Prévia do material em texto
AULA 1 BIOÉTICA Profª Ivana Maria Saes Busato 2 Vários acontecimentos contribuíram para o surgimento da bioética, os quais são formados por um conjunto de fatores em diferentes cenários: sociais, pesquisas com humanos, práticas sociais, práticas de saúde e avanço científico. Abreu (2018) afirma que a bioética, como nova disciplina intelectual, surgiu por força dos diferentes dilemas evidenciados nas áreas da biologia e da medicina, em especial a partir do início do século XX. Conforme Zanella, Sganzerla e Pessini (2019, p. 5), a bioética é a ciência sobre o uso da ciência e funciona como supervisor ético da ciência, para evitar que a ciência escape do controle humano. Vamos percorrer por alguns aspectos históricos que contribuíram para a bioética nascer e transformar as relações entre a ciência e a vida. TEMA 1 – O CÓDIGO DE NUREMBERG O Código de Nuremberg é um dos resultados do Tribunal de Nuremberg, responsável pelo julgamento de criminosos da Segunda Guerra Mundial, que, como sabemos, ocorreu entre 1939 e 1945 e foi um conflito permeado pelos embates entre por Alemanha, Itália e Japão, contra os países Aliados, que tiveram como principais atores a França, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a União Soviética. No final da guerra, veio à tona a monstruosidade de alguns experimentos realizados em seres humanos vulneráveis, na Alemanha nazista (Lopes, 2014, p 265). O autor ainda destaca que “a humanidade, perplexa, vê, assentados no banco dos réus, 23 pessoas acusadas de crimes de guerra e contra a humanidade, e entre eles 20 são médicos”. Saiba mais Acesse o link a seguir para assistir ao filme O julgamento de Nuremberg, para compreender os crimes julgados e sentenciados. O JULGAMENTO de Nuremberg – Dublado. Kawakita, 18 jun. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qRw1gIp8J_s>. Acesso em: 17 abr. 2020. 3 1.1 Recomendações éticas do Código de Nuremberg Em agosto de 1947 o mesmo tribunal divulga as suas sentenças promovidas por juízes dos EUA para julgar os médicos nazistas acusados. O julgamento teve como réus 23 pessoas, e somente três destes não eram médicos. O julgamento constatou que o juramento de Hipócrates realizado pelos profissionais médicos responsáveis pelas pesquisas não garantiu a proteção dos voluntários das pesquisas. Com isso, foi concebido o documento histórico chamado Código de Nuremberg, que elabora dez recomendações éticas (Código de Nuremberg, 1949) a serem observadas nas pesquisas que envolvam seres humanos, que são resumidas no Quadro 1: Quadro 1 – Resumo das recomendações éticas do Código de Nuremberg 1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial; 2. O experimento deve produzir resultados vantajosos para a sociedade; 3. O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; 4. O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento físico ou mental desnecessários e danos; 5. Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; 6. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância humanitária do problema que o experimento se propõe a resolver; 7. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota; 8. O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas; 9. O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento, se ele chegou a um estado físico ou mental no qual a continuação da pesquisa lhe parecer impossível; 4 10. O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, que resulte em dano, invalidez ou morte para o participante. Fonte: Código de Nuremberg, 2020. Diniz e Corrêa (2001, p. 679) apontam que “durante os primeiros vinte anos de existência do documento, as diretrizes éticas de Nuremberg não atingiram o alvo desejado”, pesquisas clínicas sem o devido respeito no uso de seres humanos continuaram acontecendo. TEMA 2 – A DECLARAÇÃO DE HELSINQUE Diante do medo da comunidade médica com os experimentos clínicos e da recorrência de problemas do papel dos médicos em pesquisas clínicas, a Associação Médica Mundial, entidade