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A caverna onde a arte nasceu

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A caverna onde a arte nasceu
As datações dos desenhos da gruta de chauvet, na França, subvertem as ideias que prevaleciam sobre a pintura pré-histórica - ela teria nascido mais cedo do que se imaginava e atingido rapidamente a maturidade.
Por Hélène Valladas, Jean Clottes e Jean-Michel Geneste
Poucas ferramentas tiveram tanto impacto sobre a arqueologia quanto a datação por carbono-14. Usando o índice de desaparecimento de uma forma radioativa de carbono, o método permitiu datar diretamente objetos antigos de origem orgânica e, em muitos casos, modificou profundamente nossa percepção sobre a evolução cultural de nossos ancestrais.
Um exemplo disso é o estudo recente da gruta de Chauvet, no sudoeste da França, e seu complexo de desenhos, pinturas e gravuras da Idade do Gelo. O uso do carbono-14 recuou a data de surgimento da arte das cavernas - as imagens de Chauvet são cerca de 10 mil anos mais velhas do que se imaginava - e mostrou que ela se expandiu rapidamente a partir de começos relativamente simples. Essa datação antiga causou tamanho espanto que suscitou incredulidade, críticas e controvérsias. É assim com as descobertas, mas hoje a antiguidade de Chauvet é inconteste.
Datar a arte da gruta com precisão só foi possível porque, no fim dos anos 1970, o método do carbono-14 passou por uma pequena revolução. Trata-se do desenvolvimento da espectrometria de massa por acelerador, cuja principal vantagem é o tamanho das amostras que é possível analisar. Menos de um miligrama de carbono basta, ou seja, cerca de mil vezes menos do que na técnica clássica por contagem radioativa. Dessa forma, centros de pesquisa como o Laboratório de Ciências do Clima e do Meio Ambiente em Gif-sur-Yvette (França) conseguiram datar amostras minúsculas, ou que, por serem preciosas e raras demais, não podiam ser muito deterioradas. É o caso das pinturas pré-históricas e dos desenhos realizados nas paredes das cavernas, ou arte parietal, como a chamam os arqueólogos.
Cronologia Parietal
O estudo da evolução da arte parietal se baseou por muito tempo na análise estilística das representações, ou na datação de vestígios encontrados na proximidade das paredes decoradas e supostamente contemporâneos dos desenhos. Com essa abordagem, pesquisadores como o abade Henri Breuil (1877-1961) e André Leroi-Gourhan (1911-1986) propuseram cronologias para as grutas decoradas da França (Lascaux, Combarelles, Font-de-Gaume) e da Espanha (Altamira). A espectrometria de massa por acelerador deu um novo impulso a esse estudo da arte parietal.
As análises dos pigmentos pré-históricos revelaram que o vermelho é constituído de óxidos de ferro, e o preto, de dióxido de manganês ou carvão vegetal. Embora os óxidos minerais não sejam datáveis pelo carbono-14, o carvão vegetal é. Foi com base nesse resíduo vegetal, portanto, que se realizaram algumas centenas de datações até agora.
Cerca de vinte grutas decoradas da França e da Espanha foram estudadas com a ajuda desse método. Em cada uma delas, as quantidades de pigmento de carvão disponíveis ditavam o número de pinturas submetidas à datação: em alguns sítios, foi possível estimar a idade de uma única amostra; em outros, os arqueólogos multiplicaram as datações e mostraram que algumas grutas, como a caverna de Cosquer, hoje submersa perto de Marselha, foram decoradas em dois grandes períodos separados por muitos milênios.
Neste artigo, pretendemos apresentar alguns progressos alcançados no conhecimento da arte parietal. As datações por carbono-14 mencionadas têm por referência o ano de 1950, por convenção internacional, e não são calibradas, isto é, não levam em conta variações da produção de carbono-14 na atmosfera no passado. Não estamos falando, portanto, de anos como os do nosso calendário.
Em numerosos casos, as datações de pigmentos parietais, especialmente as relativas ao período conhecido como Magdaleniano (de 17 mil a 11 mil anos atrás), estavam de acordo com a cronologia baseada nos dados estilísticos. Entretanto, pinturas e desenhos das grutas de Cougnac, Pech-Merle ou Cosquer são muito anteriores ao Magdaleniano. Essas datas, situadas entre 27 mil e 23 mil anos, confirmam a existência pressentida por muitos arqueólogos de uma atividade artística importante durante o Gravetiano, ou seja, mais de 10 mil anos antes das pinturas magdalenianas.
Essas datas gravetianas constituíram uma espécie de recorde de antigüidade para pinturas paleolíticas, mas ele foi apenas provisório. De fato, fragmentos de carvão recolhidos de vários desenhos da gruta de Chauvet, na região de Ardèche, descoberta em dezembro de 1994, foram datados em cerca de 32 mil anos - empurrando para um passado ainda mais remoto o nascimento da arte. Esses resultados, obtidos a partir de obras bem-acabadas, contradiziam as teorias correntes sobre a arte paleolítica, ao mostrar que ela não tinha evoluído gradativamente até seu florescimento com a cultura magdaleniana. Ao contrário, desde o Aurignaciano (de 36 mil a 29 mil anos), a época em que os homens modernos se espalharam pela Europa Ocidental, os artistas dominavam perfeitamente as técnicas pictóricas. Que balanço se pode fazer dessas datações? Qual é sua confiabilidade?
