as perspectivas em favor de uma concepção eurocêntrica da história do mundo, elaborada na época da hegemonia europeia. A partir daí tal concepção é difundida por toda parte graças aos sistemas educacionais ins- tituídos pelos europeus no mundo colonial. Mesmo nas regiões onde jamais se verificara a dominação europeia, os conhecimentos europeus, inclusive os aspectos da historiografia euro- cêntrica, impõem-se por sua modernidade. Hoje, essa visão eurocêntrica do mundo praticamente desapareceu das melhores obras his- tóricas recentes; mas ela ainda predomina em numerosos historiadores e no grande público tanto ocidental quanto não ocidental. [...] Trata-se, por um lado, da transformação da história, partindo da crônica para chegar a uma ciência social que trate da evolução das sociedades humanas; por outro, da substituição dos preconceitos nacionais por uma visão mais ampla. Em favor destas novas tendências, chegaram contribuições de todos os lados: da própria Europa; de historiadores da nova escola na África, na Ásia e na América Latina; dos europeus de ultramar – da América do Norte e da Oceania. Seus esforços para ampliar o quadro da história voltam- se ao mesmo tempo para os povos e regiões até então negligenciados, assim como para certos aspectos da experiência humana antes ocultos sob concepções tradicionais e estreitas da história política e militar. Nesse contexto, o simples advento da história africana já constitui em si uma preciosa contribuição. Atividades 1. A historiografia que se dedica ao estudo das sociedades colonizadas é unânime em afirmar: o conhecimento do colonizador ditava as estruturas sobre as quais os saberes eram difundi- dos, ditando o que interessava para compor o patrimôniocultural e histórico da humanidade e o que deveria ser descartado. Considerando que em todos os saberes há redes intrínsecas de poderes, os saberes eurocêntricos sobre os povos estavam indissociavelmente ligados às História da África e da cultura afro-brasileira22 estratégias de dominação. Aponte de que maneira a historiografia europeia contribuiu para o domínio dos europeus sobre os povos africanos e quais são as possibilidades de, por meio da história, as sociedades colonizadas superarem o legado imperialista na historiografia. 2. A cultura de diferentes povos africanos manifesta-se de diferentes formas na sociedade bra- sileira atual. Uma delas é a sobrevivência de termos de origem linguística banto no portu- guês falado no Brasil. Mencione pelo menos três desses termos e indique a que universo temático comum eles pertencem, destacando: em sua opinião, por que foram justamente esses tipos de palavras africanas que sobreviveram ao processo de aculturação promovido pelos portugueses? 3. Mesmo a África tendo sido o berço e a origem dos primeiros seres humanos e o continente onde se desenvolveu uma das primeiras e mais complexas civilizações humanas – o Egito – por que a história da África foi, por tanto tempo, negligenciada nos currículos escolares? 4. Em sua opinião, quais são as formas pelas quais se pode ampliar o acesso dos estudantes de todos os níveis a conteúdos referentes à história dos povos africanos em diferentes épocas? Referências BARBOSA, M. S. Eurocentrismo, História e História da África. Sankofa. São Paulo, n. 1, p. 46-63, jun. 2008. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88723/91620>. Acesso em: 16 abr. 2018. BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 16 abr. 2018. CHAIA, N. P. Cultura bantu. Elos, Maricá, out.2006. Disponível em: <http://www.uaisites.adm.br/iclas/ pagina_ver.php?CdNotici=42&Pagina=Linguas>. Acesso em: 23 abr. 2018. CURTIN, P. A. Tendências recentes das pesquisas históricas e contribuição à história em geral. In: ZERBO-KI, J. (Ed.). História Geral da África: metodologia e pré-história da África. 2. ed., Brasília, Unesco, 2010. p. 37-58. v. 1. DAVIDSON, B. A descoberta do passado da África. Trad. José Maia Alexandre. Lisboa: Sá da Costa, 1981. DIFUILA, M. M. Historiografia da História de África. In: Colóquio Construção e Ensino da História da África, 1., 1994, Lisboa. Anais... Lisboa: Linopazas, 1995. p. 51-56. ERMINI, F. Grande história universal: o princípio da civilização. Barcelona: Folio, 2006. FAGE, J. D. Metodologia e pré-história da África. In: ZERBO-KI, J. (Ed.). História Geral da África: metodologia e pré-história da África. 