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Brasília, 2013 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 1 Esclarecimento A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicação os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino. Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 2 UNESCO Representação no Brasil Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar 70070-912 – Brasília/DF – Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 2106-3967 Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: brasilia@unesco.org facebook.com/unesconarede twitter: @unescobrasil Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) Rua da Ilha, 1 3000-214 Coimbra, Portugal Cátedra UNESCO Archai Universidade de Brasília Caixa Postal 4497 70904-970 Brasilia/DF Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) em cooperação com a UNESCO. Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora. © Cátedra UNESCO Archai 2013. Todos os direitos reservados. Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil Revisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO Archai Projeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil Estudos clássicos I: origem do pensamento ocidental / organizado por Gabriele Cornelli e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. 164p. – (Coleção filosofia e tradição; 1). Incl. Bibl. ISBN: 978-85-7652-182-2 1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais 5. Civilizações antigas 6. Cultura ocidental I. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III.Cátedra UNESCO Archai IV. Universidade de Coimbra Impresso no Brasil pela Annablume Editora Impresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra 4 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 4 Coleção filosofia e tradição A coleção “Filosofia e tradição” é um reflexo das atividades da Cátedra UNESCO Archai, que, desde 2001, promove investigações, organiza seminários e elabora publicações com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabalho e constituir um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento ocidental. O objetivo fundamental consiste em compreender, com base em uma perspectiva cultural, a nossa tradição, isto é, de onde viemos, para que possamos compreender nossos caminhos presentes e desejos futuros. Nesse sentido, visando a uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, os problemas que orientam as pesquisas da Cátedra UNESCO Archai são de ordem histórica, ética e política. Trata-se de uma reação ao mal-estar experimentado com a forma excessivamente presentista de se contar a história desse processo de formação, forma que pensa a filosofia como um saber estanque, independente das condições históricas que permitiram o surgimento desse tipo de discurso. A proposta de trabalho historiográfico-filosófico da Cátedra procura, portanto, lançar um olhar diferente sobre os primórdios do pensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretação éticos, políticos, artísticos, culturais e religiosos. Este trabalho dedica-se, em particular, a enraizar o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, e se contrapõe às lições de uma historiografia filosófica racionalista que, anacronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha às múltiplas e tolerantes formas do lógos antigo. A questão é politicamente relevante, 5 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 5 em virtude da influência que ainda mantém essa “narrativa” das origens do pensamento sobre a compreensão da atual epistême ocidental. De fato, na tentativa de justificar sua pretensão à verdade absoluta e universal da cultura dos vencedores, a ciência e as culturas ocidentais servem-se de um mito das origens, fundamentado nessa mesma visão presentista e asséptica da filosofia clássica. Esse mito, aliás, utiliza a diversidade da cultura ocidental em contraposição – e não em diálogo – com as outras culturas e visões de mundo que a globalização aproximou de maneira mais forte nos últimos anos. O que esta coleção deseja, portanto, é realizar um olhar sobre o passado, sobre as origens do pensamento ocidental, que se revela extremamente atual e contemporâneo. Gabriele Cornelli Editor da coleção filosofia e tradição 6 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 6 7 Sumário Apresentação ............................................................................................................... 9 Parte I: prof. dr. Delfim Leão Introdução aos estudos clássicos ................................................................................. 15 Capítulo I: Ulisses e o espírito agônico grego: o herói da imaginação, do sacrifício e do conhecimento ................................... 17 Capítulo II: Do polites ao kosmopolites ................................................................................ 25 Parte II: prof. dr. Edrisi Fernandes Origens orientais da cultura clássica ............................................................................ 35 Capítulo III: As origens orientais da cultura clássica: alguns apontamentos ............. 37 Parte III: prof. dr. André Chevitarese Cristianismo, judaísmo, helenismo ............................................................................... 78 Capítulo IV: Narrativas mediterrânicas: a busca por uma metodologia .................... 79 Capítulo V: Isaac e Jesus no contexto religioso popular judaico e cristão ................101 Parte IV: prof. dr. Gabriele Cornelli História da filosofia antiga..........................................................................................121 Capítulo VI: Platão aprendiz de teatro: a construção dramática da filosofia política de Platão ..............................................................................123 Capítulo VII: Seduzindo Sócrates: retórica de gênero e política da memória no Alcebíades platônico ...................................................................137 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 7 ____________________ 1 Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCO Archai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. 2 Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai). 9 Apresentação Prof. dr. Gabriele Cornelli1 Prof. dr. Gilmário Guerreiro da Costa2 Observamos intensa revivescência do interesse em estudos clássicos nos últimos anos no Brasil. Testemunham-no o aumento da publicação de bibliografia especializada, os diversos congressos e a oferta de cursos na área, não raro frequentados com bastante entusiasmo. Entre essas iniciativas, destacamos o I Curso de Especializaçãoem Estudos Clássicos (www. estudosclassicos.org), oferecido em 2012 pela Cátedra UNESCO Archai (www.archai.unb.br) e pelo Núcleo de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília (NEC/CEAM), de acentuado teor interdisciplinar, como convém à natureza do seu objeto, e que teve a participação de destacados professores brasileiros e portugueses. O sucesso do projeto convenceu-nos a tornar disponíveis, nesta importante coleção “Filosofia e tradição”, os textos principais de suas aulas, o que faremos em três volumes, a começar por este que aqui apresentamos. Este primeiro número compõe-se de quatro partes. Abre com uma introdução aos estudos clássicos, escrita pelo prof. dr. Delfim Leão, da Universidade de Coimbra, Portugal. Sua opção não poderia ser mais apropriada: Homero. Mais especifi- camente, uma reflexão acerca da figura de Ulisses, mormente em suas relações com o espírito agônico grego. Na preparação do argumento, o autor sublinha a centrali- dade da obra homérica no âmbito dos estudos clássicos, um traço para o qual deve Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 9 atentar quem deseja aprimorar-se nesse campo de investigação. Sua presença imiscui-se nos mais diversos estratos da cultura grega. Em seguida, ocupa-se, em uma passagem sensível e inteligente, dos quatro primeiros livros da “Odisseia”, a Telemaquia. O cerne de sua tessitura, segundo o prof. Delfim, reside na luta de Telêmaco pela constituição da sua identidade como filho de Ulisses. Aproveita para relacionar semelhante busca com a necessária visada na identidade de um povo e de uma civilização, base de autoconhecimento, com os olhos voltados para o passado, e de confiança na prospecção do futuro. Vemo-nos, então, inseridos no estudo da figura de Ulisses. Ressalta-se a fina astúcia e a capacidade diplomática do herói grego, com as quais pode bem haver-se em situações as mais difíceis e delicadas. Essa tonalidade épica não retira do herói as marcas de uma existência sofredora, exposta a muitos riscos e perigos. E, em tudo isso, perpassa o desejo de retornar à terra natal, a Ítaca, matriz da dor com que Homero não hesita em tingir aspectos da sua personagem. Os grandes feitos se matizam com as cores da nostalgia. Ainda na primeira parte, temos outro texto do prof. Delfim, “Do polites ao kosmopolites”. Nele, esclarece-se o contexto em que emerge a liderança macedônica na Grécia Antiga, inicialmente sob a égide de Filipe II e, após o seu assassinato, mediante um complexo jogo político, sob Alexandre Magno. Resulta desse processo uma importante mudança no status social e político: a passagem de uma orientação centrada na pólis, com a pretensa separação dos outros povos, ditos bárbaros, para um ambiente de intensa miscigenação, que fará derruir as barreiras que se acreditavam discerníveis entre nós e os outros, os bárbaros. Agora, a