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Imperadores Romanos, de Augusto a Marco Aurélio. Maria Aparecida de Oliveira Silva; Vagner Carvalheiro Porto (Orgs.) 1a Edição 2019 © desta coletânea: LABHAN/UFPI; LARP/MAE/USP Todos os direitos reservados Capa: Detalhe da Ara Pacis Augustae. Roma Foto: Maria Aparecida de Oliveira Silva Imperadores Romanos, de Augusto a Marco Aurélio. Maria Aparecida de Oliveira Silva; Vagner Carvalheiro Porto (Orgs.) Teresina/São Paulo : LABHAN/UFPI; LARP/MAE/USP, 2019. ISBN: 978-85-60984-68-8 1. História antiga 2. História de Roma Índices para catálogo sistemático: 1. História antiga 930 IMPERADORES ROMANOS De Augusto a Marco Aurélio Maria Aparecida de Oliveira Silva Vagner Carvalheiro Porto (Organizadores) LABHAN/UFPI - LARP/MAE/USP Teresina - São Paulo 2019 Sumário Prefácio 06 José d’Encarnação Apresentação 09 Os organizadores Imperadores romanos 1. Augusto 11 Maria Cristina Nicolau Kormikiari e Felipe Perissato 2. Tibério 33 Julio Cesar Magalhães de Oliveira 3. Calígula – Loucura, Tirania e Poder, ou não? 57 Filipe Silva e Pedro Paulo A. Funari 4. Cláudio 79 Marcia Severina Vasques 5. Initium saeculi felicissimi no advento de Nero: Apocolocyntosis e a Consecratio Imperial 100 Claudia Beltrão da Rosa 6. Galba, Oto e Vitélio 119 Maria Aparecida de Oliveira Silva 7. Vespasiano e o lado Oriental do Império 136 Vagner Carvalheiro Porto 8. As Múltiplas Faces do Imperador Romano Tito 166 Ana Teresa Marques Gonçalves e André Ricardo Nunes dos Santos 9. Domiciano 191 Pérola de Paula Sanfelice e Renata Senna Garraffoni 10. Nerva 207 Monica Selvatici 11. Trajano – Optimus Princeps 226 Glaydson José da Silva 12. Adriano, o “pequeno grego” sui generis 248 Renato Pinto 13. Antonino Pio 271 Thiago David Stadler 14. Marco Aurélio: entre a Glória e o Oblivium 295 Gilvan Ventura da Silva Posfácio 320 Henrique Modanez de Sant’Anna Sobre os autores 323 A consciencialização necessária Ocorrerá perguntar: porquê um livro sobre os imperadores romanos, quando vinte séculos passaram já sobre a sua existência, numa Europa tão diferente da actual? Que interesse daí poderá advir para o público brasileiro do século XXI? Nossa mentalidade se formou, no entanto, a partir de Roma; não podemos negar nossas raízes, nossos arquétipos, e o facto de, amiúde, haver quem queira dar aos filhos nomes dos heróis da história romana disso constitui sintoma evidente. Depois, há uma questão de cultura geral. Aspectos que não podem passar despercebidos, mesmo que apenas se trate aqui dos imperadores que reinaram desde Augusto a Marco Aurélio, ou seja, a partir do nascimento do Império até ao seu período áureo, o de maior expansão, no século II, resguardadas as contingências políticas pela possibilidade de uma quase sequência dinástica. Ter uma ideia do que foram esses dois primeiros séculos no vasto império que chegou a vir do rio Eufrates até às Ilhas Britânicas antoja-se, pois, qual serena aprendizagem de como, sem conflitos e no mútuo respeito, se consolida um império. Augusto não teve receio em afirmar-se Imperator Caesar Augustus: imperator, porque lhe interessava reconhecer a origem militar do seu poder; Caesar, porque do pai adoptivo, César, de certo modo recebera o trono (a via hereditária); Augustus, porque, predestinado pelos deuses para arcar com essa missão, por eles fora abençoado, iria aumentar (augere) o bem-estar do Povo. Tibério, seu sucessor, já não quererá o título de imperator, preferirá acentuar o seu carácter de civilis; mas os militares, designadamente as tropas pretorianas, não vão permitir que essa tónica civil ganhe força e, paulatinamente, irão impor os seus chefes predilectos, a troco de benesses. Após o período conturbado dos anos 68-69, em que se digladiam as forças em presença, os Flávios olham com mais atenção para as províncias, outorgam-lhes direitos mesmo do ponto de vista político, organizam o território, criam municípios e só o facto de Tito ter falecido prematuramente, dando lugar a seu irmão Domiciano, que não fora preparado para governar, fará com que o Senado ganhe preponderância e Nerva seja o escolhido para governar. Compreende-se, então, em Roma, que algo mais havia para além da Península Itálica. E, no que mais directamente nos diz respeito, a Hispânia, porque – queira-se ou não – a tradição cultural brasileira bebeu nos mananciais hispânicos, dois aspectos poderão ser sublinhados, tamanha importância hoje lhes damos, na medida em que à nossa volta mui diferentes são as realidades palpáveis. Prende-se o primeiro com o que poderíamos chamar «municipalização»: os Romanos apoiaram incondicionalmente o poder local; cada município ou colónia, dotados de magistrados próprios eleitos pela população (os duúnviros, os edis, os questores), estavam sob a dependência da ordo decurionum, a ordem dos decuriões, passível de comparar-se ao Senado. Eram decuriões os antigos magistrados, que ao saber da idade ajuntavam a experiência acumulada. O segundo representa mais uma lição – e que lição! - para a Humanidade neste sangrento e ainda balbuciante dealbar do século XXI: a tolerância religiosa! Tinham os povos conquistados os seus deuses próprios, porque tal é inerente à natureza humana, deificar as forças da Natureza de que se depende: as fontes, os rios, as abstracções que nos passeiam na alma… Respeitaram-nos os Romanos recém-chegados e até ensinaram aos nativos como se poderiam escrever esses estranhos teónimos à maneira latina e como se lhes poderia fazer ex-voto de livre vontade para que a divindade mais facilmente se amerceasse do seu devoto gentil. Imperadores Romanos surge, por tudo isso, na altura melhor! Professor Catedrático da Universidade de Coimbra Apresentação O imperador era a figura central do Império Romano. O título conferido aos imperadores varia conforme o tempo, usou-se os títulos de Augusto ou César, porém o mais utilizado foi o de imperator, título honorífico concedido a um general vitorioso, que mais tarde passou a designar o próprio imperador (Cícero Filípicas 14, 11 e Plínio Ep. 3, 5, 9). Suetônio é o primeiro a usar o termo já com o sentido de Imperador (Cés. 76). Em sentido figurado, como homem de guerra e capitão, imperator aparece assim grafado em Cícero (Verr. 4, 95). Existe ainda outra forma arcaica do vernáculo: Induperator, registrada por Lucrécio (4, 967). Os primeiros imperadores se serviram também do título de princeps (primeiro cidadão). A legitimidade de um imperador dependia de seu exército e do apoio do Senado; um imperador normalmente seria proclamado por suas tropas, ou investido de títulos imperiais pelo Senado, ou por ambos. Sobre o termo imperium, Cícero afirma que este é um poder soberano, como o do pai sobre os filhos, o do senhor sobre os escravos; em um supremo poder (de tomar todas as medidas de utilidade pública, mesmo fora das leis), mando, autoridade suprema, domínio, soberania (Verr. 5, 8). Já Tito Lívio usa o termo com o sentido de poder supremo atribuído a certos magistrados, magistratura (26, 2 9). César, por sua vez, observa-o em um sentido de comando militar (B. Gal. 2, 23, 4). Por fim, Suetônio o relaciona a conceitos como Estado, império e governo imperial (Tib. 24). Esta coletânea apresenta ao leitor aspectos relevantes dos governos dos imperadores romanos, de Augusto a Marco Aurélio. Os autores desta obra nos brindam com textos em que combinam o uso das fontes antigas com o de uma bibliografia atualizada que resulta em uma leitura que revela fatos da vida privada que se desenrolam no cenário público e interferem na atuação dos imperadores. Há de se destacar o caráter multidisciplinar que perpassa todos os capítulos desta edição, com diferentes abordagens. Os organizadores 1 Augusto Maria Cristina Nicolau Kormikiari Felipe Perissato Introdução Após a decisiva batalha do Ácio (Actium) de 31 a.C. no noroeste da Grécia, Otaviano havia eternizado com a fundação da cidade de Nicópolisa celebração de sua vitória sobre Marco Antônio e Cleópatra, encerrando, assim, décadas de conflitos políticos em Roma. Tal evento marcaria definitivamente o projeto de ascensão ao poder iniciado cerca de dez anos antes quando fora proclamado como herdeiro legítimo de Júlio César. A vitória no Áciio significara também o início de um projeto centralizador de um poder pessoal capaz tanto de administrar as significantes conquistas territoriais romanas, quanto trazer estabilidade social para vasta e diversificada população de Roma. Assim, a simbologia do triunfo e da exaltação da figura vitoriosa de Otaviano, inscrita tanto na monumentalidade erigida em Nicópolis[1] mas, sobretudo, em Roma com sua reorganização urbana[2], acabou se tornando um prenúncio da mensagem e do legado que o então primeiro imperador de Roma pretendia inscrever em pedra e deixar às próximas gerações (Zanker, 2005: 106-9). Nos anos seguintes, em 27 a.C., Otaviano fora proclamado pelo senado com os títulos de Augusto e de primeiro cidadão (princeps