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R E S U M O D O CA P Í T U LO Compreendendo a psicopatologia O que é transtorno psicológico? A ciência da psicopatologia Conceitos históricos do comportamento anormal A tradição sobrenatural Demônios e bruxas Estresse e melancolia Tratamentos para possessão Histeria em massa Histeria em massa em tempos modernos A lua e as estrelas Comentários A tradição biológica Hipócrates e Galeno O século XIX O desenvolvimento dos tratamentos biológicos Consequências da tradição biológica A tradição psicológica Terapia moral Reforma psiquiátrica e declínio da terapia moral Teoria psicanalítica Teoria humanista O modelo comportamental O presente: o método científico e uma abordagem integradora Comportamento anormal no contexto histórico1 Je rr y C oo ke /P ho to R es ea rc he rs /S ci en ce S ou rc e 2 PsicoPatologia Compreendendo a psicopatologia Hoje, você pode ter saído da cama, tomado seu café, ido para suas aulas, estudado e, no final do dia, gozado da companhia de seus amigos antes de cair no sono. Provavelmente, não ocorreu a você que muitas pessoas fisicamente saudáveis não são capazes de fazer algumas ou nenhuma dessas coisas. O que elas têm em comum é um transtorno psicológico, uma disfunção psicológica associa- da a sofrimento ou prejuízo no funcionamento e uma resposta que não é típica ou culturalmente esperada. Antes de examinar o que isso significa, vamos observar a situação de um indivíduo. JUDY• • • A garota que desmaiava ao ver sangue Judy, 16 anos, foi levada à nossa clínica para tratamento de transtornos de ansiedade após crescentes episódios de desmaio. Cerca de dois anos antes, em sua primeira aula de biologia, o professor mostrou um filme sobre a dissecação de uma rã para exemplificar diversos aspectos da anatomia. Foi um filme com imagens vívidas de sangue, tecidos e músculos. Mais ou menos na metade da exibição, Judy se sentiu um pouco zonza e deixou a sala. Mas as imagens não saíam da sua mente. Ela continuou a ser atormentada por elas e, ocasionalmente, sentia-se nauseada. Começou a evi- tar situações nas quais poderia ver sangue ou ferimentos. Parou de ver revistas que poderiam trazer fotos de violên- cia e sangue. Começou a achar difícil olhar carne vermelha crua, ou até mesmo curativos, porque eles traziam lembran- Descrever os conceitos-chave, os princípios e os temas gerais em psicologia • Explicar por que a psicologia é uma ciência com objetivos primários de descrever, compreender, prever, controlar comportamentos e processos mentais (APA SLO 5.1b) • Utilizar a terminologia básica da psicologia, os conceitos e as teorias em psicologia para explicar o comportamento e os processos mentais (APA SLO 5.1a) Desenvolver um conhecimento prático dos domínios de conteúdos da psicologia • Resumir aspectos importantes da história da psicologia, incluindo figuras-chave, interesses centrais, métodos utilizados e conflitos teóricos (APA SLO 5.2C) • Identificar as características-chave dos principais domínios de investigação em psicologia (ex.: cognição e aprendizagem, psicologia do desenvolvimento, aspectos biológicos e socioculturais) (APA SLO 5.2a) Utilizar o raciocínio científico para interpretar o comportamento • Ver APA SLO 5.1a, supracitado • Incorporar vários níveis pertinentes de complexidade (ex.: celular, individual, grupo/sistema, social/cultural) para explicar o comportamento (APA SLO 1.1C) *Parte deste capítulo disserta sobre os resultados finais de aquisição de conhecimento sugeridos pela American Psychological Association (2012), inclusos nas diretrizes para bacharéis em Psicologia. O escopo do capítulo concernente aos resultados está identificado acima pela APA Goal e pela APA Resultados de Aprendizado Sugeridos (RAS). Resultados finais de assimilação do conteúdo pelo aluno*[ ] ça das imagens de sangue que a amedrontavam. Por fim, qualquer coisa que seus amigos ou parentes lhe diziam que trazia imagem de sangue ou ferimento fazia com que Judy tivesse a sensação de desmaio. A situação ficou tão séria que, se um de seus amigos gritasse “corta essa!”, ela se sentia fraca. Seis meses antes de visitar a clínica, Judy desmaiou de fato quando inevitavelmente viu alguém ensanguentado. Nem o médico da família nem outros médicos conseguiam achar nada de errado com ela. Quando foi encaminhada à nossa clínica, ela desmaiava de cinco a dez vezes por sema- na, frequentemente durante suas aulas. É óbvio que isso era problemático para ela e que a atrapalhava na escola; cada vez que Judy desmaiava, os outros estudantes se aglomera- vam ao redor, tentando ajudá-la, e a aula era interrompida. Pelo fato de ninguém ter encontrado nada de errado, o dire- tor concluiu que ela estava sendo manipuladora e a suspen- deu, mesmo sendo uma aluna excelente. Judy estava sofrendo do que chamamos fobia de san- gue-injeção-ferimentos. Sua reação era bastante severa e, em razão disso, preenchia critérios para fobia, um transtorno psicológico caracterizado por medo intenso e persistente de um objeto ou de uma situação. Muitas pessoas têm reações semelhantes, mas não tão graves, quando tomam injeção ou veem alguém ferido, com sangue visível ou não. Para aque- las que possuem um comportamento tão severo quanto Judy, essa fobia pode ser incapacitante. Elas devem evitar certas profissões, como medicina ou enfermagem, e têm tan- to medo de agulhas e de injeções que as evitam mesmo quando precisam delas, o que coloca sua saúde em risco. 3Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo O que é transtorno psicológico? Tendo em mente os problemas reais enfrentados por Judy, olhe- mos mais atentamente para a definição de transtorno psicológico ou comportamento anormal: esse transtorno é uma disfunção psicológica em um indivíduo, que está associada a sofrimento ou prejuízo no funcionamento, bem como a uma resposta que não é típica ou culturalmente esperada (ver Figura 1.1). Super- ficialmente, esses três critérios podem parecer óbvios, mas não foram facilmente caracterizados, e, dessa forma, vale explorar o que significam. Você verá, sobretudo, que ainda não foi desen- volvido nenhum critério que defina plenamente a anormalidade. Disfunção psicológica Disfunção psicológica refere-se a uma desordem no funciona- mento cognitivo, emocional ou comportamental. Por exemplo, ter um encontro deveria ser divertido. Mas se você experimenta um forte medo a noite toda e só quer voltar para casa, mesmo que não haja nada para temer, e se o medo ocorre a cada en- contro, suas emoções não estão funcionando adequadamente. Entretanto, se todos os seus amigos concordam que a pessoa que convidou você para sair é perigosa de alguma forma, não seria “disfuncional” ter medo e evitar o encontro. A disfunção estava presente em Judy: ela desmaiava ao ver sangue. Muitas pessoas experimentam uma versão em menor grau dessa reação (sentem-se enjoadas ao ver sangue), sem preen cherem os critérios para o transtorno; assim, estabelecer o limite entre disfunção normal e anormal é difícil. Por essa razão, esses problemas são, com frequência, considerados em um continuum ou em uma dimensão em vez de categorizá-los como presentes ou ausentes (McNally, 2011; Stein, Phillips, Bol- ton, Fulford, Sadler e Kendler, 2010; Widiger e Crego, 2013). Esse também é o motivo pelo qual apenas ter uma disfunção não é o suficiente para preencher critérios para um transtorno psicológico. Sofrimento subjetivo ou prejuízo Parece evidente que o comportamento deve estar associado a sofrimento para ser classificado como anormal, o que incorpora um componente importante: o critério é cumprido se o indiví- duo está demasiadamente perturbado. Podemos dizer que sem Angústia e sofrimento fazem parte da vida e não constituem em si um transtorno psicológico. E ni gm a/ A la m y © C en ga ge L ea rn in g® dúvida Judy estava muito aflita e sofria em razão de sua fobia. Contudo, devemos lembrar que somente esse critérionão define o comportamento anormal. É bastante comum ficar angustiado – por exemplo, se alguém próximo vier a falecer. A condição humana é tal que o sofrimento e a angústia fazem parte da vida. E isso provavelmente não vai mudar. Além disso, para alguns transtornos, por definição, há ausência de sofrimento e angús- tia. Considere uma pessoa que se sente eufórica ao extremo, po- dendo agir impulsivamente como parte de um episódio maníaco. Como veremos no Capítulo 7, uma das principais dificuldades em relação a esse problema é que algumas pessoas gostam tanto do estado maníaco que relutam em começar um tratamento ou em segui-lo por muito tempo. Assim, definir um transtorno psico- lógico apenas pelo sofrimento subjetivo não funciona, embora o seu conceito contribua para uma boa definição. O conceito de prejuízo é útil, embora não inteiramente sa- tisfatório. Por exemplo, muitas pessoas se consideram tímidas ou preguiçosas. Isso não significa que elas sejam anormais. No entanto, se você é tão tímido que acha impossível namorar ou mesmo interagir com outras pessoas, e se você tenta impedir as interações mesmo que desejasse ter amigos, então seu funciona- mento social está prejudicado. Judy foi claramente prejudicada por sua fobia, mas muitas pessoas que têm reações semelhantes, menos graves, não são. Essa diferença ilustra mais uma vez a importante questão de que a maioria dos transtornos psicológicos são simplesmente expressões extremas de emoções, comportamentos e processos cognitivos considerados normais. Disfunção psicológica Sofrimento ou prejuízo Resposta atípica FIGURA 1.1 O critério que define um transtorno psicológico. Transtorno psicológico 4 PsicoPatologia Atípico ou socialmente não esperado Finalmente, o critério para o qual a resposta seja atípica ou so- cialmente não esperada é importante, mas também insuficien- te para determinar a anormalidade por si só. Às vezes, algo é considerado anormal porque não ocorre com frequência; e se desvia