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Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 61 ébrio é tratado como se fosse um aninal e que ninguém conse- gue perceber o seu valor como ser humano. Vejamos o terceto a seguir: Vive fora de toda humanidade Caído às vezes nos bancos da cidade Exposto à chuva, a frieza e ao mormaço. Percebemos que o ébrio é posto fora da humanidade de acordo com o primeiro verso, mas é reforçado quando o eu po- ético afirma que o ébrio reside na rua. De tanto ficar excluído da humanidade, ele cai de forma fácil nos bancos de praças da cidade e é reforçado quando o eu lírico expõe que o ébrio fica “Exposto à chuva, a frieza e ao mormaço”, ou seja, além de ser isolado da humanidade, o eu poético denuncia que o ébrio fica entregue a desigualdade sócio/econômica. Para confirmar tal posicionamento, o eu lírico finaliza o último terceto revelando a concecpção pessimista acerca da bondade da humanidade e descreve no segundo verso a falta de humanização das pessoas, ou seja, o povo não tem o sentimento de compaixão e ternura, manifestando que a humanidade não possui amor ao próximo. Vejamos o último terceto: Se levanta, tropeça sem alento. Este povo, de menos sentimento Zomba e ri o tomando por palhaço. Como percebemos, mesmo que o sujeito – o ébrio – fique literalmente de pé, ele não encontra nenhum tipo de entusiano por parte das pessoas que estão a sua volta, muito pelo con- Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 62 tário, “Este povo, de menos sentimento” o tem como oportu- nidade de humilhá-lo. Pois como afirma o último verso, fica claro que o ébrio é tomado por gozação, o riso dos que estão a sua volta proporciona humilhação e abatimento moral no em- briado. Notemos que o vocábulo palhaço, aqui adquire o valor de adjetivo, isto é, possui o sentido de bobo, louco, irrisório, insignificante. Isso implica dizer que o objetivo do povo é de excluir e humilhar o ébrio sem nenhum pudor. Portanto, no poema, não existe nenhum compromisso e possibilidade de haver uma harmonização, principalmente por parte do povo “de menos sentimento”, o que revela o tom pessimista e niilis- ta do poema. 5. Considerações Finais Diante do que foi exposto, é importante notarmos que tan- to no soneto de Cancão quanto no de Augusto dos Anjos o sentimento de amor e de respeito ao próximo é visto como algo impossível. Por isso que, embora de modo diferente, ambos os poemas apresentem semelhanças com relação à visão pes- simista sobre a raça humana, que, aliás, como vimos também está presente na de Cancão.Décima Portanto, percebemos que tanto a poesia de Cancão quanto a de Augusto dos Anjos encontram-se cada vez mais ecléticas, universalizantes e atualizadas. Dessa forma, os poetas não dei- xam de transparecer em sua poética, o inconformismo diante das injustiças praticadas na sociedade, deixando clara uma vi- são extremamente crítica e pessimista acerca dessa comunida- de hipócrita. Importante notar que pelo aspecto social, Augusto dos An- Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 63 jos e Cancão, cada qual a seu modo, vivenciaram problemas sociais e pessoal marcados pelo contexto histórico-político- -econômico do século XX. O primeiro, a falência de sua pró- pria família, a decadência da monocultura da cana-de-açúcar, a perda dos engenhos etc; o segundo, o período negro do golpe de estado de 64 e a instauração do regime militar, momento histórico de grande perturbação psicológica. Inseridos nesses contextos, percebemos nos poemas analisados uma crítica so- cial muito grande, talvez uma forma de tornar mais clara a im- portância de se ter uma sociedade menos materialista e com mais sentimentos nobres, como amar ao próximo. Referências ADORNO, Theodor W. Palestra sobre Lírica e Sociedade. In: Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003. ANJOS, Augusto dos. Toda a Poesia de Augusto dos Anjos e um estudo crítico de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. BEZERRA, Antony C. Da literatura comparada como estudo de convergências/divergências: “The song of the shirt”, de Tho- mas Hood, e “A tecelã”, de Mauro Mota. Disponível em: <http :// www.moisesneto.com.br/antony.pdf.