senatus), status que o permitiu conduzir Roma e suas províncias à estabilidade política. No entanto, a trajetória política de Otaviano foi intensa e trilhou por árduos conflitos e negociações até finalmente se tornar Augusto. Nascido em 63 a.C., filho de Caio Otávio e Átia Balba, Otaviano teve como grande referência o tio por parte materna, aquele que futuramente se tornaria seu pai-adotivo, Júlio César. Foi educado na oratória tanto latina quanto grega, esta última responsável por lhe despertar uma profunda admiração pela Grécia. Sua paixão pela cultura grega ainda o aproximou, inclusive, dos clássicos literários de cunho filosófico e político, conhecimento cujo domínio já demonstrava desde sua infância e que fora determinante para sua carreira política e militar (Southern, 1998:.1-4). Nos turbulentos idos de março de 44 a.C., Júlio César foi assassinado durante sessão na Cúria romana em uma conspiração armada por senadores contrários ao seu projeto político. Entendido como tirânico e nocivo à República pelos conspiradores, o projeto cesarista de reformulação do Estado Romano encontrou continuidade e força naquele que, por testamento, havia se tornado seu filho- adotivo e legítimo herdeiro. Otaviano, assim, havia prometido a vingança pela morte de César. Além disso, havia se empenhado no tecer dos arranjos políticos e no ajuntamento de forças militares para a consolidação de um projeto de estado que pusesse fim ao caos instaurado pelas décadas de guerra civil (Southern, 1998: 45-70). Dessa forma, em poucos anos Otaviano ascendeu em sua carreira e atingiu a magistratura, se tornando triúnviro ao lado de Marco Antônio e Lépido. Tal posição lhe permitiu se tornar protagonista de uma narrativa cujo cenário lhe possibilitava a vingança contra os assassinos de César. O evento derradeiro foi a Batalha de Filipos em 42 a.C., na Macedônia, com a efetiva derrota dos conspiradores (Grimal, 2008: 28-30). Contudo, uma nova polarização política se constituiu após Filipos. Com objetivos distintos, Marco Antônio partiu para o Oriente a fim de prosseguir as guerras na fronteira contra o Império Parta e governar as províncias orientais, o que o fez se aproximar da rainha egípcia, Cleópatra. Por sua vez, Otaviano ficara encarregado da difícil missão de governar Roma e as províncias ocidentais (Southern, 1998: 71-99). Assim, o rompimento entre os dois foi um elemento fundamental da ascensão de Otaviano no poder de Roma e o resultado em Ácio foi a derrocada de um movimento de reorganização do poder que vinha acontecendo há décadas durante essa conturbada fase da história romana. É importante ressaltar, no entanto, que Otaviano soube lidar com as questões institucionais e fazer as reformas necessárias. Preservou as magistraturas da República, mas as usou para trazer legalidade aos atos imperais. O papel do Príncipe era, dessa forma, o de um elemento centralizador dentro do senado. O sentido de princeps senatus era “aquele que ocupa o primeiro lugar”. Quando em 27 a.C. o senado finalmente apresenta sua incondicional submissão ao Príncipe e o sacraliza com um título honorífico de Augusto, extraído da esfera religiosa. Otaviano se torna enfim Augusto (Corassin, 2004: 187). Durante seu reinado, Augusto mandou registrar por meio de um decreto esculpido em pedra os feitos, as narrativas e todo grande legado de seu principado nas paredes de seu Mausoléu em Roma. Tal decreto, as famosas Res Gestae Divi Augusti, chegou a nós por meio de cópias deixadas em templos romanos nas províncias orientais, sobretudo, aquele de Ancira na Ásia Menor (atual Ancara na Turquia), cujo estado de conservação permitiu a recuperação praticamente completa do conteúdo escrito (Corassin, 2004: 182). Nelas, Augusto afirma que foi príncipe do senado durante quarenta anos. Relata, ainda, todas as despesas feitas em favor do Estado e do povo de Roma; as doações que fez aos veteranos e à plebe e também os jogos e espetáculos que ofereceu ao povo. Narrou também seus feitos, se posicionando ora como pacificador, ora como conquistador (Res gestae, 15-35; Corassin, 2004:183). Augusto foi também responsável por inúmeras construções em Roma e nas províncias. Seu programa de construções públicas é de fato impactante na paisagem e na topografia das cidades do Império. Na Vida dos Doze Césares, obra escrita cerca de cem anos após a morte do imperador, Suetônio afirma que o aspecto urbano de Roma não correspondia à suntuosidade do império. Assim, Augusto foi responsável por embelezar a cidade, deixando “uma cidade de mármore onde encontrara uma de tijolos”. Ergueu numerosos monumentos públicos, dos quais Suetônio destaca o Fórum de Augusto, com o Templo de Marte Vingador; o Templo de Apolo no Palatino e o de Júpiter Tonante no Capitólio (Suetônio, 2.29). Seu programa de construções esteve voltado, inclusive, para diversas províncias do império, onde procurou inscrever sua marca e sua simbologia imperial nas paisagens urbanas (Zankler 2005: 103- 27). Na Grécia, por exemplo, Augusto foi responsável pela construção de inúmeras edificações. Foi também homenageado em diversas ocasiões pelas elites locais por meio da construção de monumentos e estátuas como forma de agradecimento pelas benfeitorias realizadas às cidades. Um caso bastante notável e interessante é o Templo de Roma e Augusto construído por um demo ateniense na Acrópole de Atenas. Trata-se de um monóptero[3], que foi muito utilizado, na literatura, como evidência da “romanização” ateniense. No entanto, não há como se provar a ligação entre o culto da divindade grega Héstia, atestada epigraficamente na Acrópole, e a construção do monóptero enquanto reprodução do edifício de culto circular dedicado a Vesta, em Roma. O que sabemos, de fato, é estarmos diante do primeiro exemplo de templo dedicado ao culto imperial, no caso, a Augusto, na Grécia, e um dos primeiros do Mediterrâneo oriental. (Stephanidou-Tiveriou, 2008: 21-2). Augusto foi inclusive iniciado nos Mistérios de Elêusis em duas ocasiões quando esteve visitando a Ática. O impacto augustano no urbanismo da Grécia é, de fato, muito evidente e marcado na paisagem, sendo inclusive uma tendência que encontra continuidade por seus sucessores. Entretanto, a paz foi talvez o maior legado do Principado de Augusto para sua época. Contrastando com o longo período de instabilidade social decorrente das guerras civis, Augusto pôde finalmente instaurar a Pax Romana por meio de reformas institucionais; um amplo programa de obras públicas, com a distribuição de terras e de assentamento em novas colônias aos veteranos; além da celebração de jogos e espetáculos para o povo (Corassin, 2004: 189-93). Tácito afirma, nesse sentido, que “Augusto nos deu as instituições sobre as quais ganhamos a paz - sob um principado”, enfatizando a reforma institucional como principal elemento do estabelecimento da paz (Tácito, 3.28; Galinski, 2005: 33). Na historiografia, o debate entre o papel institucional do Império e a transição entre Repúblicae Império a partir de Augusto é interessante de ser pontuado, pois há divergências na interpretação das fontes entre os historiadores, como aponta Faversani (2013: 100- 1). Primeiramente há a perspectiva de ruptura, preconizada na obra de Ronald Syme (1939), e retomada posteriormente na tese de Moses Finley (1983) e, recentemente, com a ideia de “revolução cultural” proposta por Wallace-Hadrill (2008) e Anthony Spawforth (2012). Haveria, portanto, segundo a perspectiva geral desses autores uma ruptura na periodização, entre o modelo republicano e a formação do principado a partir de Augusto. Por outro lado, há quem se pontue pelos aspectos de continuidade, tentando analisar a instituição do Principado como um artífice republicano. Theodor Mommsen é o principal historiador a trabalhar essa perspectiva em sua monumental obra Römische Geschichte. Ele reconhece o caráter especial da nova ordem, mas entende sua peculiaridade pela perspectiva da lei constitucional, cunhando o termo “diarquia”: o príncipe e o senado. Haveria continuidades com algumas rupturas no esquema interpretativo de Mommsen (Eder, 2005:16-7; Faversani, 2013: 101- 2). É difícil, no entanto, apresentar um século de intensas transformações políticas e sociais a partir da figura de um só personagem. Porém, o século de Augusto é um quadro tecido como modelo para as próximas gerações de imperadores, o que fica evidente na sua imagem divinizada construída a partir de sua morte. O caso do Norte da África O Norte da África foi o sexto território mediterrânico incorporado como província pelos romanos. Essa incorporação inicia- se com a destruição total de Cartago, colônia fenícia localizada onde hoje temos Túnis, na Tunísia, a qual havia ascendido a uma posição de poder capaz de ameaçar as aspirações romanas de controle do Mediterrâneo. Com a destruição total da cidade em 146 a.C. os romanos incorporam o território sob controle cartaginês direto[4], criando a provincia Africa[5]. Com