reguladora de todas as associações médicas nacionais, instituiu a Declaração de Helsinki, tornando-se até hoje referência ética mais importante para a regulamentação de pesquisas médicas envolvendo seres humanos (Diniz; Corrêa, 2001). A Declaração é moralmente obrigatória para os médicos, e essa obrigação substitui quaisquer leis nacionais ou locais ou regulamentos 2.1 Os princípios da Declaração de Helsinque A Declaração de Helsinque I, promulgada em 1964, durante a 18ª Assembleia Médica Mundial (Helsinque, Finlândia), confirmou os dez primeiros princípios defendidos no Código de Nuremberg, e acrescentou aos deveres éticos do médico constante na Declaração de Genebra, de 1948. A Declaração de Genebra (WMA, 2020) foi concebida como uma revisão modernizadora dos preceitos morais do Juramento de Hipócrates, é utilizada no Brasil e em outros países na solenidade de formatura dos profissionais egressos do bacharelado em medicina. Declaração de Helsinque I buscou retomar os princípios do dever do médico em promover e salvaguardar a saúde de seus pacientes, bem como de garantir que a evolução médica, mesmo usando a experimentação envolvendo serres humanos, garanta o bem-estar dos sujeitos de pesquisa diretamente, ou que envolva material humano identificável ou ainda de dados identificáveis, devendo prevalecer acima dos interesses da ciência e sociedade. 5 2.2 Revisões realizadas A Declaração de Helsinki I foi atualizada em sete reuniões da Associação. A primeira mudança ocorreu na 29ª Assembleia Médica Mundial, em Tóquio, no Japão, em 1975, e teve como objetivo deliberar sobre os direitos dos animais usados em pesquisas. A segunda foi realizada em 1983, na 35ª Assembleia (Veneza, Itália), e complementou os princípios com a necessidade do consentimento de menores sempre que possível. A terceira alteração ocorreu na reunião realizada em Hong Kong (1989), 41ª Assembleia, para definir a função e a estrutura da comissão independente, que no Brasil é regulamentada pelo Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep. Em 1996, na 48ª Assembleia em Sommerset West, na África do Sul, foi redefinido o uso de placebos inertes em estudos em que não há nenhum método comprovado de diagnóstico ou de terapêutica comprovada. Isso foi necessário em especial nas pesquisas realizadas para aids com diferentes condutas entre países ricos e pobres. A quinta revisão, ocorrida na 52ª Assembleia de 2000 (Edimburgo, Escócia), foi imperativa a mudança de dois artigos para complementar e regular melhor o uso de placebos e garantir aos sujeitos de pesquisa o uso de intervenção melhor comprovada. As propostas de revisão focaram em “dois pontos relevantes: a questão do acesso e da qualidade dos cuidados médicos a serem oferecidos aos participantes das pesquisas e a utilização de placebo em grupos-controle” (Garrafa; Prado, 2007, p. 17). A sexta e a sétima mudanças aconteceram respectivamente nos anos de 2008 (59ª Assembleia, Seul, Coreia do Sul) e 2013 (64ª Assembleia, em Fortaleza, Brasil). Suas principais deliberações vieram para complementar as revisões anteriores. TEMA 3 – OUTROS FATORES HISTÓRIOS A evolução científica e as mudanças sociais dos anos 60 e 70 mudaram os valores e a moralidade do homem em relação à vida, impulsionando a necessidade de novas reflexões sobre os direitos civis e humanos, surgindo outros questionamentos sobre valores moraistradicionalmente aceitos como 6 verdadeiros, e um novo olhar sobre as instituições sociais: família, escola, Igreja entre outros. 