história grega encaminha-se para uma feição mais cosmopolita. Essa passagem é ricamente ilustrada pela análise atenta e erudita dos pormenores institucionais da administração macedônica, crucial para que não exageremos em tributar os feitos tão somente ao talento inegável de Filipe II e de Alexandre. Igualmente, o sucesso dessa empresa se relaciona ao fato de que, em um gesto aparentemente paradoxal, à centralização se articula um movimento marcado pela multiplicidade étnica e pela expressão cosmopolita. A segunda parte ocupa-se das origens orientais da cultura clássica. Seu autor é o prof. dr. Edrisi Fernandes, pós-doutorando da Universidade de Brasília (UnB) que, em um tour de force incansável, alia rara erudição e sensibilidade no exame de elementos não raro negligenciados nos estudos clássicos. Com farta coleta de materiais e análise percuciente, demonstra provirem do Oriente estruturas e traços 10 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 10 constitutivos da cultura clássica. Sem que se negue relativa originalidade ao desenvolvimento da Grécia Antiga, o autor demonstra, com razões bastantes, ser duvidoso o assesto de uma originalidade absoluta nesse percurso, em função dos dados históricos de que passamos a dispor nas últimas décadas. De fato, a própria identidade grega antiga está longe de ser pacífica, mesmo para os homens da sua época, que partilhavam da sua língua e cultura. Também é problemática a identidade oriental, que decorre de uma imagem ocidental do seu outro, o Oriente. Além disso, tornando-se ainda mais complexas essas relações, trai certo teor irônico a demonstração de que o próprio termo Europa tem procedência oriental. Começamos, assim, a montar um quadro crítico que devemos considerar referencial para quem deseja dedicar-se aos estudos clássicos, sem “levar água para o moinho” das mais diversas armadilhas ideológicas, sem maravilhar-se ingenuamente com a aventura do Ocidente, à mercê de justificativas sub-reptícias do domínio colonialista europeu que maculou parte considerável da história nos séculos XIX e XX de nossa era. Entretanto, há algo mais nessa argumentação. Divisamos sua riqueza, em um gesto de re-conhecimento de uma cultura a partir do diálogo com o outro. Conforme expressou o poeta Joseph Brodsky, em um aforismo admirável no qual saúda a beleza do exercício da intertextualidade: “Quanto mais endividado, mais rico é o artista”. Longe de indicar o desencantamento da cultura grega, o trabalho paciente do prof. Edrisi nos desvela estratos mais profundos a serem devassados, perante os quais a admiração alia-se a um espírito grato e atento à multiplicidade dos planos. Nesse sentido, é um verdadeiro coupde maître o argumento desenvolvido na seção “A época orientalizante da Grécia”: desdobram-se diversos estratos orientais na cultura grega, a partir do século VIII a.C. Esse diálogo, longe de episódico, perpassa diversos setores da vida grega, desde os institucionais até os mais cotidianos. O acume da argumentação emerge do exame das origens da filosofia. Em oposição, duas teses: uma helenocêntrica, que julga ser o pensamento filosófico resultante das forças próprias do gênio grego, verdadeiro “milagre” desse povo; a outra, orientalizante, que prupugna pela demonstração da inexistência de elementos originais gregos nesse processo. Colocadas as limitações e as dificuldades de ambas as posições, será outra a via do autor: a afirmação da inventividade helênica no desenvolvimento da filosofia, sem, no entanto, pagar tributo a qualquer forma de etnocentrismo. Talvez viesse a existir filosofia sem os traços orientais, porém tratar- se-ia de algo bem diverso do que conhecemos atualmente. Menos endividada, mas substancialmente mais pobre. 11 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 11 Na terceira parte, subdividida em dois capítulos, o prof. dr. André Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), dedica-se a um estudo das relações entre cristianismo, judaísmo e cultura clássica. No primeiro, esclarecimentos metodológicos acerca das vias mais consistentes de realização de trabalhos comparativos entre documentos. Ao autor, parece razoável supor que diversas histórias bíblicas, em especial do Novo Testa-mento, serviram-se de convenções e de modelos literários disponíveis no Mediterrâneo Antigo. Examina com vagar uma conhecida passagem da I Epístola de Paulo aos Coríntios, 12:12- 27, na qual se estabelece a compa-ração entre o corpo humano e a Igreja. Seu núcleo faria pressentir o receio de fragmentação do cristianismo, já em seus movimentos iniciais na história. A isso se contrapõe a imagem do corpo, garantia de uma unidade que parece necessária ao escritor da carta. No exame de construções textuais anteriores a Paulo, que se serviram, com intuito semelhante, da metáfora do corpo – para se contrapor a um quadro iminente de fragmentação –, o autor chega a Dionísio de Halicarnasso e a Tito Lívio. As semelhanças são consideráveis, resultado que tem o condão de vincular o texto paulino ao seu contextomediterrâneo. É certo que todo exercício comparativo não pode descurar os planos de diferenças entre os materiais estudados. No entanto, o trabalho do prof. André desdobra, para os seus leitores, um quadro rico desse movimento de entrelaçamento cultural que subjaz à escrita de muitos textos do Novo Testamento. Outros exemplos se sucedem, com igual mostra de rigor e de erudição, deles emergindo questões incontornáveis no âmbito dos estudos referentes ao cristianismo antigo. O outro capítulo oferece uma análise comparativa de versões variadas do sacrifício de Isaac, iniciando-se com a narrativa de Gênesis, 22:1-19. O passo seguinte será articular esse texto com obras de outros três autores judeus do século I: o autor do livro de Macabeus, Josefo e Pseudo-Fílon. O intento será o de demonstrar que, neles, operou-se uma atualização do passado com vistas às demandas interpretativas do tempo presente, mediante o que o autor chama de ato de historicização da exegese. Neles se evidencia, no martírio de Isaac, um modelo para a situação de fragilidade enfrentada pelos judeus nessa época, quando muitos dentre eles foram mortos; e na libertação de Isaac, pela intervenção de Deus, a fé de que, por vias misteriosas, Deus os assistia em todos os momentos. Avançando um pouco mais, esse quadro parece também haver servido de modelo para escritos acerca do sacrifício de Jesus. Seja pela proximidade no tempo e no espaço, seja devido a procedimentos de historicização semelhantes aos operados pelos autores judeus, os cristãos moveram os fios de uma 12 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 12 revivificação da história a partir do apelo dos desafios contemporâneos. O prof. André detém-se especialmente em escritos de Clemente, os quais contribuem para a construção de Isaac como mártir. O desfecho do capítulo oferece uma rica análise iconográfica: compara duas figuras produzidas entre os séculos II e IV, e o texto do Gênesis. Evidenciam-se duas diferenças: no relato bíblico, Isaac era um menino, na imagem, um adulto; nesta, estava desamarrado, naquele, amarrado. A conclusão do autor é a de ser esse material iconográfico mais afim a escritos judaicos tardios do que à própria narrativa bíblica, demonstrando, assim, a hipótese da historicização exegética a que se relaciona a atualização hermenêutica da figura de Isaac no interior das comunidades judaicas e cristãs analisadas com apuro neste capítulo. Esse percurso ressalta, para o seu autor, o caráter rico e variado da interpretação da experiência cristã em suas origens. Chegamos, então, à última parte, a cargo do prof. dr. Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília. Oferece-nos dois capítulos, por meio dos quais nos introduz em vias importantes da inesgotável história da filosofia antiga, em geral, e da filosofia platônica, mais especificamente. Inicia-se com a discussão de um aspecto que tem sido amiúde motivo de perplexidade entre os leitores do mestre grego: sua configuração dialógica, de teor acentuadamente dramático; ele urde vestígios trágicos e cômicos em sua tessitura teatral. Relatos antigos, entre os quais desponta, por sua influência, o de Diógenes Laércio, informam que Platão, em sua juventude, dedicava-se à escrita de poemas trágicos. Após encontrar-se com Sócrates, abandona a arte antiga e passa a votar-se exclusivamente à filosofia. Coerente com esse percurso, seriam as muitas críticas dirigidas à tragédia em sua obra. Uma análise mais atenta da obra platônica, no entanto, lança dúvidas consideráveis acerca de uma recusa inabalável da tragédia por parte do filósofo grego. Antes, será precisamente no aprendizado dialético da crítica à tragédia que Platão repensará suas concepções antropológicas e políticas, chegando ao que o prof. Gabriele chama de “a alma trágica da cidade”. Os impasses a que essa interrogação filósofica chega, na forma da sua exposição e na compreensão da alma humana, reencenam, no âmbito do logos, as contradições bem conhecidas do teatro trágico. O último capítulo inicia-se com uma epígrafe retirada do romance “Summertime” (“Verão”), de John Maxwell (J.M.) Coetzee, a que se seguem observações em torno dos seus estratos platônicos. Fiam-se elementos que sustentam o esforço de trabalho comparativo entre essa narrativa e o trato ficcional dos diálogos platônicos. Esse veio rico entrelaça-se com o cerne argumentativo do capítulo, que reside em uma investigação em torno da figura de