o avanço romano que ocorre ao longo dos próximos 200 anos, todo o Norte da África terminará tendo sido anexado. Assim, em 46 a.C. o território a oeste da província Africa é anexado por César, ao vencer Pompeu e seus aliados africanos, leia-se Juba I, rei númida, em Tapsos, denominando-o Africa nova (a antiga província Africa passa a ser conhecida como Africa vetus)[6]. Augusto será o responsável pela consolidação desse território mesmo não tendo realizado, sob seu comando, novas anexações territoriais para o oeste. Não obstante, a morte do rei númida Juba I, aliado de Pompeu, de fato, representou a quase extinção de sua linhagem norte africana (Kormikiari, 2000: 218). Seu filho, Juba II, foi levado para Roma por César e foi criado na casa de Augusto, junto com Cleópatra Selene, filha de Cleópatra e Marco Antônio (Carcopino, 1943: 29). Posteriormente, em 25 a.C., Augusto colocará o casal no comando das terras ocidentais norte africanas. Apesar de ser um local, Juba II era de origem númida, como seu pai, e foi colocado para governar terras de um grupo rival, os mouros, cujos últimos reis haviam perecido em entre 38 e 33 a.C. (Kormikiari, 2000: 218-222). Desse modo, Augusto conseguiu não atiçar a população norte africana com imposições de lideranças estrangeiras, mas ao mesmo tempo, o fato de Juba II ser um númida e não um mouro permitiu um certo afastamento entre ele e seus súditos. As terras ocidentais do Norte da África só serão oficialmente anexadas após a morte de Ptolomeu, filho de Juba II e Cleópatra Selene, em Roma, a mando de Calígula, em 40 d.C. (Leveau, 1984: 314-315), quando ganham o nome de Mauritânia. Mas foi Augusto que, décadas antes, criou as condições para essa anexação. Antes de instituir Juba II como rei da Mauritânia, Augusto recortou três cidades autônomas, Zilis, Babba e Banasa, desse reino e as transferiu, junto com suas nationes (isto é, com os grupos indígenas que habitavam nos seus arredores), do domínio real para a autoridade romana (Plínio, HN, V, 3 e 5). Os dados relativos juà ocupação do território africano, desde o início do processo, isto é, a partir da destruição de Cartago, permitem-nos visualizar como as ações de Augusto foram essenciais para assegurar a Roma, territórios tão férteis e ricos em contingente militar. Os soldados mouros aparecem na Coluna de Trajano, datada do século II d.C., e vários relatos textuais dão conta da importância dessa cavalaria para as conquistas romanas (Le Bohec, 1980: 113). A destruição de Cartago e a criação simultânea da província Africa em solo púnico acarretaram uma mudança decisiva na relação entre as forças políticas do Norte da África. T. Kotula afirma que o estado cartaginês havia, já há séculos, se tornado africano, isto é, mesclado à cultura indígena local. No entanto, este estado foi, após a destruição da capital africana, o praedium populi Romani, o solo provincial do inimigo estrangeiro (Kotula, 1976: 338). Os reinos indígenas fazem, agora, fronteira com os territórios ocupados pelos romanos. Estudos recentes têm procurado demonstrar o complicado jogo político e econômico romano, à época dos Gracos e durante a derrocada da República, ao longo das acirradas disputas entre os optimates e os populares[7]. Paralelamente, este interesse romano nas questões políticas locais estava relacionado aos interesses econômicos dos homens de negócio, os negotiatores[8], atuando nas cidades fenício/cartaginesas e númidas. A vitória de Mário na Guerra de Jugurta permitiu ao partido dos populares levar a cabo sua política de doações de terras férteis, longe da Itália, aos veteranos. Uma série de inscrições africanas, encontradas em território númida, atestam que a lex Appuleia, de 103 a.C., que designava para cada veterano de Mário 100 iugera (c. 25 ha), utilizou terras não pertencentes à província Africa (Kotula, 1976: 339). A sociedade norte-africana, no momento do início das incursões romanas pode ser considerada multifacetada: urbana (a imensa maioria das cidades conhecidas do período fenício-cartaginês está localizada ao longo da costa marítima), sedentária e agrícola para o interior, semi-nômade, principalmente em direção à zona desértica, isto é, ao Saara (mas com uma grande variação de percurso territorial, tanto na direção norte-sul, como leste-oeste) (Whittaker, 1993). A vitória de Pompeu em 81 a.C. representou a sustentação da política dos optimates e retardou uma colonização romana mais acentuada no Norte da África, ao menos até a vitória, quase quarenta anos depois, de César em Tapso. Nesse momento, então, temos a anexação definitiva das terras númidas (região ao leste do rio Ampsaga, na região oriental da Argélia atual), transformada na província Africa nova. O povoamento romano no Norte da África dura mais de três séculos. Temos um povoamento misto de longa duração, com uma característica única, a manutenção da pequena propriedade na África, em contrapartida ao que aconteceu em outras províncias, onde a concentração fundiária avançou rápido e alcançou um alto grau (Lassère, 1977). Os romanos perceberam que não poderiam utilizar os mesmos métodos no povoamento do antigo território de Cartago, na Numídia (Argélia) aliada de Roma a mais de um século e meio, e, posteriormente nas Mauritânias (atuais Marrocos e Argélia ocidental) onde as civilizações mediterrânicas apenas exerceram sua influência nas áreas costeiras. Após a destruição de Cartago, seu território foi mais rigidamente controlado. Sem o aval do senado, o partido popular procura ocupar, o máximo possível, o antigo território púnico. Isto explica a concessão à colônia de Cartago, em 43 a.C., de uma vasta pertica que compreendia, particularmente, a cidade de Thugga (Dougga), onde o templo de Baal Hammon/Saturno vigiava três vales que são igualmente vias de penetração (Fig.1). Fig. 1: Templo de Baal Hammon/Saturno, Dougga, Tunísia. Autoria: Pradigue, 2001 Uma outra área que foi imediatamente ocupada foi o território ao redor da cidade númida de Cirta, que posteriormente será rebatizada comoConstantina (à época do imperador Constantino). Esta cidade foi particularmente importante, mencionada nas fontes textuais como capital de vários reis númidas. Localizada na região interiorana do leste da Argélia, seu território era livre de um comando maior de Cartago, mas ao mesmo tempo, foi extremamente influenciada pela cultura fenício-púnica, e, ao longo do século I a.C., recebeu levas de negotiatores da Península Itálica (Lassère, 1977). Ao mesmo tempo, a organização dos contatos humanos, que se inicia no final da República e que cabe aos primeiros imperadores, parava frente a certos problemas difíceis, como o clima hostil e as distâncias imensas; o trabalho da terra para que esta possa sustentar as novas populações; o cultivo intensivo, mas com necessidade premente dos novos colonos se apoiarem na experiência de seus parceiros africanos. A longa decadência das sociedades rurais do sul da Itália e da Sicília tornava uma região próxima, como a África, um local onde se podia recomeçar, se tentar satisfazer uma vocação rural aguçada pela reputação de fertilidade da região (Lassère, 1977: 75-9)[9]. Outros cidadãos foram instalados na África, seja pelo Estado, seja pelos generais que, ocasionalmente, ao longo do último século da República controlaram estas instalações. A instalação de colonos em Cartago em 121 a.C. é bastante conhecida. Mas a idéia que se tem deste episódio associa-o à própria cidade destruída e não seu território, isto é, à província Africa no seu conjunto. Neste território, onde vastas extensões de ager publicus haviam sido deixadas, de maneira precária, aos indígenas, uma epidemia havia trazido altas taxas de mortalidade em 124 a.C., levando mais de 200.000 pessoas (Tito-Lívio, Per., LX; Orósio, V, 11). Em Roma havia claramente a consciência da necessidade de se manter o território de Cartago e do perigo que seria deixar muita terra despovoada nas proximidades de um reino númida em plena expansão. Assim, se explica que ao lado do renascimento de Cartago, modesto, na forma de uma pequena colônia de cidadãos, temos também a instalação de 6.000 colonos em lotes de 200 jugeres, isto é 50 ha. (Apiano, Bell. Ciu., I. 2; CIL I 585, l.61, Lassère, 1982: 402). Temos assim, a distribuição de 300.000 ha, 3.000 km2 de terras. Foi menos a instalação de colonos que importou – logo esquecidos por Roma, e mais a fundação de uma cidade com instituições romanas, capital de uma província onde o partido democrata começa a se instalar (Lassère, 1982: 402). O general Mário, da ordem equestre, foi responsável por deixar um contingente razoável em território africano. Nosso conhecimento da colonização de Mário (107 - 86 a.C) vem mais da epigrafia do que dos textos. Uma inscrição de Thuburnica (A.E., 1951, 81) nomeia Mário, sete vezes consul (107-100 a.C.), conditor coloniae. Outros textos lembram de seu papel nas cidades norte- africanas de Uchi maius, Thibaris e Mustis. Acredita-se