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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sandra Bazylewski Um olhar pedagógico para a dimensão motora: contribuições de Henri Wallon MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO – SP 2015 Sandra Bazylewski Um olhar pedagógico para a dimensão motora: contribuições de Henri Wallon MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profª. Drª. Laurinda Ramalho de Almeida. SÃO PAULO – SP 2015 Banca Examinadora _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ Dedicatória Dedico este trabalho aos meus filhos, que mesmo sem entender minha ausência, me apoiaram com suas alegrias, peripécias e muito carinho... todos os dias. AGRADECIMENTOS À minha mãe Léa, que mesmo em outro plano, continua sendo uma forte influencia devido ao seu legado de força e perseverança. À minha família pelo apoio e pela compreensão dos momentos de ausência. À Professora Doutora Laurinda Ramalho de Almeida, minha orientadora, por ter compartilhado seus conhecimentos e me orientado com paciência, competência, alegria e afeto, característicos de uma personalidade marcante. Aos professores Doutores Mitsuko Aparecida Makino Antunes e Sergio Vasconcelos de Luna por incentivarem e acreditarem no meu potencial como aluna e pesquisadora. À Marilena K. O. S. Leite, grande incentivadora nestes dois anos de estudo e pesquisa. Aos colegas de mestrado por compartilharem ideias, incertezas e alegrias. Ao Edson Aguiar por ser muito atencioso e por estar sempre disposta a ajudar. Às professoras entrevistadas pela disponibilidade de participar desta pesquisa. À CAPES pelo apoio e financiamento do curso RESUMO Bazylewski, Sandra. Um olhar pedagógico para a dimensão motora: contribuições de Henri Wallon. Dissertação (Mestrado em Educação: Psicologia da Educação). Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015. Este projeto de pesquisa foi delineado com o objetivo de investigar qual concepção de dimensão motora embasa a atuação de professores de Educação infantil e como tal concepção interfere em sua prática. Para dar sustentação teórica, foi utilizada a teoria de desenvolvimento de Henri Wallon, que entende o ser humano de forma completa e integrada. A pesquisa teve uma abordagem qualitativa e, para a produção de informações foram realizadas entrevistas com professoras que atuam em diferentes segmentos de diferentes instituições de Educação Infantil, com o intuito de identificar no discurso das mesmas o que entendem por dimensão motora e se implementam na rotina da educação infantil situações e/ou propostas relacionadas à esta dimensão. Quadros e sínteses foram elaborados para auxiliar na analise e discussão das informações. Este estudo apontou que as dimensões afetiva e cognitiva estão asseguradas nas práticas pedagógicas. Quanto à dimensão motora, faz - se necessário ampliar o conhecimento das professoras sobre esta dimensão e transformá-lo em pratica pedagógica que propicie o desenvolvimento integral da criança. Palavras-chave: dimensão motora; desenvolvimento infantil; psicogenética de Wallon; aprendizagem. ABSTRACT This research project was designed in order to investigate which conception of motor dimension underlies the role of child education teachers and how such design interferes in their practice. For theoretical support, we used Henri Wallon’s development theory, which considers the human being in a complete and integrated way. The research had a qualitative approach and information has been collected through interviews performed with teachers who work in different segments of different institutions of early childhood education, in order to identify their discourse, what they mean by motor dimension and if they implement in early childhood education routine situations and / or proposals related to this dimension. Tables and summaries have been designed to assist in the analysis and discussion of information. This study found that the affective and cognitive dimensions are ensured in pedagogical practices. As for the motor dimension, it is necessary to extend the teachers’ knowledge concerning this dimension and turn it into educational practice that fosters the whole development of the child. Key words: motor dimension; child development; Wallon’s psychogenetics; learning. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 08 Capítulo I - HENRI WALLON, POR QUE ESTE TEÓRICO? .............................. 12 1.1 O estágio Impulsivo-Emocional ............................................................................... 15 1.2 O estágio Sensório-Motor e Projetivo ...................................................................... 16 1.3 O estágio do Personalismo ....................................................................................... 17 1.4 O estágio Categorial ................................................................................................. 19 1.5 O estágio da Puberdade e Adolescência ................................................................... 19 Capítulo II - A HISTÓRIA DO CORPO ................................................................... 21 2.1 O corpo na educação brasileira ................................................................................. 24 Capítulo III – A DIMENSÃO MOTORA .................................................................. 27 3.1 O Meio ...................................................................................................................... 31 3.2 A Imitação e o Simulacro ......................................................................................... 32 3.3 O controle do movimento ......................................................................................... 34 3.4 A inteligência prática e a inteligência discursiva ..................................................... 34 3.5 A Imperícia ............................................................................................................... 36 Capítulo IV - PERCURSO METODOLÓGICO ....................................................... 40 4.1 Os sujeitos da pesquisa ............................................................................................. 41 4.2 Os procedimentos para a produção de informações ................................................. 42 4.2.1 Para obtenção das informações .................................................................... 42 4.2.2 Para análise das informações ....................................................................... 44 Capítulo V - ANÁLISE E DISCUSSÃO ..................................................................... 47 5.1 A síntese dos depoimentos ....................................................................................... 48 5.1.1 Depoimentos da professora Gina ................................................................. 48 5.1.2 Depoimentos da professora Ana .................................................................. 50 5.1.3 Depoimentos da professora Adriana ............................................................52 5.2 Falas das entrevistadas em quadros demonstrativos de análise ................................ 53 5.3 Eixos temáticos ........................................................................................................ 77 5.3.1 O cuidar e o educar enquanto faces de um mesmo processo ....................... 77 5.3.2 O meio escolar como meio de ação.............................................................. 82 5.3.3 As oportunidades ofertadas .......................................................................... 87 5.3.4 As atividades corporais intencionadas pelo educador .................................. 91 5.3.5 A dimensão motora na perspectiva das entrevistadas .................................. 94 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 99 APÊNDICES ................................................................................................................ 103 Apêndice I - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................... 103 Apêndice II - Transcrição da entrevista com a professora Gina.................................... 104 Apêndice III - Transcrição da entrevista com a professora Ana ................................... 117 Apêndice IV - Transcrição da entrevista com a professora Adriana ............................. 125 8 INTRODUÇÃO Conhecer cada vez mais para, sempre que possível, poder auxiliar! Foi com esse pensamento ou, ainda, com essa vontade, que iniciei o estudo sobre o desenvolvimento motor das crianças em idade de Educação Infantil. O meu percurso profissional e educacional justifica esse interesse. Cresci em contato com área da Pedagogia, pois desde cedo acompanhei minha mãe estudando e trabalhando na área da Educação. E, antes mesmo de concluir o curso magistério, eu já estava trabalhando em sala de aula. Passados alguns anos da conclusão do curso de Pedagogia e após vários cursos de aprimoramento, senti falta de conhecer, com mais profundidade, o campo de atuação do profissional Pedagogo. Foi quando decidi fazer a minha primeira especialização em Psicomotricidade e, pouco tempo depois, a segunda especialização em Educação Infantil. Nesses 20 anos de atuação na área, pude acompanhar algumas mudanças que envolveram o ensino de Educação Infantil: confrontos de concepções pedagógicas entre educadores preocupados com os saberes, com a melhor Pedagogia, com a formação de atitudes, competências, identidade e desenvolvimento pessoal dos educandos. E ao longo dessa trajetória profissional, o meu olhar esteve voltado ao desenvolvimento cognitivo das crianças: como elas aprendem? Quais situações favorecem a aprendizagem infantil? Como consequência desse meu interesse por pesquisar e descobrir tais aspectos, comecei a perceber que estava deixando de lado outros fatores, também essenciais, para o crescimento e a formação dessas crianças A dimensão cognitiva estava tendo um peso maior nos meus estudos do que os demais fatores determinantes no desenvolvimento infantil, o que me levou a ter um olhar mais criterioso sobre a dinâmica da sala de aula, que envolvia a prática pedagógica, levando em consideração o planejamento (conteúdo), a rotina e as intervenções, dentre outros aspectos. Para mim, com o passar do tempo, foi ficando evidente o papel da Educação Infantil e a sua relevância no desenvolvimento global das crianças, de forma a determinar o sucesso escolar dessas crianças nas séries subsequentes. Por outro lado, as crianças desta faixa etária apresentam, cada vez mais, dificuldades que chamam nossa atenção, sejam dificuldades em relação ao comportamento, grafia ou adaptação. 