Alcebíades no “Banquete”, de Platão. Uma 13 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 13 dupla hipótese orienta o trabalho: o diálogo platônico serve-se de uma retórica de gênero, com que pretende sublinhar o caráter desviante e sexualmente irrefreável de Alcebíades, em uma linha em que se evidencia a função de eros e de paideia na tessitura dramática do texto; a segunda hipótese é a de que se estaria, no diálogo, buscando uma intervenção política na memória de Sócrates, com vistas a defendê- lo de Alcebíades, cuja ação política se afigurava a Platão temerária e prejudicial à imagem do seu mestre. Tratar-se-ia, destarte, de uma apologia par excellence de Sócrates. Não obstante, não se descura no texto da possibilidade de se remeter, ao próprio escritor do diálogo, a crítica que dirige a Alcebíades: não estaria também Platão, com notável brilho artístico e filosófico, buscando salvar para si a imagem de Sócrates ao abrigo de qualquer narrativa concorrente? E tal não se assemelha à imagem de um amante zeloso? É um percurso que pretende abarcar aspectos importantes da compreensão desse diálogo, e bem pode abrir diversas sendas de pesquisas futuras. O curso que então oferecemos inicia-se, dessarte, com a passagem para o âmbito cosmopolita na história grega; encaminha-se para uma análise cuidadosa da constituição heterogênea da cultura clássica, com o tributo que paga aos seus hóspedes e hospedeiros orientais; lida com a diversidade nas abordagens do cristianismo antigo e encerra-se com a articulação entre ficcionalidade, eros e paideia na elaboração do “Banquete” platônico. Em tudo isso, insinua-se o desejo de conduzir semelhante estudo ao nível interdisciplinar e multiétnico que o distingue. É, da mesma forma, um esforço de revisitação necessariamente crítica e generosa do caráter vivo e plural da nossa tradição. 14 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 14 Prof. dr. Delfim Leão Universidade de Coimbra (UC) Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 15 ____________________ 3 Extrato da comunicação oral apresentada no Teatro Nacional de São João, Porto, em 2011. 17 Capítulo I Ulisses e o espírito agônico grego: o herói da imaginação, do sacrifício e do conhecimento3 O convívio com Homero começou quando ainda eu era adolescente, ou antes disso, mas o passo mais sério foi dado na faculdade, naturalmente porque sou formado na área de estudos clássicos. Tenho, aliás, o gosto de partilhar a mesa com uma das pessoas que, precisamente, ajudaram-me a abrir os olhos para o deslumbramento do texto homérico: a doutora Maria do Céu Fialho, que, na cadeira de literatura grega, lecionava Homero no original. De resto, guardo bem presente na memória um trabalho que, na altura, apresentei sobre o Canto VI da “Odisseia”, que tem a ver com a chegada de Ulisses à terra dos Feaces, em especial o encontro notável entre ele e Nausícaa, uma jovem que permanece no imaginário posterior como exemplo de frescor e de juventude, de uma mulher interessante, embora discreta e de alguma forma também injustiçada; isso porque se produz nela a expectativa, indiretamente alimentada pelo próprio Ulisses, de que aquele belo homem desconhecido pudesse vir a desposá-la. Embora nós desconheçamos o real sentimento de Nausícaa e a maneira como teria reagido à partida de Ulisses, o certo é que pressentimos o desencanto que poderia ter experimentado ao ver frustrada a sua expectativa de jovem princesa e donzela.Porém, Ulisses tem de partir, porque a “Odisseia” é essencialmente um poema de nostos, de regresso, e acerca do sofrimento que a ânsia pela viagem de regresso provoca – a tal nostalgia ou Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 17 saudade, para utilizarmos um termo de tonalidades mais claramente lusófonas. Com efeito, a necessidade de regressar ao lar é de fato imperiosa, bem como a ideia de fidelidade. É a fidelidade à expectativa de retomar a Ítaca, de onde havia partido 20 anos antes, mas também fidelidade a uma mulher especial, Penélope, que soube esperar por Ulisses e que partilhava com ele, de resto, marcas de um tipo de excelência particular que se traduz em habilidade, em audácia, em uma capacidade para recorrer, de certa forma, a artes performativas – e podemos, nesse contexto, utilizar aquela expressão com total propriedade – para saber dilatar o tempo enquanto aguardava o ansiado regresso do marido. Refiro-me obviamente ao bem conhecido episódio da teia, da malha que ela ia tecendo durante o dia e que desfazia à noite, precisamente para adiar o momento em que teria de escolher um dos pretendentes que iria substituir Ulisses no seu leito e no trono de Ítaca. Falar da “Odisseia”, falar de Ulisses, é obviamente evocar um texto fundacional, que não está isento de problemas. A chamada “questão homérica” motiva, desde a Antiguidade, uma acesa discussão, relativa quer à própria identidade do autor da “Odisseia”, quer às técnicas utilizadas na composição da obra. Contudo, à parte essas e outras minudências filológicas, há um aspecto em relação ao qual todos estão dispostos a concordar: é que os poemas homéricos (a “Ilíada” e a “Odisseia”) são o primeiro grande monumento literário da cultura ocidental, cuja importância e influência – em particular a da “Odisseia” – somente será comparável talvez à exercida pela própria Bíblia; esta não é propriamente um livro, mas, como o próprio nome indica, um conjunto de pequenos livros e, em todo caso, uma obra de natureza bastante diferente. Ora, já que o contexto em que estamos a falar tem a ver com as artes do espetáculo, talvez pudéssemos começar por expandir a questão da natureza performativa, quer da atuação de Ulisses quer da própria construção da “Odisseia”. Antes de mais nada, porque os poemas homéricos – que ocupam dois grossos volumes na tradução que o nosso colega Frederico Lourenço fez para a Editora Cotovia – não foram compostos para serem lidos, como nós fazemos hoje em dia, mas antes são obras criadas para serem proferidas, recitadas, ou se quiserem, para serem representadas. Essa dimensão performativa dos poemas homéricos marca profundamente as estratégias discursivas adotadas e o tipo de linguagem utilizada, ajudando a explicar inclusive algumas falhas aparentes que os antigos já detectavam. Com efeito, o poeta latino Horácio, na sua “Arte poética”, comenta com saborosa ironia: “quandoque bonus dormitat Homerus” – que, em uma tradução 18 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 18 despretensiosa, poderíamos fazer equivaler a “quando o bom do Homero passa pelas brasas” ou “quando o bom do Homero dormita”. Por que faria Horácio esse comentário? Porque quer dar a impressão de que, de vez em quando, há erros que Homero deixa passar, não se apercebendo de certas contradições que os seus poemas conteriam. E, se isso é válido em parte para a “Ilíada”, o é em especial para a “Odisseia”, por razões que se prendem à própria macroestrutura da obra, como se verá adiante. Quando se pensa em um público ouvinte, e não em uma comunidade de leitores, a “Odisseia” tem, de fato, uma enorme capacidade para envolver o auditório em toda uma trama de aventuras que servem de pano de fundo à atuação de Ulisses. A “Ilíada” é, pelo contrário, muito mais centrada em um assunto concreto, a Guerra de Troia e, por isso, talvez seja menos interessante para o público atual, que não seria tão sensível à beleza de longas descrições de cenas de batalha, de armas etc. Porém, do ponto de vista da arquitetura narrativa, a “Ilíada” é talvez um texto ainda mais notável do que a “Odisseia”, pela forma como os episódios se agrupam em torno de um claro motivo central. A primeira palavra que nos aparece na “Ilíada” é menis, que significa ira, em grego, a cólera de Aquiles, que constitui o primeiro motor de tudo o que vai acontecer nessa epopeia. Ora, do ponto de vista da construção de uma obra, é admirável que um criador chamado Homero – ou alguém com outro nome, porque não sabemos ao certo se de fato Homero chegou a existir, e se é mesmo o autor dos poemas que lhe são atribuídos pela tradição – tenha conseguido dar a forma final a um poema que, do ponto de vista estrutural e diegético, apresenta-se extremamente bem realizado. No caso da “Odisseia”, nós detectamos mais facilmente a presença de certas contradições internas, e isso talvez se deva explicar pelo fato de os poemas homéricos serem herdeiros de uma duradoura tradição oral que, com o devido treino e dedicação, permitia a alguns artistas mais dotados recitar longas composições, sem o auxílio da escrita, durante horas seguidas, pois seria esse o tempo necessário para percorrer com voz sonora uma obra com a extensão da “Ilíada” e da “Odisseia”. Naturalmente que, para poderem recitar poemas tão longos, eles tinham de aprender técnicas de memorização, deviam ter capacidade de improvisação, e também abertura para recorrer a textos que já circulavam antes em uma tradição oral comum, na qual a noção de autoria estava obviamente muito diluída. Portanto, algumas incongruências que nós possamos encontrar, em particular na “Odisseia”, podem justificar-se facilmente dessa forma, mas sem que essas falhas de pormenor atentem, de forma séria, contra a qualidade excepcional da obra produzida. 