que ele deixou na África a maior parte de seus soldados. Talvez o equivalente a duas legiões: entre 6.000 e 10.000 homens (Lassère, 1982: 403)[10]. Desde o início do século I a.C. estima-se que ceramistas se instalaram na África para reproduzir as formas cerâmicas da península italiana. No entanto, trata-se, sobretudo de uma colonização masculina, eles tomam mulheres locais como esposas, e sua prole é denominada hibridi. Mais adiante, na época de César e de Augusto, a concessão de cidadania romana volta-se para estes mestiços. Na região númida de Cirta, César legaliza a colonização particular de P. Sittius. Colonia Iulia Iuvenalis Honoris et Virtutis Cirta. Após a vitória de César em Tapsos, em 46 a.C., foi oferecida a P. Sittius de Nuceria, na Campânia, por sua ajuda, a parte oriental do reino de Massinissa (Apiano, IV, 54). Nesta região temos um povoamento alógeno, itálico, sobretudo campânico, mas também espanhol e mesmo africano. Algumas das oferendas encontradas no santuário de El-Hofra assinalam três nomes, Munatius, Servius e Gabiedius, sendo que destes, os dois primeiros são comuns na Campânia. Além dos campânicos, na região de Cirta também encontramos inscrições com nomes de outras origens itálicas: samnitas; brútios; picênios; etruscos; e mesmo celtas; além de romanos da urbs (Lassère, 1982: 411). No porto de Rusicade (a norte de Cirta), ligação com a Itália e com o Oriente, encontra-se o nome de uma família, os Granii. De fato, 27 nomes encontrados em Rusicade não são encontrados em outras áreas da região e são bem atestados em Óstia, em Pouzzoles e em Delos, e também em portos espanhóis, como Tarraco, Valentia e Mago (Port Mahon, nas Ilhas Baleares) e em Cordoba (Lassère, 1982: 411-2). Assim, o povoamento da região de Cirta confirma os três tipos de povoamento que existiu na África durante a República: as implantações governamentais (temos notícia apenas da implantação dos Graco); a tradição do povoamento individual comandada por grandes interesses (Rusicade, Cirta); e as instalações semi-oficiais realizadas pelo partido democrata. O principado de Augusto Estas são as bases sobre as quais Augusto edificou sua obra africana, nas palavras de J. Lassère (1982, p. 414). Tanto o território quanto seus habitantes, após um século de contatos, eram melhor conhecidos, e a recíproca também era válida, os africanos, até os mouros, conheciam melhor os romanos. Augusto instalou doze colônias na Mauritânia, isto é, em terras ainda não anexadas oficialmente por Roma[11]. Augusto acelerou o processo de colonização das terras africanas. Este movimento populacional já havia se iniciado desde a destruição de Cartago (lembramos apenas a tentativa dos irmãos Graco em refundar Cartago, e os assentamentos marianistas de veteranos durante as Guerras Civis). Na Berberia oriental, isto é, na província unificada que juntou a Africa vetus e a Africa nova, e para além, na região das Sirtes (atual Líbia), Augusto não interferiu nos estatutos políticos das cidades livres, principalmente dos portos. Já nas regiões interioranas, ao longo do Ouerd Medjerda (o antigo Bagradas) e do Ouerd Miliane (região dos berberes misiciri, entre outros númidas e líbios), ele instalou veteranos da XIIIª legião (C.I.L. VI, 36917 apud Lassère, 1982: 415) em Thuburbu Minus, Thuburbi Maius, Suturnuca, Medeli, Assuras, Simithus (esta cidade possuía minas de mármore as quais foram muito exploradas pelos romanos), Thuburnica e Sicca Veneria. Outras cidades como Vaga e Cirta receberam mais colonos (Kormikiari, 2000: 272) (Fig.2). Fig.2 Mapa do Norte da África com algumas das colônias fundadas por Augusto. Autoria: Ursus, 2008. Os habitantes indígenas dessas regiões entravam em contato com essas novas instalações, principalmente nos dias de mercado, quando desciam de suas castella, isto é, de seus vilarejos fortificados, para se dirigir às nundinae, aos mercados itinerantes[12]. No Norte da África ocidental e central, região que ainda não havia sido transformada em província romana, Augusto igualmente procedeu à instalação de veteranos. São doze as colônias ali estabelecidas: três no Oeste, com os nomes de Iulia, nove no Leste, com o nome de Iulia Augusta[13]. No Oeste temos Iulia Constantia Zulil; Iulia Campestris Babbae; Iulia Valentia Banasa. No Leste temos, ao longo da costa, Cartenna, Gunugu, Rusguniae, Rusazus, Saldae e Igilgi; no interior foram fundadas Succhabar; Aquae e Tubusuptu (Mackie, 1983: 337-8)[14]. Passou-se a utilizar os efetivos italianos já instalados para um povoamento “mais distante” – temos o início de um movimento de pioneiros. Os estudiosos modernos marcam a prudência com a qual Augusto teria completado a obra africana da República: de um lado o desejo de “romanizar” a África, e do outro a necessidade de manter o envio de grãos à Itália. Assim, Augusto teria tido o cuidado de não criar obstáculos à manutenção das atividades econômicas nas províncias (Lassère, 1982, p.414). Ele não altera o estatuto político das cidades púnicas, em particular aquelas livres desde 146 a.C., e também não dosportos, especialmente os da região das Sirtes (costa oriental da Tunísia e Líbia). Nas regiões rurais do baixo Medjerda e do Ouerd Miliane, ele instala veteranos da XIIIª Legião (C.I.L. VI 36917) em Thuburbo minus, e coloca outros, talvez, em Thuburbo maius, com certeza em Sutunurca e em Medeli (C.I.L. VIII 885 = 12387). Esta política segue na Africa nova (logo reunida com a Africa vetus, em 27 a.C.) com a fundação de uma colônia em Assuras (CIL VIII 1798), de outra nas proximidades de Simitthus (CIL VIII 14612), com o reforço de Thuburnica e de Sicca Veneria, que se tornam colônias (CIL VIII 14697; VIII 14687, 14705, entre outras) e, talvez, Vaga, que se torna município (Lassère, 1982: 415; Gascou, 1972: 24). O reforço de povoamento em Cirta, em 26 a.C., aconteceu tanto com a compra de terras às custas do próprio Augusto (Res gestae diui Augusti, 16), como ele utilizou para as instalações ager das próprias cidades. Percebe-se, assim, a amplitude de um movimento de dispersão de colonos sobre um vasto território cujos limites vão de Thysdrus até Thuburbo maius e terminam na confederação cirtense (Piganiol e Pflaum, 1953). São poucas colônias, sem dúvida, mas instaladas em localizações que permitiam que estas atuassem como “vitrines da romanização” frente aos indígenas. Foi nesta região plana, no centro das planícies férteis, próximo aos mercados agrícolas, não longe das reservas de mão-de-obra das tribos, que o pragmatismo de Augusto optou por distribuir os pagi de veteranos ou de camponeses civis que coordenavam a boa utilização da região ao mesmo tempo em que levavam para mais além, no mundo africano, a ação de “romanização das colônias” e dos municípios, particularmente na Africa nova (Lassère, 1982: 415-6). Apesar destes reforços, no entanto, a disparidade entre uma África interior e uma marítima permanecia, pois a obra de Augusto foi realizada, essencialmente, na costa. Em particular, Cartago, a antiga capital do império marítimo púnico, recebeu uma atenção especial de Augusto. Segundo Dião Cássio (LII, 43, 1), em 29 a.C., Augusto reforça a região com uma nova leva de colonos. Ele irá além, a interdição de construção lançada contra a cidade por ocasião de sua destruição quase 200 anos antes é retirada. Fica garantida, assim, a ressureição de um dos portos comerciais mais importantes do Mediterrâneo antigo (Lassère, 1981: 416)[15]. Nas fundações que Augusto espalha, entre 33 e 25 a.C., na costa do reino mouro, isto é, na futura Mauritânia, encontramos a confirmação desta preocupação em ocupar o território norte-africano com elementos itálicos em Saldae e Tubusuctu. Cerca de 30 textos epigráficos demonstram que os colonos vieram, na sua maioria, ou de Roma, ou da Itália central ou meridional, e alguns da Cisalpina. Mais para o oeste, em Iol Cesarea, a antiga capital de Juba II, encontramos um texto que menciona uma habitante de Rusguniae, Iulia, filha de Iulius Respectus (cognomen literalmente traduzido do púnico) que ao demonstrar que seu pai recebeu a cidadania com César ou Augusto, provaria os inícios da incorporação de elementos africanos na sociedade romana local (Lassère, 1982: 417). O caso da organização pacífica do território norte-africano, por parte de Augusto, demonstra a engenhosidade de um governante que, sem ter sequer colocado os pés nessa região (que durante o triunvirato havia ficado a cargo de Lépido), foi capaz de estender o controle romano sobre uma área absolutamente vasta mesmo antes de sua anexação total. O processo norte-africano será longo, quase 200 anos passarão entre o início da tomada de controle romano, a partir da queda de Cartago, e a anexação final dos territórios até a costa atlântica. São mais de 3000 km de extensão em um território difícil do ponto de vista climático e morfológico, e habitado por populações autóctones não totalmente homogêneas entre si e já misturadas por quase mil anos, por ocasião da chegada romana, aos colonizadores de origem fenícia. Ao mesmo tempo, os modos de vida das populações citadinas, rurais e semi-nômades, não caracterizadas pela arquitetura monumental ao estilo grego e romano, permitirá aos romanos a implantação bastante livre do seu viver arquitetônico. Assim, temos, hoje, no Norte da África, alguns dos exemplos melhor acabados da urbanização romana, urbanização essa que ficará a cargo dos imperadores posteriores. A ação de Augusto, organizativa, abrirá essa porta aos seus sucessores. Bibliografia Textos antigos: DÍON CÁSSIO. Roman History. EARNEST, C. (transl.). The Loeb Classical Library, London: William Heinmann. 