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Doenças desmielinizantes – prof Elisson Antônio 1 Doenças desmielinizantes A bainha de mielina é uma estrutura formada pelos oligodendrócitos (SNC) e pelas células de Schwann (SNP), tendo função de recobrir os axônios e acelerar a transmissão dos impulsos nervosos. A desmielinização pode ocorrer por inúmeros fatores, como causas autoimunes, doenças infeciosas, deficiência de B12, isquemia, entre outros. De modo geral, as principais doenças desmielinizantes primárias são: esclerose múltipla, neuromielite óptica e encefalomielite disseminada aguda. 1) Esclerose múltipla A esclerose múltipla é uma doença desmielinizante crônica, inflamatória e degenerativa do Sistema Nervoso Central (SNC), com destruição progressiva da bainha de mielina. Atinge cerca de 2,5 a 3 milhões de pessoas no mundo, em que a prevalência no Brasil varia de 1 a 18 por 100.000 habitantes, geralmente na faixa etária entre 20 e 40 anos. Os caucasianos são mais frequentemente afetados, assim como as mulheres numa proporção de 2:1. Fatores de risco: suspeita-se de uma relação com a predisposição genética do indivíduo (HLA-DRB1), essa que precisa ser associada a fatores ambientais que funcionam como gatilho para uma hiperatividade imunológica - baixos níveis de vitamina D, infecção por Epstein-Baar, tabagismo, obesidade, exposição a solventes orgânicos, exposição ao sol. Fisiopatologia: a hiperatividade imunológica provoca alterações na barreira hematoencefálica, já que o processo inflamatório crônico permite a passagem de linfócitos T e B pela barreira, lesando a região de micróglia e oligodendrócitos e tendo desmielinização por destruição da barreira de mielina, fato que interrompe condução nervosa e promove perda de função neuronal. A ação das células inflamatórias é de caráter citotóxico e humoral, geralmente com lesão de substância branca e acometimento das colunas laterais e posteriores, nervos ópticos e áreas periventriculares. Quadro clínico: a EM pode se manifestar nas formas recorrente-remitente (EMRR) e na forma progressiva primária (EMPP) ou secundária (EMPS). A esclerose múltipla recorrente-remitente é a principal forma de acometimento (85%) e evolui em surtos, os quais são caracterizados por episódios de déficit neurológico subjetivo ou objetivo, com duração superior a 24 horas – pode ter perda duradoura da sensibilidade, alteração de força, redução da capacidade visual, ataxia, afasia, disartria, entre outros. Os pacientes com esclerose múltipla são sensíveis a algumas condições, então pode ocorrer alteração da função neurológica com pseudosurtos, como após exposição a calor excessivo, infecções, exercícios físicos e variações hormonais, mas esses não duram mais de 24 horas. As lesões neurológicas mais comuns no decorrer da vida do paciente são neurite ótica, mielite transversa incompleta (perda de sensibilidade e alteração de esfíncteres) e comprometimento do tronco cerebral e/ou cerebelo (alteração de par craniano associado em algumas situações). A esclerose múltipla progressiva primária (10%), ocorre de modo que, desde o início do quadro clínico tem- se uma piora gradual e contínua dos sintomas neurológicos, mais comumente em pacientes mais velhos e com comprometimento piramidal ou cerebelar – fraqueza, dificuldade de marcha e alteração no equilíbrio. A esclerose múltipla progressiva secundária se manifesta em indivíduos que iniciaram as manifestações na forma recorrente-remitente, mas depois de alguns anos a doença apresenta apenas uma progressão inexorável sem períodos de remissão – fato que gera acúmulo de sequelas. Independente da forma de manifestação da esclerose múltipla, sempre se tem comprometimento cognitivo e fadiga, geralmente por sintomas depressivos e ansiosos associados. No início pode-se ter manifestações clínicas sensitivas como dormência, formigamento, hipoestesia, além de paresias e neurite óptica (embaçamento visual associado a dor). Depois, como sintomas mais tardios tem-se perturbações intelectuais e do humor, espasticidade e alterações cerebelares. Doenças desmielinizantes – prof Elisson Antônio 2 Diagnóstico: feito por uma detalhada anamnese e um exame físico completo demonstrando déficit neurológico. Os exames laboratoriais servem para descartar outras causas dos sintomas, além do fato de que pode ser feita uma punção lombar para análise do líquido cefalorraquidiano com aumento da produção de gamaglobulinas (presença de bandas oligoclonais no LCR aponta para doença desmielinizante). Os estudos de imagem são extremamente importantes para avaliar a disseminação no espaço, principalmente a ressonância magnética de crânio com contraste, essa que permite a visualização da desmielinização e definição da forma ativa da doença se