9 Nesse sentido, o contato diário com as crianças me mostrou que estamos privando-as de algo essencial, estamos roubando-lhes o espaço, a utilização do corpo, assim como o prazer de experimentar o mundo e vivê-lo. Em virtude dessa reflexão, procurei informações acerca do que era possível realizar para suprir essa demanda. Minha procura estava voltada para uma abordagem que visasse ao desenvolvimento integral do indivíduo nas suas várias etapas de desenvolvimento e, como consequência, que pudesse prevenir algumas das dificuldades apresentadas pelas crianças. Frente às informações, deparei-me com a Psicomotricidade e descobri o seu significado, que, aliás, é bem diferente do que eu havia vivenciado no magistério e no primeiro curso de especialização. Enquanto ciência, a Psicomotricidade tem como objetivo primordial o equilíbrio da pessoa em sua mais ampla concepção, harmonizando aspectos cognitivo, motor e afetivo. No decorrer do curso, fui compondo e aperfeiçoando o pequeno conhecimento sobre corpo e movimento. À medida que as aulas eram ministradas pelos diversos professores, pude observar o quanto que a evolução da criança está ligada, intimamente, à conscientização e ao conhecimento do seu próprio corpo. Ajuriaguerra (s/a apud FONSECA, 1995) afirma que é por meio do corpo que a criança elabora todas as suas experiências. Durante a realização do curso de Psicomotricidade, tive o primeiro contato com a literatura de Henri Wallon. Ao ler sobre Wallon, Fonseca (1995, p.02) afirma que Wallon é “de fato, a pedra angular do edifício da psicomotricidade”, uma vez que este já havia traçado linhas a respeito do estudo da comunicação afetiva, da sociabilização e das emoções. De fato, em suas obras originais, em seus estudos e pesquisas, Wallon apresenta que em toda emoção estão vinculados, ao mesmo tempo, certo comportamento tônico e certas transformações características das atitudes e das reações musculares e viscerais. Na busca por trabalhos que envolvessem a dimensão motora, encontrei alguns que abordam a questão corporal, sendo a maioria dos estudos voltada para a área da Educação Física. Ao procurar por trabalhos sobre a Teoria de Desenvolvimento, de Henri Wallon, encontrei alguns estudos que enfatizam o papel da dimensão motora no desenvolvimento infantil, dentre eles, os que mais se aproximaram de meu interesse foram Garanhani (2004), Limongelli (2006) e Cintra (2012). A pesquisa de Garanhani (2004) teve como objetivo compreender, no discurso e na ação das educadoras, os saberes utilizados na educação do movimento corporal das crianças de três a seis anos. Limongelli (2006) procurou descrever e analisar o processo de formação acadêmico-profissional, vivenciado por ela mesma e por seus alunos, durante as aulas da 10 disciplina de Natação, ofertada no curso de licenciatura em Educação Física, em uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada, de São Paulo. E no estudo de Cintra (2012), a pesquisa foi voltada à investigação de como é tratada a motricidade das crianças de seis anos no ensino fundamental. Nesse estudo, a motricidade foi abordada como sinônimo de psicomotricidade considerando que, para Wallon, motricidade é sinônimo de psicomotricidade, uma vez que a concebe como indissociável do psiquismo. Afetividade e cognição são dois conceitos razoavelmente focalizados na literatura atual. Segundo Leite (2013, p. 46), foi a partir de 1990 que a afetividade passou a ser objeto de pesquisa: “Praticamente ausente das pesquisas e de estudos pedagógicos até os anos 1990, a partir de então tem tido uma presença constante na agenda de vários estudiosos em nosso meio, com destaque para a área da Psicologia.” Os olhares dos profissionais de educação estão voltados para o desenvolvimento do educando nestas duas dimensões. E o motor? Quem se preocupa com esta dimensão? Em tempos atuais, observando as pesquisas, a dimensão motora está a cargo dos profissionais de Educação Física. O desenvolvimento progressivo dessa dimensão, cujos vínculos com as dimensõescognitiva e afetiva não se pode excluir, deveria ser observado pelos professores e por todos os profissionais da área de Educação. Compreendendo que a prática pedagógica deve abarcar as três dimensões (cognitiva, motora e afetiva) a fim de promover o desenvolvimento em todas elas e de considerar o indivíduo com um ser total, meu interesse é decorrente tanto de minha atuação profissional em Educação Infantil, quanto da descoberta do pequeno número de pesquisas relacionadas à dimensão motora. Para tanto, delineei um projeto de pesquisa partindo do seguinte problema: Qual concepção de dimensão motora que embasa a atuação de professores de Educação infantil? O objetivo proposto foi investigar como a dimensão motora vem sendo tratada no trabalho desenvolvido na Educação Infantil, na visão pedagógica das professoras que trabalham neste segmento. A dissertação está organizada em três capítulos, sendo os três primeiros capítulos de fundamentação teórica; e o quarto e quinto capítulos de coleta e análise de dados, conforme descrição a seguir: Introdução; Capítulo I: concentra em conhecer Henri Wallon, seus caminhos, as ideias e a relação com a Psicomotricidade; Capítulo II: aborda a história do corpo e como ele era visto desde a Idade Média até hoje; Capítulo III: o desenvolvimento infantil e a dimensão motora nesse processo; Capítulo IV: o percurso metodológico realizado 11 para coleta de dados; Capítulo V: análise e discussão à luz da teoria walloniana e considerações sobre o olhar para a dimensão motora; e, Considerações Finais. 12 CAPÍTULO I 1. HENRI WALLON, POR QUE ESTE TEÓRICO? Ainda que a preocupação com o corpo tenha sua origem na Antiguidade, tendo como seus representantes: Platão, Homero, Aristóteles e, no inicio da Modernidade, com Descartes, dentre outros, foi no século XIX que o corpo passou a ser percebido e estudado, deixando de ser considerado objeto ou algo fragmentado. Foi Henri Wallon que, de forma explicita e a partir de 1925, formulou uma teoria psicogenética postulando o corpo como continente de cognições, afetividades e motricidade. A psicogenética de Wallon evidencia a integração organismo-meio como uma unidade impossível de dissociar, da qual decorre a integração dos conjuntos funcionais: motor, afetivo, cognitivo e pessoa, os quais formam o psiquismo humano. De acordo com Wallon (2007), os seres humanos estão em permanente transformação e esta é modelada pela troca constante entre os fatores genéticos e os meios físico e social. Sendo que, esses últimos, determinam a direção do processo de desenvolvimento que transformará a criança em adulto de sua cultura. Assim, as transformações são condições no processo de desenvolvimento do ser humano, trazendo mudanças quantitativas e qualitativas que definem cada estágio de sua teoria do desenvolvimento. O meio, na visão walloniana, além de ser considerado fundamental, tem duplo significado: meio ambiente e meio de ação. Na criança pequena, o meio social é responsável por fazer o intercâmbio com o meio físico, de estabelecer o contato com as pessoas que estão ao seu redor. É também o meio social que norteia a existência individual, a estrutura familiar e as relações entre indivíduos e grupos. E assim, a linguagem do meio, isto é, a linguagem expressa pelo grupo social (ao qual a criança pertence) modula os pensamentos e os instrumentos culturais propiciando os movimentos do desenvolvimento. A partir disso, a criança desenvolve sua consciência, passando a expressar sua vida psíquica em conjuntos funcionais (dimensões) que se integram cada qual com sua identidade específica. Essas dimensões, vinculadas entre si, estão em constante movimento “[...] a cada configuração resultante, temos uma totalidade responsável pelos comportamentos daquela pessoa, naquele momento, naquelas circunstancias.” (MAHONEY; ALMEIDA, 2012, p.12) 13 Em suas obras Wallon (1925/2007; 1949/1971; 2008) formulou leis sobre a inter- relação do tônus e da emoção, mostrando que em toda emoção estão vinculados, ao mesmo tempo, certo comportamento tônico, certas transformações características das atitudes, das reações musculares e viscerais. Estudar o movimento à luz de Wallon é uma oportunidade para estudar e explicar a importância do trabalho da Psicomotricidade na Educação, em especial, na Educação Infantil. E para isso, as contribuições teóricas do desenvolvimento da pessoa, na visão walloniana, estão relacionadas, intimamente, com a definição da Psicomotricidade como ciência, uma vez que considera o indivíduo como ser total, não