1965 SUETÔNIO. The Lives of Twelve Caesars. ROLFE, J. C. (transl.). The Loeb Classical Library. London: William Heinmann, 1914. RES GESTAE DIVI AVGVSTI. WHIPLEY, F. W. (transl.), The Loeb Classical Library. Harvard University Press. 1961 TÁCITO. Annals, Books I-III. JACKSON, J. E. (transl.). The Loeb Classical Library, Harvard University Press, 1931. APIANO, Bell. 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O propósito de Tácito nos seus Anais era apresentar os imperadores Júlio-Cláudios como tiranos em uma história política, expondo o contraste entre a liberdade republicana e a escravidão imperial à qual os senadores haviam se submetido (Joly, 2004: 109- 142). O governo de Tibério, que ocupa os seis primeiros livros dessa obra, interessava-o, nesse sentido, como “o momento em que a fachada republicana da dominação imperial se desfez” (Campos, 2015: 116). A História Romana de Díon Cássio também era uma história política, mas tinha por objetivo expor a história dos imperadores do passado como um conjunto de conselhos para a dinastia dos Severos. Dissimulado e ausente, o Tibério retratado por Díon era o contraexemplo de seu ideal do autocrata detentor de um poder absoluto, mas limitado pelas virtudes postas em prática em prol dos cidadãos (Gonçalves, 2011). Suetônio, por sua vez, concentrava- se na história moral da dinastia Júlio-Cláudia. Sua narrativa era mais temática do que cronológica e, em muitos aspectos, mais ambígua do que as histórias de Tácito e Díon. Mesmo assim, ele não deixava de partilhar do pressuposto básico da tradição historiográfica senatorial, segundo a qual o governo de um imperador só é legítimo na medida em que contemple outros grupos sociais (Joly, 2005). Sua Vida de Tibério é estruturada por uma série de exemplos da crueldade e hipocrisia do princeps e também por seu afastamento dos olhares públicos na ilha de Capri. O contraste com as virtudes propagadas pela dinastia Antonina e com a publicidade dos atos de Trajano, que não hesitava em abrir à visitação a própria casa, não podia ser mais claro (Dupont; Éloi, 2001: 293-294). Não sabemos se Tácito, Suetônio e Díon escreveram suas obras a partir de uma fonte comum, mas a tradição negativa sobre Tibério que veiculam não foi inventada por eles. As histórias de crueldade ou devassidão de Tibério citadas por Tácito e Suetônio derivam de uma longa tradição oral e as memórias de Agripina que consultaram também contribuíram em muito para o triunfo dessa visão (Levick, 1999: 222-223). Outras fontes, no entanto, nos permitem estabelecer um contraponto. Veleio Patérculo, por exemplo, que acompanhou Tibério por oito anos em suas campanhas na Germânia, Panônia e Dalmácia como comandante da cavalaria e legado de Augusto e que assumiu a pretura durante seu principado, apresenta em sua História Romana uma visão bem mais positiva e até mesmo laudatória do imperador, ainda que não oculte as tensões e conflitos do período (Campos, 2010). As cunhagens monetárias e inscrições datadas do governo de Tibério são outras tantas fontes que nos permitem compreender as decisões políticas do princeps em seu próprio contexto (Charles, 2005). É apenas a partir do confronto entre essa diversidade de fontes e de pontos de vista que uma biografia crítica de Tibério pode hoje ser escrita. Tibério César era filho de Ti. Cláudio Nero e de Lívia Drusila, filha de Ápio Cláudio Pulcro, também chamado de M. Lívio Druso Claudiano por ter sido adotado por M. Lívio Druso, o tribuno da plebe de 91 a.C. (Suet. Tib. 1-3). Pelos dois lados, portanto, Tibério era originário da antiga família patrícia dos Cláudios e, pela adoção do avô materno, era um membro da família plebeia dos Drusos. Descendentes de outro M. Lívio Druso, o tribuno de 122 a.C., um dos mais ferrenhos opositores de Caio Graco, os Drusos mantiveram até o final da República uma clara posição conservadora e oligárquica. Os Cláudios, porém, eram mais controversos. Ultraconservadores e defensores absolutos das prerrogativas dos patrícios, por um lado, alguns de seus membros, como Públio Clódio, foram também os maiores defensores da plebe urbana no século I a.C. As ambiguidades de uma família atuante na política de Roma por mais de meio milênio não deixariam de oferecer a Suetônio os exemplos de “numerosas façanhas” e “numerosos delitos” dos Cláudios (Suet. Tib. 2). Tácito, por sua vez, preferiria ver na “velha e inculcada soberba” da linhagem a chave para o caráter de Tibério (Tac. Ann. 1, 4, 3). O que é certo, como observou Barbara Levick, é que Tibério, por educação, herança ou emulação consciente, continuou a tradição de engajamento militar de um dos ramos da família Cláudia, o dos Neros, e abraçou os princípios políticos dos Drusos, os mesmos que levaram seu avô Claudiano a tomar o partido de Bruto e Cássio e com eles perecer durante a guerra civil (Levick, 1999: 11-18). Tibério nasceu em 42 a.C., no ano mesmo em que seu avô se suicidou com outros tiranicidas derrotados na batalha de Filipos (Vell. Pat. 2, 71). Em 39 a.C., o pai de Tibério, que havia passado da aliança com Sexto Pompeu à de Marco Antônio, aceita se divorciar de sua esposa Lívia, então grávida de seis meses de seu segundo filho, Nero Druso, para entregá-la em casamento a Otávio (Suet. Tib. 4). A fim de evitar o escândalo de ter “um filho nascido em apenas três meses”, segundo o dito popular reportado por Suetônio, Otávio deixou os dois filhos de Lívia aos cuidados do pai biológico (Suet. Claud. 1). Aos nove anos, Tibério passou à tutela do padrasto e estreou na vida pública pronunciando o elogio fúnebre de seu pai. Em 29 a.C., Otávio manifestou publicamente a proximidade de Tibério com sua dinastia fazendo-o desfilar ao seu lado e ao de M. Cláudio Marcelo, o filho de sua irmã Otávia, no triunfo celebrado pela vitória na batalha do Ácio (Suet. Tib. 6). Em 24 de abril de 27 a.C., Tibério envergou a toga viril, o símbolo da maioridade, e, pelos dois anos seguintes, acompanhou Augusto em sua campanha na Espanha contra os Cantábrios como tribuno militar. Aos dezenove anos, iniciou sua carreira política assumindo, com autorização do Senado, o cargo de questor para o ano 23 a.C., cinco anos antes da idade mínima legal (Vell. Pat. 2, 94). A não ser por essa precocidade, que seria uma característica comum aos jovens da família imperial, Tibério seguia até então os mesmos passos de qualquer filho da nobreza que iniciava uma carreira política durante a República (Sears, 2005: 12). Peitar um cidadão em um processo judicial também fazia parte dessa tradição, mas a descoberta de uma conspiração contra Augusto, em 23 a.C., não foi apenas a ocasião para Tibério obter a glória de um êxito oratório. Seu discurso demandando a condenação à morte de um dos conspiradores, Fânio Cipião, foi, antes, uma forma de manifestar sua lealdade a Augusto no momento mais delicado e contestado de seu principado (Suet. Tib. 8; Levick, 1999: 22-23). A suspeita de que Augusto estivesse preparando Marcelo para sucedê-lo havia contribuído para suscitar a conspiração de 23 a.C. Mas a morte do sobrinho, no outono desse mesmo ano, deixou o caminho aberto para o principal general e braço direito político do príncipe, Marco Agripa, quando Augusto, de fato, começou a pensar em sua sucessão. Em 21 a.C., Agripa casou-se com Júlia, a viúva de Marcelo e filha de Augusto, selando a aliança com a família. Pouco depois, em 20 ou 19 a.C., Tibério também celebrou seu casamento, desposando a filha de Agripa, Vipsânia Agripina. Em 20 a.C. Tibério foi incumbido por Augusto de seu primeiro comando militar como legado com poderes de pretor (legatus Augusti pro praetore). Enviado em uma missão para depor Artaxes e substitui-lo por Tigranes no trono da Armênia, atingiuseu objetivo sem muitos esforços (Dio Cass. 54, 9). Em 16 a.C., assumiu a pretura que lhe havia sido garantida quatro anos antes e acompanhou Augusto em nova missão militar contra os gauleses nos Alpes (Dio Cass. 54, 19; Vell. Pat. 2, 95). Nos anos seguintes, foi enviado com seu irmão Druso para submeter as tribos da Récia e da Vindelícia, estendendo as conquistas até o Danúbio (Dio Cass. 54, 22). Em 13 a.C., com apenas vinte e oito anos de idade, Tibério assumiu seu primeiro consulado (Suet. Tib. 9). Apesar da carreira acelerada, o filho de