19 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 19 Os gregos antigos diziam que Homero era o verdadeiro educador da Grécia. O que isso significa? Antes de mais nada, certamente que, na educação dos jovens, as obras de Homero detinham um papel fundamental. No entanto, a sua influência tutelar ia muito além disso: Homero funcionou como um verdadeiro paradigma de referência para grande parte da produção literária e cultural posterior. Essa afirmação pode parecer, à primeira vista, um exagero, mas quem trabalha na área dos estudos clássicos, no mundo da história e da filologia, sabe perfeitamente que é muito difícil falar seja de que assunto for, relativo à Antiguidade Clássica, sem começar por “beber” alguma informação em Homero. O vate por excelência era, de fato, o educador dos antigos, mas a verdade é que continua a ser o patrono maior dos estudos e das reflexões que se possam fazer sobre essa mesma área do saber. Colocadas as coisas nesses termos, será mais fácil compreender a natureza fundacional dos poemas homéricos, e da “Odisseia” em particular, característica que faz com que essas epopeias, o imaginário que as acompanha e as figuras que nelas são retratadas assumam o estatuto de modelo. De resto, uma parte importante da educação na Grécia Antiga passava pela compreensão da essência da ética operativa por trás desses mesmos paradigmas, procurando transpô-la para a formação das pessoas, para o seu comportamento. Não surpreende, por conseguinte, que essa influência de Homero tenha se expandido e cristalizado, a ponto de não se entender totalmente o teatro, a literatura e a cultura gregas em geral, bem como boa parte da cultura latina e da própria recepção dos clássicos, sem Homero, porque, de fato, nele encontramos fios de reflexão extremamente fortes e eternamente plásticos, que motivaram múltiplas criações. É por isso ainda que, a partir dos traços do Ulisses homérico e de todos os outros heróis que são retratados na “Odisseia”, temos outras versões que foram se expandindo, em sentidos vários, a partir dessas premissas iniciais, alimentando assim um universo heróico e mítico que não parade se enriquecer. Há pouco, eu dizia que a “Ilíada” começava pela palavra menis, a cólera ou a ira de Aquiles, e que as tensões decorrentes dessa menis justificavam toda a estrutura de base da “Ilíada”. Ora, a palavra que inicia a “Odisseia” é outra, aner, que significa homem. Por conseguinte, a “Odisseia” está centrada em uma figura, em uma pessoa, circunstância que justifica, aliás, o próprio nome da epopeia: Odisseia provém de Odysseus, portanto, a “Odisseia” é a saga do regresso de Ulisses, o relato de todas as aventuras por que ele passou até conseguir finalmente retornar a Ítaca. Ainda assim, embora a “Odisseia” seja centrada em Ulisses, os quatro primeiros cantos da obra não são ocupados com ele, mas antes com o seu filho, Telêmaco; 20 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 20 daí que desde a Antiguidade exista a tendência de considerar essa primeira parte da “Odisseia” como sendo uma espécie de um quase poema à parte, geralmente conhecido por “Telemaquia”. A discussão desse problema poderia ocupar-nos por muito tempo, mas talvez o mais interessante agora resida em um aspecto aparentemente marginal: Telêmaco não conhecia o pai, ou pelo menos não o conhecia bem, pois o que sabia de Ulisses provinha daquilo que a mãe, Penélope, dizia a respeito dele. Por isso, essa vontade que Telêmaco tem de ir à procura de Ulisses será em parte infrutífera, pois ele só se avistará com o pai quando estiver já de regresso a Ítaca, mas permite-lhe ainda assim encontrar a imagem, a lembrança que outros heróis, seus companheiros de luta em Troia, guardavam efetivamente de Ulisses. Esse pormenor é essencial para um ponto que me parece igualmente importante: a noção da salvaguarda da identidade, tema que me proponho a abordar de forma breve, em seguida. Telêmaco é ainda um jovem e, ao longo da “Odisseia”, assistimos à sua passagem de adolescente para adulto, afirmando-se como uma pessoa capaz de substituir Ulisses à frente dos destinos de Ítaca, quando fosse necessário. Porém, para se definir verdadeiramente como pessoa, não lhe basta ser Telêmaco, ele deve ser Telêmaco, o filho de Ulisses, de maneira que, para compreender bem a sua identidade, ele deve conhecer melhor a pessoa de quem deriva, Ulisses. Daí que seja tão importante que ele passe por Pilos e por Esparta, que entre em contato com personagens como Nestor, Menelau e a própria Helena, para ouvir da boca dessas personalidades heróicas que haviam escapado da Guerra de Troia o relato, em primeira mão, das qualidades que distinguiam o pai. Quanto mais enaltecido fosse o pai, a base da qual ele se desenvolvera, maior seria também a sua valorização como filho. Essas reflexões remetem-nos, naturalmente, para a importância de conhecer a nossa identidade, as nossas raízes, como uma forma privilegiada de valorizar aquilo que somos como pessoas, como povo, como cultura e como civilização. É significativo notar, igualmente, que, ao longo dessas deambulações em busca do pai, Telêmaco acabe por entrar em contato com figuras da “Ilíada”, que encarnam em si mesmas paradigmas existenciais distintos. Ele encontrou, por um lado, o velho Nestor, um guerreiro que representa um tempo quase pretérito, outra fase da existência heróica, mas que continua ativo e capaz de manter a boa ordem; por outro lado, encontra também Menelau, o esposo legítimo de Helena – a mulher cuja beleza motivara o rapto empreendido por Páris e o tumulto da Guerra de Troia, mas que havia finalmente recuperado a harmonia do lar legítimo. Ora, é interessante constatar que Telêmaco ouve de todas essas figuras palavras de apreço 21 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 21 em relação a Ulisses, sendo que as duas últimas fazem comentários particularmente significativos: Helena, com a natural intuição feminina, reconhece nele os traços físicos do pai, ou seja, reconhece em Telêmaco a projeção natural das qualidades que Ulisses representa; por outro lado, ele ouve Menelau falar do estratagema do cavalo de madeira, o chamado Cavalo de Troia. Porque, na verdade, esse estratagema, que permitirá pôr termo à Guerra de Tróia, foi inventado por Ulisses, mas somente na “Odisseia” ouviremos falar dele, pois a “Ilíada” termina com o apaziguamento da cólera de Aquiles, e, portanto, antes do término do conflito que opunha gregos e troianos. Ou seja, conjugando as observações de Helena e de Menelau, Telêmaco passou a conhecer melhor as suas potencialidades como filho de Ulisses, tendo assim condições para alimentar a expectativa de vir a praticar feitos igualmente dignos de nota. Da mesma forma, uma civilização que não tenha consciência do seu passado, das suas raízes linguísticas, do seu patrimônio cultural, em suma, da própria natureza matricial, não pode, obviamente, ter futuro, pois está condenada a vagar em uma constante deriva identitária. Já a “Odisseia” nos leva a compreender essa realidade, ao fazer Telêmaco sair de Ítaca – em busca do pai e em busca do seu lugar na aventura do conhecimento. Por fim, além de herói da imaginação, Ulisses é igualmente o herói do conhe- cimento, qualidade que nele assume uma forma de concretização muito especial. Com efeito, o valor mais cultivado pelo herói homérico é a noção de excelência (arete, em grego), um conceito que se traduz, na prática, na forma como cada guerreiro se distingue no campo de batalha e no uso hábil que faz da palavra, quando se encontra reunido com os seus pares. A esses atributos, que marcam todos os grandes guerreiros, tanto do lado grego como do lado troiano – o tratamento positivo de Heitor é o exemplo máximo da imparcialidade de Homero –, Ulisses vem acrescentar a astúcia, visível tanto na destreza diplomática como na capacidade para deslindar situações difíceis. É isso que justifica o seu epíteto específico de “herói dos mil artifícios” (polymetis ou polymechanos) ou, para dizer de outra forma, o que faz dele a ilustração mais paradigmática dos poderes da imaginação, da capacidade inventiva, de uma diplomacia intuitiva. É isso, também, que torna a “Odisseia” a grande precursora de todo o tipo de literatura de viagens e de aventuras, bem como um primeiro exemplo prático de sutileza política que é raiz da futura afirmação da cidadania. No entanto, a epopeia homérica constitui ainda, como se dizia anteriormente, um poema de saudade (de nostos), como expressão de um desejo imenso de regressar 22 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 22 à segurança de Ítaca, ao ponto de partida. Assim, a mesma imaginação fulgurante que torna Ulisses a encarnação da curiosidade e do espírito agônico característicos da mentalidade grega – e, por extensão, do ser humano em geral –, comporta de igual modo um processo de sujeição ao perigo, pois a aventura do conhecimento pressupõe sempre uma exposição aos riscos da incerteza, à experiência do sofrimento vivido. E, de novo, o paradigma homérico se revela esclarecedor: Ulisses, o inventor dos mil expedientes, é também o “herói que muito sofreu” (polytlas), pois não hesitou em aceitar novos desafios, mesmo que deles viesse a resultar um prejuízo pessoal imediato, mas que o tempo saberia compensar, permitindo assim que a odisseia do progresso civilizacional continuasse a compor novos capítulos da história da humanidade. 