fragmentado, assim como a psicogenética de Wallon, que compreende o indivíduo na sua totalidade. Apoiada nas obras de Wallon, as quais forneceram informações acerca do desenvolvimento neurológico do recém-nascido e da evolução psicomotora das crianças, surge uma nova técnica terapêutica, a Psicomotricidade, com o objetivo de reeducar as funções motoras perturbadas. (COSTE, 1992) Ao longo do seu percurso, a Psicomotricidade ganhou vários representantes e cada qual contribuiu com suas descobertas para a ampliação do conceito, deixando de ser encarada como prescrição da medicina psiquiátrica, para tornar-se uma intervenção preventiva, educativa, reeducativa e psicoterapêutica. O fato de a Psicomotricidade abranger uma mediatização corporal e expressiva, na qual o indivíduo especializado seja terapeuta, professor ou reeducador, estuda e compensa condutas inadequadas e inadaptadas em diversas situações, é outra razão de fundamentar este estudo na teoria de Wallon, uma vez que aponta preocupações, também, com a educação e a formação do professor. Wallon defendia que ao incorporar conhecimentos gerados pela Psicologia, pela Biologia e pela Sociologia na formação dos professores, esses teriam posturas mais adequadas ao desenvolvimento integral, uma vez que incluiriam em suas decisões, considerações envolvendo os aspectos cognitivos, assim como os aspectos motores e afetivos. Acompanhando a trajetória de vida de Henri Wallon conseguimos tomar conhecimento dos pressupostos que definiram o caminho de suas pesquisas. Parisiense, nasceu e viveu entre 1879 e 1962. De família da alta burguesia com avô deputado, pai arquiteto e funcionário publico e mãe dona de casa, Wallon cresceu em um núcleo de tradição liberal, convivendo com pensamento democrático e republicano. 14 Presenciou várias mudanças de ordem social, econômica e política. Alguns episódios marcaram sua infância e adolescência, tais como: o General Boulanger (aos 10 anos) e o caso Dreyfus, quando prestava serviço militar. Essas situações contribuíram para sua indagação sobre a natureza das relações entre os seres humanos. Entre as mudanças que presenciou, estão: uma revolução comunista soviética e duas guerras mundiais, com participação ativa, tanto do ponto de vista intelectual, quanto em presença física. Na Primeira Guerra (1914-1918), participou como médico e, ao tratar dos feridos, pode observar lesões orgânicas e seus reflexos sobre os processos psíquicos, o que o levou a aprofundar as teses já defendidas com o estudo de crianças com psiquismo profundamente deteriorado ou profundamente perturbado, internadas em instituições psiquiátricas. Essas experiências originaram mais uma obra de Wallon: A criança turbulenta, publicada em 1925. Em ambas as situações, percebe que o ato psíquico depende da relação de condições orgânicas e condições externas decorrentes do ambiente físico e social. Na Segunda Guerra (1939-1945), participou do movimento da Resistência contra a invasão nazista, o que aprofundou sua crença de que a escola deveria assumir valores de solidariedade, justiça social e antirracismo para reconstruir uma sociedade justa e democrática. Com formação acadêmica em Filosofia, Medicina e Psiquiatria, Wallon realizou obras e atividades voltadas à Educação e que culminaramno Projeto Langevin-Wallon, que consistia numa reforma completa do sistema educacional Francês, após a Segunda Grande Guerra. Retomando, ainda, o período da 1ª Guerra, em 1914, Wallon dedicou-se a psicopatologia; registrando 214 observações de crianças de 2 a 15 anos. Para Wallon, o comportamento patológico era um laboratório natural para estudar Psicologia, pois com essas circunstâncias era possível observar os fenômenos se transformando mais vagarosamente, favorecendo observações mais precisas. (MAHONEY; ALMEIDA, 2012) A partir dos resultados obtidos em estudos com crianças, Wallon fez uma comparação com as observações realizadas em soldados feridos na 1ª Guerra, que apresentavam lesões neurológicas. Essa comparação visou tanto às semelhanças quanto as diferenças. Ao mesmo tempo, buscou identificar o igual e o diferente, explicitando sua escolha pela concepção materialista dialética. O contraste é um dos recursos mais surpreendentes pelos quais se opera a diferenciação. (MAHONEY; ALMEIDA, 2012) 15 Ao estudar o desenvolvimento da criança, Wallon focou, necessariamente, o estudo da consciência e para isso foi em busca da origem biológica da mesma. Comparando semelhanças e diferenças entre o desenvolvimento de crianças normais e com patologias e entre crianças e adultos, obteve os princípios reguladores do processo de desenvolvimento identificando seus vários estágios. Dois fatores constituem as condições em que afloram as atividades de cada estágio: fatores orgânicos e fatores sociais. Cada estágio é a junção da estrutura orgânica e fisiológica com o meio social, que é diferente em cada época. Impulsivo-emocional (0 a 1 ano); Sensório-motor e projetivo (1 a 3 anos); Personalismo (3 a 6 anos); Categorial (6 a 11 anos); Puberdade e adolescência (11 anos em diante). Embora os estágios estejam indicados por idade, é preciso rever cada faixa etária, uma vez que as sociedades passam por transformações que, muitas vezes, aceleram o desenvolvimento. E com isso, a idade na teoria walloniana não é um marco e sim, aparece para mostrar o processo de evolução e transformações. Pode-se dizer que é um indicativo e que precisa ser atualizado. Para tanto, é preciso identificar os interesses e as atividades que aparecem em cada período; ter em mente que os estágios seguem uma sequência temporal, pois cada um deles é preparado pelas atividades do anterior e prepara para o seguinte; as crianças reagem às situações de acordo com os recursos de que dispõe no momento; a idade faz variar as relações da criança com o meio e esse meio é diferente em cada um dos estágios. 1.1 O estágio Impulsivo-Emocional 1 De 0 a 3 meses, acontece a primeira fase, impulsiva, na qual as atividades são voltadas para a exploração do próprio corpo em relação às sensibilidades internas e externas. A 1 As características dos diferentes estágios são apontadas por Mahoney e Almeida (2012) fundamentados na teoria walloniana. 16 atividade é global, não estruturada, apresenta movimentos bruscos e desordenados, a tensão muscular ora enrijece, ora relaxa. A criança seleciona os movimentos que garantem a aproximação do outro e estes passam a funcionar como instrumento expressivo de estados de bem-estar e mal-estar. A concepção Walloniana chama essa fase de simbiose fisiológica, na qual o bebê não diferenciar suas necessidades de sobrevivência com respostas motoras adaptativas e que permitam satisfazê-la. A simbiose acaba sendo compensada por uma simbiose afetiva segura e realizada pelo adulto experiente, podendo provocar, assim, respostas motoras imediatas e eficazes. E com isso, trazer uma significação afetiva de grande importância emocional e relacional, uma vez que provoca no adulto e na criança, entre o ser experiente e o ser inexperiente, uma relação profunda e de grande intimidade. (FONSECA, 2008) Na fase emocional (3 a 12 meses), o bebê já é capaz de expressar padrões emocionais diferentes para medo, alegria e raiva, dando início ao processo em que descobre formas de se comunicar com o corpo. (FONSECA, 2008) 1.2 O estágio Sensório-Motor e Projetivo Esse estágio é caracterizado pela exploração e investigação da realidade exterior, assim como pela aptidão simbólica e pelo início da representação. As atividades estão voltadas para a exploração concreta do espaço físico, uma vez que estão desenvolvendo as habilidades de agarrar, segurar, manipular, apontar, sentar, andar, em conjunto com a fala e acompanhada por gestos. Dá-se início ao processo de discriminação entre objetos, separando-os entre si. Essas atividades preparam o afetivo, assim como o cognitivo que acaba por instrumentalizar a criança para o próximo estágio. Com os objetos, a criança coordena suas ações com as sensações, procurando ajustar o gesto aos seus efeitos, uma espécie de ponto de partida para o conhecimento que advêm de sua ação. Ao perceber o objeto, na medida em que o manipula, dá-se início à organização das primeiras representações e essa ação acaba por ser uma fonte de estímulos para atividade mental e não, apenas, uma estrutura de execução ou de expressão. Iniciam-se, então, os jogos de alternância, em que a criança é autora e objeto do mesmo gesto, unindo dois papeis diferentes. Diminui a simbiose afetiva, assim como o sincretismo que antecede a diferenciação entre o indivíduo e o seu ambiente. 17 As atividades circulares que surgiram no estágio impulsivo-emocional passam a ser encadeadas pelos ‘movimentos de exploração objetivo’, os quais as crianças realizam com objetos e também nas partes do próprio corpo. Nesse estágio, a criança procura reproduzir os mesmos gestos que foram provocados pelas sensações, tentando obter assim, o mesmo efeito. Essas atividades circulares, por coordenarem mutuamente os campos sensoriais e motores, possibilitam o ajustamento do gesto a seu efeito, refinando, assim, os progressos da preensão e da percepção. Organizando suas ações passa a discriminar diferentes movimentos e os efeitos sensoriais, visuais, auditivos e cinestésicos, conseguindo assim, planejar e organizar voluntariamente sua atividade. Ao estabelecer relação no espaço sensório-motor, a criança desenvolve uma inteligência prática chamada, também, de inteligência das situações. Mahoney e Almeida (2012, p.33) explicam que quando isso acontece, significa que “[...] ela já é capaz de perceber e fazer combinações, o que pressupõe a intuição das relações voltadas para a ação imediata, em um espaço concreto delimitado e em um tempo presente.” O andar, em conjunto com a linguagem, traz à criança uma oportunidade de entrar no mundo dos símbolos e, dessa maneira, entrar na segunda etapa desse estágio: a etapa projetiva, na qual o ato mental projeta-se em atos motores, uma vez que seu pensamento, ainda, está no início e necessita do auxilio dos gestos para expressá-lo. Na fase projetiva, a criança mostra-se capaz de elaborar o pensamento sem precisar do concreto, abrindo caminho à representação, na qual se utiliza da ação motora para dar forma ao pensamento. Existem dois movimentos projetivos que contribuem para a expressão da atividade mental: a imitação e o simulacro. Esses dois serão descritos no capítulo III, ao dissertar sobre a dimensão motora e relacionar o movimento e a representação. 