Lívia ainda estava longe de ser o escolhido por Augusto para sucedê-lo. Por essa época, o corregente de fato do Império ainda era Marco Agripa. Seus filhos, Caio e Lúcio, então com oito e quatro anos de idade, haviam sido adotados por Augusto e eram os herdeiros políticos do príncipe. Mas, em fevereiro de 12 a.C., a morte prematura de Agripa obrigou Augusto a repensar seus planos para a sucessão. Tibério era o principal general do exército e (ao lado de seu irmão Nero Druso) um dos únicos homens da casa de Augusto com idade suficiente para sucedê-lo, caso a morte lhe sobreviesse antes que Caio e Lúcio atingissem a maioridade. Tornou-se, por isso, a escolha óbvia para ocupar o lugar de Agripa (Vell. Pat. 2, 96). Para garantir o plano, Tibério foi obrigado por Augusto a se divorciar de Vipsânia e casar-se com Júlia Augusta, a viúva de Agripa (Suet. Aug. 63). Tibério vivia um casamento feliz com Vipsânia. Com ela teve seu filho, Druso, ainda em 13 a.C. e deixou-a quando ela estava novamente grávida de um segundo filho seu. Mais tarde, segundo Suetônio, Tibério lamentou tão amargamente ter-se divorciado de sua primeira esposa que, certa vez, “ao encontrá-la por acaso, perseguiu-a com olhares tão insistentes e cheios de lágrimas, que ela depois disso nunca mais quis aparecer-lhe” (Suet. Tib. 7, 3). O casamento com Júlia seria em tudo o oposto. De início viveram bem, mas o único filho que tiveram morreu ainda criança e pouco depois passaram a dormir em leitos separados. Os anos que se seguiram foram de repetidos êxitos militares e políticos para Tibério e não é improvável que a deterioração das relações do casal estivesse ao menos em parte ligada a esse mesmo êxito. Assumindo o comando deixado vago por Agripa, Tibério conquistou a Panônia em 12 a.C., enquanto seu irmão Nero Druso conduzia operações militares na Germânia (Dio Cass. 54, 31). Em 11 e 10 a.C., os irmãos debelaram sucessivas revoltas ao longo da fronteira norte do Império e receberam por seus êxitos os ornamentos triunfais e uma ovação (Dio Cass. 54, 32-34). Mas em 9 a.C. seu irmão, que então atuava como cônsul, foi ferido em combate na Germânia e morreu pouco depois (Dio Cass. 55, 1-2). A morte de Nero Druso representou o desaparecimento do outro único membro da dinastia em idade adulta, o que levou Augusto a estreitar ainda mais sua parceria com Tibério. Em 8 a.C., Tibério foi eleito cônsul pela segunda vez e indicado para assumir, por cinco anos a partir de 6 a.C., o poder tribunício em Roma e o comando proconsular sobre todas as províncias do oriente (Dio Cass. 55, 6). Como Agripa antes dele, Tibério se tornou de fato e para todos os efeitos o corregente do Império. Então, no auge de seu poder, Tibério abandonou os planos de Augusto e retirou-se da cena política em um exílio voluntário na ilha de Rodes (Suet. Tib. 10-11; Dio Cass. 55, 9). As razões desse retiro inesperado foram objeto de discussão já na Antiguidade. Segundo Suetônio, alguns diziam que Tibério havia se afastado pelo desgosto da mulher, a quem não podia acusar publicamente de adultério; outros diziam que ele pretendia reforçar sua autoridade pela ausência. O próprio Tibério teria alegado, no momento, estar saciado de honras e necessitado de repouso. Mais tarde, como muitos também afirmavam, ele diria que, ao ver que os filhos de Augusto se aproximavam da maioridade, não queria que sua presença parecesse a de um concorrente (Suet. Tib. 10). A maioria dos historiadores modernos associa o afastamento de Tibério à tentativa fracassada da plebe de Roma e dos partidários de Júlia de eleger Caio como cônsul para o ano 5 a.C., quando o jovem ainda tinha apenas quatorze anos (Dio Cass. 55, 9; Suet. Tib. 10). Júlia e seus aliados podem ter sentido que a ascensão vertiginosa de Tibério ao poder acabaria por beneficiar seu filho Druso, em detrimento de Caio e Lúcio. A plebe urbana pode ter visto na ocasião da eleição uma oportunidade não apenas de manifestar sua lealdade à família Júlia, mas também de expor a impopularidade de Tibério. Tibério, com efeito, não escondia sua aversão à ideia de um principado baseado no culto da personalidade e no apoio popular e ele já havia dado mostras do ideal austero e oligárquico que pretendia instaurar. Ao assumir seu segundo consulado, ele havia anunciado, como seu primeiro ato, que pretendia restaurar o Templo da Concórdia, o mesmo fundado no século IV a.C. pelo político conservador M. Fúrio Camilo e restaurado em 121 a.C. por Lúcio Opímio, o homem responsável pelo assassinato de Caio Graco e seus partidários. Tibério não poderia escolher um símbolo mais odiado pela plebe para afirmar suas simpatias oligárquicas (Levick, 1999: 24-27). Embora preparada com antecedência, a eleição de Caio foi uma surpresa para o próprio Augusto. Pressionado pela multidão a não anular o resultado dos comícios, Augusto procurou contemporizar. Prometendo a Caio o consulado assim que completasse os vinte anos, não hesitou em nomear seus dois filhos adotivos como “príncipes da juventude”, colocando-os à frente da ordem equestre. Foi a gota d’água para Tibério. Seu afastamento pode ter sido apenas um protesto contra o que via como uma concessão excessiva à plebe e aos partidários de Júlia. Mas uma vez tomada a decisão, o impasse estava criado. Tibério não podia voltar atrás sem reconhecer o papel do povo na criação dos príncipes e Augusto não podia retirar o consulado que prometera ao filho sem prejudicar sua própria autoridade e o futuro do herdeiro (Levick, 1999: 40). O exílio de Tibério tornou-se, então, um caminho sem volta. Em 2 a.C., Júlia caiu em desgraça. Acusada publicamente de adultério (mas certamente também por razões políticas) foi exilada por Augusto, enquanto um de seus supostos amantes era executado e os demais eram banidos. Para Tibério, a notícia não representou a reviravolta que esperava. Os planos de Augusto para Caio e Lúcio continuaram os mesmos e os únicos laços que o ligavam ao príncipe foram cortados quando Augusto demandou o divórcio de Júlia em nome do genro. Pouco depois, quando seus poderes expiraram e Caio assumiu o comando proconsular do oriente, Tibério foi recebido pelo filho adotivo de Augusto com frieza. Percebeu, então, o perigo que corria. Pediu a Augusto para retornar, mas foi ignorado. Nos confins do Império, Tibério passou a ser visto como um homem morto. Na cidade de Nemauso, na Gália, imagens e estátuas suas foram derrubadas pela população. Na comitiva de Caio, no oriente, um conviva não hesitou em oferecer-se para entregar a cabeça do desterrado, se Caio assim o quisesse (Suet. Tib. 13). Para sua sorte, Caio o recusou, e depois de dois anos de ansiedades, e por instâncias suas e de sua mãe Lívia, Tibério conseguiu retornar a Roma, após oito anos de exílio, em 2 d.C. A reabilitação de Tibério nos anos seguintes foi facilitada pelas mortes de Lúcio, no mesmo ano, e de Caio, em 3 d.C. O desaparecimento precoce dos herdeiros obrigou Augusto, aos sessenta e seis anos, a repensar, mais uma vez, seus planos para sucessão. Dos filhos homens de Júlia, o único sobrevivente era Agripa Póstumo, nascido em 12 a.C., pouco depois da morte de seu pai Marco Agripa. A solução encontrada por Augusto foi adotar como filhos, em 4 d.C., tanto Tibério, aos quarenta e cinco anos, como o jovem Agripa, então com quatorze anos de idade (Suet. Tib. 15). A dupla adoção não implicava uma situação de igualdade. Investido novamente do poder tribunício, mas agora por dez anos, e encarregado de umcomando militar da Germânia, Tibério voltava à condição de corregente do Império. Agripa Póstumo, no limiar da vida pública, era apenas um herdeiro. Além disso, ao se tornarem netos adotivos de Augusto, Druso, o filho natural de Tibério, e Germânico, o filho que Tibério adotara de seu irmão, podiam também ser vistos como herdeiros tão legítimos quanto os descendentes naturais da família Júlia. Augusto pode ter tentado mitigar os temores dos familiares e aliados de Júlia Augusta que ainda gozava de popularidade e esperava uma reabilitação, ao dar em casamento sua filha Agripina a Germânico César. Mas se o acordo foi um compromisso, não havia dúvidas de que o maior favorecido ainda era Tibério (Levick, 1999: 31-47). A campanha militar que Tibério conduziu na Germânia em 4 e 5 d.C. foi em breve coroada de pleno êxito. No julgamento otimista de Veleio Patérculo, que participou das incursões entre o baixo Reno e o Elba, não havia nada mais a conquistar na Germânia, exceto os Marcomanos chefiados por Marabôdo (Vell. Pat. 2, 107-109). Mas quando Tibério se preparava para enfrentar esse novo desafio, mobilizando nada menos do que oito legiões, uma revolta generalizada eclodiu na Panônia e na Dalmácia. Por três temporadas, de 6 a 8, os Panônios ocupariam a atenção de Tibério, enquanto os dálmatas apenas se renderiam em 9 (Dio Cass. 56, 12-17). A campanha da Panônia mostrou Tibério em sua melhor forma como general e lhe rendeu um de seus maiores êxitos militares. Mas