da média. Quanto maior o desvio, maior a anormalidade. É possível dizer que alguém é baixo ou alto de forma anormal, significando que a altura da pessoa se desvia substancialmente da média, mas isso não é uma definição de transtorno. Muitas pessoas estão longe da média no que se refere aos seus com- portamentos, mas poucas seriam consideradas transtornadas. Poderíamos chamá-las de talentosas ou excêntricas. Muitos artis- tas, astros de cinema e atletas se encaixam nessa categoria. Por exemplo, não é normal planejar jatos de sangue saindo das suas roupas, mas quando Lady Gaga fez isso durante sua performance apenas aprimorou seu status de celebridade. O romancista J. D. Salinger, que escreveu O apanhador no campo de centeio, refu- giou-se em uma cidadezinha em New Hampshire e recusou-se a ver outras pessoas durante vários anos, mas continuou a escre- ver. Alguns cantores de rock homens usam maquiagem pesada no palco. Essas pessoas são bem pagas e parecem adorar suas carreiras. Na maioria dos casos, quanto mais produtivo você é aos olhos da sociedade, mais excentricidades a sociedade tolera- rá. Por conseguinte, “desvio da média” não serve como uma boa definição para comportamento anormal. Outra visão considera que seu comportamento é anormal se você violar as normas sociais, mesmo se um número de pessoas for solidário com seu ponto de vista. Essa definição é muito útil, levando-se em conta importantes diferenças culturais nos trans- tornos psicológicos. Por exemplo, entrar em um estado de transe e acreditar estar possuído refletem um transtorno psicológico na maioria das culturas ocidentais, mas não em muitas outras sociedades, nas quais esses comportamentos são aceitos e espe- rados (ver Capítulo 6). (A perspectiva cultural é um importante aspecto de referência no decorrer deste livro.) Um exemplo des- sa visão é oferecido por Robert Sapolsky (2002), proeminente neurocientista que, durante seus estudos, trabalhou de perto com a tribo Masai da África Oriental. Certo dia, Rhoda, ami- ga masai de Sapolsky, pediu-lhe que trouxesse o seu jipe o mais rapidamente possível para o vilarejo, onde uma mulher estava agindo com muita agressividade e ouvia vozes. A mulher tinha matado um bode com as próprias mãos. Sapolsky e diversos ma- sai foram capazes de dominá-la e transportá-la para um centro médico local. Notando que aquela era uma oportunidade de aprender mais sobre a visão dos transtornos psicológicos dos masai, Sapolsky manteve o seguinte diálogo: “Então, Rhoda”, comecei laconicamente, “o que você acha que tinha de errado com aquela mulher?” Ela olhou para mim como se eu fosse maluco. “Ela está louca.” “Mas como você sabe?” “Ela está louca. Você não percebe isso nas atitudes dela?” “Mas como você conclui que ela está louca? O que ela fez?” “Ela matou aquele bode.” “Oh”, eu disse com um desinteresse antropológico, “mas os masai matam bodes o tempo todo.” Ela olhou para mim como se eu fosse um idiota. “So- mente os homens matam bodes”, disse ela. “Bem, por qual outro motivo você acredita que ela esteja louca?” “Ela ouve vozes.” Novamente, fiz-me de bobo. “Oh, mas os masai ou- vem vozes às vezes.” (Em cerimônias antes de longos per- cursos conduzindo gado, os masai dançam em transe e dizem ouvir vozes.) E em uma sentença, Rhoda resumiu metade do que alguém precisa saber sobre psiquiatria transcultural. “Mas ela ouve vozes no momento errado.” (p. 138) Entretanto, um padrão social de normalidade tem sido erro- neamente usado. Considere, por exemplo, a prática de confinar dissidentes políticos em instituições de saúde mental, em razão de seus protestos contra as atitudes políticas de seus governos, o que era comum no Iraque antes da queda de Saddam Hussein e agora ocorre no Irã. Embora tal comportamento dissidente viole as normas sociais, por si só não seria causa de confinamento. Jerome Wakefield (1999, 2009), em uma análise muito cuida- dosa sobre o assunto, usa a definição taquigráfica de disfunção prejudicial. Um conceito relacionado também útil é determinar se o comportamento está ou não fora do controle do indivíduo (al- guma coisa que a pessoa não queira fazer) (Widiger e Crego, 2013; Widiger e Sarkis, 2000). Variantes dessas abordagens são mais frequentemente usadas na prática de diagnóstico atual, como foi ressaltado na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Nós aceitamos comportamentos extremados de celebridades, tais como Lady Gaga, que não seriam tolerados em outros membros de nossa sociedade. C hr is to ph er P ol k/ G et ty Im ag es 5Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo Transtornos Mentais (DSM-5) (American Psychiatric Association, 2013), que apresenta a listagem atual dos critérios para os trans- tornos psicológicos (Stein et al., 2010). Essas abordagens condu- zem nossa linha de pensamento no presente livro. Uma definição aceita Enfim, é difícil definir “normal” e “anormal” (Lilienfeld & Ma- rino, 1995, 1999) – e o debate continua (Houts, 2001; McNally, 2011; Stein et al., 2010; Spitzer, 1999; Wakefield, 2003, 2009). A definição mais amplamente aceita utilizada no DSM-5 descreve disfunções comportamentais, psicológicas ou biológicas que são inesperadas em seu contexto cultural e associadas à presença de sofrimento e prejuízo no funcionamento ou aumento de risco de sofrimento, morte, dor ou prejuízo. Essa definição pode ser útil para equiparar culturas e subculturas se prestarmos atenção ao que é “funcional” ou “disfuncional” (ou fora de controle) em determinada sociedade. No entanto, nunca é fácil decidir o que representa disfunção, e alguns acadêmicos argumentam que as profissões da área de saúde nunca serão capazes de definir sa- tisfatoriamente doença ou transtorno (ver, por exemplo, Lilien- feld e Marino, 1995, 1999; McNally, 2011; Stein et al., 2010). O melhor que podemos fazer é considerar de que forma a doen- ça ou o transtorno aparente se encaixa em um perfil típico de umtranstorno – por exemplo, transtorno depressivo maior ou esquizofrenia –, quando todos ou a maioria dos sintomas que os especialistas concordariam ser parte do transtorno estão presentes. Chamamos esse perfil típico de protótipo e, como descrito no Capítulo 3, os critérios de diagnóstico do DSM- IV-TR, bem como aqueles emergentes do DSM-5 encontrados no decorrer deste livro são todos protótipos. Isso significa que o paciente pode ter apenas algumas características ou sintomas do transtorno (um número mínimo) e ainda preencher critério para o transtorno porque seu conjunto de sintomas está próximo do protótipo. Mas uma das diferenças entre DSM-IV e DSM-5 é o acréscimo de estimativas dimensionais de gravidade dos transtornos específicos no DSM-5 (American Psychiatric Asso- ciation, 2013; Regier et al., 2009; Helzer et al., 2008). Assim, para os transtornos de ansiedade, por exemplo, a intensidade e a fre- quência de ansiedade dentro de um determinado transtorno, tal como o transtorno de pânico, são classificadas em uma escala de 0 a 4, em que 1 indicaria sintomas leves ou ocasionais e 4 in- dicaria sintomas contínuos e graves (Beesdo-Baum et al., 2012; LeBeau et al., 2012). Esses conceitos são descritos de forma mais detalhada no Capítulo 3, no qual se discute o diagnóstico de transtorno psicológico. Para um desafio final, leve o problema da definição de um comportamento anormal um passo adiante e considere o se- guinte: e se Judy vivesse aquela situação com tanta frequência que, após um tempo, nem seus colegas nem seus professores no- tassem, porque ela recuperava a consciência rapidamente? Além disso, e se Judy continuasse a obter boas notas? Desmaiar o tem- po todo ante a mera ideia de sangue seria um transtorno? Estaria lhe causando prejuízo? Seria disfuncional? Angustiante? O que você pensa a respeito? A ciência da psicopatologia A psicopatologia é o estudo científico de transtornos psicológi- cos. Nesse campo atuam profissionais especialmente treinados, incluindo psicólogos clínicos e de aconselhamento, psiquiatras, assistentes sociais e enfermeiras especializados em psiquiatria, bem como terapeutas de casais e de família e conselheiros de saúde mental. Nos Estados Unidos, psicólogos clínicos e de acon- selhamento podem receber o grau de Ph.D. (ou, às vezes, de Ed.D., doutor em educação, ou de Psy.D., doutor em psicologia) e fazem um curso de graduação com duração de aproximada- mente cinco anos, que os prepara para conduzir pesquisas sobre causas e tratamento de transtornos psicológicos e para diagnos- ticar, avaliar e tratar esses transtornos. Embora haja uma gran- de quantidade de sobreposições, psicólogos de aconselhamento tendem a estudar e tratar ajustes e assuntos vocacionais relacio- nados a indivíduos relativamente saudáveis; já os psicólogos clí- nicos se concentram usualmente nos transtornos psicológicos mais graves. Além disso, os programas em cursos profissionais de psicologia, em que o título é frequentemente Psy.D., doutor em psicologia, têm como foco o treinamento clínico e a diminui- ção ou eliminação do treino em pesquisa. De maneira oposta, os programas de Ph.D. nas universidades integram o treinamen- to clínico e em pesquisa. Psicólogos com outras especialidades, como os psicólogos experimentais e sociais, concentram a inves- tigação nos determinantes básicos do comportamento, mas não avaliam nem tratam os transtornos psicológicos1. Em um primeiro momento, os psiquiatras obtêm um grau de M.D. em um curso de Medicina, então, ao longo de três a quatro anos de residência médica, especializam-se em Psi- quiatria. Psiquiatras também investigam a natureza e as cau- sas dos transtornos psicológicos, frequentemente com base em um ponto de vista biológico; fazem diagnósticos; e oferecem tratamentos. Muitos desses profissionais enfatizam drogas ou outros tratamentos biológicos, embora a maioria também use tratamentos psicossociais. Os assistentes sociais da área de psiquiatria geralmente podem obter título de mestre em serviço social por se especializarem em coletar informações relevantes para a situação social e familiar do indivíduo que sofre de um transtorno psicológico. Assistentes so- ciais também tratam de transtornos, frequentemente concentran- do-se nos problemas familiares relacionados a eles. Os enfermeiros da área de psiquiatria têm títulos avançados, como mestrado ou até mesmo doutorado, e são especializados no cuidado e trata- mento de pacientes com transtornos psicológicos, geralmente em hospitais, como parte de uma equipe de tratamento. Por fim, os terapeutas de casais, terapeutas familiares e conse- lheiros de saúde mental dedicam um a dois anos para conquistar um título de mestre e são contratados para prestar serviços clí- nicos em hospitais ou clínicas, em geral sob supervisão de um clínico com título de doutor. O pesquisador clínico O mais importante desenvolvimento na história recente da psi- copatologia é a adoção de métodos científicos para aprender mais sobre a natureza dos transtornos psicológicos, suas causas e seu tratamento. Muitos profissionais da área de saúde men- tal seguem uma abordagem científica em seu trabalho clínico e, por conseguinte, são chamados de pesquisadores clínicos (Bar- low, Hayes e Nelson, 1984; Hayes, Barlow e Nelson-Gray, 1999). 