23 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 23 Capítulo II Do polites ao kosmopolites A Grécia do século IV a.C.: crises de liderança e declínio da pólis Na sequência do desfecho da Guerra do Peloponeso, a passagem para o século IV a.C. é acompanhada, na Hélade, por um período de predominância de Esparta. No entanto, logo a partir de 394, aproveitando a oportunidade fornecida pela Guerra de Corinto, Atenas procura recuperar um pouco da influência perdida e aliar-se a outras cidades contra a prepotência em que degenerara a hegemonia espartana. Esses esforços levariam à criação, em 378-377, da Segunda Confederação.Motivados talvez pela preocupação de evitar o ressurgimento do imperialismo ático, que levara à Guerra do Peloponeso, o certo é que alguns dos aliados começaram a exprimir a vontade de se libertarem da influência ateniense, sobretudo depois de Esparta ter sido derrotada, na Batalha de Leuctras, em 371. Com a revolta de várias das principais cidades da Confederação, em 357, tem início a chamada Guerra Social, terminada em 355 com a intervenção persa. Para Atenas, isso significou o fim da tentativa de restauração imperialista, bem como de um modelo de diplomacia externa e de relacionamento entre cidades-Estados que marcara grande parte do mundo grego no tempo de Péricles. Por outro lado, essa incapacidade – tanto de Atenas como de Esparta – de se manterem como centros de bipolarização política permitirá a ascensão de outras pólis (como Corinto e Tebas) e, em particular, a supremacia da Macedônia que, de região marginal da Hélade, considerada por 25 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 25 ____________________ 4 Para uma análise da evolução da agenda política de Alexandre e da forma como ele conduziu as suas campanhas, ver Leão (2005). 26 muitos gregos uma antecâmara da própria barbárie, transformar-se-á no grande centro de comando. A hegemonia macedônica deve-se, em primeiro lugar, a Filipe II, que, em uma série de hábeis intervenções nos assuntos internos das cidades gregas, acaba por ser admitido no Conselho Anfictiônico (346) – o que, do ponto de vista diplomático, equivalia a reconhecer-lhe formalmente uma importante capacidade de influência no mundo helênico – e fundar a Liga de Corinto (338), na sequência da vitória de Queroneia, que correspondeu, na prática, à conquista da Grécia pela Macedônia. Filipe é assassinado pouco depois (336), em uma altura em que preparava a invasão da Pérsia, aparecendo como chefe natural (hegemon) à frente de uma coligação pan-helênica liderada pela Macedônia. A morte violenta de Filipe não vai impedir a realização dessa campanha, que será levada a cabo pelo filho e da qual advirão consequências determinantes para todo o mundo antigo. O Império de Alexandre Magno significará não apenas o fim da pólis – um sistema de vida autônomo que caracterizara a Hélade nos séculos anteriores –, como também a criação de uma nova ordem, na qual a tradicional oposição entre gregos e bárbaros perderá terreno face a um processo de fusão étnica e cultural; ademais, nessa nova ordem, o particularismo da pólis, que exigia o envolvimento direto de cada polites na condução coletiva dos assuntos do Estado, será substituído pelo individualismo resultante da diluição das responsabilidades pessoais na realidade emergente dos reinos helenísticos.4 Os reinos helenísticos: do polites ao kosmopolites 1. O legado macedônico Entre 336 (ano da morte do pai, Filipe II) e 323 a.C. (quando sucumbe à doença, por razões ainda hoje abertas a alguma especulação), Alexandre irá conquistar um império imenso, que ia desde a Europa até a Ásia profunda, englobando também o nordeste africano e boa parte da bacia do Mediterrâneo. Tendo vivido pouco mais de 30 anos, é provável que o macedônico tenha deixado por cumprir outros projetos que traria no pensamento, entre os quais se inclui a hipótese de expandir as conquistas para oeste, se bem que não é possível afirmar com segurança que ele procurava criar um império universal. Essas e outras questões permanecem em aberto: embora Alexandre estivesse rodeado de cronistas e de historiadores oficiais que poderiam ter feito um registro bastante fiel das suas façanhas e intenções, a Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 26 27 preocupação de agradar o monarca, bem como o processo de amplificação e de quase adoração a que foi sujeita a imagem do soberano acabaram por obscurecer múltiplos aspectos da sua atuação. Ainda assim, alguns fatos são indiscutíveis, como a sua genial capacidade militar, sua invulgar sagacidade política e ainda sua liderança forte e carismática. Embora excepcionais, essas qualidades não evitaram que enfrentasse duras provas para manter sob controle o enorme império conquistado, como ilustram as contrariedades e os levantamentos com que teve de lidar dentro do próprio exército. Em todo caso, Alexandre marca o final de um período e lança, claramente, as fundações para a Época Helenística, uma era profundamente rica do ponto de vista econômico, científico e cultural, que desaparecerá à medida que for avançando a fusão com a nova potência que vai se agigantando a oeste: Roma. Politicamente, esses três séculos, que se prolongam até ao principado de Augusto, foram um período menos sujeito a instabilidades e alterações do que haviam sido as Épocas Arcaica e Clássica. Parte da explicação encontra-se no fato de estarmos perante reinos que englobam territórios extensos e populações numerosas e que, por conseguinte, estão menos expostos, no conjunto, ao efeito perturbador de escaramuças de fronteira. No entanto, a principal razão está relacionada à centralização do poder político – e, não raras vezes, também econômico – na figura do monarca, de quem dependia igualmente a máquina administrativa, que constituía, aliás, um dos aspectos notáveis desse período, fruto da combinação da experiência monárquica macedônica com as longas tradições asiática e egípcia. Aliás, se do ponto de vista cultural e linguístico a Época Helenística é dominada pela matriz grega – claramente preferida pelas elites dirigentes –, ainda assim ela não pode ser entendida sem o influxo das outras culturas e etnias que entraram em contato com o elemento grego e com ele se puderam fundir, criando a cultura transversal (koine) que se estenderá por todo esse “universo globalizado” (oikoumene). 2. Os diádocos e a criação das monarquias helenísticas Em todo caso, embora pese a contribuição determinante de Filipe e de Alexandre, a cristalização dos traços essenciais da sociedade helenística fica muito a dever igualmente à ação dos diádocos, os generais que haviam estado a serviço do jovem macedônico. De fato, com a morte de Alexandre e não estando resolvido o problema da sucessão, foram liberadas as forças centrífugas que o imperador lograra manter sob controle. Embora, em um primeiro momento, os diádocos tivessem se Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 27 ____________________ 5 Como adiante se verá, esse aspecto, bem como o pagamento de tributos ao rei, constituía um dos sinais claros de que a autonomia das cidades-Estados era apenas uma ficção conveniente, que servia tanto ao amor-próprio das antigas pólis como à imagem de benevolência dos monarcas. 28 comprometido a dividir a administração das províncias – mantendo-se no fundo como sátrapas, sem tentarem evoluir para monarcas independentes –, enquanto aguardavam que o filho de Alexandre e Roxana – também Alexandre, e que nascera após a morte do pai – atingisse a maioridade, o certo é que rapidamente se envolveram em pesadas lutas que se prolongariam, com intensidade variada, ao longo dos 50 anos subsequentes. Do inevitável desmembramento do Império, sairia o embrião das futuras realezas helenísticas, até porque se revelaria ilusória a pretensão de qualquer um dos diádocos vir a ocupar o posto de governante único nas mesmas condições de Alexandre. Assim, surgiram os grandes reinos do Egito, da Macedônia, da Ásia e, mais tarde, de Pérgamo, que, do ponto de vista político, traduziram-se em monarquias hereditárias. Embora a posição do rei apresentasse variações quanto à forma de exercer a soberania, o certo é que esse regime político havia se tornado uma necessidade histórica, pois apenas um poder central forte e estável poderia manter a coesão de territórios muito amplos, com acentuadas diferenças étnicas, culturais e geográficas. Uma vez que era o rei quem dava corpo ao Estado, os seus poderes seriam, em princípio, ilimitados, no sentido de que, formalmente,o soberano não era obrigado a prestar contas a outra instância, se bem que, na prática, os monarcas helenísticos procuravam optar por soluções de governo que evitassem a conotação de um despotismo tirânico. Para dar a conhecer a sua vontade, serviam-se sobretudo de editos reais, traduzidos em normas e decretos, ou em instruções enviadas a magistrados ou cidades, consoante a natureza do assunto. Em qualquer dos casos, isso bastaria para se fazerem obedecer, a menos que o destinatário das indicações pretendesse desafiar a autoridade régia. Dado que o monarca se encarregava de receber pessoalmente embaixadores estrangeiros, magistrados e governadores provinciais, bem como representantes de pólis “independentes”, isso equivale a dizer que dele dependia também toda a administração, bem como a condução da diplomacia externa.5 3. A especialização dos serviços Quando Simônides, o grande poeta da resistência grega às invasões persas, afirmava que “a pólis é mestra do homem” (frg. 15 West) (WEST, 1992), estava também a sintetizar, com a sua reconhecida habilidade para construir frases lapidares, o Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 28 ____________________ 6 Grandes capitais, como Alexandria, atingiam centenas de milhares de habitantes, uma concentração demográfica impensável para as pólis clássicas. 