no auge do esforço de guerra, as pressões em Roma por uma guerra breve, os temores manifestos pelo próprio Augusto de que os inimigos poderiam assediar a cidade e os altos custos impostos pela mobilização também contribuíram para elevar a impopularidade de Tibério e as esperanças de seus adversários. Segundo Veleio Patérculo, foi em 5 d.C., dois anos antes da maior batalha contra os rebeldes, que Agripa Póstumo “começou a revelar sua verdadeira personalidade, caindo numa estranha depravação da alma e do engenho e alienando-se da afeição de seu pai e avô” (Vell. Pat. 2, 112). É provável que Agripa tivesse manifestado o desejo logo frustrado de acelerar sua carreira, obtendo em pouco tempo, como seus irmãos o haviam obtido, o consulado, o comando proconsular e o poder tribunício (Levick, 1999: 57). Segundo Suetônio, a queda de Agripa ocorreu em duas etapas: primeiro, com sua emancipação forçada (isto é, o rompimento de seus laços com a família Júlia) e, depois, com seu banimento para Surrento e, não muito depois, com seu exílio permanente e sob guarda na ilha de Planásia (Suet. Aug. 65). Segundo Díon Cássio, o pano de fundo dessa queda foi uma tentativa de agitação popular no contexto da fome e do aumento de impostos provocados pela guerra que Tibério conduzia ao norte (Dio Cass. 55, 27). A dura repressão decretada por Augusto provocou não apenas a desgraça de Agripa, mas também a execução de Lúcio Paulo e o possível banimento de sua esposa Júlia, a menor, a filha de Júlia Augusta e irmã de Agripa Póstumo. A ruína de seus principais rivais na casa imperial consolidou o caminho para a ascensão final de Tibério. Desde sua reabilitação, em 4 d.C., seus amigos e companheiros de campanhas na Germânia e na Panônia monopolizaram os consulados e os comandos provinciais. Seus filhos, Germânico César e Druso César, que também se destacaram nessas campanhas, obtiveram os benefícios de uma carreira acelerada, o sinal mais claro de que eram os herdeiros da dinastia. Monumentos públicos, como o arco de Ticínio em 7-8 d.C., e cunhagens monetárias, a partir de 10 d.C., já apresentavam Tibério como o virtual sucessor de Augusto. Em 13 d.C., Tibério teve seus poderes tribunícios renovados e recebeu o comando supremo (o imperium maius) sobre todo o Império. Quando Augusto morreu, em 19 de agosto de 14 d.C., não havia dúvidas quanto a quem assumiria o governo de Roma (Wiedemann, 1996: 201; Seager, 2005: 37-39). “O primeiro ato do novo principado”, nas palavras de Tácito, “foi o assassinato de Agripa Póstumo, que, surpreendido sem armas por um centurião determinado, só foi executado com dificuldade” (Tac. Ann. 1, 6). Não há nenhum acordo nas fontes antigas ou entre os historiadores modernos sobre se a eliminação de Agripa teria sido decidida por Augusto, por Lívia ou pelo próprio Tibério (Tac. Ann. 1, 5-6; Suet. Tib. 22; Dio Cass. Hist. Rom. 56, 31-32). Qualquer que seja o mandante, porém, o assassinato foi um passo inevitável para consolidar a transmissão dos poderes em favor de Tibério e da família Cláudia. Agripa havia sido preterido por Augusto, mas permanecia um sucessor em potencial. Além disso, a difusão de rumores de uma possível reconciliação entre Augusto e Agripa em um encontro secreto na ilha de Planásia pode ter alimentado esperanças entre os partidários da família Júlia e justificado os temores de uma instabilidade política entre os apoiadores de Tibério (Campos, 2010, 2011). Após o funeral de Augusto e a leitura de seu testamento, a passagem dos poderes se completou com a reunião do Senado em 17 de setembro de 14 d.C. Nessa reunião, após Augusto ser deificado, os cônsules apresentaram uma moção para determinar a posição de Tibério. Não havia necessidade de uma moção consular para confirmar os poderes já conferidos ao agora Divi filius, “filho do divino”. O que a moção implicava era apenas a concessão a Tibério das províncias antes atribuídas a Augusto e a requisição para que o novo Príncipe aceitasse reter seus poderes e defender a res publica (Seager, 2005: 42-47). No entanto, o longo intervalo de quase um mês entre a morte de Augusto em 19 de agosto e a reunião do Senado em 17 de setembro, conjugado às narrativas de Tácito, Suetônio e Díon Cássio de um tenso debate ocorrido nessa reunião entre senadores exasperados e um Príncipe relutante em admitir seus poderes sugerem que Tibério, de fato, postergou o momento inevitável em que deveria assumir sua nova posição (Tac. Ann. 1, 11- 12; Suet. Tib. 24; Dio Cass. 57, 2; Levick, 1999: 50). A questão é: por quê? Para Tácito, a razão dessa hesitação teriam sido a cautela e a astúcia: Tibério teria desejado forçar o Senado a se comprometer com ele e “ter o crédito de ter sido chamado e eleito pelo Estado, em vez de ter chegado ao poder graças às intrigas de uma esposa e à adoção de um velho caduco” (Tac. Ann. 1, 7). Para Suetônio e Díon, ao contrário, o motivo teria sido o receio dos perigos que o ameaçavam, a saber: o temor de uma rebelião do exército, acompanhada ou não de uma conjuração em Roma (Suet. Tib. 25; Dio Cass. 57, 3, 1). É verdade que, tão logo receberam a notícia da morte de Augusto, três legiões da Panônia e quatro do Reno se rebelaram. O motivo real e declarado dessas rebeliões era o aumento do soldo, a melhoria das condições de vida dos soldados e a redução do tempo de serviço. Mas no Reno, as legiões não hesitaram em proclamar seu comandante, Germânico César, como imperador (Dio Cass. 57, 5). No entanto, a resposta de Tibério aos motins da Panônia, ao contrário do que sugerem Suetônio e Díon, foi imediata: antes mesmo da reunião do Senado, ele já havia enviado um destacamento da guarda pretoriana e da cavalaria sob o comando de seu filho Druso César para suprimir a rebelião. Em 26 de setembro, Druso já estava na Panônia, quando, aproveitando-se de um eclipse lunar, conseguiu com que os amotinados aterrorizados se rendessem. A rebelião no Reno, ao contrário, só foi conhecida em Roma após o dia 17 de setembro e foi debelada pelas iniciativas do próprio Germânico entre o final de setembro e meados de outubro. Embora tenham coincidido com a ascensão de Tibério ao poder, as rebeliões não parecem, portanto, terem sido a causa das hesitações do novo Príncipe (Levick, 1999: 51-54). Como Barbara Levick argumentou a esse respeito, é mais provável que a hesitação de Tibério tivesse sido uma tentativa de estabelecer com o Senado as esferas de atuação e as relações entre os agentes políticos do novo regime, sem criticar abertamente seu antecessor (Levick, 1999: 54-59). No debate “sucessório”,Tibério havia tentado negar que a posse dos poderes supremos necessariamente faria de um homem um “Príncipe”, no sentido de que esses poderes impunham a ele a responsabilidade de guiar o Império e dirigir sua política. Pretendia, portanto, que o Senado não reportasse tudo a um único homem, mas assumisse suas próprias responsabilidades. Mas como os senadores recusassem que os poderes, uma vez concedidos, fossem divididos, Tibério se viu obrigado a aceitar a responsabilidade que eles abdicavam de assumir. No final, nas palavras de Levick, “é irônico que tivesse cabido a um homem das convicções de Tibério abrir o caminho para legitimar e institucionalizar a nova monarquia e ainda mais irônico que, fazendo isso, ele estivesse se curvando à vontade do Senado” (Levick, 1999: 58). A política empreendida por Tibério durante seu principado foi toda ela marcada por essa contradição entre seus princípios austeros e oligárquicos e uma prática política cada vez mais centralizadora e autocrática. Foi essa contradição, entre outros fatores, que lhe assegurou a reputação de hipocrisia que a tradição senatorial nos transmitiu. Desde seus primeiros atos, Tibério buscou desencorajar o servilismo, a bajulação e o culto à personalidade: recusou que o mês de setembro fosse chamado tibério e o de outubro, lívio; proibiu que lhe fossem consagrados templos, sacerdotes e estátuas; tomava como afronta o nome de Senhor, afastava de sua liteira senadores bajuladores e não se importava com injúrias, boatos ofensivos e versos satíricos (Suet. Tib. 26-31; Dio Cass. 57, 9-11). Os temas evocados em suas cunhagens monetárias remetem todos a um ideário austero e conservador (Levick, 1999: 60-68). A tranquilidade ininterrupta evocada pelas palavras salus, quies, pax e tranquilitas, sem nenhuma surpresa, emergem como o ideal dominante do Príncipe conservador. A concordia e a clementia eram a proposta de Tibério, a partir de sua posição de força, a seus adversários derrotados para que superassem suas divergências (o que, na prática, reconhecia a permanência de uma oposição). Em um discurso endereçado aos senadores em 25 d.C., Tibério dizia que pretendia ser lembrado como um homem providus (isto é zeloso, comprometido) para com os interesses do Senado, mesmo que isso implicasse em sua impopularidade entre outros grupos sociais (Tac. Ann. 4, 38). Uma das razões de sua futura reputação como omisso