1 RT: A descrição das profissões e carreiras que constam neste item pertencem a um modelo norte-americano. No Brasil, há algumas diferenças. 6 PsicoPatologia Profissionais da área de saúde mental podem atuar como pes- quisadores clínicos em uma ou mais dentre três maneiras (ver Figura 1.2). Primeiro, eles podem acompanhar os mais recen- tes avanços científicos em sua área e, portanto, utilizar os mais atuais procedimentos de tratamento e de diagnóstico. Nesse sentido, são consumidores da ciência da psicopatologia para be- nefício de seus pacientes. Segundo, pesquisadores clínicos anali- sam seus próprios procedimentos de avaliação ou de tratamento para verificar se funcionam. Esses profissionais respondem não apenas por seus pacientes, mas também pelas agências governa- mentais e seguradoras que pagam pelos tratamentos e, por essa razão, eles devem demonstrar claramente que seus tratamentos funcionam. Terceiro, pesquisadores clínicos podem conduzir pesquisas, geralmente em clínicas ou hospitais, que produzam novas informações sobre transtornos ou sobre seu tratamento, tornando-se, assim, imunes aos modismos que impregnam nos- so campo de trabalho, em geral, à custa de pacientes e de suas fa- mílias. Por exemplo, novas “curas miraculosas” para transtornos psicológicos que são relatadas diversas vezes por ano na mídia não seriam usadas por um pesquisador clínico, se não houves- se nenhuma sondagem de dados científicos mostrando que elas funcionam. Tais dados são oriundos de pesquisas que tentam três coisas básicas: descrever os transtornos psicológicos, de- terminar suas causas e tratá-las (ver Figura 1.3). Essas três ca- tegorias compõem uma estrutura organizacional que perpassa todo este livro e que é formalmente evidente nas discussões concernentes a transtornos específicos que discutiremos a par- tir do Capítulo 5. Um panorama geral neste momento propicia uma perspectiva mais nítida dos nossos esforços para compre- ender a anormalidade. Descrição clínica Em hospitais e clínicas, frequentemente dizemos que um pa- ciente “apresenta” um problema específico ou um conjunto de problemas, ou simplesmente discutimos a apresentação do problema. Apresentação é um atalho tradicional para indicar porque a pessoa procurou a clínica. Descrever a apresentação do problema em Judy é o primeiro passo para determinar sua descrição clínica, que representa a combinação específica de comportamentos, pensamentos e sentimentos que constituem um transtorno específico. A palavra clínica refere-se tanto aos tipos de problema ou transtorno que você poderia encontrar em uma clínica ou hospital quanto às atividades relacionadas à ava- liaçãoe ao tratamento. No decorrer deste texto, existem excertos de muitos outros casos individuais, a maioria deles extraída de nossos arquivos pessoais. Evidentemente, uma função importante da descrição clínica é especificar o que torna o transtorno diferente do comporta- mento normal ou de outros transtornos. Dados estatísticos tam- bém podem ser relevantes. Por exemplo, quantas pessoas na população total apresen- tam o transtorno? Esse número é chamado de prevalência do transtorno. As estatísticas de quantos novos casos ocorrem du- rante determinado período, como em um ano, representam a incidência do transtorno. Outras estatísticas incluem a propor- ção entre sexos – ou seja, qual é a porcentagem de homens e mu- lheres que têm o transtorno – e a idade típica de manifestação, o que frequentemente difere de um transtorno para outro. Além de apresentarem sintomas diferentes, idade de mani- festação e, possivelmente, uma proporção diferente entre os se- xos e prevalência, a maioria dos transtornos segue um padrão individual, ou curso. Por exemplo, alguns transtornos, como a esquizofrenia (ver Capítulo 13), seguem um curso crônico, o que significa que tendem a durar um longo tempo, algumas vezes, toda a vida. Outros transtornos, como os do humor (ver Capítulo 7), seguem um curso episódico, ou seja, o indivíduo provavelmente se recupera dentro de alguns meses e sofre uma recorrência do transtorno posteriormente. Esse padrão pode se repetir no decorrer da vida de uma pessoa. Ainda assim, outros transtornos podem ter um curso limitado, e isso significa que o transtorno vai melhorar sem tratamento em um período de tempo relativamente curto. As diferenças na manifestação inicial estão diretamente rela- cionadas às diferenças no curso dos transtornos. Alguns têm um início agudo, começam repentinamente; outros se desenvolvem de forma gradual no decorrer de longo período, às vezes, chamado início insidioso. É importante conhecer o curso típico de um trans- torno para que possamos saber o que esperar no futuro e como melhor agir em relação ao problema. Essa é uma parte importante da descrição clínica. Por exemplo, se alguém está sofrendo de um transtorno leve com início agudo, que persistirá por um tempo limitado, podemos aconselhar a pessoa a não se preocupar com um tratamento dispendioso, porque o problema desaparecerá em breve, como se fosse um resfriado comum. Entretanto, se for pro- vável que o transtorno dure um tempo longo (tornando-se crô- nico), o indivíduo pode querer buscar tratamento e tomar outros caminhos apropriados. O curso antecipado de um transtorno © C en ga ge L ea rn in g® . P ho to : K ev in P et er so n/ G et ty Im ag es FIGURA 1.2 O exercício do pesquisador clínico. Profissional de saúde mental Consumidor da ciência • Aprimora a prática Avaliador da ciência • Determina a efetividade da prática Criador da ciência • Conduz pesquisas que levam a novos procedimentos úteis na prática Foco Descrição clínica Causa (etiologia) Tratamento e resultado FIGURA 1.3 As três principais categorias que compõem o estudo e a discussão sobre transtornos psicológicos. Estudando os transtornos psicológicos © C en ga ge L ea rn in g® . 7Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo é conhecido como prognóstico. Então, poderíamos dizer, “o prognóstico é bom”, ou seja, o indivíduo provavelmente vai se recuperar; ou “o prognóstico requer cuidados”, isto é, o resultado provável não parece bom. A idade do paciente é muito importante na descrição clíni- ca. Um mesmo transtorno psicológico específico que ocorre na infância pode se apresentar de forma diferente na vida adulta ou na velhice. Crianças que experimentam ansiedade e pânico graves supõem estar sofrendo de algum mal físico, pois têm di- ficuldade de entender que, na verdade, o mal de que sofrem não é físico, mas psíquico. As crianças experimentam pensamentos e sentimentos diferentes dos adultos e, por isso, ansiedade e pâni- co nelas geralmente são erroneamente diagnosticados e tratados como transtornos médicos. Chamamos o estudo das mudanças no comportamento ao longo do tempo psicologia do desenvolvimento, e nos referimos ao estudo das mudanças no comportamento anormal como psicopatologia do desenvolvimento. Quando você pensa sobre a psicologia do desenvolvimento, provavelmente imagina pesqui- sadores estudando o comportamento das crianças. Entretanto, em virtude do fato de mudarmos no decorrer de nossas vidas, os pesquisadores também estudam o desenvolvimento nos ado- lescentes, nos adultos e nos idosos. O estudo do comportamento anormal durante um ciclo de vida inteiro é chamado de psicopa- tologia do desenvolvimento do ciclo de vida. Esse campo é relati- vamente novo, mas está se expandindo com rapidez. Resultados de causa, tratamento e etiologia A etiologia, ou o estudo das origens, tem a ver com o porquê de o transtorno começar (o que o causa) e inclui dimensões biológicas, psicológicas e sociais. Em razão de a etiologia dos transtornos psicológicos ser tão importante para essa área, dedi- camos ao assunto um capítulo inteiro (Capítulo 2). O tratamento é fundamental para o estudo dos transtornos psicológicos. Se uma nova droga ou tratamento psicossocial for bem-sucedido no tratamento de um transtorno, isso pode nos propiciar algumas pistas sobre a natureza do transtorno e suas causas. Por exemplo, se uma droga com um efeito específico conhecido dentro do sistema nervoso alivia certo transtorno psicológico, sabemos que alguma coisa naquela parte do siste- ma nervoso poderia também estar causando o transtorno ou ajudando a mantê-lo. De forma semelhante, se um tratamento psicossocial designado para ajudar os pacientes a recuperar o sentido do controle sobre suas vidas é efetivo para determinado transtorno, um senso de controle diminuído pode ser um com- ponente psicológico importante do transtorno em si. Como veremos no próximo capítulo, a psicopatologia é raramente simples. Isso