7 É certo que, mesmo na democracia radical, evitava-se aplicar o mecanismo de sorteio para o acesso a cargos nos quais era reconhecida a necessidade de uma aptidão específica – como acontecia precisamente nas áreas financeira e militar –, mas a utilizar de medidas preventivas para evitar a incompetência não é o mesmo que promover a criação de carreiras especializadas. 29 essencial da existência da Hélade antes do Império macedônico. Ora, essa leitura da realidade grega, ao longo das épocas Arcaica e Clássica, assentava-se no princípio inerente de que a formação do indivíduo tinha como objetivo o exercício coletivo da cidadania. Por conseguinte, se todos os politai são chamados a participar da defesa, do governo e da administração da pólis, isso implica que tais atividades sejam vistas como expressão natural do estatuto de cidadão, e não como uma tarefa de especialistas. Ora, a situação na Época Helenística é exatamente a contrária, observando-se uma crescente profissionalização dos intervenientes nesses setores, fato que, por um lado, exprime a maior competência específica exigida para o cumprimento daquelas funções, mas também o progressivo alheamento do cidadão comum perante a noção de Estado. A profissionalização é, portanto, sintoma de uma dinâmica social e econômica distinta, sendo percebida, em especial, nos níveis financeiro, militar e político. Quanto ao aspecto financeiro, o surgimento de urbes muito populosas6 poderia obrigar a medidas de caráter social – como a distribuição de bens de primeira necessidade –, às quais seria necessário obter previsão orçamentária, e que, além de funcionarem como formas de combate à pobreza, tinham também o objetivo político de prevenir distúrbios por parte da população carente e descontente. Além disso, a crescente mobilidade de pessoas e bens vinha conferir maior complexidade às operações financeiras, e obrigava também a desenvolver fortemente os sistemas de crédito, sobretudo para negócios que envolviam um risco acrescido – como o comércio marítimo –, mas que poderiam igualmente gerar receitas bastante apreciáveis. Esse conjunto de fatores levava a que os peritos financeiros ganhassem uma importância crescente na constituição do próprio governo.7 A especialização militar conduziu ao incremento da figura do mercenário a serviço dos monarcas, atividade que se apresentava não apenas como uma forma alternativa de sustento – quer para camponeses arruinados, quer para a população acumulada nos centros urbanos –, mas também como uma necessidade objetiva, como forma de garantir o aperfeiçoamento de táticas militares, como, por exemplo, a técnica de cerco às cidades. Assim, uma vez que, por definição, o mercenário combate em troca de um soldo e não por um ideal de liberdade – conforme era a regra no universo da pólis Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 29 30 –, dilui-se rapidamente o princípio do cidadão-soldado, bem como a ideia de pátria, porquanto poderia acontecer até que o mercenário se visse na contingência de lutar contra a terra natal. Por último, e na esteira dos aspectos anteriormente referidos, a vida política também passava de preferência para o domínio de profissionais (os oradores), pois a vitalidade própria do estatuto de cidadão interventivo perdia terreno perante o avanço da ideia de que o indivíduo é apenas o súdito de um rei, e não o construtor da própria sorte. Por conseguinte, a solução dos problemas individuais passava a ter primazia sobre a consciência de uma identidade coletiva; além disso, porque o monarca controlava igualmente a vida administrativa e as grandes opções militares, mesmo essas áreas tradicionais de afirmação da pólis ficavam destituídas de real autonomia, embora continuassem a servir de plataforma de lançamento para quem desejasse construir uma carreira nesses domínios. Ora, uma vez que as elites governantes partilhavam uma cultura de base helênica, toda a máquina burocrática e econômica dos reinos helenísticos funcionava como uma grande bolsa de empregos para as populações das antigas pólis gregas. Embora essa tendência pudesse esvaziar algumas cidades- Estados dos seus elementos mais válidos, a procura de saberes especializados nas mais variadas áreas teve, ainda assim, a vantagem de promover a mobilidade de pessoas e de conhecimentos, bem como a fusão étnica, linguística e cultural, que dá corpo à noção de koine). 4. Os limites de atuação das pólis helenísticas Uma vez que as antigas pólis continuaram a existir na Época Helenística, ao menos como espaços urbanos povoados, importa saber até que ponto elas mantinham alguma autonomia e liberdade efetiva de atuação. Dado que a essência do Estado helenístico assentava-se na pessoa do monarca e no conjunto de magistrados que trabalhavam diretamente com ele, a estrutura da pólis constituía, em última análise, um corpo estranho dentro da nova realidade; em todo caso, ela não poderia ser simplesmente eliminada, dado o grande peso que tivera ao longo da história da Grécia. Dessa forma, as pólis mantinham em funcionamento o aparato constitucional que possuíam no passado (assembleia popular, tribunais, magistrados eleitos anualmente); no entanto, estavam dependentes da vontade do rei, cujas ordens eram para ser cumpridas, ainda que fossem apenas transmitidas por carta, regulação (diagramma) ou ordenação (prostagma). Mantinha-se formalmente a Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 30 ____________________ 8 Em todo caso, o pagamento de tributos e a integração de guarnições reais, entre outros encargos suportados pela pólis, eram um símbolo inequívoco da sua dependência em relação ao poder do soberano. 9 Ainda assim, na sua atuação futura Demétrio teve o cuidado de não desprezar ostensivamente as leis atenienses, como mostra o episódio da iniciação nos Mistérios de Elêusis; uma vez que não podia estar em Atenas na altura devida, solicitou que se procurasse uma solução, ao que os atenienses responderam alterando temporariamente o nome dos meses, para que a cerimônia pudesse decorrer com respeito pela formalidade (Demtr. 26). 31 aparência de autonomia, desde que houvesse a preocupação de moldar os decretos da pólis, segundo as instruções do monarca, que eram assim transformados em lei.8 Pode-se questionar até que ponto uma cidade teria poder para contrariar as instruções régias, sem com isso desafiar abertamente a autoridade central. Na verdade, as fontes deixam entrever que essa margem de manobra não existia, mesmo para cidades tão poderosas como Atenas. Plutarco fornece-nos, a esse respeito, dois exemplosbastante expressivos. Em 318, Polisperconte, na qualidade de guardião do rei, enviou Fócion e mais alguns fugitivos para Atenas, a fim de lá serem julgados – se bem que, na realidade, o regente já houvesse dado instruções de que eles deveriam ser condenados à morte (Phoc. 34). É possível que Atenas chegasse por si própria a um veredito idêntico, mas a hipótese de, no uso de sua pretensa liberdade e autonomia, vir a contrariar as instruções de Polisperconte, só poderia ser efetivamente colocada se os atenienses quisessem discutir a autoridade do rei e sujeitar-se, em seguida, à provável retaliação. Portanto, ambas as partes observavam a formalidade fictícia de uma independência, mas, para evitar complicações futuras, o resultado não deveria desviar-se do esperado. Outro exemplo ainda mais expressivo é dado pelo mesmo Plutarco, a propósito do rei macedônico Demétrio Poliorcetes. Incomodados com a sua ingerência em assuntos domésticos, Atenas aprovou um decreto que procurava limitar o raio de ação do monarca. No entanto, os atenienses viram-se não apenas forçados a revogar o decreto em questão e a condenar à morte e ao exílio os respectivos proponentes, como ainda a aprovar outro decreto, segundo o qual seria considerado sagrado perante os deuses e justo diante dos homens tudo o que Demétrio ordenasse (Demtr. 24.3-4). Em síntese: os atenienses viram-se obrigados a integrar expressamente nas suas leis a autoridade real que tinham começado a pretender cercear.9 Do ponto de vista político, a maior debilidade da cidade-Estado notava-se, em especial, na grande limitação – ou mesmo incapacidade real – para conduzir uma diplomacia externa independente. Para muitas das pólis de pequena dimensão, a articulação com a vontade do monarca equivalia, de alguma forma, à prática de alianças que elas efetuavam no passado, por exemplo, com a Liga de Delos e a do Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:24 Page 31 32 Peloponeso. A mudança era sentida, sobretudo, por cidades importantes como Atenas e Esparta, que estavam habituadas a funcionar como grandes Estados autônomos, capazes de agregar e de influenciar a política praticada por outros Estados. É certo que os monarcas concediam às pólis – e, por vezes, até estimulavam – o direito de construir com outras cidades ligas ou simaquias, assentadas na aliança voluntária de Estados formalmente independentes; ou então, criar confederações, cujos órgãos centrais se baseavam no compartilhamento de uma mesma cidadania (sympoliteia), ou ainda conceder potencialmente a cidadania plena (isopoliteia) aos politai de outra cidade, para o caso de estes optarem por abandonar a pólis de origem, fixando-se na que lhes concedera a isopoliteia. Por outro lado, mesmo na concessão da cidadania a particulares, as pólis continuavam a cultivar uma atitude defensiva e uma formalidade processual bastante