2. ed., Brasília, DF: Unesco, 2010. v. 1. GIORDANI, M. C. História da África anterior aos descobrimentos. 4. ed, Petrópolis: Vozes, 1985. HAYWOOD, J. Atlas histórico mundial. [S.l.]: Köneman, 2000. LEMOS, G. O. A África na Historiografia e na História da Antropologia: reflexões sobre “natureza africana” e propostas epistemológicas. Revista Temáticas, Campinas, n. 45/46, 2015. REVISTA de História da Biblioteca Nacional, n. 39, dez. 2008. SILVA, A. C. Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 1, jul. 2005, p. 52-57. Historiografia sobre a África 23 ______. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. ZERBO-KI, J. (Ed.) História geral da África: metodologia e pré-história da África. 2. ed., Brasília, DF: Unesco, 2010. p. 37-58. v. 1. ______. Introdução à obra História geral da África. In: ZERBO-KI, J. (Ed.) História Geral da África: metodo- logia e pré-história da África. 2. ed. Brasília, DF: Unesco, 2010. v. 1. 2 A África subsaariana: do século I ao século XIV A porção do continente africano situada ao sul do atual Deserto do Saara é chamada subsaariana; e a região situada ao norte da África do Norte, mediterrânea ou Magreb. Entre o IV milênio a.C. e o século XV da nossa era, inúmeros reinos se desenvolveram na África, tanto na região subsaariana quanto no Magreb, alguns deles tornaram-se complexas civilizações. Neste capítulo, vamos analisar com mais atenção os reinos que surgiram e se desenvol- veram na região da África subsaariana, a começar pela tradição Nok, uma das mais antigas a se desenvolver na região que atualmente corresponde a parte da Nigéria. Depois, discutiremos sobre os iorubás, cuja cultura influenciou significativamente na formação cultural brasileira. Na sequência, abordaremos a civilização de Axum, uma das mais importantes da Antiguidade. Essas tradições foram as escolhidas para este livro em virtude da bibliografia consultada, em especial a obra de Alberto da Costa e Silva, A enxada e a lança. Essa abordagem faz um recorte, mas, cabe ressaltar, existiram inúmeras outras culturas africanas no mesmo período. 2.1 A cultura Nok Na África, arqueólogos encontraram vestígios mais antigos do uso do ferro pelos seres humanos, na região da atual Nigéria, na África subsaariana. Em um curto período, que se estendeu entre o X e o IV milênio a.C., a região que atual- mente corresponde ao Deserto do Saara experimentou uma fase de clima úmido, com uma ve- getação mediterrânea. Nessa época, populações desenvolveram agricultura, pecuária e técnicas de produção de vasilhames de cerâmica e de artefatos de pedra. A partir do IV milênio a.C. a região saariana começou a se desertificar. À medida que o deserto avançava e os rios diminuíam, a umidade da terra tornou-se insuficiente para sustentar o tipo de vegetação consumida por grandes mamíferos, afastando-os, assim como seus preda- dores. A caça e a pesca escassearam, o solo tornou-se impróprio para a agricultura e obrigou as populações a migrar: uns grupos foram para o Norte, outros para o Sul. Alguns agrupamentos humanos começaram a se formar nas proximidades das extensões de terras irrigadas pelo Rio Níger, descendo o vale e se estabelecendo em aldeias que viviam basicamente da criação de gado e da agricultura. Por volta do I milênio a.C., em algumas des- sas comunidades já havia se desenvolvido o uso de utensílios de cerâmica cozida e artefatos de pedra polida e madeira. O crescimento populacional levou à divisão do trabalho e ao surgimento das primeiras lideranças políticas. A geração de excedentes (mais produtos do que o necessário à sobre- vivência da comunidade) ocasionou a origem do comércio e as diferenças sociais. Algumas pessoas – líderes – passaram a coordenar o poder determinando as ações que cada grupo deveria desempenhar. História da África e da cultura afro-brasileira26 Na região correspondente à atual Nigéria desenvolveu-se a cultura Nok, que tem esse nome de- vido à cidade na qual se originou, onde