tiver captação de contraste. Algumas lesões periventriculares são específicas da EM, sendo denominadas em ‘dedos de Dawson’. O diagnóstico também pode ser feito com auxílio dos Critérios de McDonald para esclerose múltipla (2017), esses que consideram aspectos clínicos e de imagem, associados a análise do líquido com a presença de marcadores específicos. De modo geral, a disseminação é verificada em tempo (frequência dos surtos) e espaço (lesões pela ressonância). Número de surtos Número de lesões com evidência clínica objetiva Dados adicionais necessários para o diagnóstico de EM 2 ou mais surtos 2 ou mais Nenhum 2 ou mais surtos 1 lesão (desde que haja evidências claras de um surto anterior envolvendo uma lesão em localização distinta) Nenhum 2 ou mais surtos 1 lesão Disseminação no espaço demonstrada por um surto novo numa localização diferente ou RM. 1 surto 2 ou mais lesões Disseminação no tempo demonstrada por um novo surto ou RM. OU Presença de bandas oligoclonais no líquor (em substituição à disseminação temporal). 1 surto 1 lesão Disseminação no espaço demonstrada por: um novo surto numa localização diferente ou RM E Disseminação no tempo demonstrada por um novo surto ou RM OU Presença de bandas oligoclonais no líquor (em substituição à disseminação temporal) Diagnóstico diferencial: doença de Lyme, doença de Behçet, HIV, adrenoleucodistrofia, HTLV-1, esclerose lateral amiotrófica, lúpus eritematoso sistêmico, neurossífilis, leucoencefalopatia multifocal progressiva, sarcoidose, entre outros. Doenças desmielinizantes – prof Elisson Antônio 3 Tratamento: nos surtos utiliza-se pulsoterapia (metilprednisolona IV 1g/dia por 5 dias) e em casos refratários faz-se imunoglobulina intravenosa (2g/kg por 5 dias) ou plasmaferese. A forma remitente-recorrente deve ser tratada para reduzir os surtos, aumentar o intervalo entre eles e reduzir os danos causados, podendo utilizar betainterferonas ou acetato de glatirâmer. As betainterferonas inibem linfócitos Th1 e sua migração para o SNC, alteram a transcrição de receptores de interferonas, fornecem neuroproteção para as células ganglionares retinianas e estimulam a liberação de fatores de crescimento neuronal. O acetato de glatirâmer se liga às APCs e aos linfócitos induzindo uma resposta anti-inflamatória, além de aumentar a proliferação de células precursoras de oligodendrócitos. Nos casos refratários ou doenças de apresentação agressiva utiliza-se um anticorpo monoclonal recombinante denominado Natalizumabe, que age a nível de -4-integrina, reduz a entrada de linfócitos no SNC e, consequentemente a cascata inflamatória – precisa fazer pesquisa de contato anterior ao JC vírus. Outros fármacos imunomoduladores como Fingolimode, Teriflunomida e Alentuzumabe também podem ser utilizados. As formas progressivas podem ser tratadas como Ocrelizumabe por infusão endovenosa, que é um anticorpo monoclonal com função imunomoduladora, reduzindo a cascata inflamatória autoimune. Para controle dos sintomas pode-se utilizar baclofeno (10 a 20mg VO 3 a 4 vezes/dia) para espasticidade, gabapentina (100 a 800mgVO 3 vezes/dia) para parestesias dolorosas, amantadina (100mg 3 vezes/dia) para fadiga e antidepressivos. Como fatores de mal prognóstico tem-se sexo masculino, início tardio dos sintomas (>40 anos) e forma clínica progressiva. A escala expandida do estado de incapacidade (EDSS) pode ser utilizada para verificar a evolução do paciente, assim como verificar a necessidade de alteração do tratamento – quanto mais pontos na escala, pior o nível funcional neurológico do paciente. 2) Neuromielite óptica ou doença de Devic A neuromielite óptica é uma doença inflamatória, desmielinizante e autoimune, tendo alterações que atingem os olhos e a medula em um processo mais destrutivo e grave que a esclerose múltipla. A prevalência ainda é incerta, porém, no Brasil responde por 22% das doenças desmielinizantes, tendo predomínio em mulheres (4:1), não caucasianos e por volta de 30 a 40 anos. Fisiopatologia: o anticorpo específico NMO-IgG ou antiaquaporina 4 se liga à aquaporinas 4 – localizadas na pia-máter, área postrema, nervos ópticos e corpo caloso – ativa o sistema complemento e provoca deposição de MAC e liberação de citocinas. Assim, tem-se destruição de astrócitos, levando a comprometimento da barreira hematoencefálica, morte de oligodendrócitos e processo inflamatório com predomínio de neutrófilos, macrófagos, linfócitos B, eosinófilos. Doenças desmielinizantes – prof Elisson Antônio 4 Quadro clínico: tem-se perda visual bilateral além de 20/200, sintomas motores bilaterais, alterações a nível sensitivo e recuperação parcial – uma neurite óptica associada a mielite extensa. Existem algumas síndromes de espectro da neuromielite óptica, como síndrome da