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HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 1 “Meu povo, escutai meu ensino, inclinai os ouvidos às palavras da minha boca. Abrirei minha boca em parábolas; proporei enigmas da antiguidade, o que temos ouvido e aprendido, e nossos pais nos têm contado. Não os encobriremos aos seus filhos, con- taremos às gerações vindouras sobre os louvores do SENHOR, seu poder e as maravilhas que tem feito.” (Sl 78.1-4) O CONTEXTO DA REFORMA Aula 1 A Última Ceia, de Leonardo da Vinci - Ano: 1498. V1 HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 2 Hoje, em pleno século XXI, qualquer cristão comum pode ir até sua prateleira de casa e pegar uma Bíblia para ler livremente. Mas nem sempre foi assim. Pensar sobre a história das Escrituras é algo inter- essante: houve um tempo em que não havia a Bíblia como a temos hoje, assim como nem todo cristão tinha o privilégio de ler a Palavra de Deus, especialmente em sua própria língua. Chegamos, então, aos momentos mais conhecidos e importantes da história da igreja – a Reforma Protestante. Longe de ser um mov- imento que afetou apenas a igreja, a reforma foi um suceder de acontecimentos que afetou toda a história, especialmente a história do ocidente moderno. Muitos conhecem ou pelo menos já ouviu falar de Martinho Lute- ro, o grande reformador alemão que enfrentou a igreja de Roma. Contudo, não podemos dizer que a reforma começou quando, em 30 de outubro de 1517, Lutero fixou as suas 95 teses contra as indulgências na porta da Igreja de Wittenberg. Certamente aquele foi um evento marcante, mas antes disso diversos homens trilharam o caminho em busca de uma verdadeira mudança na igreja. A PRÉ-REFORMA 1. Os Valdenses (1170) Os valdenses era um grupo formado pelos seguidores de Pedro Valdo, comerciante de grandes posses de Lyon, na França. Por volta do ano 1176, Valdo, após ouvir a parábola do jovem rico, passou por uma conversão profunda. Vendeu sua fortuna deu parte aos pobres e com o restante financiou a tradução do Novo Testamen- to. Posteriormente, ele começou a ler, explicar e distribuir as Escrituras ao povo. Os valdenses foram excomungados em 1184, pois contestavam os costumes e doutrinas da Igreja, negando, por exem- plo, a autoridade do Papa e a existência do purgatório. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 3 2. John Wycliffe (1329 - 1384) Inglês e aluno da Universidade de Ox- ford, onde se tornou doutor em teologia; era contra o domínio romano e o sistema monástico, além de não reconhecer a autoridade do papa. Buscava uma igre- ja mais simples, no estilo do Novo Tes- tamento. Seu maior feito foi traduzir a Bíblia para o inglês (Novo Testamento em 1380 e Antigo Testamento em 1384 com a ajuda de amigos) 3. John Huss (1369 - 1415) Nascido na Boêmia, leitor de Wycliffe. Com a mesma pregação de seu ante- cessor, Huss defendia o fim da autori- dade do papa. Tinha grande influência na cidade de Praga até ser excomunga- do. Fugiu e se escondeu, de onde con- tinuava enviando cartas com ensina- mentos. Foi convencido a ir ao Concílio de Constança, com um salvo-conduto. Porém, lá chegando foi traído, conde- nado e queimado em 1415. 4. Jerônimo Savonarola (1452 - 1498) Italiano, era um monge dominicano em Florença. Suas pregações iam contra os problemas da igreja e da sociedade. Era seguido por uma grande multidão e tinha uma enorme influência em seus ensinos e doutrinas. Após ser excomungado pelo papa, foi condenado e enforcado. Seu corpo foi queimado na praça pública de Florença no ano de 1498. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 4 O QUE LEVOU À REFORMA? A Reforma foi um movimento que explodiu em diversas regiões da Europa e, de muitas formas, uma reação ao contexto negativo pelo qual a igreja estava passando. Embora o período medieval não pos- sa ser considerado um período totalmente de trevas, não se pode ser ingênuo e não considerar que este foi ao mesmo tempo um período de forte decadência. Para entender o que levou homens como John Wycliff, John Huss, Savonarola, Lutero e Zwínglio a batalharem por uma verdadeira reforma é preciso observar os seguintes pontos negativos do perío- do medieval: 1. Autoridade do pontífice A partir do surgimento do bispado, como autoridade local, evolui-se uma teologia dizendo que a Igreja deveria ser comandada por ape- nas um homem, o bispo de Roma. Essa teologia, porém, foi bastante equivocada e causou inúmeros danos ao cristianismo e também a toda sociedade. Quando a autoridade do papa se fundiu com o Estado houve um excessivo autoritarismo e abuso de poder. Porém, entre 1309 e 1439, a Igreja Romana começa a sofrer de- scrédito, principalmente pelos seguintes motivos: • Exigências ao celibato; • Obediência absoluta ao papa; • O cativeiro Babilônico (1309-1377); • O grande Cisma (1054) e o cisma papal (1378- 1417); • Os altíssimos impostos papais; e, • Surgimento das nações-estado. Cativeiro Babilônico O papa francês Clemente V, marcado pela sua fraqueza e moral duvidosa, mudou a sede papal de Roma para a França em 1305, influenciado pelo rei francês; e em 1309 para Avignon (cidade ao sul da França). Sob o domínio da França, outros reinos descreditaram a autoridade do papa. Em 1377, após muita pressão, o então papa Gregório XI muda de volta a sede papal para Roma, pondo fim ao cativeiro babilônico. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 5 O Cisma papal Logo após a morte do papa Gregório XI, Urbano VI foi eleito papa. Porém, ao se tornar inimigo dos próprios cardeais que lhe deram o título, estes elegeram Clemente VII como novo papa em 1378. Clemente transferiu mais uma vez o papado para Avignon. Os dois, eleitos pelo mesmo colegiado, alega- vam ter direitos legítimos ao papado. Isso levou a uma di- visão, alguns países decidiram seguir Roma e outros Avignon (veja o mapa abaixo). Esse impasse só foi resolvido anos de- pois nos concílios reformadores. O Grande Cisma (1054) Após inúmeras divisões na Igreja Católica Romana, porém em 1054, ela sofre a maior delas, conhecida como O Grande Cis- ma. As igrejas do Ocidente, devotavam obediência ao bispo de Roma, enquanto cada vez mais as orientais se voltavam ao Im- perador de Constantinopla. Neste ano porém, os patriarcas de Roma e de Constantinopla, se excomungaram mutuamente e nunca mais se reconciliaram. Esse fato, mesmo sendo bem an- terior a reforma, tirou o status de único líder da igreja - mesmo que sendo reconhecido o único pela Igreja Católica Romana -, perdendo também territórios importantes e sagrados. As mais antigas e conhecidas igrejas ficaram no Oriente. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 6 IMPOSTOS PAPAIS Principalmente após o grande cisma, quando duas cortes papais eram sustentadas, os nobres passaram a discordar dos inúmeros impostos dados aos sustentos dos clérigos. Tal renda era obtida at- ravés de: • Renda das propriedades papais; • Dízimo dos fiéis; • Anatas (pagamento do primeiro salário do ano ao papa de parte do dignitário eclesiástico); • Direito do suprimento (pagamento das despesas de viagem do papa nas localidades visitadas por este); • Direito de espólio (a propriedade pessoal do alto clero era passada ao papa após a sua morte); • Dinheiro de Pedro (quantia paga pelos leigos em muitas regiões); • Renda dos cargos vacantes; • Numerosas outras taxas. Além desses inúmeros impostos, a Inglaterra se recusou a fazer tais contribuições pelo fato do papa viver na França, sua maior inimiga na época. 