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Pierre Bourdieu - Juristas Os Guardiões da Hipocrisia (1)

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OS JURISTAS, GUARDIÃES DA HIPOCRISIA COLETIVA[1] 
Pierre Bourdieu 
 
Uma das calamidades da ciência social é constituída por todas essas manifestações 
de pensamento dualista que se traduzem em pares de conceitos antagonistas: 
interno/externo, puro/impuro, normativo/positivo, axiológico/sociológico, 
compreensivo/explicativo, Kelsen e Marx, e toda sorte de oposições da mesma espécie. 
Ao declarar em seguida minhas intenções, direi que meu trabalho, sem que eu tenha 
planejado fazê-lo, tem como conseqüência, ao meu modo de ver, superar essas oposições. 
Se tomo a oposição entre Kelsen e Marx, que quase recobre a oposição entre o interno e 
o externo, é importante saber que se volta a encontrá-la em toda parte, sob formas e com 
bases sociais semelhantes, no âmbito da sociologia da arte, no âmbito da sociologia da 
ciência, no âmbito da sociologia da filosofia, no âmbito da sociologia da literatura etc. O 
que permite traduzir de um espaço a outro suas aquisições. 
Creio que deve ser rechaçada também a alternativa do direito como ideologia ou 
como ciência. Dizer que o direito é uma ideologia é perder de vista a lógica e o efeito 
específicos do direito. Aclarado isso, dizê-lo também é operar uma ruptura com a 
representação ingênua, que pretende que o direito seja universal, como ciência ou como 
norma. Pode-se afirmar, como faz Kelsen, que o direito é um sistema normativo sem se 
ficar obrigado a dar a ele um fundamento trans-histórico ou trans-social. Dito de outro 
modo: a oposição que sempre se estabelece entre relativismo (ou historicismo) e 
absolutismo, ou inclusive entre verdade e história, é fictícia. É possível rechaçar o 
fundamento de tipo kelseniano, essa espécie de proeza da absolutização, sem cair no vazio 
relativista. A pretensão de universalidade dos juristas está fundamentada em uma norma 
fundamental. Há que se abandonar a questão do fundamento e aceitar que o direito, igual 
à ciência ou à arte (os problemas são os mesmos em matéria de direito e de estética), pode 
estar fundamentado unicamente na história, na sociedade, sem que por isso sejam 
aniquiladas suas pretensões de universalidade. 
A noção de campo (tomada em um sentido rigoroso que não tenho tempo de 
explicar aqui)[2] está aí para recordar que esse sistema de normas autônomas, que exerce 
efeito por sua coerência, por sua lógica etc., não caiu do céu nem surgiu inteiramente 
armado de uma razão universal, mas tampouco é, no entanto, o produto direto de uma 
demanda social, um instrumento dócil nas mãos dos que dominam. Há aí uma falsa 
alternativa que impede que se perceba que o direito, em sua coerência de sistema de leis, 
é o produto de um prolongado trabalho de sistematização acumulativo, mas de uma 
cumulatividade que não é a da ciência; de um trabalho de produção de coerência, de 
“racionalidade”, que se realiza em um espaço particular, que eu chamo de campo, ou seja, 
um universo em que se joga um jogo determinado segundo determinadas regras e no qual 
não se entra sem que se pague pelo direito de entrada, como o fato de se possuir uma 
competência específica, uma cultura jurídica, indispensável para jogar o jogo, e uma 
disposição a propósito do jogo, um interesse pelo jogo, que denomino illusio (Huizinga, 
baseado em uma falsa etimologia, diz que illusio vem do latim in ludere, jogar em, ou 
seja, ser iludido pelo jogo, ser pego pelo jogo[3]). O que um campo exige, 
fundamentalmente, é que se creia no jogo e que se considere que ele mereça ser jogado, 
que ele vale à pena. 