foram encontrados vestígios do uso de ferro desde o I milênio a.C. A cultura Nok é considerada a primeira a fundir o ferro na África subsaariana. Até o momento, não há indícios de terem desenvolvido a metalurgia do cobre e do bronze – metais menos duros e fáceis de trabalhar do que o ferro. Essa região era rica em um determinado tipo de minério de ferro, que ficava exposto a céu aberto e não necessitava ser aquecido a temperaturas muito altas – como os encontrados no Oriente Médio e na Europa – para ser forjado. Esses povos podem ter desenvolvido a metalurgia do ferro sozinhos ou aprendido com os berberes, que, por sua vez, podem tê-la assimilado com os fenícios. Os berberes são povos que viviam na Região Norte da África, próxi- mos ao deserto – conhecida como Magreb – e falavam uma língua de origem afro-asiática. Os que viviam ao Norte do deserto sobreviviam da agricultura; os que viviam mais ao Sul, região mais árida, sobreviviam da criação de ani- mais nas proximidades de maciços montanhosos – onde os oásis eram mais frequentes – e eram nômades. São conhecidos por atravessar longas distâncias, cruzando o deserto com suas caravanaspor meio de carros puxados por cavalos e, posteriormente, camelos. Após sofrerem com a presença de inúmeros impérios em seu território, entre eles o macedônico e o romano, alguns se converteram à religião árabe (conhecida como islamismo) no século VIII da nossa era. Na atualidade, existem berberes que se mantêm fiéis aos ritos religiosos tradicionais e à língua antiga e vivem como nômades no deserto. A expansão agrícola gerou excedentes e centros de comércio em torno das primeiras cidades que surgiram na região da Nigéria. Entre elas, merecem destaque os aglomerados urbanos de Nok, Jenne-Jeno e Ano, atual Mali. Essas cidades comercializavam sal, alimentos e metal (ferro), mas o que chama a atenção dos arqueólogos são as impressionantes estatuetas de cerâmica. Os teóricos de arte africana costumam destacar a expressividade desses rostos, manifestada, sobretudo, no olhar. São semblantes de pessoas que chamam a atenção pela expressividade. Foram encontradas centenas delas em uma extensão que vai do Rio Níger até o Lago Chade e indicam o que pode ter sido a extensão da cultura Nok na Antiguidade. Foram datadas, aproximadamente, entre o século VI a.C. e III da nossa era. A África subsaariana: do século I ao século XIV 27 Figura 1 – Estatueta Nok em terracota M us eu d o Lo uv re /W ik im ed ia C om m on s A cultura Nok, que se desenvolveu ao longo do I milênio a.C., foi paulatinamente enfra- quecendo. Na região em que se manifestou, outras culturas a sucederam, entre elas a cultura de Ife (desenvolvida pelos povos conhecidos como iorubás), a qual muitos estudiosos acreditam ter sofrido a influência de Nok, como veremos a seguir. 2.2 Os iorubás Aspectos da cultura iorubá, oriunda da África, são traços marcantes da atual cultura brasi- leira, especialmente nos aspectos relacionados à língua e à religião. Figura 2 – Escultura em terracota da antiga civilização de Ife (atual Nigéria) M us eu d o Lo uv re /W ik im ed ia C om m on s A figura representa a cabeça de um homem, provavelmen- te um servidor real. Data aproximada: século XII-XIV da nossa era. Exposta no Museu do Louvre, na França. História da África e da cultura afro-brasileira28 Há pelo menos 6 mil anos, nas proximidades das confluências entre os rios Níger e Benué, sub- grupos linguísticos diferenciados desenvolveram-se a partir de um tronco linguístico comum – o níger congo. Entre eles, destacam-se os iorubás, que habitavam as florestas de Iorubo, desde a Idade da Pedra. No primeiro milênio de nossa era, os iorubás viviam basicamente da agricultura e da criação de animais, com destaque para a produção de dendezeiro, alguns tipos de feijões, além de quiabo, inhame, entre outros vegetais. De início, a organização social era de base familiar: viviam em vilarejos, surgidos em torno de um ancestral comum. Os chefes desses pequenos povoados eram provenientes de linhagens cuja importância social era determinada pelo grau de proximidade com o grande ancestral comum. Com o tempo, vários vilarejos se associaram