1.3 O estágio do Personalismo No estágio do Personalismo, a criança continua a exploração de si mesma, porém com outro olhar, como um ser diferente de outros seres. Nesse estágio, o desenvolvimento está voltado para o enriquecimento do eu e para a construção da personalidade. A capacidade simbólica, em conjunto com a consciência corporal adquirida ao longo dos primeiros três anos 18 de vida, é condição fundamental para o processo de desenvolvimento da pessoa. Nessa etapa, os desafiosapresentados estão relacionados à formação da personalidade da criança. A criança tomará consciência de si, como um sujeito social, progressivamente. Lutará para se individualizar e se diferenciar, entrando será num período de conflito, no qual tentará se afirmar e conquistar sua autonomia. Na compreensão de Mahoney e Almeida (2012, p.40), a constituição da pessoa, nesse estágio, é “[...] permeada por conquistas e conflitos, contradições, crises, que aparecem e reaparecem ao longo do desenvolvimento, jamais findam; apenas se modificam, reduzem-se, espaçam-se e tomam diferentes coloridos emocionais [...]”. Passa a construir sua própria subjetividade por meio das atividades de oposição (expulsão do outro), das atividades de sedução (assimilação do outro) e da imitação, dando início ao processo de discriminação entre o eu e o outro, tarefa esta do Personalismo, fazendo uso das expressões: eu, meu, não, etc. É por volta dos três anos de idade, que começa a crise de oposição ao outro, fase na qual a criança contradiz e confronta-se com o outro para experimentar sua independência, impondo-a. Segundo Mahoney e Almeida (2012), Wallon denominou essa fase de recusa e reinvindicação. Após a oposição, tem-se a fase da sedução ou idade da graça. A criança busca por apoio e tem necessidade de ser admirada, de sentir que agrada aos outros, de ser prestigiada, de mostrar suas qualidades. Assim, nessa fase, a criança reconhece que pode ter sucesso ou fracasso. A necessidade de admiração vem acompanhada de inquietações, conflitos e decepções, uma vez que sua expectativa pode não ser correspondida. A terceira fase do Personalismo, a imitação, é marcada pelo estágio em que as próprias qualidades não são suficientes. A criança cobiça a dos outros, tomando-os como modelo. A imitação passa a ser de um papel, de uma personagem que admira e deseja suplantar, que para Dantas (1992, p.95) é o momento em que a “[...] criança usa o outro como modelo para ampliação das próprias competências”. E, ao diversificar a imitação, a criança enriquece a construção de sua pessoa pelos diferentes papéis que toma para si. Portanto, as diferentes fases que a criança passa nesse estágio do Personalismo, promovem a individualização de sua pessoa em relação ao seu ambiente. Para Mahoney e Almeida (2012), é importante considerar, ainda, que é no Personalismo que surgem duas manifestações da atenção infantil: a instabilidade e a perseveração. Na primeira, a criança reage indiscriminadamente aos estímulos exteriores; na segunda, a criança 19 permanece na mesma atividade, como se estivesse aderida a ela, alheia aos demais estímulos. Ambas são consideradas exercícios funcionais para atenção, sendo esta manifestada só no estágio seguinte: o Categorial. 1.4 O estágio Categorial Ao diferenciar o eu do outro, a criança obtém melhores condições para explorar, mentalmente, o mundo físico com atividades de agrupamento, seriação, classificação e categorização em vários níveis de abstração, chegando ao pensamento categorial. Mahoney e Almeida (2012) explicam que organizar o mundo físico em categorias possibilita compreender melhor a si mesmo. 1.5 O estágio da Puberdade e Adolescência Continua a exploração de si mesmo, mas como uma identidade autônoma. As atividades são de confronto, autoafirmação e questionamentos. A criança se submete e se apoia no grupo de pares, contrapondo-se aos valores interpretados pelos adultos com quem convive. Maior nível de abstração e a dimensão temporal toma relevo, o que possibilita discriminar os limites de sua autonomia e de sua dependência, explicam Mahoney e Almeida (2012). Existem três leis que regulam a sequência dos estágios citados. Analisando-os, é possível observar que existe alternância de direções opostas entre eles, chamada de lei da alternância funcional. Isto significa que, o movimento do desenvolvimento que predomina ora é para dentro (conhecimento de si), ora é para fora (conhecimento do mundo exterior). Para Wallon (2007), essa condição indica, também, que existe alternância dos conjuntos funcionais a cada estágio, chamados de lei da sucessão de predominância funcional. Cada um deles (motor, afetivo, cognitivo) destaca-se em um estagio e se nutrem mutuamente, embora o exercício e o amadurecimento apresente interferência no amadurecimento dos outros. Unindo as duas leis, observa-se que quando a direção é para si mesmo (centrípeta), predomina o afetivo e quando a direção é para o mundo exterior (centrífuga), predomina a dimensão cognitiva. Essas duas dimensões – afetiva e cognitiva – têm como suporte a atividade motora, 20 isto é, a dimensão motora, seja em seus deslocamentos no espaço, seja em sua expressão plástica (postura tônica). Como explicam Mahoney e Almeida (2012), a lei da integração funcional descreve essa relação entre os estágios como sendo uma relação de hierarquia, na qual os primeiros estágios são considerados conjuntos mais simples, com atividades mais primitivas que serão integradas aos conjuntos mais complexos de estágios seguintes, dependendo das possibilidades do sistema nervoso e do meio ambiente. A atividade da criança, no início, é elementar, descontinua e só o movimento corporal pode testemunhar sobre a vida psíquica. Segundo Dantas (1983), o desenvolvimento psíquico da criança está continuamente ligado ao seu desenvolvimento motor, visto que o aspecto motor e mental de uma mesma vivência se dispõe numa reciprocidade de ações e de reações. E assim, podemos entender o porquê da teoria de Wallon ser considerada a base da Psicomotricidade. Fonseca (2004) esclarece que, em Psicomotricidade, o psíquico e o motor são dois elementos complementares, solidários e dialéticos, da mesma totalidade sistêmica, considerando o corpo e a motricidade como elementos essenciais da estrutura psicológica do Eu, pois é na ação que se toma consciência de si próprio e do mundo. Wallon vai além. Para ele, a motricidade é sempre psicomotricidade. (DANTAS, 1992) 21 CAPÍTULO II 2. A HISTÓRIA DO CORPO O que entendemos por corpo? Qual o conceito que se tem? E porque pensar sobre isso? Essas são questões que devem ser esclarecidas, antes de apresentar as dimensões que o envolvem, em especial a dimensão motora. Qual é a importante em elucidar o significado? Pois, ainda hoje, muitos desconhecem sua importância para o desenvolvimento integral do indivíduo e outros têm um conhecimento superficial de sua capacidade. Para Vigarello (2000 Apud GIRARD; CHALVIN, 2001, p.229): “o corpo é um objeto múltiplo que pode representar dimensões bastante diferentes da vida, tais como a sensibilidade, a expressão ou uma verdadeira mecânica ligada ao trabalho. Ele evoca numerosas imagens, sugere múltiplas possibilidades de conhecimento [...].” O autor descreveu, ainda, as várias concepções do corpo desde a Idade Média até os nossos dias, incluindo também sua influência na Pedagogia francesa. Para cada época, existiam posturas ideais que ditavam as respectivas pedagogias. Da Idade Média ao século XVIII, a sociedade procurou corrigir o corpo e os valores estéticos tinham uma grande importância. Na Idade Média, o cavaleiro deveria ser valente e robusto e as mulheres da corte aprumadas, sem permissão para correr e saltar e, ainda, evitar olhar para os lados. Assim, procurava-se impedir exageros, abolindo as gesticulações. No século XVI, observa-se um controle maior em relação à postura e à posição ereta. Além do uso do coto de malha e do corpete apertado, surgia o espartilho, para modelar o peito e segurar as costas criando a forma que os padrões estéticos exigiam, e indiferentes às doenças e aos desmaios. Já no século XVII, o comportamento era regido pela regra, acabando com toda a espontaneidade, o corpo ereto adquire um sentido puramente social. As crianças eram enfaixadas, com o objetivo deprepará-las para ficar em pé e evitar que ficassem corcundas ou desformes. As roupas que usavam eram apertadas e caso necessário, usavam o espartilho. No campo pedagógico, o exercício ainda era moderado e possível, embora as propostas tivessem o objetivo de aperfeiçoar a postura ereta. Para impedir exageros e turbulências, marcavam-se os limites do corpo do aluno, deixando-o travado a fim de ajuda-lo a dominar suas paixões. No século