3.1 As reflexões do filósofo Albert Jonsen O filósofo americano Albert Jonsen (1993) destaca em seu artigo “The Birth of Bioethics”, publicado na revista Hastings Center Reports em 1993, que três fatos históricos foram essenciais para o nascimento da bioética. o primeiro acontecimento apontado por ele aconteceu em 1962, quando a jornalista Shana Alexander (1962) publica um artigo na revista Life denunciando o Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle na definição dos pacientes renais crônicos que deveriam fazer hemodiálise, visto que não havia aparelhos para todos os pacientes com essa necessidade. Com o título “Eles decidem quem vive, quem morre”, traduzido para o português, esse artigo traz a público que o grupo elegia critérios não-médicos de seleção dos pacientes para o tratamento. Muñoz e Muñoz (2003, p. 2) destacam, que nessa mesma época, nos anos 1960, houve avanços na conquista dos direitos civis, promovendo o fortalecimento dos movimentos sociais organizados (feminismo, hippie, negro, entre outros grupos de minorias sociais). Os autores relacionam que esses movimentos e as conquistas dos direitos civis criaram condições favoráveis para o progresso da ciência bioética e as discussões éticas nas pesquisas com seres humanos. 3.2 O artigo de Henry Beecher: segundo acontecimento O segundo acontecimento indicado por Albert Jonsen para o nascimento da bioética foi a publicação do artigo publicado no New England Journal of Medicine, de Henry Beecher, com o título em português “Ética e investigação clínica”, relatando vinte e duas pesquisas com transgressões ética explícitas (Muñoz; Muñoz, 2003). Diniz e Guilhem (2005, p. 15), no livro O que é bioética?, destacam que os fatos relatados no artigo de Henry Beecher foi o mais assombroso desde os relatos das pesquisas nazistas. Beecher tinha compilado inicialmente cinquenta relatos de pesquisas envolvendo seres humanos em condições pouco respeitosas. 7 Diniz e Guilhem (2005) realizam análise dos casos apontados por Henry Beecher, destacando o exemplo 17, em que os pesquisadores injetaram células cancerosas vivas em 22 pacientes idosos e senis hospitalizados, sem que eles soubessem, com o objetivo de acompanhar as respostas imunológicas do organismo. 3.3 Terceiro acontecimento: 1º transplante de coração Outro acontecimento destacado por Albert Jonsen, em The Birth of Bioethics, é que o terceiro fato importante para a bioética foi a realização do primeiro transplante cardíaco, realizado por Christiann Barnard, em 3 de dezembro de 1967, na África do Sul, Groote Schur Hospital, em Cape Town, no paciente Sr. Washansky (Hueb; Cipullo; Kallás, 2015). Sua importância para bioética foi apontada por Lopes (2014, p. 269), que mostrou que esse procedimento inédito na medicina suscitou as seguintes questões: “como é possível retirar um coração vivo de uma pessoa morta? Quando considerar que alguém está definitivamente morto? A morte é um momento ou é um processo? Sendo processo, é possível determinar quando ele se torna irreversível?”. O primeiro transplantado do mundo morreu 17 dias após o transplante cardíaco devido à pneumonia secundária a pseudomonas (Hueb; Cipullo; Kallás, 2015). Apesar de uma euforia inicial, os resultados foram insatisfatórios, com elevada mortalidade, ao final dos anos 1970, com o surgimento da ciclosporina, que possibilitou um melhor controle da rejeição, e os transplantes em geral obtiveram grande desenvolvimento (Mangini et al., 2015). Os autores constatam numa revisão que o “transplante de coração é atualmente a abordagem cirúrgica definitiva padrão-ouro no tratamento da insuficiência cardíaca refratária, situação na qual o paciente apresenta grande limitação funcional e elevada mortalidade” (Mangini et al., 2015, p. 310). Saiba mais Seis meses após o primeiro transplante no mundo, realizado por Christiann Barnard, em 3 de dezembro de 1967 na Cidade do Cabo na África do Sul, no Brasil também houve um transplante de coração, realizado por Euryclides de 8 Jesus Zerbini, em 26 de maio de 1968, no Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo Fonte: Mangini; et al., 2015. TEMA 4 – O RELATÓRIO BELMONT O governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research (em português, Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental). Muitos aspectos contribuíram para essa tomada de decisão do Governo Americano, oriundos dos fatos históricos estudados nos temas anteriores. Contudo, o Caso Tuskegee envolveu diretamente