2. Cativeiro da Palavra O não acesso do povo à Bíblia, principalmente devido ao idioma, tornava a Palavra de Deus impopular, ou seja, não havia leitura ou ensino das Escrituras para a maioria do povo. 3. Exaltação do monasticismo Apesar dos inúmeros pontos positivos, a vida monástica levou a uma forte divisão entre clero e leigo. Aqueles que viviam de for- ma comum eram vistos como inferiores aos que tinham uma vida eclesiástica. Passou a existir, então, uma cultura de exaltação ao clero. 4. Mediação usurpada(Maria, santos, e transfusão da graça nos sacramentos) Com a mediação, uma característica muito forte dessa fase, princi- palmente com Maria, mas também com inúmeros outros santos, o acesso a Deus era cada vez mais distante e difícil. Veja: HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 7 “Sob o sistema romano, havia uma porta fechada entre o adorador e Deus, e para essa porta o sac- erdote tinha a única chave. O pecador arrependido não confessava seus pecados a Deus; não obtinha perdão de Deus, e sim do sacerdote; somente este podia pronunciar a absolvição. O adorador não ora- va a Deus Pai, mediante Cristo, o Deus Filho, mas por meio de um santo padroeiro, que se supunha inter- ceder pelo pecador diante de um Deus demasiado distante para que o homem se aproximasse dele na vida eterna. Na verdade, Deus era considerado um ser pouco amigável, que deveria ser aplacado e apa- ziguado mediante a vida ascética de homens e mul- heres santos, os únicos cujas orações podiam salvar os homens da ira de Deus. Os homens piedosos não po- diam consultar a Bíblia para se orientarem; tinham de receber os ensinos do Livro indiretamente, segundo as interpretações dos concílios e dos cânones da Igreja.”¹ 5. Salvação pelas obras A salvação pelas obras torna-se doutrina, principalmente após Pelá- gio ter introduzido a teologia de que a salvação é alcançada pelas obras dos homens, negando, assim, a ação da graça de Deus, ou seja, o próprio homem decide fazer o bem ou o mal. Mesmo com- batida por Agostinho e muitos outros, essa teologia é aceita em parte pela igreja romana medieval. Veremos, então, indulgências e penitências desde os primeiros monges cristãos, e o crescer dessa cultura com o aumento do poder e influência da igreja. “As indulgências estavam diretamente ligadas ao sac- ramento da penitência. Após arrepender-se e con- fessar o pecado, o sacerdote garantia a absolvição desde que o pecador pagasse com alguma coisa. En- sinava-se que a culpa e o castigo eterno pelo pecado eram perdoados por Deus, mas havia uma exigência temporal que o pecador deveria cumprir em vida ou no purgatório, através de uma peregrinação a um lu- gar sagrado, do pagamento de uma importância à igreja ou de alguma obra meritória. A indulgência era um documento que se adquiria por uma importância em dinheiro e que livrava aquele que a comprasse da ¹História da Igreja Cristã, Jesse Lyman Hurbut, Editora Vida, 2007, pág 190. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 8 pena do pecado. Cria-se que Cristo e os santos tin- ham alcançado tanto mérito durante suas vidas ter- renas que o excedente estava guardado no tesouro celestial do mérito, de onde o papa poderia sacar no interesse dos fiéis vivos. Isso foi formulado primeira- mente por Alexandre de Hale no séc. XIII. Clemente VI declarou-o dogma em 1343. Uma bula papal de Sisto IV, em 1476, estenderia esse privilégio as almas no purgatório, desde que seus parentes comprassem indulgências por eles.”