XVIII, a concepção do corpo modelado altera-se e passa-se a exaltar 22 o músculo e a liberdade de movimento na roupa. No entanto, a ideia de um corpo sem defeito permanece e os exercícios tornaram-se imprescindíveis para corrigir, quando necessário. A partir de 1830, os homens com poder aquisitivo alto passaram a frequentar os ginásios. Nasce nessa mesma época a ginástica, como ciência dos nossos movimentos, sendo que o ginasta torna-se o especialista do corpo e a harmonia e a higiene passam a ser enfatizadas. Até aqui, a questão de gênero diferencia muito a concepção de corpo. E na Pedagogia, já assombrada pela escoliose (decorrente das más posturas) e pela tuberculose, tentava-se domesticar o corpo; agir sobre o estado de espírito; disciplinar os rebeldes e civilizar os rústicos; com vigilância permanente do modo de vestir até a postura, assim como das regras de etiqueta e da linguagem. A preocupação era em erradicar as malformações e os comportamentos inconvenientes. O argumento higienista da época ordenava a correção e a vigilância das posturas dentro de sala de aula. A preocupação em prevenir e curar ocasionou um aumento de rigidez. Por volta da segunda metade do século XIX, o corpo e tudo que se refere a ele sofrem significativas transformações. Dentro da sala de aula com o intuito de se tornar mais funcional, a organização do espaço passa a privilegiar a vigilância e a rigidez, o mobiliário é responsabilizado pelos comportamentos desaprovados dos alunos. Perdem espaços os longos bancos e mesas com alturas diferentes, nas quais comportavam dez alunos. A partir de 1857, com a Exposição Universal realizada na França, aparecem as primeiras propostas de fabricar um mobiliário escolar próprio e de organização mais racional da sala de aula. Aos poucos, surgem as indústrias de mesas e bancos preocupados com a ordem e a boa postura. E por volta de 1880, a ginástica passa a ser obrigatória nas escolas da França com a função de domesticar o corpo; organizar os grupos; desenvolver o tórax por meio dos movimentos respiratórios e distinguir as anomalias e deficiências. Com perfil rigoroso e normativo, voltava-se mais para a ordem militar e para autoridade científica do que para o desenvolvimento do corpo. A prática de movimento deveria preparar para a atenção e a obediência, com o intuito, também, de corrigir a postura, hábitos esses que deveriam ser incorporados pelos alunos nas salas de aula. Mas até então, o contato corporal era praticamente nulo. O distanciamento do professor envolvia tanto o social quanto o afetivo. Ao professor cabia padronizar as posições e os movimentos, desencadeando as correções de postura se utilizando somente da voz. 23 A preocupação com a higiene e a ordem alongou-se até aproximadamente 1954. Contudo, a partir de 1923, observa-se uma preocupação com o equilíbrio e com a harmonia. A Educação Física perde o aspecto militar e restrito e a correção corporal está voltada para tornar mais proveitoso o ensino da escola. Acreditava-se que corrigir a desarmonia postural, garantindo a postura ereta, os alunos teriam melhores condições de suportar os ensinamentos propostos. A partir da segunda Guerra Mundial, a ideia central era “Mente sã num corpo são”. O indivíduo passa a reexaminar as restrições a que era submetido na mesma proporção em que passa a ser estimulado a desenvolver a autoafirmação. Cada indivíduo torna-se responsável por seu próprio corpo, devendo prestar atenção às mensagens e informações enviadas pelo organismo, experimentando bem-estar, indisposições e todos os indícios para fazer desaparecer as tensões e crispações corporais. A harmonia continua em voga, no entanto, torna-se pessoal e individual como exemplifica Girard e Chalvin (2001, p.21) ao dizer que o corpo “[...] não mais se molda numa silhueta exemplar, reta como um i, mas num corpo desenvolvido.” E, por essa razão, a Pedagogia torna-se mais solta: a ginástica busca flexibilizar e não endireitar, preocupa-se com o prazer de mover os músculos, de eliminar as tensões acumuladas e de recuperar a espontaneidade dos gestos. “[...] dar a palavra ao corpo para nele, ler a história oculta do inconsciente e dos afetos.” (GIRARD; CHALVIN, 2001, p. 22) Em suma, se faz necessário lembrar que, mesmo existindo uma preocupação com o corpo na mais alta Antiguidade, foi no século XIX que o corpo passou a ser estudado e percebido, por aqueles que atuavam no campo da Medicina, os neurologistas e os psiquiatras. No campo científico, temos dentre outros, Henri Wallon, com sua teoria sobre a integração das dimensões motora, afetiva e cognitiva, compreendendo o indivíduo em sua totalidade, em especial na fase da infância (criança). Dando continuidade à obra de Wallon, temos J. Ajuriaguerra (s/a apud Coste 1992) que colocou o corpo em uma dimensão antropológica e ontológica de grande amplitude. O autor afirmou que a criança é o seu corpo e este deve ser considerado a substância que confirma a existência do homem sendo, ao mesmo tempo: o que nos pertence e faz parte do mundo; superfície e interior; inerte e palpitante; habitáculo e habitado. As pesquisas acadêmicas sobre o corpo, em sua maioria, abordam a questão corporal e são realizadas por profissionais da área de Educação Física e pouco voltadas à dimensão 24 motora, em especial no desenvolvimento infantil. No entanto, alguns estudos se aproximam da proposta desta pesquisa: Garanhani (2004), Limongelli (2006) e Cintra (2012). 2.1 O corpo na educação brasileira Por volta de 1915 o ensino racionalista vinha perdendo força. Em 1925, Maria Lacerda de Moura propôs inserir, nas atividades escolares, a Educação Física, a educação dos sentidos e o estudo do crescimento físico, pois acreditava que além das noções de: cálculo, da leitura, língua e história, era fundamental o despertar, na criança, da sua vida interior para que houvesse uma autoeducação. Com a burguesia urbano-industrial no poder, um novo projeto educacional foi implantado. O Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, assinado por 27 educadores em 1932, que foi resultado de uma luta política que durou cerca de 10 anos, em favor de um Plano Nacional de Educação. Do esboço escrito a partir do manifesto, encontramos em Gadoti (2003, p.240): [...] VIII – Desenvolvimento das instituições de educação e de assistência física e psíquica à criança na idade pré-escolar (creches, escolas maternais e jardins de infância) e de todas as instituições complementares periescolares e pós-escolares: a) Para a defesa da saúde dos escolares, como os serviços médicos e dentários escolares (com função preventiva, educativa ou formadora de hábitos sanitários e clínicas, pelas clínicas escolares, colônia de férias e escolas para débeis) e para a prática de educação física (praças de jogos para crianças, praças de esportes, piscinas e estádios). Na legislação brasileira, que orienta os caminhos para a educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica foram fundamentais para eu compreender como a legislação trata das questões do corpo e da Psicomotricidade. As orientações englobam: Educação Infantil; Ensinos Fundamental (I e II) e Médio; Educação no Campo; Educação Indígena, Quilombola; Educação Especial e de Jovens e Adultos, incluindo em Situação de Privação de Liberdade nos estabelecimentos penais; e, também, Educação Profissional Técnica de Nível Médio. As diretrizes dessedocumento têm o objetivo de orientar a organização, a articulação, o desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas de todas as redes de ensino 25 nacionais. E por se tratarem de orientações, não foram encontradas referências ao tratamento do corpo, especificamente, como também concluem Vaz et al (2004, p. 04): “O corpo não deixa marcas tão precisas para o estudo histórico. Os registros dos quais dispomos são sempre mediações, ou representações, se preferirmos [...].” Entretanto, encontra-se um olhar para o sujeito integral, isto é, orientações que consideram seu contexto histórico e sociocultural, com suas condições físicas, emocionais e intelectuais. Em relação à Educação Infantil: [...] nessa etapa deve-se assumir o cuidado e a educação, valorizando a aprendizagem para a conquista da cultura da vida, por meio de atividades lúdicas em situações de aprendizagem (jogos e brinquedos), formulando proposta pedagógica que considere o currículo como conjunto de experiências em que se articulam saberes da experiência e socialização do conhecimento em seu dinamismo, depositando ênfase: I – na gestão das emoções; II – no desenvolvimento de hábitos higiênicos e alimentares; III – na vivência de situações destinadas à organização dos objetos pessoais e escolares; IV – na vivência de situações de preservação dos recursos da natureza; V – no contato com diferentes linguagens representadas, predominantemente, por ícones – e não apenas pelo desenvolvimento da prontidão para a leitura e escrita –, como potencialidades indispensáveis à formação do interlocutor cultural. (MEC, 2013, p.37) Em relação ao currículo da Educação Infantil: Intencionalmente planejadas e permanentemente avaliadas, as práticas que estruturam o cotidiano das instituições de Educação Infantil devem considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões expressivo- motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural das crianças, apontar as experiências de aprendizagem que se espera promover junto às crianças e efetivar-se por meio de modalidades que assegurem as metas educacionais de seu projeto pedagógico. (MEC, 2013, p.86) Em relação à visão de criança: [...] são histórica e culturalmente produzidas nas relações que estabelecem com o mundo material e social mediadas por parceiros mais experientes. Assim, a motricidade, a linguagem, o pensamento, a afetividade e a sociabilidade são aspectos integrados e se desenvolvem a partir das interações que, desde o nascimento, a criança estabelece com diferentes parceiros, a depender da maneira como sua capacidade para construir conhecimento é possibilitada e trabalhada nas situações em que ela participa. 