> Acesso em: 06 Jun. 2012. BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. São Paulo: Com- panhia das Letras, 2000. BOSI, Alfredo. . São Paulo: Duas Cidades/Editora Céu, Inferno 34, 2003. Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 64 CAMPOS, Lindoaldo. Nota do organizador: Sobre Cancão / So- bre Poesia. In: SIQUEIRA, João Batista de. Palavras ao Pleni- lúnio. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007, p. 5-29. CARVALHAL, Tania Franco. . 5. ed. Literatura Comparada São Paulo: Editora Ática, 2010. . (Org.). questões e Literatura Comparada no Mundo: métodos. Porto Alegre: L&PM/VITAE/AILC, 1997. COHEN, Jean. Estrutura da Linguagem Poética. São Paulo, Cultrix, 1978, p. 87-111. COUTINHO, Eduardo F. e CARVALHAL, Tania Franco (Orgs.). Literatura Comparada: textos fundadores. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. DESCAMPS, Chistian [et al]. . São Ideias contemporâneas Paulo: Ática, 1989. FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: . Obras completas. Ed. Standard Brasileira, XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, p. 270-291. LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Co- tidiana. São Paulo/Campinas: Educ/Mercado das Letras, 2002. LINHARES, Francisco & BATISTA, Otacílio. Antologia Ilus- trada dos Cantadores. Fortaleza: Universidade Federal do Ce- ará, 1976. NITRINI, Sandra. : história, teoria e Literatura Comparada crítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 65 PERRONE-MOISÉS, Leyla. : ensaios. Flores da escrivaninha São Paulo: Companhia das Letras, 1990. RICOEUR, Paul. O processo Metafórico como Cognição, Ima- ginação e Sentimento. In: SACKS e SHELDON (Orgs.). Da Metáfora. São Paulo: Educ, Pontes, 1992. RIFFATERRE, Michael. A Significância do Poema. In: Caderno de Textos do Mestrado em Letras – Semiótica Poética. João Pessoa, n. 2., 1989, p. 95-122. SANTOS, Derivaldo dos. Augusto dos Anjos: uma lâmina do tempo. 1. ed. João Pessoa: Idéia, 2002. SIQUEIRA, João Batista de. Palavras ao Plenilúnio. Lindoaldo Campos (Org.). João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007. . Flores do Pajeú. Editora, 1969. VASCONCELLOS, Viviane Madureira Zica. Melancolia e crí- tica em Carlos Drummond de Andrade. 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Pois é mister que, para o amor sagrado, O mundo fique imaterializado — Alavanca desviada do seu fulcro — E haja só amizade verdadeira Duma caveira para outra caveira, Do meu sepulcro para o teu sepulcro?! Augusto dos Anjos Anexos Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 67 O Ébrio Há um ébrio aqui, parede-e-meia Que o infortúnio lhe fez um sorteado Todo sujo, sem pão, esfarrapado Sendo mais conhecido na cadeia. Ele chora, sorri e palavreia Pela voragem do vício deformado Ninguém olha, não sente o seu estado Que por sorte ou desdita cambaleia. Vive fora de toda humanidade Caído às vezes nos bancos da cidade Exposto à chuva, a frieza e ao mormaço. Se levanta, tropeça sem alento. Este povo, de menos sentimento Zomba e ri o tomando por palhaço. João Batista de Siqueira – Cancão Décima Uma fera endiabrada Só pode ser como esta Que uma criatura desta Merecia ser queimada Porque, sendo sepultada Uma fera assim maldita Sua sepultura grita Não aguenta o arrojo E o cemitério, com nojo Abre a garganta e vomita! João Batista de Siqueira – Cancão Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 68 Cancão, poeta irreverente Lindoaldo Campos Nascido e criado na ribeira do Rio Pajeú, no Sítio Queimadas, município pernambucano de São José do Egito, Cancão desde cedo aprendeu a voejar nas asas da chamada poesia popular1, poesia de sua gente, desdantanho vinculada, é sabido, a mode- los estróficos, rímicos e métricos cujos arquétipos alcançam os trovadores provençais do medievo e, por consequência, os des- bravadores que, dantanho, poetizaram nos sertões nordestinos2. Mas se é certo que absorveu os eflúvios e modelos tradicio- nais da poética popular, não menos certo é que Cancão não se limitou a copiá-los, pois, na inquietude que acertadamente lhe rendeu a alcunha passarinheira, também desde cedo aprendeu a voar com asas próprias e por caminhos