² CONTEXTO HISTÓRICO • Fim do feudalismo e nascimento das nações-estado euro- peias. A transição feudal para as monarquias europeias foi, possivelmente, o fenômeno político mais importante do período. Veja como surgi- ram as principais: - Espanha Quando Isabela de Castilho se casa com Ferdinando de Aragão, em 1479, finalmente a Espanha é unificada, após lon- go período de divisões e guerra contra muçulmanos, por isso, o surgimento da nação-estado da Espanha tem um enorme aspecto religioso. Extremamente católica, foi importantíssima nas navegações em busca do Novo Mundo e na prática da inquisição. ² O Cristianismo Através dos Séculos - Uma história da Igreja Cristã, Earle E. Cairns, Editora Vida Nova, 2008, pág 256, 257. - França Como a Espanha, a França já existia, mas o seu território era restrito a uma porção de terra ao redor de Paris e não havia uni- dade racial ou geográfica ainda. Porém, principalmente devido à guerra dos cem anos, contra a Inglaterra, em que a heroí- na Joana d’ Arc (figura ao lado) unifica liderando o exército contra seu inimigo. A França se torna a monarquia mais centralizada da época. Todo o poder estava nas mãos do rei. E mesmo quando o papa saiu de debaixo de seus domínios, a França continuou a exerc- er uma enorme influência sobre as decisões da Igreja. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 9 - Inglaterra Alguns fatores foram importantes para o surgimento (ou uni- ficação) dessa nação. Os ingleses já tinham um parlamento como forma de governo, porém, ainda havia disputas internas pelos seus territórios e soberania. Principalmente após a guerra dos cem anos com a França e a guerra civil denominada Guer- ra das Rosas, o nacionalismo inglês ganhou força permitindo a unificação inglesa através do início da dinastia Tudors com o rei Henrique VII. Outras nações-estados que surgiram na época: - Alemanha; - Suíça; - Holanda; - Boêmia. • Navegações Com o investimento nas grandes navegações, deu-se Início à era dos descobrimentos. As novas tecnologias para a busca por novas rotas comerciais e no- vas terras, levaram à descoberta do Novo Mundo. Destaques para Portugal e Es- panha. • Renascimento O estudo e a ciência na Idade Média resumiam-se à fé. Todo o pensamento da época era desenvolvido a partir da Igreja. Porém, houve um ressurgimento dos interesses científicos, literários e artísticos das Antiguidades Clássicas, principalmente latim e grego, através da renascença. Este foi um movimento de procedência lei- ga e não mais religiosa. Seu surgimento deu-se na Itália. Após a queda de Constantinopla muitos estudiosos orientais fugi- ram para a região, trazendo seus conhecimentos gregos e a possib- ilidade de busca pelo saber. Foi tamanha a importância, que houve uma avalanche do domínio do idioma grego entre os intelectuais europeus. A maior expressão deste movimento se manifestou na arte literária, em pinturas e esculturas. HISTÓRIA DA IGREJA III Reforma Protestante 10 Esse “retorno às fontes”, apesar de substituir a Igreja pelo homem como o papel central do mundo, levou, em alguns lugares, ao in- teresse pelas Escrituras, além de Roma, principalmente pelo Novo Testamento ser escrito em Grego. A consequência foi uma inves- tigação aos fundamentos da fé. Principais locais: Norte dos Alpes, Alemanha, Inglaterra e França. Principais artistas renascentistas: - Leonardo da Vinci (1452-1519); - Michelangelo Buonarroti (1475-1564); - Rafael Sanzio (1483-1520); - Donatello (1368-1466); - Sandro Boticcelli (1445-1510); - Dante Alighieri (1265-1321): escritor italiano, autor da “Divina Comédia”; - Willian Shakespeare (1564-1616): poeta e dramaturgo inglês, autor de “Romeu e Julieta” e “Hamlet”; - Miguel de Cervantes (1547-1616): poeta, romancista e dra- maturgo espanhol, autor de “Dom Quixote de la Mancha”; - Luís de Camões (1524-1580): poeta português, autor de “Os Lusíadas”; - Michel de Montaigne (1523-1592): escritor e filósofo francês, autor de “Ensaios”; - Nicolau Maquiavel (1469-1527): poeta e historiador italiano, autor de “O Príncipe”; - François de Rabelais (1494-1553): escritor e padre francês, autor de “Pantagruel e Gargântua”; - Erasmo de Roterdã (1466-1536): escritor e teólogo neer- landês, autor de “Elogio da Loucura”. • Florescimento urbano Migração de volta às cidades. O campo (feudos) deixou de ser o principal local da vida comum, com o surgimento de outras classes, como a burguesia.