em aldeias que, por sua vez, deram origem a minies- tados, cuja vinculação era a crença em um ancestral comum. Nesses miniestados, as pessoas consideradas mais importantes de cada família (linhagem) de- terminavam as funções sociais dos demais membros da sociedade e a distribuição e o uso da terra. Passaram a existir associações formadas pelos homens considerados de maior prestígio na comunidade (medidos pela riqueza material). Delas participavam aqueles que tivessem mais inhames em seus celei- ros ou mais animais em seus cercados. Essas associações passaram a escolher, entre os seus membros, uma espécie de chefe principal. Entre os iorubás, o escolhido recebia o título de Obá. Às vezes, esse era o homem mais rico de cada miniestado, riqueza que só tendia a aumentar, porque, como chefe, recebia tributos e oferendas. Sua casa ficava na parte mais importante da comunidade: o mercado – local onde eram realizadas as transações comerciais. Havia intensas trocas entre os iorubás e comerciantes de outras regiões da África. Diante da intensidade dessas trocas, a região em torno do mercado cresceu e se urbanizou. As antigas aldeias iorubás se transformaram em uma espécie de cidade-Estado1, cada uma com o seu Obá. O poder desses chefes aumentou ainda mais: em algumas cidades eram respeitados como líder religioso, uma espécie de elo entre os deuses e os homens. Para se proteger das invasões externas que foram frequentes a partir do século VIII da nossa era, foram construídas cidadelas fortificadas, muralhas e fossos ao redor do povoado. As estruturas políticas das cidades-Estado foram se transformando. As constantes investidas de povos invasores – vindos do Norte, sobretudo – obrigaram essas cidades-Estado a se unirem em uma espécie de confederação. A necessidade de se unirem para se defender, aliada à chegada de novas tradições políticas trazidas por guerreiros invasores, deram origem a uma nova estrutura de poder nas cidades ioru- bás, cuja base passou a ser uma aristocracia de origem guerreira de caráter divino, proveniente da interação entre costumes políticos locais e estrangeiros. De acordo com lendas iorubás, esses povos vieram do Vale do Nilo; outras dizem que vieram de Bagdá (no atual Iraque); outras ainda afirmam que nobres árabes não convertidos à religião 1 Por cidades-Estado entende-se reinos independentes, com estrutura militar, burocrático-administrativa e econô- mica própria, governados por líderes próprios. Em virtude das invasões estrangeiras essa estrutura foi se modificando e essas cidades-Estado precisaram se unir numa espécie de confederação. A África subsaariana: do século I ao século XIV 29 islâmica, professada pelo profeta Maomé no século VII, foram expulsos de suas terras e fundaram monarquias de caráter divino entre os iorubás2. O primeiro desses líderes, aquele que instituiu uma nova forma de ordenamento político- -religioso, foi um rei de origem lendária, chamado Oduduá. Ele se estabeleceu na cidade iorubá de Ifé, considerada sagrada para os iorubás. Os obás de Ifé tinham uma posição privilegiada pe- rante os reis das demais cidades: recebiam o título de Oni e eram considerados os descendentes de Oduduá. A citação a seguir trata a respeito de uma lenda iorubá, contando a história de Oduduá e da cidade de Ifé. Oduduá, filho e príncipe herdeiro de um dos reis de Meca, Lamurudu (ou Nimrod?), apostatara do islamismo e tentara impor o culto dos ídolos como religião do estado. A inconformidade dos muçulmanos rebentou numa guerra civil, durante a qual Lamurudu foi morto e seus filhos e aderentes expulsos da cidade. Oduduá, perseguido pelos inimigos, veio dar com dois de seus ídolos e sua gente, em Ilê Ifé, nas florestas do Iorubo, onde fundou um reino. Outra tradição, recolhida pelo erudito fula Muhammed Bello, sultão de Socotó, conta que os iorubás descendem dos banis canaãs, da tribo de Nimrod, e que, expelidos do Iraque, atravessaram o Egito e a Etiópia, até chegarem ao sudoeste da Nigéria. (SILVA, 2006, p. 479) Foi provavelmente na cidade de Ifé que se desenvolveu um mito iorubá sobre a origem do mundo, permeado por uma religiosidade cujas permanências se fazem sentir até