Alain Bancaud (deveria ter dito, ao iniciar, que uma parte muito importante de 
minhas reflexões tem sido inspirada pelas discussões mantidas no seminário sobre direito 
que organizei no Collège de France); Alain Bancaud, então, comenta muito 
inteligentemente uma noção produzida pelos juristas: a de “piedosa hipocrisia”, ou seja, 
essa espécie de truque (cujo equivalente pode ser encontrado em todos os campos 
profissionais: é o oráculo que diz que o que ele diz foi a ele revelado por uma autoridade 
transcendente)[4] através do qual o jurista dá por fundamentado a priori, dedutivamente, 
algo que está fundamentado a posteriori, empiricamente. Essa piedosa hipocrisia é 
exatamente o princípio do que chamo de capital simbólico, que consiste em se obter um 
reconhecimento baseado no desconhecimento. A violência simbólica, neste caso, consiste 
em fazer parecer como fundamentadas em uma autoridade transcendente, situada além 
dos interesses, das preocupações etc. de quem as formula, proposições, normas, que 
dependem em parte da posição ocupada em um campo jurídico pelos que as enunciam. A 
análise da violência simbólica permite dar conta do efeito próprio do direito: o efeito de 
autolegitimação por universalização ou, melhor, por des-historicização. 
Contudo, para conseguir este efeito de legitimação deve ser pago um preço, e os 
juristas são de algum modo as primeiras vítimas de sua própria criação jurídica. Tal é o 
sentido da illusio: só fazem crer porque eles mesmos crêem. Se contribuem à influência 
exercida pelo direito é porque eles mesmos caíram na armadilha, em particular no final 
de todo o trabalho de aquisição da crença específica no valor da cultura jurídica, trabalho 
que é extraordinariamente importante para se compreender o efeito que o direito irá 
exercer não apenas sobre os justiçáveis mas também sobre os que exercem este efeito. 
Para simplificar, e com o risco de reduzir as coisas a slogans, é possível dizer que 
a retidão [droiture] dos que dizem o direito é um dos fundamentos do efeito que o direito 
exerce no exterior e ao mesmo tempo um efeito que exerce o direito sobre os que exercem 
o direito, e que, para ter direito a dizer o direito, devem ser “retos” [“droits”]. Poderia 
referir-me uma vez mais ao que diziam Alain Bancaud, Yves Delazay ou Anna 
Boigeol[5]: a construção do habitus do jurista comporta todo um trabalho que parece ter 
por finalidade a aquisição de uma postura física, corporal, de magistrado, combinação de 
ascese, de reserva e de todo um conjunto de virtudes que são a materialização em 
disposições corporais das leis fundamentais do campo jurídico como espaço autônomo 
em relação às constrições externas. 
A autonomia do campo jurídico, igualmente à autonomia do campo literário ou a 
autonomia do campo religioso, afirma-se fundamentalmente sobre a economia. Ser 
autônomo é estar à distância da economia, é ser desinteressado, é ser puro, uma oposição 
que separa o universo jurídico do universo dos negócios, mas que volta a se encontrar no 
próprio seio do campo jurídico sob a forma da oposição entre o direito privado e o direito 
empresarial, sob a forma de uma hierarquia no interior do espaço do direito (cuja 
equivalência pode ser encontrada no campo literário na oposição, por exemplo, entre a 
arte pura e a arte comercial): a oposição que se estabelece entre um direito puro, 
desinteressado e exercido por pessoas que invocam exclusivamente a competência do 
jurista, e manifestam com todo seu habitus até que ponto estão longe dessas realidades 
materiais um pouco abaixo das que se ocupam os demais juristas, e, no outro extremo, 
formas de direito desacreditadas por diferentes razões: de um lado o direito empresarial, 
sobre o qual diz-se estar corrompido, mesclado com o século, e, de outro lado, o direito 
social, que é inferior por misturar-se com as coisas do vulgo. Aí voltamos a encontrar 
uma lei verdadeiramente geral em relação aos campos: a posição na hierarquia de um 
campo autônomo depende parcialmente da posição da clientela correspondente no espaço 
social. 