porque o efeito não necessariamente implica a causa. Para usar um exemplo comum, você poderia tomar uma aspirina para aliviar uma cefaleia de tensão desen- volvida durante um dia estressante fazendo exames. Se você então se sente melhor, isso não significa que a cefaleia foi cau- sada pela ausência de aspirina. Não obstante, muitas pessoas procuram tratamento para transtornos psicológicos, e o trata- mento pode oferecer indicações importantes sobre a natureza do transtorno. No passado, os livros enfatizavam abordagens de tratamento em um sentido geral, com pouca atenção para o transtorno tra- tado. Por exemplo, um profissional de saúde mental poderia ser As crianças experimentam o pânico e a ansiedade de maneira diferente dos adultos, por isso suas reações podem ser confundidas com sintomas de doença física. © al er sa nd r hu nt a/ S hu tt er st oc k. co m capacitado para uma única abordagem teórica, como psicanáli- se ou terapia comportamental (ambas descritas posteriormen- te no capítulo), e então usar aquela abordagem para todos os transtornos. À medida que nossa ciência tem avançado, desen- volvemos tratamentos efetivos específicos que nem sempre ade- rem completamente a uma abordagem teórica ou a outra, mas acrescentam uma compreensão mais profunda do transtorno em questão. Por esse motivo, não existem capítulos separados neste livro sobre tais tipos de abordagem de tratamento, como o psicodinâmico, o cognitivo-comportamental ou o humanis- ta. Em vez disso, a mais recente e eficiente droga e tratamentos psicossociais (tratamentos não medicamentosos que focam em fatores psicológicos, sociais e culturais) são descritos no contex- to de transtornos específicos de acordo com nossa perspectiva multidimensional integradora. Após pesquisarmos muitas tentativas iniciais de descrever e tratar o transtorno mental, e, mais ainda, de compreender suas causas, podemos proporcionar uma perspectiva mais ampla das abordagensatuais. No Capítulo 2, examinamos interessantes concepções contemporâneas sobre causa e tratamento. No Ca- pítulo 3, discutimos os esforços para descrever, ou classificar, o comportamento anormal. No Capítulo 4, revemos métodos de pesquisa – nossos esforços sistemáticos para descobrir os fatos subjacentes à descrição, à causa e ao tratamento que permitem que atuemos como pesquisadores clínicos. Do Capítulo 5 ao Ca- pítulo 15, examinamos transtornos específicos; nossa discussão está organizada, em cada caso, na familiar tríade de descrição, causa e tratamento. Por fim, no Capítulo 16, examinamos os aspectos legais, profissionais e éticos relevantes em relação aos transtornos psicológicos e seu tratamento atualmente. Com essa visão panorâmica em mente, voltemos ao passado. jeffe Realce 8 PsicoPatologia Conceitos históricos do comportamento anormal Por centenas de anos, os seres humanos têm tentado explicar e controlar o comportamento problemático. No entanto, nossos esforços sempre advieram de teorias ou modelos de compor- tamento popular em determinada época. A finalidade desses modelos é explicar por que alguém está “agindo daquela ma- neira”. Três modelos principais nos fizeram voltar até os pri- mórdios da civilização. Os seres humanos sempre supuseram que agentes externos a nossos corpos e o ambiente influenciavam nosso comporta- mento, pensamento e emoções. Esses agentes – que podem ser divindades, demônios, espíritos ou outros fenômenos, tais como campos magnéticos, a lua ou as estrelas – são as forças propul- soras por trás do modelo sobrenatural. Além disso, desde a era da Grécia antiga, a mente tem sido frequentemente chamada de alma ou psique e considerada como algo separado do corpo. Embora muitos possam pensar que a mente pode influenciar o corpo, e, por sua vez, o corpo pode influenciar a mente, a maio- ria dos filósofos procuraram as causas do comportamento anor- mal em um ou noutro. Essa separação traz à luz duas tradições de pensamento sobre o comportamento anormal, resumidas como modelo biológico e modelo psicológico. Esses três modelos – o sobrenatural, o biológico e o psicológico – são muito antigos, mas continuam a ser utilizados até os dias de hoje. Verificação de conceitos 1.1 Parte A Escreva a letra de uma ou todas as seguintes definições de anormalidade nas lacunas: (a) violação da norma social, (b) prejuízo no funcionamento, (c) disfunção e (d) sofri- mento. 1. Miguel, recentemente, começou a ficar triste e solitário. Embora ainda seja capaz de trabalhar e cumprir com outras responsabilidades, ele acha que está sempre desa- nimado e anda preocupado com o que está acontecendo consigo. Qual das definições de anormalidade se aplica à situação de Miguel? 2. Há três semanas, Jane, de 35 anos, executiva da área de negócios, parou de tomar banho, recusa-se a sair de seu apartamento e começou a assistir a programas de audi- tório na televisão. Ameaças de que seria demitida falha- ram em trazê-la de volta à realidade, e ela continua a passar seus dias olhando fixamente para a tela da tele- visão. Qual das definições pode descrever o comporta- mento de Jane? Parte B Associe as seguintes palavras usadas em descrições clínicas com seus exemplos correspondentes: (a) apresentação do problema, (b) prevalência, (c) incidência, (d) prognóstico (e) curso e (f) etiologia. 3. Maria deveria recuperar-se rapidamente sem que nenhu- ma intervenção fosse necessária. Sem tratamento, John vai piorar rapidamente. 4. Três novos casos de bulimia foram relatados neste muni- cípio no último mês e apenas um no município vizinho. 5. Elizabeth visitou o centro de saúde mental do campus em razão de seus crescentes sentimentos de culpa e an- siedade. 6. Influências biológicas, psicológicas e sociais contribuem para uma variedade de transtornos. 7. O padrão que um transtorno segue pode ser crônico, li- mitado ou episódico. 8. Quantas pessoas na população sofrem com o transtorno obsessivo-compulsivo? A tradição sobrenatural Em grande parte de nossa história, o comportamento desviante tem sido considerado um reflexo da batalha entre o bem e o mal. Quando confrontadas com o inexplicável, com o compor- tamento irracional e com o sofrimento e a revolta, as pessoas entendiam como o mal. Na verdade, no Império Persa de 900 a 600 a.C., todos os transtornos físicos e mentais eram considera- dos manifestação demoníaca (Millon, 2004). Barbara Tuchman, notável historiadora, escreveu uma crônica sobre a segunda me- tade do século XIV, período particularmente difícil para a hu- manidade, em Um espelho distante: o terrível século XIV (1978). Nesse texto, ela, com muita propriedade, capturou as tendências de opinião sobre as origens e o tratamento da insanidade duran- te aquele período tumultuado e desesperançoso. Demônios e bruxas Uma forte corrente de opinião colocou, de maneira forçada, as causas e o tratamento dos transtornos psicológicos no domínio do sobrenatural. Durante o último quartel do século XIV, reli- giosos e autoridades laicas apoiaram as superstições populares, e a sociedade passou a acreditar na realidade e no poder dos de- mônios e das bruxas. A Igreja Católica se dividiu, e um segundo segmento, com a inclusão de um papa, surgiu no sul da França para competir com Roma. Em reação a esse cisma, a Igreja Ro- mana lutou contra o mal no mundo que acreditava estar por trás daquela heresia. As pessoas recorriam cada vez mais à mágica e à bruxaria para resolver seus problemas. Durante essa época turbulenta, o comportamento bizarro das pessoas atormentadas pelos trans- tornos psicológicos era visto como ação do diabo ou das bru- xas. Seguiu-se que os indivíduos dominados por maus espíritos eram considerados responsáveis por qualquer infortúnio experi- mentado pelos moradores das cidades, o que inspirou uma ação drástica contra os possuídos. Os tratamentos incluíam exorcismo, em que diversos rituais religiosos eram desenvolvidos para livrar 9Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo a vítima dos maus espíritos. Outras abordagens incluíam tosar o cabelo da vítima em formato de cruz e amarrá-la a um muro próximo ao adro de uma igreja de maneira que pudesse se bene- ficiar ao ouvir a missa. A convicção de que a bruxaria e as bruxas eram causas de loucura e de outros males continuou durante o século XV, e o mal continuou a ser o responsável por comportamentos inexpli- cáveis, mesmo após a fundação dos Estados Unidos, como ficou evidenciado pelos julgamentos das bruxas de Salem. Estresse e melancolia Uma opinião igualmente forte, mesmo durante esse período, re- fletiu a visão esclarecida de que a insanidade era um fenômeno natural, causado pelo estresse mental ou emocional, e que ela era curável (Alexander e Selesnick, 1966; Maher e Maher, 1985a). A depressão e a ansiedade foram reconhecidas como doenças (Kemp, 1990; Shoeneman, 1977), embora sintomas como deses- pero e letargia fossem frequentemente identificados pela Igreja com o pecado da apatia ou preguiça (Tuchman, 1978). Trata- mentos comuns eram repouso, sono e ambiente alegre e saudá- vel. Outros tratamentos incluíam banhos, unguentos e diversas poções. De fato, durante os séculos XIV e XV, pessoas insanas, juntamente com as pessoas com deformidades físicas ou incapa- citadas, eram transferidas de casa em casa nos vilarejos medie- vais, de forma que os vizinhos se revezavam para cuidar delas. Hoje, sabemos que é benéfica a prática de manter as pessoas que têm distúrbios psicológicos em sua própria comunidade (ver Capítulo 13). (Voltaremos a este assunto quando discutirmos os modelos biológico e psicológico adiante neste mesmo capítulo.) No século XIV, Nicholas Oresme, bispo, filósofo e um dos conselheiros-chefe do rei da França, também sugeriu que a doen ça da melancolia (depressão) era a fonte de comporta- mentos bizarros, em vez de ser causada por demônios. Oresme ressaltou que muito da evidência de haver bruxaria e feitiçaria,particularmente entre aqueles considerados