Figuras Inesperadas
A gruta de Chauvet se abre ao pé de uma falésia nas gargantas do rio Ardèche e se desenvolve numa sucessão de vastas salas por uma extensão de 500 metros (ver imagem na pág. 36). Ela não era habitada, uma vez que os fragmentos de sílex talhado e os restos de animais trazidos pelo homem são raros. Em compensação, fragmentos muito numerosos de carvão vegetal, provenientes provavelmente de tochas e fogueiras para iluminação ou para a fabricação de pigmentos, estão presentes no chão.
Até agora, já foram encontradas na gruta cerca de 425 figuras de animais, isoladas ou reunidas em grandes composições. Esses animais, frequentemente representados em movimento, distinguem-se por seu naturalismo e dinamismo. É possível reconhecer, por exemplo, um casal de leões em período de pré-acasalamento. Na composição, a fêmea, agachada e mostrando os dentes, recusa os avanços do macho.
A natureza dos animais representados e as técnicas utilizadas tornam essas figuras excepcionais. Os mais abundantes são os rinocerontes (65), os leões (74) e os mamutes (66). Contudo, essas espécies são relativamente raras na arte paleolítica europeia. Numerosos nas pinturas magdalenianas, os cavalos e bisões estão aqui, ao contrário, menos bem representados. Aliás, a reprodução da perspectiva, a esfumatura e o recorte, pouco frequentes na arte paleolítica, são muito elaborados nas pinturas da caverna. Essas particularidades impediam qualquer datação dos desenhos da gruta de Chauvet com base em critérios estilísticos. Por sorte, o carvão vegetal dos traços negros permitia a sua datação precisa com a ajuda da espectrometria de massa por acelerador.
Alguns meses depois da descoberta da gruta, as primeiras datações diretas de traços parietais foram realizadas com fragmentos de carvão de algumas dezenas de miligramas cada. As amostras vieram da representação do combate entre dois rinocerontes no painel dos cavalos, da Sala Hillaire, e do grande bisão da Sala do Fundo (ver imagem da pág. 39). As datas de carbono-14 obtidas por meio dessas três figuras são compatíveis e compreendidas entre 32 mil e 30,5 mil anos atrás.
Ao mesmo tempo, partículas de carvão retiradas de dois mouchages de torche (fragmentos de carvão vegetal depositados quando a pessoa esfregava sua tocha nas paredes) foram datadas em cerca de 26,5 mil anos. Um desses mouchages cobre um véu de calcita que se depositou sobre o desenho do painel dos rinocerontes em combate. A idade desse mouchage constitui, portanto, um limite superior para as representações pictóricas subjacentes: eles datam de pelo menos 26,5 mil anos atrás. Esses primeiros resultados indicam a existência de pelo menos dois períodos de atividade humana na caverna, separados por cerca de 5 mil anos - um corresponde à realização das três pinturas estudadas; o segundo, aos testemunhosde iluminação depositados na parede.
Em 1995, um programa de estudo multidisciplinar da gruta de Chauvet foi iniciado e dirigido por Jean Clottes. Desde 2001, ele é coordenado por Jean-Michel Geneste. No âmbito do programa, cerca de quarenta datações por carbono-14 com a ajuda da espectrometria de massa por acelerador foram realizadas, investigando fragmentos de carvão de pinho (Pinus sylvestris), única espécie vegetal encontrada na gruta.
Simultaneamente, medidas pelo método clássico, isto é, por contagem radioativa, foram realizadas pelo Laboratório de Radiocarbono de Lyon, e o número total das datações passa de 50. Essas medidas são completadas por outras datações, estimadas pelo decaimento radioativo do urânio, nos depósitos de carbonatos, como as estalagmites. Hoje, a caverna de Chauvet é um dos sítios de arte rupestre com maior quantidade de datações confiáveis no mundo.
Risco Monitorado
Os fragmentos de carvão analisados desde 1996 provêm, em sua maioria, da zona situada depois da Sala das Pocilgas. Eles se compõem de amostras tiradas de duas novas pinturas (um touro selvagem do painel dos cavalos na Sala Hillaire e o cervo gigante Megaloceros na entrada da Galeria dos Cervos Gigantes), dois outros mouchages de torche e mais de 30 fragmentos de carvão recolhidos em fogueiras ou no solo, na proximidade das paredes pintadas. Todas essas datações foram feitas em condições experimentais bem controladas e, em certos casos, a confiabilidade foi testada por meio da análise múltipla da mesma amostra.
Antes de serem analisados, os fragmentos, sejam quais forem as suas procedências, passam por uma sucessão de tratamentos (em meios ácidos, básicos e por calor), que eliminam qualquer contaminação por carbono estranho.