complexa, que poderia fazer lembrar o mecanismo adotado na Época Clássica e suscitar, por conseguinte, a ideia de que a autonomia da cidade-Estado se manteria quase intacta nesse nível. No entanto, há que se registrar uma diferença fundamental: embora admitindo que as pólis da Época Helenística até conservavam a mesma capacidade para conceder, em circunstâncias que considerassem excepcionais, a cidadania a determinado particular ou coletividade que pretendiam honrar, elas não poderiam, ainda assim, transmitir aquilo que no passado era a essência desse processo – o estatuto de cidadão em uma pólis verdadeiramente soberana e independente. Da antiga cidade- Estado restava somente, na prática, a cidade como centro urbano, com alguma autonomia no nível local e privilégios que poderiam ir além disso (como a isenção de impostos e o direito de asilo), mas que apenas ocasionalmente eram concedidos pelo monarca. Aliás, não deixa de ser sintomático que os sinais de empenho político e social fossem cada vez mais substituídos pela constituição de “clubes” (koinon para os gregos, e collegium para os romanos), de natureza privada e de adesão livre e voluntária, motivada pela simples afinidade de interesses lúdicos e culturais – tendo muitas vezes o ginásio como centro de reunião –, ou então pela defesa de objetivos corporativos e profissionais, como era o caso das companhias de teatro e de atletas profissionais. Os fenômenos até agora evocados, embora aparentemente dispersos, compartilham o fato de ilustrarem a afirmação de um individualismo crescente, que tem como pano de fundo a crise do tradicional modelo cívico coletivo da pólis. O dilema, suscitado pelo movimento sofista no último quartel do século V a.C., de saber se o Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 32 ____________________ 10 Diógenes Laércio (6.63), a propósito do cínico Diógenes. Se a afirmação for autêntica, permite atribuir ao desconcertante filósofo a criação do termo kosmopolites. 11 A evolução do teatro espelha de forma paradigmática essa transformação, evidente quando se compara, por exemplo, a natureza “política” dos enredos da produção aristofânica ou da própria tragédia, com o meio familiar e o triângulo amoroso que estão na base da comédia nova de Menandro. 33 homem deveria viver de acordo com suas inclinações naturais (physis), ou antes, segundo a norma (nomos) decorrente da existência em sociedade, fora resolvido por Aristóteles (Política, 1253a), ao sustentar que “por natureza (physis) o homem é um animal político (politikon zoon)”: em outras palavras, a vida em uma pólis, com suas leis e convenções sociais, constitui o enquadramento natural e necessário para a natureza humana. A essa visão, as novas tendências filosóficas que acompanharam a passagem para a Época Helenística – em especial os cínicos, com a sua rebeldia intrínseca contra todas as formas de disciplina e de convenção social – vêm contrapor a ideia de que physis e nomos podem efetivamente identificar-se entre si, mas somente quando o homem puder seguir suas inclinações naturais, entendendo o mundo inteiro como a sua cidade, ou seja, afirmando-se como um kosmopolites ou um “cidadão do mundo”.10 Embora a leitura cínica pudesse levar, em última instância, à anarquia generalizada – que não se chegou a verificar –, os reinos helenísticos acabaram por recriar efetivamente o cenário de um mundo globalizado, no qual os projetos individuais tinham mais peso do que a realização de um ideal comum.11 Do empenho em relação a um compromisso coletivo (ta politika), que remetia para segundo plano os anseios pessoais (ta idia), passou-se à procura da felicidade de cada um – não tanto porque a grandeza de pessoas singulares não conseguisse ser acomodada nas calhas estreitas das obrigações sociais, mas antes porque a fraqueza da sociedade deixara de motivar o indivíduo particular (idiotes), libertando-o para o anonimato de um circuito de mobilidade mais vasto. Assim, do polites se evoluía para o kosmopolites, do caráter local da cidade-Estado para o mundo globalizado da oikoumene. Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 33 34 Bibliografia DAVIES, J. K. Cultural, social and economic features of the Hellenistic world. In: WALBANK, F. W. et al. (Eds.). The Cambridge Ancient History. v. 7, part 1: the Hellenistic world. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 257-320. EHRENBERG, Victor. The Greek state. Oxford: Basil Blackwell, 1960. FERGUSON, W. S. The leading ideas of the new period. In: COOK, S. A.; ADCOCK, F. E.; CHARLESWORTH, M. P. (Eds.). The Cambridge ancient history. v. 7: the Hellenistic monarchies and the rise of Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. p. 1-40. FERREIRA, José Ribeiro. A Grécia Antiga: sociedade e política. Lisboa: Edições 70, 2004. GAUTHIER, Philippe. Isopolitie et protection judiciaire. In: FRANCE. Symbola: les étrangers et la justice dans les cités grecques. 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Ajustando aquele ditado de que falamos à realidade da história cultural grega, pode-se dizer que os gregos receberam do Oriente estruturas e modelos que puderam utilizar e transformar em seus, mediante a adaptação de contribuições alheias e o acréscimo de elementos próprios. Conforme Pedro Paulo Funari, Por muito tempo, os estudiosos da Grécia consideraram que as primeiras civilizações gregas nada deviam ao Oriente. Hoje, esta afirmação é muito questionada, pois muitíssimo da cultura grega veio das civilizações orientais. As escritas de lá vieram, assim como divindades e costumes. Já na própria Antiguidade, Heródoto, o ‘pai da História’, dizia isso, mas só recentemente suas ideias foram revalorizadas pelos estudiosos (FUNARI, 2002, p. 16). 37 Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 37 ____________________ 12 Esse nome aparece 598 vezes na “Ilíada”. 13 Esse nome aparece 138 vezes na “Ilíada”. 14 Esse nome aparece 182 vezes na “Ilíada”. 38 Este trabalho se propõe a apontar alguns elementos estruturais e modelares que os gregos herdaram – ou tomaram – do Oriente, e enfatizar que não se pode entender sua cultura clássica sem que se considere esse aporte. O conhecimento e a compreensão das íntimas relações entre o mundo grego e o Oriente Próximo ao longo da Idade do Bronze, revigoradas no início do Período Arcaico, autoriza-nos atualmente a ver com desconfiança afirmações como a de que “ainda não foi possível encontrar qualquer antepassado legítimo” para a civilização que surgiu na Grécia na Idade do Ferro (desde o século XI a.C.) e que atingiu seu maior esplendor nos séculos V e IV a.C. (COOK, 1971, p. 21). Neste trabalho, sugerimos que no Oriente Próximo podem ser encontrados antepassados legítimos para muitos dos desenvolvimentos que ocorreram na Grécia Antiga, e não apenas na Idade do Ferro, mas ainda até bem depois dessa era. A identidade grega A antiga Grécia é a pátria mítica da cultura ocidental – quando no Ocidente laico se fala de algo duradouro, sólido e profundo em matéria de pensamento, arte e ciência, normalmente se utiliza a Grécia como comparação. Os próprios gregos, contudo, demoraram a desenvolver uma identidade comum, e um estudo de sua autoimagem muito nos revela sobre uma demorada e complexa evolução da identidade helênica. Escrevendo sobre os ancestrais helenófonos mais antigos dos gregos, Lorde William Taylour observou que ‘micênios’ [ou ‘micênicos’] é uma designação que não se encontra nos autores clássicos. Os gregos davam vários nomes aos seus antepassados mais remotos. Homero refere- se-lhes indiferentemente como aqueus [Ἀχαιοί/Achaioí]12, dánaos [Δαναοί/Danaoí]13, argivos [Ἀργεῖοι/Argeĩoi]14. O que os gregos sabiam acerca dos primeiros tempos da sua história chegara até eles sob a forma de poemas épicos e de lendas, frequentemente contraditórias. E assim continuou até os meados do século XIX [quando se deu a descoberta da ‘civilização micênica’ por Heinrich Schliemann] (TAYLOUR, 1970, p. 15). Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 38 ____________________ 15 Cf. MALKIN, 1998, p. 149. A descendência de Graikós a partir de Tessalo aparece em Estevão de Bizâncio. Outra genealogia mostra Graikós como neto de Deucalião e Pirra – o primeiro casal pós-diluviano –, ou Pirra e Zeus, por meio de Pandora. 16 Outrossim, conhecidos como Γραικοί; cf. MALKIN, 1998. 17 Essa associação, anterior ao surgimento das pólis gregas, recebeu o nome de ἀμφικτυονία (“liga de vizinhos”). 