os dias atuais nas reminiscências da cultura afrodescendente no Brasil. Leia o texto3 a seguir e saiba mais a respeito: O Deus supremo, Olorum, junto com seu filho mais velho, Obatalá, deu a Oxalá a incumbência de criar o Universo. Só que no meio do cami- nho, Oxalá sentiu sede. Exu ofereceu-lhe vinho de palmeira. Ele bebeu demais e adormeceu. Exu então levou o saco da criação, que estava aos cuidados de Oxalá, e o devolveu a Olorum, que o entregou a Oduduá, sua filha. Olorum fez descer até os pântanos que ficavam abaixo do céu uma corrente, na qual colocou um saco com um pouco de terra, uma galinha e um dendezeiro. Oduduá despejou a terra do saco da criação na terra e nela colocou o dendezeiro e a galinha. A galinha começou a ciscar a terra e espalhá-la,ampliando a terra. Segundo esse mito, assim surgiu Ifé, centro do mundo, ou, literalmente: o que se alarga. Oxalá se sentiu envergonhado por desapontar seu pai. Olurum, no entanto, reconfortou Oxalá, dando a ele a incumbência de criar os primeiros seres humanos da Terra, chamada em iorubano de Ayê. Oxalá teria modelado os primeiros seres humanos a partir do barro. 2 Para saber mais, ver Silva (2006). 3 Para ler o texto na íntegra, consulte a obra: AGUIAR, Luiz Antonio. Assim tudo começou: enigmas da criação. São Paulo: Quinteto Editorial, 2005. História da África e da cultura afro-brasileira30 Essa explicação se desenvolveu tendo a cidade de Ifé como origem do mundo. Mas entre os reinos iorubás havia uma outra cidade: Oyo. Enquanto aquela desfrutava o título de ser um centro religioso, Oyo foi se destacando como um centro comercial, suplantando, nos idos do século XV da nossa era, o poder de Ifé. Entre o Oni (rei) de Ifé e os demais obás havia uma relação semelhante à de um pai com seus filhos. As cidades eram independentes entre si, mas tinham obrigações mútuas com Ifé. Esse tipo de relação entre as cidades tem origem na própria tradição iorubá. Os iorubás eram ligados por vínculos de sangue: primeiro pertencia-se a uma família e, por meio dela, ao Estado, considerado como sua extensão. Ifé, Oyo e outras cidades iorubás eram centros de intensa atividade comercial. Além do palácio, das residências, da cidadela forti- ficada e dos templos, nessas cidades havia o mercado, centro das atividades econômicas. No mercado de Ifé, por exemplo, comercializa- vam-se produtos das savanas do Norte, do lito- ral e das florestas do Sul – inhame, peixe seco, pimenta, dendê, noz-de-cola, ouro, marfim, canoas, sal, gomas, madeira, contas de pedras, vidros coloridos e escravos. Nas cidades, os agricultores procuravam proteção diante de invasões externas. Lá tam- bém perambulavam sacerdotes, soldados e di- ferentes tipos de artífices: ferreiros, ceramistas, tecelões e escultores artistas. Aliás, as esculturas em terracota e bronze de Ifé são conhecidas por sua beleza e precisão. Os reinos iorubás mantiveram-se fortes até meados do século XVII, tendo como principal causa de sua decadência a chegada dos portugueses, que passaram a explorar essas populações, escravizando seus habitantes para o trabalho em grandes fazendas de cana-de-açúcar estabelecidas no Brasil, país no qual aportaram suas caravelas em 1500. Traços essenciais da cultura iorubana resistiram à escravidão, à colonização e à imposição do catolicismo como religião oficial do Brasil nos tempos em que foi colônia de Portugal. Nas manifesta- ções religiosas atuais, de origem afro, pode-se perceber aspectos originais da cultura iorubá, embora, devido ao contato com o cristianismo, esses elementos tenham se modificado até mesmo para pode- rem sobreviver. Os africanos eram, muitas vezes, proibidos de fazer seus cultos originais, por isso tinham de substituir entidades de origem afro por aquelas aceitas pela cultura cristã (que os portugueses impuseram aos índios e africanos no Brasil). W ik im ed ia C om m on s Figura 3 – Escultura em bronze de uma cabeça iorubá, Ife, Nigéria, século XII. A África subsaariana: do século I ao século XIV 31 Assim, surgiram religiões brasileiras, de matriz afro, nas quais santos – originariamente católicos – apresentam características e simbolismo relacionados a entidades iorubás. O candomblé é uma religião de origem iorubana que existe desde a chegada dos primeiros africanos provenientes da atual Nigéria. O culto às entidades é realizado em terreiros e por pes- soas iniciadas. Nesses cultos, os orixás, são invocados e celebrados isto é, entidades que ajudaram Olorum (o Deus supremo) a criar o Universo. Estão relacionados aos domínios de Olorum sobre o Universo e às forças da natureza. Na cultura iorubana original, eram muitos os orixás. Mas, na maioria dos terreiros de candomblé espalhados pelo Brasil, é cultuada apenas uma parte deles. 