insanos, advinha de pessoas que eram torturadas e que, compreensivelmente, con- fessavam qualquer coisa. Durante a Idade Média, às vezes, pensava-se que indivíduos com transtornos psicológicos estavam possuídos por espíritos demoníacos e, por essa razão, tentava-se fazer exorcismos por meio de rituais. © M ar y E va ns P ic tu re L ib ra ry /t he Im ag e W or ks Esses fluxos transversais conflituosos de explicações naturais e sobrenaturais para os transtornos mentais eram representados com maior ou menor veemência em diversos trabalhos histó- ricos, dependendo das fontes consultadas pelos historiadores. Algumas pessoas presumiam que as influências demoníacas eram as explicações predominantes de comportamento anormal durante a Idade Média (por exemplo, Zilboorg e Henry, 1941); outros acreditavam que o sobrenatural teria pouca ou nenhuma influência. Como poderemos ver no tratamento do transtorno psicológico grave experimentado pelo rei da França, Carlos VI, no final do século XIV, ambas as influências eram fortes e, às vezes, alternavam-se no tratamento do mesmo caso. O rei loucoCARLOS VI• • • No verão de 1392, o rei da França, Carlos VI, estava sob forte estresse, em parte pela divisão da Igreja Católica. En- quanto conduzia seu exército à província da Bretanha, um ajudante militar próximo deixou sua lança cair, fazendo um ruído estrondoso. O rei, pensando ser um ataque, voltou- -se contra seu próprio exército e matou diversos cavaleiros proe minentes antes de ser subjugado pelas costas. O exérci- to marchou imediatamente de volta a Paris. Os tenentes e os conselheiros do rei concluíram que ele estava louco. Nos anos seguintes, em seus piores momentos, o rei es- condia-se em um canto do seu castelo, acreditava que seu corpo era feito de vidro, ou perambulava pelos corredores uivando como um lobo. Em outros momentos, não conse- guia se lembrar quem ou o que era. Ele tornou-se medroso; e ficava irado sempre que via seu próprio brasão real e ten- tava destruí-lo caso fosse trazido para perto dele. O povo de Paris estava arrasado com a aparente loucu- ra de seu líder. Alguns pensavam que isso refletia a ira de Deus, porque o rei falhou ao tomar armas para acabar com o cisma da Igreja Católica; outros pensavam que isso fosse o aviso de Deus contra a tomada das armas; havia ainda os que pensavam que era a punição divina contra os impostos pesados (uma conclusão a que algumas pessoas poderiam chegar hoje). Contudo, a maioria pensava que a loucura do rei era causada por bruxaria, uma crença intensificada pela forte seca que havia atingido açudes e rios, fazendo com que o gado morresse de sede. Os mercadores lamentavam suas piores perdas em 20 anos. Naturalmente, era dado ao rei o melhor tratamento dis- ponível. O mais famoso curador da época era um médico de 92 anos, cujo programa de tratamento incluía mudar o rei para uma de suas residências no campo, onde se supunha que o ar era o mais puro do país. O médico prescreveu des- canso, relaxamento e recreação. Após algum tempo, Carlos VI pareceu estar recuperado. O médico recomendou que o rei não fosse sobrecarregado com as responsabilidades de administrar o reino, alegando que, se ele tivesse poucas preo cupações ou irritações, sua mente, aos poucos, se forta- leceria e, assim, melhoraria ainda mais. Infelizmente, o médico morreu, e a insanidade do rei vol- tou mais séria do que antes. Desta vez, entretanto, ele ficou 10 PsicoPatologia sob a influência da causa transversal e conflitante do sobre- natural. “Um charlatão rude de más intenções e pseudomís- tico, chamado Arnaut Guilhem, teve permissão para tratar de Carlos sob a alegação de possuir um livro dado por Deus a Adão por meio do qual o homem poderia superar toda a aflição resultante do pecado original” (Tuchman, 1978, p. 514). Guilhem insistiu que a doença do rei era causada por bruxaria, mas seu tratamento não trouxe a cura. Uma variedade de remédios e rituais de todos os tipos foi aplicada, mas nada funcionou. Oficiais de alto escalão e doutores da universidade que chamavam por “feiticei- ros” eram descobertos e punidos. “Em certa ocasião, dois frades agostinianos, após não obterem nenhum resultado de encantamentos mágicos e de um líquido feito de péro- las poderosas, propuseram fazer incisões na cabeça do rei. Quando isso não foi permitido pelo conselho real, os frades acusaram de bruxaria aqueles que se opuseram às suas reco- mendações” (Tuchman, 1978, p. 514). Mesmo o próprio rei, durante seus momentos lúcidos, voltava a acreditar que a fonte da loucura era o mal e a bruxaria. “Em nome de Jesus Cristo”, ele gritava, pranteando em sua agonia, “se houver algum de vocês que tenha relação com este mal de que eu sofro, eu lhe imploro não mais me torturar, antes, deixe-me morrer!” (Tuchman, 1978, p. 515). Tratamentos para possessão Com a conexão entre feitos malignos e o pecado de um lado e os transtornos psicológicos de outro, é lógico concluir que a pessoa que sofre do distúrbio é responsável pelo transtorno, que pode- ria, por sua vez, ser uma punição por feitos malignos. Isso parece familiar? A síndrome epidêmica da imunodeficiência adquirida (AIDS/SIDA) foi associada a uma crença similar entre algumas pessoas, em particular no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Pelo fato de o vírus da imunodeficiência humana (HIV) ser, nas sociedades ocidentais, mais prevalente entre indivíduos com orientação homossexual, muitas pessoas acreditavam que a doença advinha da punição divina pelo que eles consideravam um comportamento imoral. Essa concepção tornou-se menos comum quando o vírus da AIDS se disseminou por outros seg- mentos da população, mas ainda persiste. A possessão, contudo, não está relacionada ao pecado, mas pode ser vista como involuntária e o indivíduo possuído, como inocente. Além disso, os exorcismos pelo menos têm a virtude de ser relativamente indolores. Curiosamente, eles às vezes fun- cionam, como também funcionam outras formas de cura pela fé, por razões que exploraremos nos capítulos subsequentes. Mas e se eles não funcionassem? Na Idade Média, se o exorcismo falhasse, algumas autoridades pensavam que algumas atitudes eram necessárias para tornar o corpo inabitável pelos espíritos maus, e muitas pessoas eram confinadas, surradas e sofriam ou- tras formas de tortura (Kemp, 1990). Em algum momento, um “terapeuta” criativo achou que pen- durar pessoas sobre um poço cheio de cobras venenosas poderia assustar os espíritos demoníacos para fora de seus corpos possuí- dos (sem mencionar o quanto isso assustava as próprias pessoas). Por incrível que pareça, essa abordagem às vezes funcionava; ou seja, indivíduos com comportamentos mais perturbadores e es- tranhos de repente voltavam a si e vivenciavam o alívio dos sin- tomas, mas temporariamente. Naturalmente, tal procedimento era encorajador ao terapeuta e, assim, poços de serpentes foram construídos em muitas instituições. Vários outros tratamentos baseados no elemento terapêutico hipotético de choque foram desenvolvidos, incluindo imersão em água gelada. Histeria em massa Um outro fenômeno fascinante é caracterizado pelos surtos de comportamento bizarro em larga escala. Até os dias de hoje, esses episódios confundem historiadores e profissionais de saú- de mental. Durante a Idade Média, eles apoiaram a noção de possessão demoníaca. Na Europa, grupos inteiros de pessoas eram simultaneamente compelidas a saírem na rua, dançando, gritando, delirando e pulando em padrões como se estivessem em uma festa selvagem tarde da noite (hoje é a chamada festa rave, mas acompanhada de música). Esse comportamento era conhecido por diversos nomes, inclusive Dança de São Vito e tarantismo. O mais interessante é que muitas pes- soas se comportavam dessa maneira estranha de uma vez. Em uma tentativa de explicar o inexplicável, foram dadas várias razões além da possessão. Umahipótese razoável foi a reação a picada de insetos. Outra possi- bilidade foi o que nós chamamos agora de histeria em massa. Considere o exemplo que segue. Histeria em massa em tempos modernos Em uma sexta-feira à tarde, um alarme soou avisan- do todos os médicos de um hospital comunitário para que comparecessem à sala de emergência imediatamen- te. De uma escola local em uma frota de ambulâncias chegavam 17 alunos e 4 professores que diziam sentir tontura, cefaleia, náusea e dores de estômago; uns vomi- tavam e outros hiperventilavam. Todos os alunos e professores haviam estado em quatro salas de aula, duas de cada lado do corredor. O Na hidroterapia, pacientes eram submetidos ao choque para voltarem a si por aplicação de água gelada. © R og er -V io lle t/ Th e Im ag e W or ks 11Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo incidente começou quando uma garota de 14 anos disse que sen- tia um cheiro estranho que vinha de um respiradouro. Ela caiu no chão, gritando e reclamando que seu estômago doía e seus olhos ardiam. Logo, muitos alunos e a maioria dos professores das salas de aula adjuntas, que podiam ver e ouvir o que estava acontecendo, vivenciaram sintomas semelhantes. De 86 pessoas suscetíveis (82 alunos e 4 professores das quatro salas de aula), 21 pacientes (17 alunos e 4 professores) vivenciaram sintomas graves suficientes para serem atendidos em um hospital. A ins- peção do prédio da escola pelas autoridades de saúde pública revelou que não houve causa aparente para tais reações, e os exames físicos realizados pela equipe de médicos não revelaram anormalidade física. Todos os pacientes receberam alta e rapida- mente se recuperaram (Rockney e Lemke, 1992). A histeria em massa pode simplesmente demonstrar o fenô- meno de contágio emocional, em que a sensação de uma emoção se dissemina para outros ao nosso redor (Hatfield, Cacioppo, e Rapson, 1994; Wang, 2006). Se alguém perto de nós ficar com medo ou triste, é bem possível que por um momento você tam- bém sentirá medo ou