o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América e será discutido neste tema. O objetivo principal dessa Comissão foi identificar os princípios éticos básicos que deveriam conduzir a experimentação em seres humanos. Passados quatro anos de discussões, foi elaborado o Belmont Report, (Relatório de Belmont), publicado em 1978 (Diniz; Guilhem, 2005). Destaca-se que o Relatório Belmont foi posteriormente sistematizado suas vertentes éticas na obra Princípios de ética biomédica, dos autores Beauchamp e Childress (1979), que desenvolveram os princípios do Relatório Belmont, como princípios gerais da ética em pesquisa em: autonomia, justiça, não maleficência e beneficência (Alburquerque, 2013). 4.1 O caso Tuskegee O caso Tuskegee foi uma pesquisa realizada de 1932 a 1972 pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América e contribui fortemente para ações do Governo e o Congresso norte-americano na produção do Relatório de Belmont. A pesquisa tinha o objetivo de observar a evolução da doença sífilis, livre de tratamento, em 600 homens negros, sendo que 400 pessoas foram deixadas sem tratamento (utilizavam placebo), da cidade de Macon, no estado do Alabama (Diniz; Guilhem, 2005, p. 18). Os participantes faziam parte de uma população muito vulnerável e recebiam como contrapartida pela participação no projeto: acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames, pagamento 9 das despesas com o funeral e prêmios em dinheiro pela participação. Conforme descrito por Diniz e Guilhem (2005, p. 18), os participantes sequer foram avisados de que participavam de um experimento, lembrando que a penicilina, medicamento fundamental para o tratamento da sífilis, eficaz até hoje, foi descoberto por Alexander Fleming em 1928 e começou a ser usado década de 40, portanto esses pacientes poderiam ter sido beneficiados com essa descoberta. Goldim (1999, p. 2) descreve que, em 1969, a imprensa noticiou a confirmação de que já tinham ocorrido 28 mortes no estudo. Neste mesmo ano, James H. Jones tomou contato, por acaso, com documentos relativos ao experimento, porém achou que já havia sido descontinuado. Goldim (1999, p. 2) ainda explica que houve uma forte repercussão social e política sobre essa pesquisa quando a repórter Jean Heller, da Associated Press, publicou matéria denunciando, no New York Times, em 26 de setembro de 1972. O autor ainda explica o grau de crueldade sobre o experimento Após 40 anos de acompanhamento dos participantes, ao término do projeto, somente 74 sobreviveram. Mais de 100 participantes morreram de sífilis ou de complicações da doença. A instituição responsável pela condução do projeto, nas suas últimas etapas, foi o Centro de Controle de Doenças (CDC) de Atlanta. (Goldim, 1999, p. 2) Em 1976 o Governo norte-americano pediu desculpas públicas à comunidade negra da cidade de Macon (Alabama). Esse experimento é considerado uma infâmia científica. Somente a partir da segunda metade do século XX passaram a detectar sistematicamente as transgressõeséticas da atividade científica, amparadas pelo vácuo normativo que existiu durante os quase vinte anos que separaram Nuremberg e Helsinque (Kottow, 2008). Saiba mais 1. A HISTÓRIA da Bioética - Parte 2. Bioéticas, 1 nov. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tmodpAQwB7I&t=68s>. Acesso em: 18 abr. 2020. 2. Cobaias (Miss Evers´ Boys) – Legendado – O caso Tuskegee. Frankly Andrade, 6 maio 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5H24-PHs3Us>. Acesso em: 18 abr. 2020. 