39 Na Antiguidade, o nome da Grécia foi ligado a Γραικός/Graikós (Greco), filho de Tessalo15, um mítico rei da Ftía (Φθίης/Phtíês ou Φθία/Phthía), e o nome Έλλάς/Hellás ou Ἑλλάδα/Helláda (Hélade), em sua mais antiga utilização literária – em associação ao nome dos Ἓλληνες/Hellênes (helenos)16 –, se refere na “Ilíada” (II.683-84) à região da Ftía/sul da Tessália, correspondente ao centro-norte da Grécia, terra de Aquiles. Na “Odisseia” (I.344) a expressão Ἑλλάδα καὶ μέσον Ἄργος (de Hellás ao Meso-Argos) tem sido interpretada como significando “através da Grécia toda”, e na “Ilíada” (II.530) aparece a expressão Πανέλληνας (Panhéllênas), parecendo significar “da Grécia toda”. Hesíodo (1991b, p. 653) utiliza Έλλάς para referir-se à Grécia. Para o historiador Arnold Toynbee, ‘Hellás’ parece ter sido originalmente o nome da região em torno da ‘cabeça’ do Golfo de Mália, na fronteira entre a Grécia central e a setentrional, que continha o santuário de Terra [Γαῖα/Gaĩa] e de Apolo em Delfos e o santuário de Ártemis em Anthela, perto das Termópilas (a estreita passagem entre o mar e a montanha que era a principal via da Grécia central para a setentrional e, portanto, para o grande continente eurasiano com o qual o norte da Grécia se funde). [O vocábulo] ‘helenos’, significando ‘habitantes de Hellás’, presumivelmente adquiriu seu sentido mais amplo através de seu uso como um nome corporativo aplicado à associação dos povos locais, os anfictiões [Ἀμφικτύονες/Amphictýones] (‘vizinhos’)17, que administrava os santuários em Delfos e nas Termópilas e organizavam o festival pítico que a eles estava ligado (TOYNBEE, 1959, p. 6-7). Heródoto (Histórias, I.92) (HERÓDOTO, 1985) emprega o vocábulo Έλλάς estendendo-o às colônias gregas. Helenos tornou-se o nome de todos os gregos, mas nos tempos míticos os helenos eram os povos que “habitavam o Argos pelásgio (Πελασγικὸν Ἄργος) e governavam Alos (Ἄλος), Alope (Ἀλόπης) e Trachis (Τρηχῖς, Τραχῖς), e aqueles que habitavam Phthía (Ftía) e Hellás (na Tessália) (Ilíada, II.683-85)” (HOMERO, 2008). Os povos dessas regiões, chamados na mesma passagem da “Ilíada” de mirmidões (Μυρμιδόνες), helenos e aqueus, navegaram Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 39 ____________________ 18 Sobre a sugestão de diferenças entre a fala dos troianos e dos gregos na “Ilíada” cf. Mackie (1996), e a avaliação dessa obra em Joshua T. Katz (1998). 19 Como é provavelmente o caso dos etíopes liderados por Memnon. 20 Cf. PAGE, 1963, p. 137 e ss. 40 contra Troia sob o comando de Aquiles, filho de Peleu, rei dos mirmidões. O ancestralepônimo dos helenos foi Heleno, filho seja de Deucalião e Pirra – o casal sobrevivente do dilúvio universal –, ou de Zeus e Pirra. Os filhos de Heleno – com a ninfa Orseis – foram Éolo, Doro e Xuto, pai de Aqueu e Ion (Hesíodo, Catálogo das mulheres, frags. 9 e 10a Oxford Classical Text) (MERKELBACH; WEST, 1990); esses indivíduos foram os míticos ancestrais dos povos gregos da tradição: eólios, dórios, aqueus e jônios. Apesar de que na “Ilíada” “os troianos e os gregos falam todos grego18, dizem coisas semelhantes, e os deuses [gregos] lutam de ambos os lados” (LEVI, 1996, p. 60), não se deve esquecer de que os troianos eram asiáticos – e os poemas homéricos (Ilíada, 815-875, II.802-06, IV.433-38) conhecem também os aliados – certamente incluindo mercenários19 – asiáticos de Troia20 – entre outros, da Paflagônia, Mísia, Frígia, Meônia (Lídia), Cária e Lícia. Opinando sobre a percepção atual da realidade pré-homérica da Grécia, Joshua Katz escreveu: Não vejo como alguém pode duvidar que um entendimento completo da ‘Ilíada’ requer um conhecimento tanto de seu background pré-grego (‘proto-indoeuropeu’) de alguns milhares de anos antes de Homero e de seu status como estória e texto na Grécia do oitavo século a.C. e de depois. Também tenho me tornado cada vez mais convencido que um entendimento completo requer um conhecimento das reais interações greco-anatólias [anatólicas] na segunda metade do segundo milênio a.C., isto é, do material histórico no meio [da ‘Ilíada’], do qual com toda probabilidade Homero faz uso (KATZ, 2005, p. 4). A Anatólia é uma das muitas áreas geográfico-culturais do mundo oriental, Oriente esse que constitui uma extensa região que compreende o continente asiático e uma pequena parte da África, onde se desenvolveram as primeiras aglomerações urbanas conhecidas no velho mundo; “o Egito, apesar de ser África, tem sua história muito mais entremeada com a dos povos da Ásia do que com os da África” (SPROVIERO, 1998). No entanto, o Oriente – fundamentalmente, a Ásia – é também um conceito ideológico-cultural; trata-se de uma representação que o Ocidente faz de um Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 40 ____________________ 21 Essa etimologia é contestada por Eric Partridge, por exemplo. Ele opina que Europa pode simplesmente derivar do grego eurus, “largo” (PARTRIDGE, 1969, p. 25). 22 O topônimo Europa aparece pela primeira vez no “Hino Homérico a Apolo” (267-273; 287-293), aludindo ao norte da Grécia, por oposição ao Peloponeso. 41 “outro” que lhe tem sido estranho desde remota antiguidade, mas que necessita de um reconhecimento como realidade passível de ser conhecida, e não apenas antagonizada ou explorada – como de fato tem ocorrido ao longo de séculos. Temos notícias de que a Mesopotâmia e o Egito apresentam sinais de urbanização a partir do quarto milênio a.C., enquanto na Grécia os primeiros sinais de organização social humana surgem a partir do segundo milênio a.C. No mundo latino, o processo é ainda posterior. Grécia e Roma, as duas civilizações luminares da cultura ocidental clássica – da Europa –,desenvolveram-se bem mais tardiamente do que a Ásia. Postula-se que as próprias palavras para Europa e Ásia possam ter origem asiática; “em monumentos assírios, o contraste ente Asu (a terra do sol nascente) e Ereb (a terra do sol poente) é frequente” (BEN MENAHEM, 2009, p. 446). Europa (em grego, Εὐρώπη/Eurốpê) teria vindo21 do acádio erebu (fenício erob), “entrar; pôr-se” - aplicados ao lugar onde o sol entra e se põe (em fenício, ‘ereb = “noite; ocidente”; em hebraico, erev = “noite”) –, enquanto Ἀσία/Asía teria vindo do acádio asu, “ir-se; surgir” – aplicados ao lugar de onde o sol surge e se vai. Conforme Sproviero (1998), não são seguras essas etimologias de Ásia e Europa22, sendo certo, porém, que “o nome Europa está ligado ao mito relacionando gregos e fenícios. Zeus, em forma de touro, rapta uma mulher fenícia, a bela Europa. Assim, o nome Europa é nome que vem do Oriente, não se sabe, porém, como” (SPROVIERO, 1998). Pelo menos desde o segundo milênio a.C. o Mediterrâneo Oriental foi atravessado por uma vasta rede de intercâmbios culturais, com o corredor sírio-palestino servindo de intermediário entre Chipre e o mundo minóico e micênico a oeste, os impérios e reinos da Anatólia ao norte, a Mesopotâmia a leste e o Egito ao sul. Algumas considerações metodológicas Neste estudo sobre as origens orientais da cultura clássica, tratamos do Oriente com um recorte que emprega esse nome em relação ao antigo Oriente Próximo, também chamado de Ásia Ocidental ou Ásia Anterior, e que na Antiguidade abrangia o Egito, a Arábia, a Síria, a Palestina, a Anatólia (parte mais ocidental da Ásia Menor), a Mesopotâmia, a Armênia e o Irã. Não passará despercebido o Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 41 ____________________ 23 O grupo das línguas anatólias (ou anatólicas), que compreendia, entre ouros, os idiomas hitita, lídio e os idiomas do ramo lúvio ou luvita (incluindo o cário e o lício). Acredita-se atualmente que, por volta do século I a.C., esses e outros idiomas do grupo anatólio (anatólico) estavam extintos, tendo cedido espaço para idiomas como o grego e o aramaico. 42 fato de que neste estudo falaremos muito mais sobre a Anatólia do que sobre outras regiões do Antigo Oriente Próximo; isso decorre do fato de serem muito antigas, extensas e profundas – podemos até falar de “viscerais” – as interações entre a Anatólia e o mundo grego, aqui tomado como paradigmático da cultura clássica em virtude de sua antiguidade e importância fundamental. Sobre o mundo grego, quando perguntamos o que o caracteriza, não é fácil chegarmos a uma resposta concisa e clara, uma vez que a Grécia, como é concebida atualmente, não existia na Antiguidade. A antiga Grécia não formava uma nação única, sendo composta por várias comunidades e cidades-Estado que tinham suas próprias organizações sociais, políticas e econômicas, e uma origem que se perdia nas brumas do mito. O conhecimento dos autores clássicos gregos sobre o passado de suas terras de origem ou viagem é muito lacunar ou fantasioso, e isso coloca em dúvida a historicidade de quase tudo o que disseram sobre a proto-história do Mediterrâneo Oriental. A memória das escritas creto-minoicas da Idade do Bronze havia se perdido; esses autores não demostram qualquer conhecimento sobre o Império hitita e os Estados que o compunham, e parecem não ter atentado para o fato de que na Anatólia se falava um grande grupo de línguas aparentadas23, não gregas (“bárbaras”). O que hoje chamamos de mundo grego é uma construção da modernidade e foi se formando muito lentamente. Em virtude dessa formação lenta, a história grega anterior à Era Comum (a.C.) é dividida em períodos para facilitar a compreensão do homem contemporâneo, não para reconstruir um passado inalcançável, mas para que se possa enxergar um sentido naquilo que já não tem sentido em si mesmo: Período Pré-homérico: º Neolítico I (c. 4500-3000 a.C.) º Neolítico II (c. 3000-2600 a.C.) – em Creta, principia a civilização minoica, que controlará várias áreas do futuro mundo grego e que vai aproximadamente até 1450 a.C. Coleção_tradições:Layout 1 29/10/13 12:25 Page 42 ____________________ 24 Alguns autores incluem as eras das civilizações minoica e micênica no Período Arcaico grego, enquanto outros defendem a tese de que essas civilizações foram tão diferentes das culturas gregas posteriores que devem ser classificadas separadamente. Outros autores, por sua vez, consideram que o Período Arcaico envolve um “Período das Trevas” que representaria mais propriamente uma transição – não tão demorada quanto três séculos – do que uma estagnação anterior à ascensão das primeiras cidades- Estado gregas no século IX a.C., aos poemas épicos de Homero – que existiram oralmente por muito tempo antes de serem transcritos
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