Não basta dizer que o direito produz-se e se exerce em um espaço relativamente 
autônomo em que os efeitos das coerções econômicas e sociais só se exercem de um modo 
mediatizado. Também é necessário recordar que o campo jurídico é um lugar de lutas, 
mas de lutas que, inclusive quando tratam de transformar as regras do direito,de operar 
uma revolução jurídica (como é o caso do âmbito do direito empresarial), têm que 
produzir-se segundo as regras. As lutas de concorrência no interior do campo jurídico, 
por exemplo, as lutas pela conquista de mercados, tomam a forma de lutas de 
competências (usando “competência” no sentido jurídico) pela competência – ou seja, por 
exemplo, o monopólio legítimo de um determinado mercado –, que são inseparavelmente 
lutas jurídicas e lutas econômicas. Eis aqui um dos mecanismos pelos quais a lógica 
jurídica penetra nas condutas inclusive de quem a transgride. 
Conheceis o dito segundo o qual “a hipocrisia é uma homenagem que o vício 
tributa à virtude”, e eu havia falado antes de piedosa hipocrisia. Caberia dizer que a 
piedosa hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas 
tributam à virtude jurídica; e em certo modo, quando se está no jogo jurídico, não se pode 
transgredir o direito sem reforçá-lo. Quando se pertence a um campo cuja lei fundamental 
é a da recusa de dinheiro, é ser desinteressado etc., inclusive quando se transgride esta 
lei, e sobretudo quando se a transgride para fazer algo comercial, está-se condenado a 
render homenagem aos valores dominantes do campo até no próprio movimento por os 
questionar. 
Se, por exemplo, em vez de expor em termos abstratos os problemas das relações 
entre o direito e a economia se estuda em concreto a evolução recente do direito 
empresarial[6], é possível ver-se levado a não a se perguntar se o direito é independente 
da economia ou está determinado por ela, senão a observar como o direito penetra na 
economia e como, para penetrar a economia, deve absorver a economia. Alguns 
sociólogos americanos falam de “litigociação”[7], ou seja, desse tipo de negociações 
entre grandes empresas que têm por objeto poupar processos. O direito forma parte da 
realidade econômica; um bom agente econômico deve integrar a existência do direito 
como força social real em seus cálculos propriamente econômicos. Os agentes jurídicos 
têm contribuído para produzir a necessidade de seu próprio produto ao produzir universais 
em quem já não pode atuar sem necessitar deles. 
É possível tomar outro exemplo, o da arbitragem[8], que apresenta concretamente 
um problema muito abstrato: o da legitimidade. No caso dos árbitros, no momento do 
divórcio, sobre a custódia da criança, adverte-se que o problema que se apresenta aos 
possuidores do caráter de experts jurídicos é de formular um veredicto que seja preditivo 
do que irá ocorrer e que contribua com aquilo que irá ocorrer: se confio a criança à mãe 
e não ao pai é em nome do “interesse da criança”, e portanto, isso é uma predição acerca 
da pessoa mais capaz de cuidar da criança, predição que supõe a intervenção de um expert, 
da ciência. O problema das relações entre direito e ciência aparece aí de um modo 
inteiramente concreto. Trata-se dos princípios de legitimação diferentes, que irão 
encontrar-se em complementaridade e em concorrência, ao ser a racionalização uma nova 
arma da legitimidade. 
A força específica do direito é muito paradoxal, quase impensável. É necessário 
voltar-se a Marcel Mauss e sua teoria da magia. A magia só atua em um campo, ou seja, 
um espaço de crença em cujo interior estão os agentes socializados de maneira que 
pensem que o jogo que jogam merece ser jogado. A ficção jurídica não tem nada de 
fictício: e a ilusão, como diz Hegel, não é ilusória. O direito não é o que diz ser, o que crê 
ser, ou seja, algo puro, completamente autônomo etc. Mas o fato de que se creia nisso, e 
que se logre fazer crer, contribui para a produção de efeitos sociais completamente reais; 
e a produzi-los, acima de tudo, em quem exerce o direito. 