2.3 O reino de Axum Uma profunda fé na vida após a morte pode ser a explicação para as estelas – obeliscos gigan- tes (alguns com 21 metros de altura) – construídas como placas funerárias pelos axumitas em honra a chefes e soberanos mortos. Construídos há pelo menos 2 mil anos, atual- mente, além do obelisco mostrado na Figura 4, ao lado, existem mais duas estelas gigantes de origem axumita no mundo: uma também na Etiópia e outra em Roma, na Itália. Alguns chegam a pesar 200 toneladas. Eram feitos de um único bloco de pedra e decorados: em sua extensão, notam-se fileiras de janelas e uma pequena porta esculpidas. Na parte de baixo dos obeliscos há catacumbas, atestando a possibilidade de que serviam como imensas placas funerárias de túmulos ilustres. As estelas gigantes são alguns dos poucos vestígios que restaram da civilização axumita, uma das mais significativas da região da antiga Eritreia (atual Etiópia). Desde 1500 anos a.C., nessa região, nas pro- ximidades do Mar Vermelho, viviam povos camitas que se dedicavam ao pastoreio e à agricultura. A eles são atribuídas algumas das mais interessantes pinturas rupestres no norte da Etiópia. Entre as culturas por eles praticadas, destacam-se o sorgo e o milheto. Produziam artefatos em cerâmica e talvez conhecessem o cobre e o bronze, mas não há consenso entre os estudiosos a esse respeito. Por volta do ano 1000 a.C. eles já mantinham contato comercial com povos do Sul da Península Arábica, nas proximidades do Golfo de Áden, no planalto do Iêmen. Por essa razão, eram conhecidos como iemenitas. Nessa região, de planaltos elevados, os iemenitas pratica- vam a agricultura em terraços construídos nas encostas e irrigados artificialmente. Criavam Antigo obelisco construído provavelmente como manifestação da cultura religiosa dos axumitas, civilização que se desenvolveu na região do atual país da Etiópia, no continente africano. O nd ře j Ž vá če k/ W ik im ed ia C om m on s Figura 4 – Estela História da África e da cultura afro-brasileira32 cavalos, bois, cabras e camelos. Dos excedentes da produção agrícola, desenvolveu-se o comér- cio e dele originou-se uma vida urbana, centrada em vilas e cidades. Nesses locais, além do comércio de artigos de origem vegetal e animal, incenso e especiarias, poderiam ser encontra- das construções residenciais feitas de pedra e manufaturas, nas quais se produziam artefatos de metal (cobre, bronze e ferro), couro, madeira e tecido. Aprenderam a navegar pelo Mar Vermelho valendo-se do fenômeno das monções e passaram a comercializar com povos da Eritreia, de onde se abasteciam de ouro, peles, marfim e outros produtos. Entre os séculos X e VII a.C., algumas cidades iemenitas organizam-se em reinos, dos quais merece destaque o de Sabá. Nessa época, estabeleceram-se colônias comerciais do outro lado do Mar Vermelho, na região da Eritreia e do Tigré, na África. Iemenitas (de origem árabe) e camitas (de ori- gem africana) acabaram por se fundir em microestados que surgiram no atual território da Etiópia4. Esses microestados (comunidades economicamente autossuficientes e politicamente inde- pendentes) evoluíram para a condição de reinos que se caracterizaram como centros comerciais importantes. Alguns desses reinos se impuseram diante dos demais por sua importância comercial ou por serem locais sedes de importantes santuários de origem religiosa ou até mesmo por terem vencido militarmente os pequenos Estados ao redor. Não se sabe ao certo como, mas o fato é que, entre os reinos surgidos no século VII a.C., o reino sediado na cidade de Axum viria a se