Esse carbono provém, por exemplo, de carbonatos secundários (quando o dióxido de carbono dissolvido na água se precipita em calcita) ou da parede calcária; de águas subterrâneas que transportam ácidos orgânicos provenientes da decomposição dos vegetais; de microrganismos, como bactérias e fungos, que se desenvolvem na gruta. Esses tratamentos são adaptados a cada amostra: eles são mais agressivos para os fragmentos grandes de carbono compactos recolhidos do chão do que para os pigmentos ou os mouchages de torche, mais raros e muito mais frágeis. O homem é também uma fonte de contaminação significativa, mas seu impacto é limitado numa gruta recentemente descoberta, onde todas as precauções foram tomadas, desde o começo, para assegurar uma boa conservação.
As datas obtidas confirmam os dois períodos de ocupação humana da gruta de Chauvet, postas em evidência desde 1995 (ver ilustração da pág. 37). Compreendidas entre 32,5 mil e 30,5 mil anos atrás, 32 datações se situam durante o Aurignaciano, no início do Paleolítico Superior. Essas idades vêm de pelo menos cinco das representações pictóricas estudadas (os rinocerontes brigando, os touros selvagens, os cervos gigantes e o grande bisão) e da maioria dos fragmentos de carvão recolhidos nas diferentes salas da gruta. O segundo período de ocupação revelado, entre 27 mil e 26 mil anos, durante o Gravetiano, é atestado por 12 datações, oito de amostras recolhidas no chão e quatro de mouchages de torche, mas, até hoje, por nenhum desenho.
Enfim, vestígios dos dois períodos foram encontrados na maioria das salas estudadas antes da Sala das Pocilgas. Os dois carvões vegetais datados até hoje nesse compartimento são gravetianos. Portanto, o mesmo setor da gruta foi frequentado, com alguns milhares de anos de separação, por homens pré-históricos: os gravetianos deixaram ali menos vestígios em razão, talvez, de suas passagens menos numerosas. Mas eles certamente tiveram a oportunidade de observar as pinturas de seus ancestrais aurignacianos.
A coerência de aproximadamente 50 datações é ilustrada pelo reagrupamento dos resultados em dois períodos. Ela se explica, em parte, pelo estado de conservação excepcional dos carvões vegetais, que resulta, por um lado, da obstrução da gruta durante o Paleolítico e, por outro, das precauções tomadas desde a redescoberta para evitar a poluição. O sítio é particularmente favorável à datação.
Contudo, a antiguidade das pinturas ainda é recolocada em questão por uma minoria de arqueólogos, para os quais obras tão avançadas não poderiam ter sido realizadas no começo do Paleolítico Superior. Eles propõem, com base no estilo, ligá-las ao período magdaleniano (entre 17 mil e 11 mil anos atrás). Essa hipótese é difícil de sustentar, porque nenhum vestígio magdaleniano ou datado dessa época foi encontrado na gruta. Se o homem frequentou o sítio nessa época, ele não deixou nada, o que seria surpreendente, tendo em conta a riqueza da decoração pictórica!
Ademais, defender essa hipótese significa admitir que as datações obtidas superestimassem em cerca de 16 mil anos a idade dos desenhos. Segundo tal teoria, eles teriam sido traçados há 15 mil anos, durante o Magdaleniano Médio. Nossos cálculos mostram que um envelhecimento aparente de 16 mil anos só poderia resultar de uma proporção de carbono fóssil contaminante (sem carbono-14) nos fragmentos de carvão superior a 85%, e isso apesar do ataque ácido que sofrem justamente para eliminar os carbonatos. Também se pode afirmar que não há nenhum dado pertinente defendendo uma ocupação humana na gruta Chauvet posterior há 20 mil anos atrás. Ao contrário, todos os resultados convergem em favor de ocupações unicamente gravetianas e aurignacianas.
A atribuição de certos desenhos da caverna ao Aurignaciano é igualmente questionada pela descoberta de várias estatuetas de marfim finamente esculpidas, nas camadas aurignacianas de quatro sítios da região da Suábia, na Alemanha. Datadas entre 34 mil e 32 mil anos atrás, essas estatuetas causaram espanto no começo, tanto por seu caráter elaborado numa época tão antiga quanto pelos temas representados, como leões das cavernas, mamutes e ursos, animais que, aliás, são raros em outros lugares. Ora, essas criaturas são justamente as que estão abundantemente representadas na gruta de Chauvet.
Essas afinidades entre as obras parietais da caverna francesa e os testemunhos de arte descobertos em outros sítios aurignacianos antigos confirmam, pois, a existência, desde o início do Paleolítico Superior, de uma tradição artística original e muito elaborada. Bem implantada na Europa, essa "corrente" provavelmente influiu em outras obras parietais com temas em comum, mas cuja cronologia ainda é mal conhecida. Nos próximos anos, os arqueólogos se empenharão em discernir melhor as especificidades dessa arte aurignaciana, com o objetivo de desvendar o mistério.

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