tristeza. Quando esse tipo de experiên- cia chega a um completo surto de pânico, comunidades inteiras são afetadas (Barlow, 2002). Pessoas são também sugestionadas quando estão em estados emotivos elevados. Portanto, na medi- da em que uma pessoa identifica a “causa” do problema, outras provavelmente presumem que suas próprias reações têm a mes- ma origem. Numa linguagem popular, essa reação compartilha- da é, às vezes, chamada de psicologia das massas. A lua e as estrelas Paracelso, um médico suíço que viveu de 1493 a 1541, rejeitou as concepções de possessão demoníaca e sugeriu, em vez dis- so, que os movimentos da lua e das estrelas exerciam profun- do efeito no mecanismo mental das pessoas. Trazendo à luz o pensamento similar da Grécia antiga, Paracelso especulou que os efeitos gravitacionais da lua nos fluídos corporais poderiam ser uma causa possível de transtornos mentais (Rotton e Kelly, 1985). Essa teoria inspirou a criação da palavra lunático, que de- riva do latim luna, que significa “lua”. Você pode ouvir alguns amigos comentarem sobre algo louco que fizeram durante a noi- te quando dizem: “Deve ter sido a lua cheia”. A crença de que corpos celestiais afetam o comportamento humano ainda exis- te, embora não haja evidência científica para apoiá-la (Raison, Klein, e Steckler, 1999; Rotton e Kelly, 1985). Apesar de muita zombaria, milhões de pessoas ao redor do mundo estão conven- cidas de que seu comportamento é influenciado pelas fases da lua ou pela posição das estrelas. Essa crença é mais perceptível hoje em pessoas que são adeptas à astrologia e afirmam que seu comportamento e a maioria dos acontecimentos em suas vidas podem ser previstos pela relação entre o dia a dia e a posição dos planetas. Entretanto, nenhuma evidência séria tem confirmado tal conexão. Comentários A tradição sobrenatural está bem presente e viva na psicopato- logia, embora esteja relegada, em sua maior parte, a pequenas seitas religiosas e a culturas primitivas. Membros de religiões organizadas na maior parte do mundo procuram a psicologia e a ciência médica para ajudar nos principais transtornos psicoló- Emoções são contagiosas e podem se transformar em histeria em massa. A P P ho to /H at em M ou ss a gicos; de fato, a Igreja Católica Romana requer que se esgotem todos os recursos médicos antes que soluções espirituais, como exorcismo, possam ser consideradas. Além disso, curas miracu- losas são, às vezes, alcançadas por exorcismo, poções mágicas e rituais e outros métodos que parecem ter pouca ligação com a ciência moderna. É fascinante explorá-las quando elas de fato acontecem, e iremos voltar a esse tópico em capítulos posterio- res. No entanto, tais casos são relativamente raros, e quase nin- guém defenderia o tratamento espiritual para transtornos psico- lógicos graves, exceto, talvez, como último recurso. A tradição biológica Buscam-se as causas físicas dos transtornos mentais desde os primórdios da história. Foram importantes para a tradição psi- cológica: um homem, Hipócrates; uma doença, a sífilis; e as primeiras consequências da crença de que os transtornos psi- cológicos tinham causa biológica. Hipócrates e Galeno O médico grego Hipócrates (460-377 a.C.) é considerado o pai da medicina moderna ocidental. Ele e seus discípulos deixaram um conjunto de obras chamado Corpo Hipocrático, escrito entre 450 e 350 a.C. (Maher e Maher, 1985a), no qual eles sugeriam que os transtornos psicológicos poderiam ser tratados como qualquer outra doença. Eles não limitaram suas pesquisas para as causas da psicopatologia à área geral de “doença”, porque acre- ditavam que os transtornos psicológicos pudessem também ser causados por patologias cerebrais ou por traumas na cabeça e que poderiam ser influenciados pela hereditariedade (genéti- ca). Essas são deduções notavelmente astutas para aquela época e têm sido apoiadas até anos recentes. Hipócrates considerava o cérebro a sede da sabedoria, da consciência, da inteligência e da emoção. Por conseguinte, os transtornos envolvendo essas funções estariam claramente localizados no cérebro. Hipócrates também reconheceu a importância das contribuições psicoló- gicas e interpessoais para a psicopatologia, como os efeitos por vezes negativos do estresse familiar; em determinadas ocasiões, ele isolou pacientes de suas famílias. 12 PsicoPatologia O médico romano Galeno (por volta de 129-198 d.C.) ado- tou posteriormente as ideias de Hipócrates e de seus discípulos e as desenvolveu ainda mais, criando uma escola poderosa in- fluente do pensamento dentro do contexto da tradição biológica que se estendeu até o século XIX. Um dos legados mais interes- santes e influentes da abordagem hipocrático-galênica é a teoria humoral dos transtornos. Hipócrates afirmava que o funciona- mento normal do cérebro estava relacionado aos quatro fluidos corporais, ou humores: o sangue, a bílis negra, a bílis amarela e a linfa (ou fleuma). O sangue vinha do coração; a bílis negra, do baço; a linfa, do cérebro; e a bílis amarela ou cólera, do fíga- do. Os médicos acreditavam que a doença resultava de um dos humores em excesso ou em escassez; por exemplo, pensava-se que muita bílis negra causava a melancolia (depressão). De fato, o termo melancólico, que significa “bílis negra”, ainda é usado em sua forma derivativa melancolia para se referir a aspectos da depressão. A teoria humoral foi, talvez, o primeiro exemplo de associação de transtornos psicológicos com desequilíbrio quí- mico, uma abordagem muito difundida hoje. Os quatro humores foram relacionados ao conceito grego das quatro qualidades básicas: calor, secura, umidade e frio. Cada humor foi associado a uma dessas qualidades. Os termos derivados dos quatro humores ainda são aplicados a traços de personalidade. Por exemplo, o sanguíneo (com significado literal “vermelho, como sangue”) descreve alguém que é muito cora- do em suacompleição, presumivelmente em função do sangue abundante que flui pelo corpo, e alegre e otimista, embora se pensasse que a insônia e o delírio eram causados por fluxo ex- cessivo de sangue no cérebro. Melancólico significa depressivo (pensou-se que a depressão fosse causada pela bílis negra inun- dando o cérebro). Uma personalidade fleumática (originada do humor fleuma, linfa) indica apatia e morosidade, mas também A sangria, remoção de sangue de pacientes, intencionava restaurar o equilíbrio de humores no corpo. © N at io na l L ib ra ry o f M ed ic in e pode significar calma em situações de estresse. Uma pessoa co- lérica (da bílis amarela ou cólera) é de temperamento quente (Maher e Maher, 1985a). O excesso de um ou mais dos humores era tratado regulan- do-se o ambiente para aumentar ou diminuir o calor, a secura, a umidade ou o frio, dependendo de qual humor estivesse em desequilíbrio. Um motivo para que o médico tivesse transferi- do o Rei Carlos VI para uma localidade campestre menos es- tressante foi o de restaurar o equilíbrio de seus humores (Kemp, 1990). Além de descansar, ter boa alimentação e exercícios, dois tratamentos foram desenvolvidos. Um deles era a sangria, ou fle- botomia, em que uma quantidade cuidadosamente mensurada de sangue era removida do corpo, na maior parte das vezes com sanguessugas. O outro era a indução do vômito; de fato, em um tratado muito conhecido sobre depressão, publicado em 1621, Anatomia da melancolia, Robert Burton recomendava comer ta- baco e um repolho semicozido para induzir o vômito (Burton, 1621/1977). Há três séculos, Judy poderia ter sido diagnosticada com uma doença, um transtorno cerebral ou algum outro pro- blema físico, provavelmente relacionado a algum humor excessi- vo, e, como tratamentos médicos adequados da época, seriam in- dicados repouso, dieta saudável, exercícios e demais prescrições. Na China antiga e em toda a Ásia, existia uma ideia similar. Mas, em vez de “humores”, os métodos chineses se concentra- vam no movimento do ar ou do “vento” em todo o corpo. Trans- tornos mentais inexplicáveis eram causados pelos bloqueios do vento ou presença de frio, vento negro (yin) em oposição ao quente, vento que sustenta a vida (yang). O tratamento consistia em restaurar o fluxo adequado de vento por meio de vários mé- todos, inclusive a acupuntura. Hipócrates também cunhou a palavra histeria para descrever um conceito que aprendeu com os egípcios, que tinham identi- ficado o que hoje chamamos transtornos de sintomas somáticos. Nesses transtornos, os sintomas físicos parecem ser resultado de uma patologia médica para a qual nenhuma causa física pode ser encontrada, como paralisia e alguns tipos de cegueira. Pelo fato de que esses transtornos ocorriam primariamente em mulheres, os egípcios (e Hipócrates) erroneamente presumiram que eles se restringiam a mulheres. Eles também presumiram uma causa: o útero vazio perambulava por várias partes do corpo em busca de concepção (a palavra grega para “útero” é hysteron). Nume- rosos sintomas físicos refletiam a localização do útero ambulan- te. A cura prescrita poderia ser casamento ou, ocasionalmente, fumigação da vagina para atrair o útero de volta ao seu lugar original (Alexander e Selesnick, 1966). O conhecimento da fisio- logia eventualmente desaprovava a teoria do útero ambulante; entretanto, a tendência de estigmatizar as mulheres dramáticas como “histéricas” continuou imbatível até os anos 1970, quan- do os profissionais da saúde mental tornaram-se sensíveis ao estereótipo prejudicial do termo empregado. Como você verá no Capítulo 6, os transtornos de sintomas somáticos (e traços associados) não são limitados a um sexo ou outro. O século XIX A tradição biológica aumentou e diminuiu durante os séculos após Hipócrates e Galeno, mas foi revigorada no século XIX de- vido a dois fatores: a descoberta da natureza e da causa de sífilis e o apoio forte advindo do psiquiatra norte-americano bem con- ceituado John P. Grey. 13Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo Sífilis Os sintomas comportamentais e cognitivos daquilo que hoje conhecemos como sífilis avançada, doença sexualmente trans- missível causada por um microrganismo bacteriano que entra no cérebro, incluem a crença de que alguém está tramando con- tra você (delírio de perseguição) ou que você é Deus (delírio de grandeza), bem como outros comportamentos bizarros. Embora esses sintomas sejam muitos semelhantes aos da psicose – trans- tornos psicológicos caracterizados em parte por crenças que não estão baseadas na realidade (delírios), percepções que não se ba- seiam na realidade (alucinações), ou ambos – os pesquisadores reconheceram que um subgrupo de pacientes aparentemente psicóticos deterioravam permanentemente, tornando-se para- lisadas e morriam dentro de cinco anos a contar dos primeiros sintomas. Esse curso dos eventos contrastava com o da maioria dos pacientes psicóticos, que permaneciam bastante estáveis. Em 1825, a condição foi designada como doença, paresia geral, porque ela mostrava sintomas consistentes (apresentação) e um curso consistente que resultava em morte. A relação entre a pa- resia geral e a sífilis foi estabelecida gradualmente. A teoria de germe de doença de Louis Pasteur, desenvolvida por volta de 1870, facilitou a identificação do microrganismo bacteriano es- pecífico que causava a sífilis. De igual importância foi a descoberta de uma cura para a pa- resia geral. Os médicos observaram uma recuperação surpreen- dente em pacientes com paresia geral que tinham contraído malária e deliberadamente injetaram em outros o sangue de um soldado que estava com malária. Muitos se recuperaram porque a febre alta “queimou” a bactéria da sífilis. Obviamente, esse tipo de experimento não seria eticamente possível nos dias de hoje. Posteriormente, os investigadores clínicos descobriram que a penicilina curava a sífilis, mas com a malarioterapia, “a loucura”, e seus sintomas comportamentais e cognitivos associados, pela primeira vez foi relacionada a uma infecção tratável. Muitos pro- fissionais da saúde mental supuseram, então, que causas e curas comparáveis poderiam ser descobertas para todos os transtor- nos psicológicos. John P. Grey O campeão da tradição biológica nos Estados Unidos foi o psi- quiatra norte-americano mais influente da época, John P. Grey (Bockoven, 1963). Em 1854, Grey foi nomeado superintendente do Utica State Hospital, em Nova York, o maior do país. Ele tam- bém se tornou editor do American Journal of Insanity, precursor do atual American Journal of Psychiatry, publicação carro-chefe da American Psychiatric Association. Na concepção de Grey, as causas de insanidade eram sempre físicas. Portanto, o paciente mentalmente doente deveria ser tratado como fisicamente doen- te. A ênfase estava novamente no descanso, na dieta, em sala com temperatura ambiente e ventilação adequados, abordagens usadas há séculos pelos terapeutas anteriores da tradição bio- lógica. Grey até inventou um aparelho rotatório para ventilar o complexo hospitalar. Sob a liderança de Grey, as condições nos hospitais foram bastante aprimoradas, e eles se tornaram instituições mais hu- manizadas e dignas de serem habitadas. Entretanto, nos anos posteriores, essas instituições se tornaram tão grandes e impes- soais que não era mais possível dar atenção individual. De fato, os psiquiatras, no final do século XIX, ficaram alar- mados com o tamanho e a impessoalidade crescentes dos hos- pitais psiquiátricos, e foi recomendado que fossem reduzidos. Quase cem anos antes, o movimento da comunidade de saúde mental foi bem-sucedido em reduzir a população dos hospitais psiquiátricos com a política muito controversa de “desinstitu- cionalização”, em que os pacientes eram reintegrados em suas comunidades. Infelizmente, essa prática tem consequências tan- to negativas quanto positivas, incluindo o grande aumento do número dos pacientes cronicamenteincapacitados sem lar, nas ruas de nossas cidades. O desenvolvimento dos tratamentos biológicos Pelo lado positivo, o interesse renovado na origem biológica dos transtornos psicológicos levou, recentemente, a um aumento grandioso da compreensão sobre as contribuições biológicas para a psicopatologia e para o desenvolvimento de novos trata- mentos. Na década de 1930, as intervenções físicas da eletrocon- vulsoterapia e da cirurgia cerebral eram frequentes. Seus efeitos e os efeitos das novas drogas foram descobertos por acidente. Por exemplo, a insulina era ministrada para estimular o apetite em pacientes psicóticos que não estivessem comendo, mas tam- bém parecia acalmá-los. Em 1927, um médico vienense, Man- fred Sakel, começou a ministrar dosagens cada vez mais altas até que os pacientes convulsionavam e ficavam temporariamente comatosos (Sakel, 1958). Alguns recuperavam a saúde mental, para a surpresa de todos, e sua recuperação era atribuída às con- vulsões. O procedimento tornou-se conhecido como terapia por choque insulínico, mas foi abandonado por ser muito perigoso, pois era comum resultar em coma prolongado ou até em morte. Outros métodos utilizados para produzir convulsões deveriam ser encontrados. Benjamin Franklin fez numerosas descobertas durante sua vida com as quais estamos familiarizados, mas a maioria das pes- soas não sabe que ele acidentalmente descobriu, e depois confir- mou experimentalmente em meados de 1750, que um eletrocho- que leve e moderado na cabeça produzia uma breve convulsão e perda de memória (amnésia), mas que de outro modo era pouco prejudicial. Um médico holandês que era amigo e colaborador de O ld P ap er S tu di os /A la m y No século XIX, os transtornos psicológicos foram atribuídos a estresse mental e emocional, então os pacientes eram frequentemente tratados de maneira solidária em ambientes calmos e higiênicos. 14 PsicoPatologia Franklin tentou tal procedimento nele mesmo e descobriu que o choque também o fazia sentir-se “estranhamente eufórico” e ficou pensando se ele não poderia ser utilizado no tratamento da depressão (Finger e Zaromb, 2006, p. 245). Nos anos 1920, o psiquiatra húngaro Joseph von Meduna observou independentemente que a esquizofrenia raramen- te era encontrada em epiléticos (o que posteriormente não se provou verdadeiro). Alguns de seus seguidores concluíram que convulsões cerebrais induzidas poderiam curar a esquizofrenia. Seguindo as sugestões sobre os possíveis benefícios de se apli- car o choque elétrico diretamente no cérebro – em especial, por dois médicos italianos, Ugo Cerletti e Lucio Bini, em 1938 –, um cirurgião em Londres tratou um paciente deprimido aplicando seis choques pequenos diretamente em seu cérebro, produzindo convulsões (Hunt, 1980). O paciente se recuperou. Embora bas- tante modificado, o tratamento de choque ainda existe. Os usos modernos e controversos da eletroconvulsoterapia estão descri- tos no Capítulo 7. É interessante que mesmo hoje ainda temos pouco conhecimento de como funciona. Durante os anos da década de 1950, as primeiras drogas efe- tivas para transtornos psicóticos graves foram desenvolvidas de maneira sistemática. Antes dessa época, um número de subs- tâncias medicinais, incluindo ópio (derivado da papoula), havia sido usado como sedativo, juntamente de incontáveis ervas e remédios populares (Alexander e Selesnick, 1966). Com a des- coberta da Rauwolfia serpentine (mais tarde, renomeada, reserpi- na) e de outra classe de drogas chamadas neurolépticas (tranqui- lizantes maiores), pela primeira vez os processos alucinatórios e delirantes puderam ser reduzidos em alguns pacientes; essas drogas também controlaram a agitação e a agressividade. Outras descobertas incluíram as benzodiazepinas (tranquilizantes me- nores), que pareciam reduzir a ansiedade. Nos anos 1970, as benzodiazepinas (conhecidas por nomes comerciais como Valium e Librium) estavam entre as drogas mais prescritas no mundo. Como as desvantagens e os efeitos colaterais dos tranquilizantes tornaram-se aparentes, além da sua efetividade limitada, as prescrições diminuíram um pouco (discutiremos as benzodiazepinas em mais detalhes nos Capítulos 5 e 11). Ao longo dos séculos, como Alexander e Selesnick demons- traram, “O modelo geral da terapia de drogas para doenças men- tais foi de um entusiasmo inicial seguido por decepção” (1966, p. 287). Por exemplo, as bromidas, uma classe de drogas sedativas, foram usadas no final do século XIX e início do século XX para tratar a ansiedade e outros transtornos psicológicos. Na década de 1920, foram reportadas como efetivas para muitos sintomas psicológicos e emocionais graves. Em 1928, uma de cada cin- co prescrições nos Estados Unidos era para bromidas. Quando seus efeitos colaterais, incluindo diversos sintomas físicos in- desejáveis, tornaram-se conhecidos, e a experiência começou a mostrar que sua efetividade geral era relativamente modesta, as bromidas saíram de cena. Os neurolépticos também têm sido menos usados em razão de seus diversos efeitos colaterais, como tremores e movimentos involuntários. Entretanto, os efeitos positivos dessas drogas em alguns pacientes com sintomas psicóticos de alucinações, de- lírios e agitação revitalizou tanto a pesquisa das contribuições biológicas para os transtornos psicológicos quanto a pesquisa para novas e mais poderosas drogas, uma pesquisa que tem pago muitos dividendos, como documentado em capítulos posteriores. Consequências da tradição biológica No final do século XIX, Grey e seus colegas, ironicamente, redu- ziram ou eliminaram o interesse no tratamento de pacientes psi- quiátricos porque pensavam que os transtornos mentais eram consequências de algumas das até então desconhecidas patolo- gias cerebrais e seriam, portanto, incuráveis. O único curso dis- ponível de ação era internar esses pacientes. Por volta da virada do século, algumas enfermeiras documentaram o sucesso clíni- co no tratamento de pacientes psiquiátricos, mas foram impedi- das