seus, animado, no mais das vezes, pelos melodiosos cantos do Romantismo brasi- leiro (sobretudo de sua segunda fase), tão afeitos à fisionomia poética do vate egipciense, que tem no intimismo e na nostal- gia algumas de suas mais expressivas características. E já aí se delineia a irreverência de Cancão, não no sentido de desacato: Cancão era absolutamente imune a qualquer atitude de menosprezo à sua cultura e, sobretudo, a seus pares. Irreverência no sentido de não prestar reverência cega à tradição; melhor: de Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 69 forma positiva, de pretender-se e efetivamente fazer-se poeta não apenas à luz dos padrões poéticos existentes em seu torrão, mas, também, a partir doutras luzes dalém mares e terras. Neste sentido, é preciso que se diga que, à semelhança da imensa maioria dos poetas daquela região, Cancão – viola ao peito – inicialmente enveredou pela poesia de repente, mas logo abdi- cou da faina de cantador. Não porque “não dava pro serviço”, mas porque sentiu que seu estro sonhoso e buliçoso não se amoldava aos parâmetros estilísticos da cantoria, que exige uma postura in- flexível, austera, metódica, grave, numa palavra, e (como afiança o insuspeito Teófanes Leandro) “Cancão cantava se bulindo; os ver- sos lhe vinham de borbotão”, provocando-lhe uma ânsia tal que sua expressão corporal certamente causava (no mínimo) espanto às audições mais ciosas do gosto das tradições. Ciente da força de sua verve, Cancão então ousou voos mais longínquos, menos seguros, mais destemidos e sutis, e partiu para a “poesia de bancada”, como fizeram poucos de seu chão. Nela, na poesia de bancada, Cancão encontrou o solo fértil para dar vazão à sua poeticidade: doravante, a escrita lhe ajudaria a planar pela arte e através dela pôde enfim alcançar maior liber- dade em relação aos paradigmas da poética popular. A partir daí, foram várias e significativas as irreverências de Cancão: a uma, quanto aos temas a que se dedicou, expressando uma lírica confessional e introspectiva que naquelas plagas quiçá só encontre paralelo no estro de um Job Patriota ou de um Roga- ciano Leite. Aliás, quanto a Job, basta assinalar o profundo lirismo canconiano presente em poemas como Abandono, O Poeta, O ébrio. No que respeita a Rogaciano, por exemplo (e, via de consequ- ência, a Castro Alves), diga-se da temática social presente em O Agricultor, tão ao gosto do grande condoreiro do Pajeú. Impresso por Nettzo Ésoj Oztten, E-mail puer_amans@hotmail.com para uso pessoal e privado. Este material pode ser protegido por direitos autorais e não pode ser reproduzido ou repassado para terceiros. 07/07/2022 10:46:19 70 vive o pobre agricultor enfrenta frio e calor num sofrimento profundo no seu trabalho diário pelo desprezo do mundo vive assim nesse calvário o seu grau não tem valor de sacrifício e de dor sempre foi um lutador só tem por seu defensor do outro povo esquecido a ferramenta pesada além de desprotegido essa gente abandonada ninguém lhe presta atenção luta lhe faltando o pão é entre toda a nação visto não ter proteção o mais desfavorecido vive sem direito a nada Por outro lado, igualmente emblemática da irreverência de Can- cão quanto aos moldes poéticos populares é a liberdade na escolha de modelos estróficos, em que, diferentemente dos repentistas (que utilizam, sobretudo, a sextilha e a décima3), Cancão voeja pela qua- dra, passa pelo quinteto, pela sextilha, pela oitava, pela décima e, com igual maestria, alcança o soneto, paradigma da poesia dita erudita4. Quadras Cancão as canta em Teus vinte anos e tua beleza, Os quatorze anos, A manhã do dia nove, Meditações, A noite, Tardes de verão, Flores a Maria, Noite suburbana. E nelas apresenta pecu- liaridades que apontam o quão era liberto, irreverente, como quando as cose a partir de diversos tipos de metro poético e de cesura, de que é possível exemplificar: a) quadras com versos hendecassílabos com cesura na quinta sílaba5: de todas as terras a tua foi santa fascina e encanta, feliz palestina a pátria de Cristo, do santo cordeiro te olhava primeiro quando eras menina ( )Flores a Maria
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