tornar, desde o século V a.C., o mais imponente da Eritreia e Tigré e, a partir do século I da nossa era, um dos mais importantes entre os reinos situa- dos nas proximidades do Mar Vermelho. O reino de Axum, formado a partir da confluência cultural e econômica de camitas e ieme- nitas, passou a desenvolver contatos comerciais intensos com outros reinos, entre eleso de Israel, que experimentou, ao longo do século X, uma fase de prosperidade econômica e estabilidade polí- tica nos reinados de Davi e Salomão. Na Bíblia, no chamado Livro dos Reis (BÍBLIA, 1 REIS, 2018, 10), há uma história que conta sobre a aproximação entre axumitas e judeus. Trata-se do amor entre o rei dos hebreus, chamado Salomão, e a rainha do reino de Sabá. Menelique, fruto dessa união, viria a se tornar, segundo a versão bíblica, o primeiro rei de Axum. Alberto Costa e Silva (2006) conta essa versão: Desejosa de conhecer o rei dos judeus, a rainha [de Sabá] partiu para Jerusalém, levando enorme carga de riquezas. Receberam-na com pompa e júbilo. E lá se demorou sete meses, a ver as obras de Salomão e a ouvir-lhe as palavras. [...] Do amor de Salomão e da rainha de Sabá nasceu um menino, que tomou o nome de Menelique. Ao se fazer homem, quis conhecer o pai. A rainha mandou-o a Jerusalém e com ele o pedido de que Salomão o sagrasse rei da Etiópia, a fim de romper-se de vez o antigo costume de sobre os abexins só reinarem donzelas, às quais se vedava o casamento. Salomão, que imediatamente reconhecera o filho, atendeu ao pedido e fez Menelique rei, com o nome de David. E quando [...] 4 Para saber mais a respeito, ver Silva (2006). abexins: dinastia de reis de Sabá. A África subsaariana: do século I ao século XIV 33 começou a preparar o regresso do filho à Etiópia, chamou os grandes da terra e ordenou a cada um que lhe desse o primogênito, para integrar o séquito de Menelique. Os jovens, inconformados em deixar para trás a Arca da Aliança5 [...] decidiram, em segredo, roubá-la. [...] Ao pôr os pés no Egito os fugitivos descansaram. Estavam perto da Etiópia, perto do rio Tacazé. E só então revela- ram a Menelique que tinham com eles a Arca da Aliança. [...] A fuga terminara. Chegavam, felizes, às terras da Etiópia, onde, até hoje, em cada igreja existe uma cópia em pequeno da Arca da Aliança [...]. (SILVA, 2006, p. 191-192) O reino de Axum6 estabelecia relações comerciais com o Iêmen, pelo porto de Adúlis, por onde se comercializava marfim, carapaças de tartaruga, chifres de rinoceronte, entre outras coisas, até meados do século III a.C. Nessa época, os arqueólogos localizaram modificações na cultura axumita. Na língua, na escrita e no aspecto da cerâmica, percebe-se a influência de in- vestidas comerciais realizadas pelo Egito que, nessa época, vivia sob o reinado da dinastia dos Ptolomeus, herdeiros do antigo Império Macedônico e da cultura helenística propagada por Alexandre Magno. Diante da aproximação com os egípcios, o comércio entre os mares Vermelho e Mediterrâneo intensificou-se: entre os produtos comercializados, destacam-se a obsidiana, o chifre de rinoceron- te, o couro de hipopótamo, a carapaça de tartaruga e o marfim. O uso do ferro e do bronze também se acentuou a partir desse período. Essas atividades fizeram crescer os núcleos urbanos, assim como Axum. Este, já no século I da nossa era, foi um poderoso centro comercial, atuando entre o interior da Etiópia e o Mar Vermelho e entre o Rio Nilo e o porto de Adúlis, que se tornou o mais importante daquela região, por onde circulavam vários produtos – musselina, azeite, bronzes, algodão, adagas, vidros, prata – de regiões como Síria, Itália, Índia e Egito. Por meio da análise de inscrições em túmulos de reis axumitas, nota-se que, por essa época (século I d.C.), além do guezê, língua local, difundiu-se também o grego. Axum tornou-se um cen- tro comercial cosmopolita. Povos como os judeus, provenientes da região da Palestina, começaram a chegar na região pelo Iêmen e lá se estabeleceram e difundiram sua fé, baseada nos ensinamentos dos primeiros patriarcas hebreus – especialmente de Moisés – contidos em uma compilação de livros chamada pelos judeus de Torá. A fé judaica veio se juntar aos costumes religiosos axumitas que, por essa época, já estavam bastante influenciados pela tradição religiosa iemenita. No século IV, foi a vez de monges católicos, vindos da Síria e do Egito, chegarem na região da Núbia e de Axum para difundirem a fé cristã. O rei de Axum na época, Ezana, converteu-se e tornou Axum um reino cristão. 