10 4.2 Os princípios de relatório No Relatório de Belmont, foram estabelecidos três princípios: o princípio do respeito às pessoas, o princípio da beneficência e o princípio da justiça. Esses princípios são considerados básicos para nortear a pesquisa biomédica com seres humanos e são nominados de Princípios e Diretrizes Éticas para a Proteção de Pacientes Humanos em Pesquisas (The Belmont Report, 1978). O princípio de respeito às pessoas emanados do Relatório incorporou dois pressupostos éticos: o respeito à autonomia das pessoas e a proteção pelas pessoas cuja autonomia está diminuída (Diniz; Guilhem, 2005, p. 22). As autoras explicam que a vontade das pessoas deve ser um pré-requisito fundamental para a participação na pesquisa científica (Diniz; Guilhem, 2005). O princípio da beneficência representa a necessidade de não causar nenhum dano a outrem na realização da pesquisa. Diniz e Guilhem (2005, p. 22) indicam que nesse princípio está inserido o compromisso do pesquisador em garantir o bem-estar das pessoas. Outro ponto importante versa sobre a maximização dos benefícios para promover equilíbrio entre dano/benefício. O princípio da justiça, por sua vez, está ligado ao princípio da equidade, ao reconhecimento de que as pessoas têm necessidades diferentes, devendo-se considerar os iguais como iguais e os diferentes como diferentes, na proporção de suas desigualdades (Diniz; Guilhem, 2005, p. 22). TEMA 5 – A IMPORTÂNCIA DE POTTER Van Rensselaer Potter, americano nasceu em 1911, e morreu em 2001 ao completar 90 anos, deixando esposa, três filhos, seis netos e duas irmãs (Pessini, 2005). Pessini (2005, p. 148) também apresenta que “Potter doutorou-se em bioquímica e trabalhou mais de 50 anos na Universidade de Wisconsin, nos Laboratórios MacArdle para a pesquisa de câncer, aposentando-se em 1982”. Pessini (2005, p. 148) adiciona que Sua contribuição original sobre a compreensão do metabolismo das células cancerígenas foi reconhecida, contribuindo para sua eleição para a Academia Nacional de Ciências. Foi presidente da Sociedade Americana de Pesquisa sobre o Câncer em 1974, além de ter atuado em inúmeras outras organizações científicas de grande prestígio nos EUA. Nem o próprio Potter poderia imaginar a velocidade como as coisas transcorreriam (Costa; Garrafa; Odelka, 1998, p. 15). Os autores ainda reforçam 11 que a visão de Potter para a bioética focava um compromisso mais global frente ao equilíbrio entre seres humanos e ecossistema. López (2012, p. 61) explica a importância de Potter para a bioética manifestação de um novo tipo de conhecimento que tem entre suas características distintivas a abordagem central de reunir conhecimento, científico e humanístico, até então separado [...], em face ao problema dos problemas contemporâneos: alcançar a sobrevivência aceitável da espécie humana. 5.1 Neologismo da bioética Van Rensselaer Potter, entre 1970 e 1971, produziu dois trabalhos que cunharam o neologismo bioethics (bioética): o primeiro foi o artigo “Bioethics, science of survival”, publicada no Persp Biol Med (em português, “Bioética ciência para sobrevivência”), colocando a “bioética como um campo do conhecimento voltado para o estudo da sobrevivência da civilização humana no contexto da sobrevivência de todo o planeta” (Fischer et al., 2017. p. 392). A agenda de discussões políticas e de produções científicas internacionais referentes aos temas ecológicos, desde a publicação de Potter em 1970, tornou- se cada vez mais presente, resultando na atualização das reflexões sobre a relação ética entre seres humanos e meio ambiente, que Potter publicou em 1988 um novo livro, Global bioethics (Fischer et al., 2017. p. 397). A visão potteriana de bioética não somente merece ser resgatada, mas é preciso promovê-la e ampliá-la devido ao seu valor em relação à sobrevivência e ao futuro da vida neste planeta (Zanella; Sganzerla; Pessin, 2019, p. 2). Conforme Zanella, Sganzerla e Pessini (2019, p. 2), Potter viu a interconectividade da vida humana e da natureza como auto evidente, dado que nós, seres humanos, estamos situados em um ambiente natural e procuramos nos conectar não apenas com a saúde dentro do hospital, mas também com a vida holística no mundo. Em 1988, ele publicou seu segundo e último livro sobre bioética, somente agora traduzido ao português brasileiro, a saber, Bioética Global: Construindo a partir do legado de Leopold. Potter tinha uma grande preocupação com a interação do problema ambiental às questões de saúde foi um “bioeticista virtuoso, não apenas viveu sua visão de bioética, como também conclamou outros a fazê-lo, alertando que, para merecer ser chamado de bioeticista se deve seguir tal credo”. (Pessini, 2005, p. 147) Retomaremos a esse ponto de vista de Potter para uma bioética global quando estudarmos a bioética latino-americana. 