Os juristas são os guardiães hipócritas da hipocrisia coletiva, ou seja, da reverência 
ao universal. A reverência verbal concedida universalmente ao universal é uma força 
social extraordinária e, como todos sabem, os que conseguem ter de sua parte o universal 
dotam-se de uma força nada desprezível. Os juristas, enquanto guardiães hipócritas da 
crença no universal, detêm uma força social extremamente grande. Mas estão presos em 
seu próprio jogo, e constroem, com a ambição da universalidade, um espaço de 
possibilidades e, portanto, também de impossibilidades, que a eles mesmos impõem-se, 
queiram ou não, na medida em que pretendam permanecer no seio do campo jurídico. 
--------------------------------------------------- 
NOTAS 
[1] Este texto corresponde à tradução para o português de uma transcrição vertida 
ao espanhol (a cargo de J.-R. Capella) de uma exposição oral de Pierre Bourdieu, 
publicada originalmente em francês em F. Chazel e J. Commaille (eds.) Normes 
juridiques et régulation sociale (L.G.D.J., Paris, 1991). Esta tradução em português, que 
igualmente à versão espanhola evita retirar o caráter coloquial da exposição, foi realizada 
por Eduardo Emanoel Dall’Agnol de Souza. 
[2] P. Bourdieu utiliza neste seminário, entre outros, dois conceitos técnicos 
próprios: os de habitus (que se traduz por “hábito”) e “campo”. Para ambos é útil ver a 
“Introdução” de A. García Inda (“La razón del derecho: entre habitus y campo”) no livro 
de P Bourdieu Poder, derecho y clases sociales, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000. Para 
o leitor familiarizado com a obra de Bourdieu, haveria que aclarar superficialmente: um 
“campo” é para Bourdieu um espaço social específico em que as relações se definem 
segundo um tipo de poder ou capacidade também específico possuído pelos que “jogam” 
neste espaço social. As posições dos agentes no campo definem-se segundo sua posição 
atual ou potencial na estrutura de distribuição do poder específico do campo em que 
pretendem jogar (seja o artístico, o político, o religioso, o jurídico etc). Um habitus, o 
hábito, é um conjunto específico de práticas, acima de tudo; de disposições duradouras 
que geram práticas e representações específicas e regulares adaptadas à finalidade própria 
do jogo em um “campo”. [Nota da tradução espanhola] 
[3] Deve-se notar, contudo, que Joan Corominas, em seu Breve diccionario 
etimológico de La lengua castellana (Gredos, Madrid, 1973), deriva “ilusão” do latim 
“illudere”, enganar, que por sua vez deriva de “ludere”, jogar. O parentesco entre “ilusão” 
e jogo” aparece também através da raiz “leid”, em E. A. Roberts e B. Pastor, Diccionario 
etimológico indoeuropeo de la lengua española (Alianza, Madrid, 1996). [Nota da 
tradução espanhola] 
[4] Alain Bancaud, “Une ‘constance mobile’: la haute magistrature”, Actes de la 
Recherche en Sciences Sociales, nº 76/77, março de 1989, p. 30-48. 
[5] Cf. a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, nº 76/77, março de 
1989, in “Droit et expertise”. 
[6] Yves Dezalay, “Le droit des faillites: du notable à l’expert. La restructuration 
du champ des professionnels de la restructuration des entreprises”, in Actes de la 
Rechereche en SciencesSociales, nº 76/77, março de 1989, p. 2-29. 
[7] Yves Dezalay, ibid. 
[8] Irène Thèry, “Le savoir ou savoir-faire: l’expertise dans les procédures 
d’attribution de l’autorité parentale post-divorce”, in Actes de la Recherche en Sciences 
Sociales, , nº 76/77, março de 1989, p. 115-117.