5 A Arca da Aliança é o local onde estariam guardadas as tábuas da lei contendo os Dez Mandamentos. 6 Para saber mais sobre a história do reino de Axum e sua relação com outras civilizações que lhe foram contempo- râneas, ver M’Bokolo (2012, p. 73-106) e Mokhtar (2010). História da África e da cultura afro-brasileira34 Figura 5 – Igreja de Santa Maria de Sião, na Etiópia. A. D av ey /W ik im ed ia C om m on s A igreja foi reconstruída no século XVI, após ter sido atacada durante uma guerra santa entre cristãos e muçulmanos. Segundo a tradição cristã, em seu interior estava guardada a Arca da Aliança, retirada durante a guerra para ser guar- dada em outra capela quadrangular cuja localização exata não é conhecida. A prosperidade econômica de Axum começou a ser abalada por volta do século VIII, quan- do, em virtude da expansão islâmica, os árabes conquistaram territórios no norte da África, região da África Mediterrânea, onde atualmente ficam os países da Tunísia, Marrocos e Egito, que, con- vertidos ao islamismo, isolaram Axum, um reino que permaneceu cristão. Atualmente, poucos vestígios evocam a grandiosidade dos tempos áureos do reino de Axum. Há ruínas de aquedutos, cisternas, palácios reais e algumas estelas funerárias. Por volta dos séculos X e XI, um novo e poderoso reino surgiu na região de Lalibela, no século XII, na qual se desenvolveu o reino cristão da Etiópia, que até o século XV havia dominado toda a extensão do planalto etíope. Esse reino, assim como tantos outros, só foram seriamente abalados a partir dos séculos XV e XVI por meio das incursões marítimas provocadas pela expansão comercial de povos europeus, entre eles os portugueses, conteúdo que veremos adiante. Considerações finais Neste capítulo, estudamos sobre três reinos muito importantes que existiram na África an- tiga: a cultura Nok – mais antiga –, o reino de Axum, que atingiu seu apogeu entre o século I e o século IV da nossa era, e a cultura iorubá, a qual se manifestava em cidades-Estado, com economia dinâmica e política independente controlada por chefes com prerrogativas políticas e religiosas. A África subsaariana: do século I ao século XIV 35 O objetivo foi mostrar que na África subsaariana, ainda tão pouco conhecida e estudada pelos historiadores ocidentais, existiram reinos autossuficientes, ricos e grandiosos, altamente estruturados do ponto de vista econômico e político, complexos do ponto de vista religioso e cultural. Muitas histórias relacionadas ao imaginário religioso judaico-cristão, por exemplo a his- tória da rainha de Sabá, podem ser compreendidas em seu conteúdo histórico mediante o conhe- cimento da trajetória do reino de Axum. A difusão da forja do ferro, que muitos teóricos atribuem a povos de origem indo-europeia, como os hicsos, difundiu-se na mesma época entre os africanos da cultura Nok. Da mesma forma, elementos importantes da cultura e religião afro-brasileira, como o culto aos orixás no Candomblé, podem ser localizados em sua origem se conhecermos melhor a cultura iorubá, uma das mais ricas da África subsaariana. Conhecer o passado da África é conhecer o passado da humanidade em seus aspectos mais representativos e fundamentais. É também conhecer as raízes histórico-culturais do próprio povo brasileiro, como veremos mais adiante. Ampliando seus conhecimentos O texto a seguir traz informações sobre a forma como eram escolhidos os reis de acordo com a tradição africana dos iorubás. Note a importância que os aspectos religiosos tinham acerca da visão de mundo daquele povo e sobre a forma de sua organização política. Alguns aspectos dessa tradição, guardadas as devidas diferenças e mudanças, manifestam-se na atualidade, na cultura afro-brasileira, nos ritos e nos ensinamentos do Candomblé. O rei – como era escolhido
Compartilhar