12 5.2 Ponte para o futuro Em 1971, Van Rensselaer Potter publica o livro Bioethics: bridge to the future, em português “Bioética: ponte para o futuro”, Potter apresenta a bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a ética. O neologismo bioética “apareceu na mídia em 19 de abril de 1971, quando a revista Time publicou longo artigo com o título ‘Man into superman: the promise and peril of the new genetic’” (em português, “Homem em super-homem: a promessa e o perigo da nova genética”) (Pessini, 2013, p. 10). Abreu (2018, p. 71) destaca que a criação de Potter objetivava a “identificação de valores e de normas que fossem capazes de orientar a ação humana, em especial, o uso da ciência e da tecnologia na biosfera”. Pessini (2013, p. 11) explica que a ponte proposta por Potter deveria ligar duas margens, oriundas de termos gregos termos gregos bios (vida) e ethos (ética), sendo que bios representa o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vivos, e ethos o conhecimento dos valores humanos. Potter almejava criar uma disciplina em que promovesse a dinâmica e a interação entre o ser humano e o meio ambiente. (Pessini, 2013, p. 10) 5.3 A bioética principialista A percepção da necessidade de discussões éticas também está presente na prática clínica e assistencial, apresentadas por Thomas L. Beauchamp e James F. Childress publicaram, em 1979, no livro Principles of biomedical ethics, obra que ficou mundialmente conhecida por apresentar os quatro princípios bioéticos que deveriam ser considerados, tanto para realização de pesquisas quanto para a prática clínica. Nesse livro, Beauchamp e Childress utilizaram os três princípios definidos pelo Relatório Belmont (respeito às pessoas, à beneficência e à justiça) e adicionaram um quarto princípio, a não maleficência. Outra mudança significativa e que faz diferença crucial para compreensão da bioética foi em relação ao respeito às pessoas para respeito à autonomia das pessoas (Beauchamp; Childress, 2004). Assim, ficaram consolidados os quatro princípios da bioética: autonomia, justiça, beneficência e não maleficência. Retomaremos os conceitos desses quatro princípios e estudaremos suas implicações e desafios atuais posteriormente. 13 Saiba mais Para refletir sobre a importância da bioética e Van Rensselaer Potter: A bioética deve representar uma nova ética científica que conecte a humildade, a responsabilidade e a capacidade, numa ciência que tenha comocaracterísticas constitucionais ser interdisciplinar, intercultural e global, e que exalte o significado da humanidade. Objetiva o bem-estar do ser humano no contexto relacional harmonioso com a natureza, pois é parte integrante desta. Nessa perspectiva, a bioética global potteriana busca ser uma espécie de ciência da sobrevivência e garantia de um futuro promissor para toda a humanidade. Fonte: Zanella, Sganzerla e Pessini, 2019, p. 5. Santos (2018, p. 71) constata que o modelo principialista traz a necessidade de usar método específico para a melhor maneira de resolver os problemas éticos provenientes do cuidado para com a saúde do ser humano. Contudo a bioética principialista recebeu críticas de diversos autores em diferentes momentos e por distintas razões, fazendo surgir diversas abordagens distintas que estudaremos mais tarde. 14 REFERÊNCIAS ABREU, C. B. (Org). Bioética e gestão em saúde. Curitiba: InterSaberes, 2018. ALBUQUERQUE, A. Para uma ética em pesquisa fundada nos direitos humanos. Revista de Bioética, v. 21, n. 3, p. 412-422, 2013 ALEXANDER, S. They decide who lives, who dies. Life, v. 53, p. 102-25, 1962 BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J.F. Princípios de ética biomédica. 