de tratar outros, pois receavam dar esperanças de cura para os familiares. No lugar do tratamento, o interesse se concentrou no diagnóstico, nas questões legais em relação à responsabili- dade dos pacientes quanto às suas ações durante os períodos de insanidade e no estudo da própria patologia cerebral. Emil Kraepelin (1856-1926) foi a figura dominante durante esse período e um dos fundadores da psiquiatria moderna. Ele era extremamente influente na defesa das principais ideias sobre a tradição biológica, mas era pouco envolvido com tratamen- to. Sua última contribuição foi na área de diagnóstico e classi- ficação, que discutiremos em detalhes no Capítulo 3. Kraepelin (1913) foi um dos primeiros a distinguir os diversos transtornos psicológicos, constatando que cada um poderia ter o início dos sin- tomas em determinada idade e ter tempo de curso diferente, que de alguma forma havia grupos diferentes de sintomas e que pro- vavelmente eram provocados por causas diferentes. Muitas dessas descrições de transtornos esquizofrênicos ainda são úteis hoje. No final de 1800, a abordagem científica para transtornos psicológicos e sua classificação havia começado com a busca por causas biológicas. Além disso, o tratamento era baseado em princípios humanizados. Havia muitos inconvenientes, entre- tanto, e o mais lamentável de todos foi que a intervenção ativa e o tratamento foram eliminados em alguns contextos, apesar da disponibilidade de algumas abordagens efetivas. É para eles que agora voltaremos nossa atenção. Verificação de conceitos 1.2 Por milhares de anos, os seres humanos tentaram compreen- der e controlar o comportamento anormal. Verifique se compreendeu as teorias históricas e associe-as com os tra- tamentos usados para “curar” o comportamento anormal: (a) flebotomia; vômito induzido; (b) paciente colocado em ambientes socialmente facilitadores; e (c) exorcismo; ser queimado na estaca. 1. Causassobrenaturais; demônios entravam nos corpos das vítimas e controlavam seus comportamentos. 2. A teoria humoral refletiu a crença de que o funciona- mento normal do cérebro requeria um equilíbrio dos quatro fluidos ou humores corporais. 3. O comportamento mal adaptativo era causado por in- fluências culturais e sociais precárias do ambiente. 15Capítulo 1 – Comportamento anormal no Contexto históriCo A tradição psicológica É um grande salto dos espíritos maus até a patologia do cérebro como causa para os transtornos psicológicos. Nos séculos in- termediários, qual era a linha de pensamento que impulsionou o desenvolvimento psicológico, tanto normal quanto anormal, em um contexto interpessoal e social? De fato, essa abordagem tem uma tradição longa e distinta. Platão, por exemplo, pensava que as duas causas do comportamento mal adaptativo eram as influências sociais e culturais na vida de alguém e a aprendiza- gem que ocorria naquele ambiente. Se algo estivesse errado no ambiente, como o fato de os pais serem abusivos, os impulsos e as emoções da pessoa dominariam a razão. O melhor tratamen- to era reeducar o indivíduo por meio da discussão racional de maneira que o poder da razão predominasse (Maher & Maher, 1985a). Isso foi, em grande parte, um precursor das abordagens do tratamento psicossocial moderno, que focalizam não ape- nas fatores psicológicos, mas também sociais e culturais. Outros filósofos anteriores muito famosos, incluindo Aristóteles, tam- bém enfatizaram a influência do ambiente social e da aprendi- zagem precoce em psicopatologias posteriores. Esses filósofos escreveram sobre a importância das fantasias, dos sonhos e das cognições e, assim, anteciparam, em certa extensão, desenvolvi- mentos posteriores da ciência cognitiva e do pensamento psi- canalítico. Eles também defenderam o cuidado humanizado e responsável das pessoas com transtornos psicológicos. Terapia moral Durante a primeira metade do século XIX, uma forte aborda- gem psicossocial dos transtornos mentais, chamada terapia moral, tornou-se influente. O termo moral, na realidade, signi- ficava “emocional” ou “psicológico”, em vez de ser um código de conduta. Seus princípios básicos incluíam tratar pacientes insti- tucionalizados da forma mais normal possível em um ambiente que encorajasse e reforçasse interações sociais normais (Bocko- ven, 1963), de forma que lhes garantisse muitas oportunidades de adequar seu contato social e interpessoal. Os relacionamentos eram cuidadosamente estimulados. A atenção individual clara- mente trazia consequências positivas para interações e compor- tamentos adequados, e restrição e isolamento eram eliminados. Como com a tradição biológica, os princípios da terapia mo- ral remontam a Platão e vão além dele. Por exemplo, os tem- plos gregos de Asclepíades do século 6 a.C. alojavam os doentes crônicos, inclusive aqueles com transtornos psicológicos. Ali, os pacientes eram bem cuidados, massageados e ouviam música suave. Práticas similares e esclarecedoras foram evidenciadas em países mulçumanos no Oriente Médio (Millon, 2004). Mas Em 1822, no encontro anual que ocorria na cidade de Nantucket, uma pequena ilha a 30 milhas da costa de Massachusetts, votou-se a favor da construção de manicô- mios-fazendas permanentes na cidade (Gavin, 2003). Após a guerra de 1812, Nantucket pros- perou. O comércio se desenvolveu e foi o iní- cio da era da caça às baleias. Nesse mesmo contexto, os cidadãos queriam tomar conta dos menos afortunados. Inspirados pelas crenças modernas da época concernentes ao tratamento da insanidade, decidiu-se que os manicômios ficariam situados em um lugar longínquo da cidade, onde os pacien- tes poderiam trabalhar de maneira produ- tiva em um cenário rural calmo e agradável, com ar fresco, atendimento individualizado e condições de exercer atividades produti- vas. Como era característico daqueles dias, os manicômios também cuidavam de pobres e idosos. Visto que o abuso de álcool era considerado a principal causa da pobreza, deslocar os manicômios o mais longe pos- sível das tavernas parecia lógico e também um motivo para estabelecer a sua localiza- ção no campo. Mas o mais importante era que, tanto o abuso de álcool quanto a insa- nidade eram considerados curáveis depois que a terapia moral e seus resultados posi- tivos advindos do manicômio de McLean, próximo à Boston, chegaram à ilha. Assim, instituiu-se um planejamento de atividades que envolvia os pacientes em trabalho agrí- cola, na produção de vegetais, ovos e lati- cínios ou em trabalho nos campos de trigo e centeio ou em atividades pecuárias. Os idosos ou aqueles que não conseguiam tra- balhar externamente trabalhavam de forma produtiva dentro dos quartos do manicômio, como com tecelagem. Em consonância com o tratamento da terapia moral, pensou-se que a maioria dos internos poderia recupe- rar-se em meio a essa atmosfera saudável e reparadora. E as fazendas, que tinham pou- cos recursos, passaram a ser bem geridas e se tornaram rentáveis para a cidade! Após a construção do manicômio, os oficiais da cidade nomearam um Conselho de supervisores, líderes responsáveis em Nantucket, que logo se preocupou com o número de pessoas que visitavam o mani- cômio e ficavam presumivelmente atônitos com os insanos. Numa tentativa a mais de proteger os pacientes, a cidade aprovou uma lei que restringia as visitas apenas àqueles que as solicitavam por escrito e tinham uma boa razão para entrar no local. Infelizmente, no inverno de 1844, houve um grave incên- dio. Apesar dos esforços heroicos de muitas pessoas da cidade, dez internos foram mor- tos e a estrutura foi destruída. Por fim, outro manicômio foi construído, mas, dessa vez, apenas abrigava doentes e idosos que não conseguiam cuidar de si mesmos. Àquela altura, um novo manicô- mio do estado para insanos foi aberto longe da ilha e entendeu-se que seria de bom tom transferir pessoas que sofriam de insani- dade para essa grande (e impessoal) institui- ção estatal. Foram adotadas novas políticas em relação aos casos de pobreza (prova- velmente para aqueles que não sofriam de nenhum vício de qualquer natureza), cujas medidas eram prover controle e assistência aos pobres, mantendo-os em suas casas e propiciando-lhes materiais e recursos míni- mos, porém suficientes. Um novo “departa- mento de assistência ao pobre” foi criado na cidade para tal propósito. Dessa maneira, a terapia moral teve o seu momento de ascensão e decadência em uma pequena zona rural da Nova Inglaterra, que refletiu a tendência daquela época (Gavin, 2003). Manicômios-fazendas2 nos Estados Unidos rural 2 O termo original é “poor farm”, um termo usado para fazendas mantidas por dinheiro público para pessoas necessitadas. Trata-se de algo específico dos Estados Unidos, não havendo instituição equivalente no Brasil. 16 PsicoPatologia a terapia moral como um sistema originou-se com Philippe Pinel (1745-1826), um famoso psiquiatra francês, e seu colaborador pró- ximo Jean-Baptiste Pussin (1746-1811), superintendente do hospi- tal parisiense La Bicêtre (Gerard, 1997; Zilboorg e Henry, 1941). Quando Pinel chegou em 1791, Pussin já havia instituído re- formas marcantes removendo todas as correntes utilizadas para restringir pacientes e instituindo intervenções psicológicas posi- tivas e humanizadas. Pussin persuadiu Pinel a colaborar com as mudanças. Grande parte do crédito de Pinel, ele obteve primeiro em La Bicêtre e depois no hospital para mulheres Salpétrière, onde convidou Pussin para juntar-se a ele (Gerard, 1997; Maher e Maher, 1985b; Weiner, 1979). Ali, novamente, eles instituíram uma atmosfera humana e socialmente facilitadora que produzia resultados “miraculosos”. Após William Tuke (1732-1822) ter seguido o exemplo de Pinel na Inglaterra, Benjamin Rush (1745-1813), geralmente considerado o fundador da psiquiatria norte-americana, intro- duziu a terapia moral em seus trabalhos iniciais no Hospital
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