área postrema (vômitos ou soluços incoercíveis – seta na figura A), narcolepsia sintomática (sono involuntário) e encefalopatia (alteração do nível de consciência que pode ser associada a crise convulsiva). Os sintomas podem surgir após doença infecciosa ou estarem relacionados a outras doenças autoimunes. Diagnóstico: deve ser realizado anamnese completa e exame físico com avaliação neurológica e oftalmológica. Além disso, o diagnóstico pode ser baseado na identificação do marcador específico – anticorpo antiaquaporina 4 – com sensibilidade de 73% e especificidade de 91%. Na presença do anticorpo NMO associado a pelo menos 1 surto das síndromes clínicas e exclusão de diagnósticos alternativos, tem- se uma neuromielite óptica. Se o anticorpo NMO for negativo ou desconhecido, necessita-se de ao menos 2 características clínicas centrais, em que ao menos uma seja 1, 2 ou 3. Além disso, deve-se ter disseminação no espaço com 2 ou mais características clínicas e exclusão de diagnósticos alternativos. Na RNM pode-se ter: → Lesão extensa do nervo óptico (1/2 do nervo ou quiasma óptico) → Lesão extensa medular (3 ou + segmentos medulares de modo contínuo ou atrofia medular segmentar) → Lesão na área postrema ou periependimária do tronco cerebral Na ressonância magnética tem-se alteração de segmentos vertebrais contíguo da medula (parte branca em pelo menos cinco corpos vertebrais). Os testes de potenciais evocados da medula espinhal também podem ser utilizados. Tratamento: pulsoterapia (1g/dia por 3 a 5 dias) ou imunoglobulina intravenosa e plasmaferese em casos refratários. No tratamento preventivo pode-se utilizar azatioprina (2-3mg/kg/dia), micofenolato de mofetila (750 a 3000mg/dia), prednisona (dose inicial de 1mg/kg e diminuição até desmame ou dose resquicial) ou Rituximab. Prognóstico: a NMO é mais incapacitante que a esclerose múltipla, sendo que 50% dos pacientes apresentam grave comprometimento visual ou medular que determina grave incapacidade neurológica e 20% morrem por falência respiratória por comprometimento da medula cervical alta. Neuromielite óptica Esclerose múltipla Distribuição Nervos ópticos e medula Substância branca Intensidade dos surtos Usualmente severos Usualmente leves RM do encéfalo Normal ou inespecífica Lesões periventriculares RM da medula Lesões > 3 segmentos Pequenas lesões multifocais Bandas oligoclonais Usualmente ausentes Usualmente presentes Antiaquaporina 4 > 70% < 10% Presença de sequela permanente Após surtos Tardia Presença de doença autoimune 30-50% Incomum Características clínicas centrais 1) Neurite óptica 2) Mielite aguda 3) Síndrome da área postrema 4) Narcolepsia sintomática 5) Encefalopatia Doenças desmielinizantes – prof Elisson Antônio 5 3) Encefalomielite disseminada aguda A encefalomielite disseminada aguda é uma doença inflamatória, desmielinizante e autolimitada do SNC que afeta predominantemente crianças entre 5 e 8 anos de idade, tendo início dos sintomas, em 93% dos casos, de 2 a 4 semanas após vacinação ou infecção viral. A incidência é de 0,2 a 0,4/100.000 habitantes, atingindo ambos os sexos igualmente. Fisiopatologia: ocorre por um processo inflamatório desmielinizante e perivenular, possivelmente desencadeado por mimetismo molecular após identificação de um antígeno agressor e geração de resposta inflamatória (células atacam bainha de mielina), tendo presença de anticorpos anti-MOG em 40% dos casos. Pode ocorrer, simultaneamente, lesão periventricular, cerebelar, substância profunda, tronco cerebral, entre outros. Quadro clínico: os sintomas iniciais são inespecíficos, como cefaleia, febre, mialgia e mal estar, tendo evolução para sintomas neurológicos multitopográficos com alterações como neurite óptica, defeitos de campo visual, afasia, déficit motor e sensitivo, ataxia, movimentos anormais, paralisia de nervos cranianos, entre outros. É uma doença heterogênea, monofásica e rapidamente progressiva, tendo seu pico em 5 dias com sintomas neurológicos múltiplos associados à encefalopatia. Cerca de 25% das crianças tem evolução grave, com necessidade de internação em UTI e intubação orotraqueal. Diagnóstico: no exame clínico tem-se alterações características de um primeiro evento de etiologia desmielinizante, com sintomas neurológicos multitopográficos e lesões desmielinizantes múltiplas na ressonância magnética. A encefalopatia está associada, devendo excluir doenças sistêmicas e infecciosas. Uma vez resolvido o problema nenhum outro sintoma ou lesão ocorre após 3 meses. Tratamento: no surto faz-se pulsoterapia (metilprednisolona 30 mg/kg/dia por 5 dias) e prednisona oral por 4 a 6 semanas. Em casos refratários pode-se utilizar imunoglobulina intravenosa ou plasmaferese.
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