4 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. CÓDIGO de Nuremberg. Tribunal Internacional de Nuremberg, Tribunal Internacional de Nuremberg – 1947. Julgamento de criminosos de guerra perante os Tribunais Militares de Nuremberg. Control Council Law, v. 10, n. 2, p. 181- 182, 1949. Disponível em: <https://www.ghc.com.br/files/CODIGO%20DE%20NEURENBERG.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2020. COSTA, S. I. F.; GARRAFA, V.; OSELKA, G. Apresentando a bioética. In: COSTA, S. I. F.; GARRAFA, V.; OSELKA, G. Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 15-18. DINIZ, D.; CORREA, M. Declaração de Helsinki: relativismo e vulnerabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 679-688, jun. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 311X2001000300022&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 abr. 2020. DINIZ, D.; GUILHEM, D. O que é Bioética? São Paulo: Brasiliense, 2005. FISCHER, M. L. et al. Da ética ambiental à bioética ambiental: antecedentes, trajetórias e perspectivas. História de Ciência e Saúde de Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 391-409, abr. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 59702017000200391&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 abr. 2020. GARRAFA, V.; PRADO, M. M. do. Alterações na Declaração de Helsinque – a história continua. Revista Bioética, v. 15, n. 1, p. 11-25, 2007. GOLDIM, J. R. O caso Tuskegee: quando a ciência se torna eticamente inadequada. Clarissa Bottega, 1999. Disponível em: 15 <http://www.clarissabottega.com/Arquivos/Bioetica/caso_tuskegee.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2020. HUEB, A. C.; CIPULLO, R.; KALLÁS, E. Transplante cardíaco: modalidade de tratamento para a insuficiência cardíaca. Revista Ciências em Saúde v. 5, n. 4, 2015. JONSEN, A. The Birth of Bioethics. Hastings Center Reports, nov.-dez., 1993. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.2307/3562928>. Acesso em; 18 abr. 2020. KOTTOW, M. História da ética em pesquisa com seres humanos. RECIIS – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação, Inovação e Saúde, v. 2, Sup.1, p. Sup.7-Sup.18, Rio de Janeiro, dez., 2008. LOPES, J. A. Bioética – uma breve história: de Nuremberg (1947) a Belmont (1979). Revista Médica de Minas Gerais, v. 24, n. 2, p. 262-273, 2014. LÓPEZ, I. G. Van Rensselaer Potter e Edgar Morin: mudanças no pensamento ético contemporâneo. Revista Latino-americana de Bioética, v. 12, n. 1, ed. 22, p. 46-61, 2012. MANGINI, S. et al., Transplante cardíaco: revisão. Einstein, v. 13, n. 3, p. 310- 318, 2015. MUÑOZ, D. R.; MUÑOZ, D. Bioética: o novo caminho da ética em saúde. Saúde, Ética & Justiça, v. 8, n.1/2, p. 1-06, 2003. PESSINI, L. Bioética das instituições pioneiras – perspectivas nascentes aos desafios da contemporaneidade. Revista Brasileira de Bioética, v. 1, n. 2, p. 145-163, 2005. _____. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista de Bioética, Brasília, v. 21, n. 1, p. 9-19, abr. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983- 80422013000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso: 18 abr. 2020. SANTOS, P. A. dos. Modelos de bioética, In: ABREU, C. B. (Org). Bioética e gestão em saúde. Curitiba: InterSaberes, 2018, p. 67-92. THE BELMONT REPORT: ethical guidelines for the protection of human subjects. Washington: Dhew Publications, 1978. 16 WMA. WORLD MEDICAL ASSOCIATION. Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, 2.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Genebra, Suíça, setembro 1948. Revista na 68.ª Assembleia, Chicago, EUA, outubro 2017. Disponível em: <https://www.ghc.com.br/files/Declara%C3%A7%C3%A3odeGenebra2017.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2020. ZANELLA, D. C.; SGANZERLA, A.; PESSINI, L. A bioética global de V. R. Potter. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. 22, 2019. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414- 753X2019000100601&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 abr. 2020.