26 Isso por que, na realização de tarefas diversas, na companhia de adultos e de outras crianças, no confronto dos gestos, das falas, enfim, das ações desses parceiros, cada criança modifica sua forma de agir, sentir e pensar. (MEC, 2013 p. 86) Podemos, então, dessas afirmações, depreender que as Diretrizes postulam uma educação integral para a criança pequena que engloba as dimensões motora, afetiva e cognitiva. No capítulo que segue, o foco está na dimensão motora por ser este o objetivo desta pesquisa, no entanto, com a devida clareza de que as três dimensões estão imbricadas uma na outra e que a interferência em uma das dimensões, repercute nas demais. 27 CAPÍTULO III 3. A DIMENSÃO MOTORA De acordo com a teoria psicogenética de Wallon, o desenvolvimento é postulado como um processo no qual cada estágio significa mais do que um acréscimo de atividades mais complexas: um processo contínuo de transformações coerentes com a história evolutiva anterior. Com essa concepção, a cada nova exigência do meio, novas possibilidades orgânicas podem ser ativadas em várias direções e, para isso, acionam-se os conjuntos funcionais: o motor, o afetivo, o cognitivo e a pessoa, uma vez que cada um deles é responsável, dentro do sistema total, por uma dimensão das funções que constituem o ser humano. Isso significa que toda atividade do indivíduo origina-se da integração do cognitivo com o afetivo e com o motor. O motor, o afetivo, o cognitivo, a pessoa, embora cada um desses aspectos tenha identidade estrutural e funcional diferenciada, estão tão integrados que cada um é parte constitutiva dos outros. Sua separação se faz necessária apenas para a descrição do processo. Uma das consequências dessa interpretação é de que qualquer atividade humana sempre interfere em todos eles. Qualquer atividade motora tem ressonâncias motoras e cognitivas; toda disposição afetiva tem ressonâncias motoras e cognitivas; toda operação mental tem ressonâncias afetivas e motoras. E todas elas têm um impacto no quarto conjunto: a pessoa, que ao mesmo tempo em que garante essa integração, é resultado dela. (MAHONEY; ALMEIDA, 2012, p. 15) Em se tratando de crianças, a motricidade é a característica essencial, uma vez que as mesmas a utilizam como resposta preferencial e prioritária para suas necessidades básicas e estados emocionais e relacionais. Sendo assim, a motricidade é a primeira estrutura de relação e de correlação com o meio, com os outros e, por intermédio dos outros, com os objetos. Fonseca (2008) esclarece que desde o desenvolvimento intrauterino da criança, a motricidade é uma das mais ricas maneiras de interação com o mundo externo, o que a torna um instrumento privilegiado de comunicação da vida psíquica. Segundo Dantas (1992), o grande eixo para Wallon é a motricidade. A afetividade e a cognição surgem uma vez que não se dissociam do conjunto que constituem a pessoa. Para essa pesquisadora, a psicogênese da pessoa funde-se com a psicogênese da motricidade e, por 28 essa razão, é comum encontrarmos o termo psicomotricidade em sua teoria, pois devemos considerar que o motor é sinônimo de psicomotor. Para Wallon (2008), a dimensão motora envolve muito mais do que as relações biomecânicas que o corpo e suas partes efetuam ao deslocar-se no tempo e no espaço. Em sua concepção, o autor considera as influências dos elementos internos da pessoa, ou seja, as emoções, os sentimentos e os pensamentos para a realização dos movimentos corporais. Argumenta, ainda, que o movimento se dá pela capacidade dos músculos em gerar tensão para os deslocamentos corporais, assim como, por ser considerada a base das atitudes dos seres humanos. Assim, o movimento corporal é compreendido como um funcionamento permanente do corpo nas várias situações. Limongelli (2006) acrescenta que, ao aprofundar-se nessa dimensão, Wallon identificou os órgãos do movimento corporal, isto é, a musculatura e as estruturas cerebrais responsáveis pela sua organização. Enquanto atividade muscular a partir de três formas de deslocamentos: o movimento exógeno ou passivo, o movimento autógeno ou ativo e o movimento de reações posturais, ou deslocamentos dos segmentos corporais. Sendo o movimento exógeno ou passivo responsável por manter a posição em uma relação harmoniosa com a força da gravidade, pois são movimentos subconscientes, uma vez que as estruturas corporais ou centros neurológicos que os controlam estão localizados na região subcortical. Em relação ao movimento autógeno ou ativo, Limongelli (2006) explica que esse movimento é responsável pelo movimento voluntário ou intencional do corpo ou de partes dele. São movimentos conscientes, uma vez que as estruturas corporais ou centros neurológicos estão localizados na região cortical do cérebro. Enquanto que o terceiro movimento, o movimento das reações posturais ou deslocamentos dos segmentos corporais, em relação aos outros, são àqueles que constituem as atitudes que as pessoas apresentam segundo suas emoções e vivencias. Os centros neurológicos responsáveis por esse movimento se localizam na região subcortical docérebro, sendo assim, são movimentos subconscientes. Esse último movimento tem sua origem na variação das emoções e os deslocamentos acontecem a nível músculo-cutâneo, não permitindo provocar mudanças do corpo no tempo e no espaço, apenas mudanças visíveis na plástica da musculatura corporal. E com isso, dar origem ao movimento que normalmente é ignorado por não ter efeito transformador sobre o ambiente físico, embora tenha sobre o ambiente social, pois estamos falando da motricidade expressiva da mímica. É pela expressividade que o indivíduo atua sobre os outros, em especial no seu período do primeiro estágio de desenvolvimento, fase em que a criança 29 expressa suas emoções e, por meio dessa expressão, afeta o outro para atender suas necessidades. Com essas três formas de deslocamentos, a teoria walloniana reconhece que o movimento acontece tanto no espaço físico externo do corpo quanto no espaço orgânico interno do corpo, reforçando a importância das emoções como forma de sobrevivência para o bebê humano, que nasce tão desprovido de condições para sobreviver. Wallon considera, também, que esses três movimentos preenchem duas funções: a função cinética e função tônica. A função cinética ou clonica responde pelo movimento visível, pela mudança de posição do corpo ou dos segmentos do corpo no espaço (a atividade do músculo em movimento). Quanto à função postural ou tônica, envolve o músculo parado, a manutenção da posição assumida, isto é, da atitude, assim como da mímica, sendo esta identificada, de acordo com Dantas (1992), como substrato da função cinética. Na visão de Wallon (2008), a função tônica está presente no indivíduo antes mesmo da motricidade adquirir sua eficácia, uma vez que ela atua durante a imobilidade e está presente nas emoções, até mesmo quando a função simbólica vem internalizar o ato motor. O ato mental, que se expande a partir do ato motor, termina por inibi-lo, mas não o extingue. Em Wallon (1949/1971), é possível compreender que a noção do eu corporal necessita que haja uma diferença entre os elementos relacionados ao mundo exterior e os atribuídos ao próprio corpo. Por esta razão, se faz necessário que seja possível uma ligação entre a atividade para o mundo exterior e a relacionada às necessidades e às atitudes do corpo. Contudo, essa integração só ocorrerá quando houver mielinização das fibras nervosas do sistema vestibular, do núcleo ventral, do corpo trapezoide, da oliva superior, dos núcleos motores; o que se inicia por volta do terceiro mês e não se conclui antes do duodécimo. O período inicial é considerado a etapa impulsiva que consiste além dos reflexos, apenas os movimentos impulsivos, globais e incoordenados. A partir deles, com o amadurecimento das estruturas descritas anteriormente, associado à resposta social do ambiente diante da interpretação do significado (bem-estar, mal-estar) dos movimentos, será introduzida a etapa expressiva emocional. Para Wallon (1949/1971), a resposta motora ao meio está apoiada em uma integração das reações interoceptivas, proprioceptivas e exteroceptivas. Entretanto, existe uma dissociação entre esses diferentes domínios, uma vez que entre suas manifestações devemos 30 considerar a diferença cronológica. As funções interoceptivas são mais precoces e as exteroceptivas verificam-se posteriormente. As reações interoceptivas envolvem a sensibilidade visceral, isto é, estão relacionadas às manifestações orgânicas, tais como, sucção, deglutição, nutrição, respiração, eliminação, vigilância, etc. Provocam sensações difusas, sinalizando os estados de bem estar ou mal estar. Essas informações são provenientes da região subcortical responsável pelas emoções. A sensibilidade proprioceptiva está relacionada a um sistema de funções que acompanha o desenvolvimento da atividade motora desde o seu estado mais anacrônico até as suas possibilidades atuais. Esses sistemas sinérgicos de movimentos e de atitudes são constituídos, de tal maneira, que o deslocamento realizado por uma parte do corpo e a resistência por ele encontrada, suscitam no resto do corpo: a expressão corporal da emoção (atitude) e os movimentos que melhor podem manter o equilíbrio geral e contribuir com a ação solicitada. E desta maneira, auxilia na formulação da noção do próprio corpo, uma vez que provoca sensações relativas ao equilíbrio do corpo e à posição dos segmentos corporais em relação ao próprio corpo. Os sentidos vestibular e tátil cinestésicos assumem a preferência na interação com o mundo exterior. Quanto às reações exteroceptivas, são consideradas sinergias relacionadas às excitações vindas do mundo exterior e não mais do próprio organismo, sendo que essas surgem no curso das primeiras semanas. E, ao mesmo tempo em que as sinergias parciais se formam, as sinergias generalizadas se desenvolvem gradualmente e é ao cérebro que compete essa regulação. Os componentes iniciais são: virar-se, sentar-se, erguer-se nos pés agarrando-se com as mãos. Em seguida, aparecem as tentativas para deslizar-se para trás, para rastejar, andar de quatro. A partir desses avanços, a criança começa a fazer ligação para ver o que mais lhe convêm. A rapidez desses progressos, seja referente ao processo de equilíbrio, da estabilidade e da velocidade ou ao processo do ritmo, apresenta grande diferença de indivíduo para indivíduo, e isso acontece em todos os domínios, fazendo-se necessária uma intervenção da sinergia postural e motora. Ou seja, em tudo que serve de apoio não só para à atividade motora mas, também, à atividade sensorial e psíquica. Optei por detalhar alguns tópicos da teoria walloniana que se referem mais especificamente à dimensão motora. 31 3.1 O Meio Wallon (1986) propõe, também, o entendimento de que a motricidade humana começa pela atuação sobre o meio social, antes de modificar o meio físico, e o meio-social, nessa perspectiva, é a chave para o intercâmbio com o meio físico. E o meio é complemento indispensável do ser vivo, uma vez que deve corresponder às necessidades e aptidões sensório-motoras e, depois, psicomotoras do indivíduo. “[...] a maneira pela qual o indivíduo pode satisfazer suas necessidades mais fundamentais depende do meio e, também, de certos refinamentos de costumes que podem fazer coexistir, nos mesmos locais, pessoas de meios diferentes.” (Wallon, 1986, p. 170) Wallon (1986) esclarece, ainda, que o homem é inserido pela sociedade em novos meios, novas necessidades, novos recursos, aumentando suas possibilidades de evolução e diferenciação individual. E o meio, por sua vez, é considerado um conjunto de circunstâncias, duráveis ou não, nas quais se desenvolvem existências individuais, comportando condições físicas e naturais, que são transformadas pelas técnicas e pelo uso do próprio grupo humano. Werebe e Brulfert (1986) pontuam que na obra de Wallon, o próprio distinguiu o meio em três grandes categorias. A primeira distinção relacionada ao conjunto dos seres vivos envolve o tipo de intercambio que os meios permitem. Temos então, o meio físico-químico, base de todas as espécies, representa um mecanismo quase estável de trocas para uma determinada espécie. O meio biológico, se refere ao meio em que se organizam as ações mutuas entre as diferentes espécies, assim como suas limitações e os estados de equilíbrio mais ou menos estáveis. Já o meio social está relacionado às varias condições da existência coletiva e podem ser destacadas diferenças individuais, além de serem mais moveis e transitivas do que os meios anteriores. A segunda distinção, própria da espécie humana, menciona a superposição do meio social ao meio físico, como escrito no inicio deste tópico. A terceira distinção, também especifica da espécie humana, envolve dois tipos de meio: “[...] o meio físico, espacial e temporalmente determinado, meio das reações sensoriomotoras,dos objetivos atuais, da inteligência das situações, em que os meios de ação são os sistemas funcionais ligados aos movimentos; o meio fundado sobre a representação, em que as situações são simbólicas e implicam o manejo de conceitos.” (WEREBE; BRULFERT, 1986, p.21) 32 Nadel (1981) discute que o meio proposto por Wallon tem duplo status, o meio pode ser considerado tanto como “meio ambiente” (meios físicos e sociais) como “meio de ação” (campos de aplicação), sendo que este último pode ou não coincidir com os meios locais. A escola é um bom exemplo de meio funcional e de meio local. Funcional, pois as crianças a frequentam para instrumentar-se, familiarizarem-se com as relações interindividuais. Por outro lado, é também um meio local onde as crianças podem pertencer a meios sociais variados que se encontram. A família também pode ser considerada um meio funcional, no qual a criança encontra recursos para satisfazer suas necessidades. Entretanto, sua estrutura faz dela um grupo, isto é, sua existência baseia-se na reunião de indivíduos que mantêm, entre si, relações que determinam o papel e/ou o lugar de cada indivíduo no conjunto. Para Wallon (1986), é importante para a criança fazer parte de um grupo, não somente para sua aprendizagem social, como também para o desenvolvimento de sua personalidade e para a consciência que terá desta última. A pesquisa realizada por Kernberg e Chazan (1992, apud PREBIANCHI, 2002, p. 88) evidencia que, na idade escolar, “[...] o grupo de companheiros assume importância, porque o aprendizado de valores e normas de comportamento, dentro de seu grupo etário, ajuda as crianças a se tornarem mais autônomas e a avançarem em seu desenvolvimento.” O meio ao qual a criança está inserida, assim como aqueles com que ela sonha, auxilia na constituição de sua pessoa. Ambos marcam o indivíduo e é dessa maneira que a criança desenvolve sua consciência, sua vida psíquica, se expressa, organizando-se nos conjuntos funcionais que se integram, cada qual com sua identidade própria. Vários meios podem, então, superpor-se para um mesmo individuo e até entrar em conflito. Alguns são vergonhosos, outros vantajosos, alguns são renegados e outros desejados. Assim a existência dos meios reais pode ser duplicada, para a criança, por julgamentos de valor ou por aspirações imaginativas, no decorrer das quais ela opõe a situação que desejaria para si e a situação do outro ao seu próprio destino. Os meios em que vive e aqueles com os quais sonha são a fôrma que deixa nela sua marca. Não se trata de uma marca recebida passivamente [...]. (WALLON, 1986, p.171) 3.2 A Imitação e o Simulacro Na concepção walloniana de desenvolvimento infantil, a imitação e o simulacro são imprescindíveis para novas aprendizagens. A imitação é de grande importância para o 33 desenvolvimento da criança, uma vez que anuncia o nascimento da representação. É tida como uma atividade que relaciona o movimento e a representação. A criança quando imita os modelos sociais, elabora-os corporalmente construindo imagens mentais contextualizadas, recria e modifica-os por meio de interiorizações e de exteriorizações sensório-motoras. Wallon (2008) explica que a imitação não acontece de imediato, existe um tempo entre a percepção e a execução. Após um período de incubação, ela reproduz os movimentos observados, nos quais coexistem automatismo e invenção. O período maior demonstra o grau de importância do aprendizado mudo, que aconteceu entre as percepções iniciais e a aquisição do novo gesto. Nessa concepção, a imitação pode ser vista de duas maneiras: como participação ou como desdobramento do ato. No que se refere à participação, reflete a junção do meio físico com o humano, e a criança realiza o movimento de imitação espontânea de um modelo que fora percebido anteriormente e transformado em ação no momento presente. E o desdobramento se “sobrepõe” a essa ação imediata possibilitando-lhe, por meio da representação, realizar o “desdobramento”, a diferenciação do eu e do outro, tomando consciência de si e do outro. De pequeno até aproximadamente três anos de idade, os jogos sensório-motores, dos quais a criança participa, fazem com que se estabeleçam conexões mais amplas e variadas entre os campos sensoriais ou exteroceptivos e os posturais ou proprioceptivos. Essas conexões são resultados de investigações e comportam certo grau de previsão ou de dedução. Já por volta dos três ou quatro anos de idade, ocorre a imitação fantasista (imitação dramática) que coincide com a crise de personalidade. Assim, ao mesmo tempo em que sente a necessidade de afirmar-se a si mesmo, a criança se interessa pelas outras pessoas, demonstrando esse interesse pela imitação. Integrado ao comportamento, essa imitação adquiri a marca do meio na mesma medida em que se torna o próprio meio. A partir dos seis anos de idade, a imitação se torna racional e refletida. Os interesses imediatos são substituídos pelos interesses diferidos. A criança utiliza a imitação para conquistar afeição, para obter recompensa ou gesto de afeição. Outra situação que antecede a representação é o simulacro que se caracteriza pelo exercício ideomotor, isto é, quando os gestos apoiam o pensamento. A criança “simula” uma situação, na qual utiliza um objeto sem tê-lo presente. Na verdade, podemos dizer que se trata de um ato sem o objeto real, que envolve o movimento e a representação. Os simulacros apoiam a narrativa da criança permitindo a ela lidar com a ficção, com seus desejos de invenção e de criação, por isso, para ela não é ilusório e sim, a descoberta e o exercício de uma função. 34 Considerado como uma representação, dependendo do momento e do grau de evolução, pode prevalecer uma das três funções: o real, a imagem e os sinais. Embora esteja ligado a objetos materiais, pode emigrar para o plano dos símbolos. Ambos (imitação e simulacro) ilustram um desdobramento da realidade, “pressupondo” o início da representação, abrindo em seguida “portas” para o pensamento simbólico prospectivo. 3.3 O controle do movimento... Wallon (2007) chama de disciplinas mentais a capacidade que o indivíduo tem de controlar suas próprias ações, isso inclui a redução da motricidade exterior e o ajustamento progressivo do movimento no mundo físico e social, entrando assim, fortemente, a ação da cultura. Essa capacidade está ligada ao amadurecimento dos centros de inibição e discriminação, que se localizam no córtex cerebral e que se dá por volta dos seis e sete anos. Antes desse amadurecimento, a atividade da criança é marcada por uma instabilidade, uma vez que costuma reagir, indiscriminadamente, aos estímulos externos. Por outro lado, é comum situações em que a criança está totalmente concentrada, em um estado de afastamento aos outros estímulos. Esta situação em que o estimulo controla o sujeito é chamado de perseveração. A partir do fortalecimento das condutas voluntárias, o indivíduo passa a comandar o estimulo, sendo capaz de escolher o foco de sua atenção ou o sentido de sua ação motora. Consequentemente, a criança se torna apta para se desligar das ações espontâneas e imediatas, postergando-as, passando a realizar atividades planejadas. A consolidação das disciplinas mentais é um processo lento e gradual que depende de condições neurológicas e de fatores de origem social, como o desenvolvimento da linguagem e a aquisição do conhecimento. (WALLON, 2007) 3.4 A inteligência prática e a inteligência discursiva 2 2 Este tópico esta baseado no texto de Amaral, que integra a coletânea organizada por Mahoney e Almeida (2004) 35 Compreender o desenvolvimento das capacidades intelectuais no conjunto do desenvolvimento do indivíduo significa aprender essas capacidades no entrelaçamento das três dimensões:o motor, o afetivo e o cognitivo. Na abordagem walloniana, o desenvolvimento da função cognitiva ocorre desde o nascimento, embora a predominância nesse início de vida seja da dimensão motora, como já evidenciamos neste texto. Nos três primeiros meses de vida, o conjunto de reações da criança mobiliza o entorno, contagiando o meio humano, sendo atendido ou não os seus apelos, interpreta dando-lhes significados, criando seu próprio repertório de significados. Essa forma de sociabilização, em fusão com o ambiente externo, forma as primeiras imagens mentais, sincréticas e globalizadas da criança. A estimulação vinda do trabalho cotidiano com a criança, sempre com liberdade de movimentos, de tirá-la da cama, alimentá-la, mudar de posição, de ambiente, ativa as funções sensório-motoras, fazendo com que possa diferenciar as diversas sensações. Ao coordenar os movimentos de seu próprio corpo, passa a integrar a sensação com o ato, possibilitando a apreensão do real e inteligente das coisas. A primeira forma de expressão da criança é o movimento, com o qual revela o que se passa no seu mundo interno. Desenvolve-se inicialmente, por meio das reações de compensação e reajustamento do próprio corpo sob a ação da gravidade. A cada nova posição conquistada, trazendo novos deslocamentos do corpo, possibilita na criança o reconhecimento das coisas e do mundo na sucessão de três espaços: o espaço bucal, o espaço próximo e o espaço conquistado pela locomoção. O uso das mãos, em conjunto com os deslocamentos no espaço, traz para a criança novas possibilidades de percepção do ambiente e de ação sobre ele, tornando possível aprimorar as relações, intensificando funções intelectuais. Todas essas situações são caracterizadas por um tipo de inteligência chamada, por Wallon, de inteligência prática. A inteligência prática, conhecida também por inteligência das situações ou inteligência espacial, é desenvolvida à medida que a criança estabelece relações no espaço sensório-motor. Isso sinaliza sua capacidade de perceber e fazer combinações frente à ação imediata, em um espaço concreto demarcado e em um tempo presente. A inteligência discursiva passa a se desenvolver com o surgimento da linguagem, tendo em vista que nomear, identificar e localizar os objetos auxilia a criança a distingui-los, compará-los e agrupá-los com diferenciações gradativas. 36 Desta maneira, o andar e a linguagem oportunizam para essa criança ingressar no mundo dos símbolos, entrando assim, na segunda parte do estágio sensório motor, a etapa projetiva, quando o ato mental projeta-se em atos motores. Isso significa que o gesto precede a palavra, pois a criança não é capaz de imaginar sem representar nesta etapa, ela os utiliza para expressar seus pensamentos. Aos poucos a linguagem passa a substituir a ação motora direta sobre as coisas, fazendo com que a aprendizagem não dependa da manipulação imediata e concreta. Por meio da apropriação da linguagem, a criança tem a possibilidade de representar o mundo mentalmente, encontrando para cada representação um signo. O desenvolvimento avança conforme a sucessão dos estágios e a sua expansão se caracteriza pelo maior domínio do corpo e da capacidade mental, garantido pela maturação cerebral e pelas práticas sociais. A integração das funções em cada momento do desenvolvimento traz um conjunto de comportamentos diferentes dos anteriores, uma vez que ocorrem transformações que apontam para novas direções. A integração das funções dos vários domínios na pessoa resulta dos movimentos de superação de oposições entre elas, pois há conflitos, forças divergentes e refluxos, que produzem uma integração dinâmica, plástica, garantindo ao organismo adaptar-se ao meio. E, por sua vez, esse meio torna o desenvolvimento das funções cada vez mais sofisticado e diferenciado. 3.5 A imperícia 3 A intenção de trazer essa questão para a parte teórica da pesquisa envolve duas razões. A primeira, usando as palavras de Wallon (1975, p.125): “A imperícia é algo que nos é bastante familiar. Conhecemo-la, por nós próprios e como educadores. Sempre que queremos aprender um movimento novo ou ensiná-lo, temos de nos debater com a nossa imperícia ou com a dos nossos alunos”. Em segundo, se faz necessário que os professores conheçam as diferentes formas de imperícia que podem aparecer, para compreender o movimento corporal que os alunos apresentam durante as aulas. 3 As considerações teóricas apresentadas estão respaldadas em artigo do mesmo nome escrito por Wallon, publicado originalmente no Journal de Psychologie em 1928 e publicado posteriormente em Psicologia e educação da infância, 1975. 37 Sendo a imperícia uma imperfeição habitual dos movimentos, podemos dizer que alguém é inábil quando não consegue executar uma ação. Por esta razão, todos os fatores relacionados à execução do movimento, por sua insuficiência tornam-se causa de imperícia. Segundo Wallon (1975), os fatores, a principio, estão relacionados aos instrumentos e ao comando do movimento. “Os instrumentos, indispensáveis ao movimento são os membros”. Quando se tem algum vicio ou deformação o movimento torna-se incorreto ou difícil. No entanto, existe a possibilidade do individuo desenvolver uma habilidade motora para compensar essa dificuldade. Quanto ao comando, se faz necessário distingui-lo (voluntário ou involuntário). No movimento voluntário somos autores de nossa própria atividade. As manifestações das atividades estão ligadas às ideias e representações, com sede em uma determinada região do córtex cerebral, denominado de região cinzenta que envolvem os hemisférios. A atividade do ser vivo está construída de tal modo que o seu aparelho motor é posto em ação por excitações vindas da periferia. Assim se constituíram vias centrípetas ou aferentes que as conduzem aos centros nervosos, enquanto vias centrifugas ou eferentes levam para os órgãos periféricos a resposta [...] Quando não existem lesões nem doenças, o que pode causar a imperícia é a falta de sensibilidade, isto é, quando não se atem à sensibilidade advinda dos movimentos. “... As sensações que resultam do próprio movimento são necessárias à sua boa execução e a imperícia pode ser devida às suas alterações ou à sua ausência. (WALLON, 1975, pp. 127- 128) A atividade do cerebelo não está ligada às sensações tampouco às imagens, mas o seu papel é o resultado da função motora, fator indispensável do movimento. O cerebelo dá um ponto de apoio ao movimento, regulando o equilíbrio do corpo, entra em ação quando existe um deslocamento de um membro originando um deslocamento do centro de gravidade, ele regula a intensidade e a direção das pressões que suporta ou que exerce. Quando apresenta insuficiência corresponde a uma forma de imperícia, “... uma vez que nenhum movimento é possível sem uma exata regulação do equilíbrio.” (WALLON, 1975, p.130). Todo movimento tem necessidade de ter uma regulação delicada e precisa, “...todo movimento constitui um jogo de alavancas e a precisão do seu jogo exige a estabilidade perfeita do seu ponto de apoio.” (WALLON, 1975, p.131) 38 A aquisição de um movimento novo também é outra forma de imperícia. Os movimentos existem com vistas a certas ações, que são sua razão de ser, assim como, sua origem. A cada movimento novo é necessário que sistemas parciais de movimentos tracem seu domínio sobre os sistemas anteriores. Sendo assim, existe um poder inibidor dos sistemas motores, órgãos de inibição necessários para libertar cada um dos sistemas. A hierarquia dos sistemas motores ou automatismos, adquiridos sucessivamente, integram-se numa função de dissociar e de especializar as contrações musculares, para que possam modelar-se na diversidade de nossas ações. A insuficiência em qualquer parte