no exercício de suas responsabilidades como imperador residia em sua ênfase na moderatio, incluindo sua disposição em aceitar a pluralidade de opiniões discutidas no Senado (Wiedemann, 1996: 212). Mas ao advogar a concordia, exibir sua providentia e exercer a iustitia, a clementia, e a moderatio, Tibério também reconhecia possuir poderes muito acima do que qualquer político republicano havia jamais possuído (Levick, 1999: 68). No resumo dos “anos bons” do principado de Tibério, de 14 a 23 d.C., Tácito se referia com reservado elogio à dignidade e poder que o príncipe concedera aos senadores e magistrados (Tac. Ann. 4, 6). Um de seus primeiros atos administrativos foi transferir as eleições do povo para o Senado (Tac. Ann. 1, 15, 1; Vel. Pat. Hist. Rom. 2, 124, 3). Durante todo o seu principado, o posto mais prestigioso, o de consul ordinarius, foi reservado com poucas exceções aos membros das antigas famílias republicanas e aos filhos de cônsules eleitos sob Augusto (Seager, 2005: 106-107). Tibério aboliu o restrito conselho administrativo constituído por seu antecessor e transferiu todas as decisões para o plenário do Senado. Nas palavras de Suetônio, “não houve assunto, importante ou não, público ou particular, que não fosse referido aos senadores” (Suet. Tib. 30). Mas a principal dificuldade de levar a cabo seu projeto de restituir autonomia ao Senado adveio dos próprios senadores que, em todas as decisões importantes, como em 21 d.C. na nomeação de um governador para a província da África para debelar a rebelião liderada por Tacfarinas, procuraram eximir-se de responsabilidade e transferir a decisão para o príncipe (Idem, 110-111). Não surpreende que, segundo Tácito, todos os dias quando deixava a cúria, Tibério dizia, em grego, para si mesmo: “Ó homens preparados para a escravidão!” (Tac. Ann. 3, 65). Tibério não introduziu nenhuma mudança significativa no papel da ordem equestre na administração. Precisou, porém, os critérios de pertencimento à ordem, enfatizando a liberdade de nascimento para excluir a ascensão de libertos ricos entre os equestres. Na relação com a plebe, não procurou se fazer popular. Segundo Suetônio, seu lema foi sempre: “Que me odeiem, mas que me respeitem” (Suet. Tib. 59). Em Roma, mandou construir uma caserna para a Guarda Pretoriana e suprimiu severamente todas as revoltas populares (Suet. Tib. 37). Não aboliu as lutas de gladiadores e os espetáculos teatrais que o povo considerava como um direito. Mas, em 14, após o morticínio de soldados em confronto com torcedores no teatro, decretou que os pretores poderiam punir espectadores com o exílio por mau comportamento e, em 23, baniu todos os atores da Itália (Tac. Ann. 1, 77; 4, 14; Suet. Tib. 37). Em Polência, na Ligúria, não hesitou em enviar o exército para punir a plebe que forçara a família de um centurião falecido a oferecer um combate de gladiadores (Suet. Tib. 37). Mesmo assim, procurou evitar a principal causa de descontentamento popular, afirmando seu constante cuidado com o abastecimento de Roma (Tac. Ann. 4, 6). Nas províncias, a maior parte do esforço militar foi concentrado ao longo da fronteira norte do Império (Tac. Ann. 4, 5). O objetivo das legiões acantonadas nessas regiões era não apenas conter os Germanos fora das fronteiras, mas também suprimir as rebeliões nas Gálias. A mais grave dessas sublevações foi revolta das tribos gaulesas de 21 d.C. suscitada pelo peso dos impostos e pelos abusos dos governadores (Tac. Ann. 3, 40-47). Ainda assim, a província que mais causou dificuldades durante o principado de Tibério foi a África. De 17 a 24, uma longa guerra foi travada contra os rebeldes liderados por Tacfarinas, um Númida que havia servido nas tropas auxiliares romanas e que colocou sua experiência a serviço de suas tropas (Tac. Ann. 2, 52; 3, 20-21, 32, 35; 4, 23-26). A atitude de Tibério em relação à exploração das províncias pode ser sintetizada na resposta à solicitação do prefeito do Egito Emílio Reto para que lançasse um novo imposto: “um bom pastor deve tosquiar seu rebanho, não o esfolar” (Suet. Tib. 32, 2; Dio Cass. 57, 10, 5). Mas como o mostram as duas revoltas mencionadas, é claro que esse preceito não foi sempre seguido e é por essa razão que tantos governadores durante seu principado foram processados por extorsão ou crueldade em suas províncias, muitos deles sob a acusação de lesa- majestade (Seager, 2005: 144-145). A face mais sombria do principado de Tibério na opinião de seus biógrafos antigos foi precisamente a difusão das condenações por crime de lesa-majestade (maiestas) (Levick, 1999: 142-159; Seager, 2005: 125-138). Tácito responsabilizou Tibério pelo número considerável de pessoas acusadas de traição a partir dos anos 20 d.C. e, na verdade, por qualquer morte nesse período (Tac. Ann. 1, 72). Tibério, porém, não criou nem reviveu a legislação a esse respeito, que já existia antes dele, e tampouco poderia suprimi-la. Nas palavras de Robin Seager, no regime político do principado, “revogar ou suspender a lei de maiestas, ou mesmo suprimir as recompensas por um processo bem-sucedido, seria o mesmo que convidar abertamente à conspiração e ao assassinato” (Seager, 2005: 138). Como Wiedemann observou, se Tibério deve ser culpado é por omissão, pois foram suas constantes ausências de Roma que encorajaram delatores a fazerem acusações de traição para atacar seus próprios rivais ou simplesmente para se enriquecerem (Wiedemann, 1996: 219). O ano de 23 d.C. marcava para Tácito o fim dos “anos bons” do principado de Tibério porque foi a partir de então que uma catástrofe dinástica deixaria o príncipe cada vez maisisolado, abrindo o caminho para a ascensão do Prefeito do Pretório Lúcio Élio Sejano (Tac. Ann. 4, 1). Ao assumir o principado em 14 d.C., Tibério havia solicitado ao Senado a concessão do imperium proconsular a seu filho adotivo Germânico, enquanto Druso, seu filho natural e três anos mais novo, receberia a mesma concessão em 17 d.C. Durante os anos em que foram associados ao governo do Império, os dois irmãos mantiveram boas relações, embora rivalidades certamente existissem tanto entre ambos, como entre Agripina, a esposa de Germânico, e Lívia Júlia, a esposa de Druso. Em 17 d.C., porém, Germânico foi enviado em uma missão ao oriente, onde ambicionava seguir os passos do avô Marco Antônio. Para refrear ambições do jovem, Tibério o fez ser acompanhado por Gn. Calpúrnio Pisão como novo governador da Síria. Mas as relações entre os dois enviados logo se deterioraram e em 19 d.C. Germânico adoeceu e morreu sob a suspeita de ter sido envenenado por Pisão. Germânico e Agripina contavam com imensa simpatia popular e, desde as primeiras notícias do infortúnio e depois com a chegada da viúva portando as cinzas do marido, a plebe de Roma demonstrou a sua consternação em protestos e num luto voluntário (Suet. Calig. 5-6; Courrier, 2014: 868-870). No julgamento de Pisão, no final de 20 d.C., a ira popular se manifestou mais uma vez em pichações e aos gritos durante a noite de “Devolve- nos Germânico!” (Suet. Tib. 52; Courrier, 2014: 872-873). Apesar dos esforços de Tibério para que o julgamento fosse aberto e justo, o suicídio de Pisão durante o processo foi interpretado na opinião pública como um sinal de que ele havia de fato assassinado Germânico – e sob as ordens de Tibério (Dio Cass. 57, 18; Wiedemann, 1996: 211). Com a morte de Germânico, Druso César se tornou o sucessor natural do Príncipe. Isso já era claro nas cunhagens monetárias que celebravam o nascimento dos dois filhos gêmeos de Druso em 19 ou 20 d.C. A posição de Druso foi ainda confirmada em 21 d.C., quando compartilhou com Tibério seu quarto consulado, e em abril de 22 d.C., quando foi formalmente investido do poder tribunício (Tac. Ann. 3, 31; Wiedemann, 1996, p. 211). Embora a morte de Germânico e a ascensão de Druso tivesse privado sua família da sucessão imediata, Agripina ainda podia se sentir segura pela introdução na vida pública, com os privilégios de uma carreira acelerada, de seus dois filhos mais velhos, Nero e Druso, respectivamente em 20 e 23. Mas tudo isso deveria mudar em setembro de 23 com a morte de Druso César, talvez vitimado por uma conspiração de Sejano. O Prefeito do Pretório já era, por essa época, uma eminência parda no principado de Tibério. Contava com o apoio inconteste da Guarda Pretoriana, estendera sua influência ao Senado e gozava da total confiança do Príncipe. Os autores antigos divergem ao explicar a ascensão de Sejano: teria Tibério utilizado Sejano como um instrumento contra Agripina e seus filhos, ou seria Sejano quem teria explorado os temores de Tibério para avançar suas ambições pessoais? Suetônio adota a primeira opção, enquanto Tácito privilegia a segunda, o que é a pista seguida pela maioria dos historiadores na atualidade (Suet. Tib. 55 e 61; Tac. Ann. 4, 1). Segundo Tácito, o principal obstáculo às ambições de Sejano era que “a casa imperial estava cheia de Césares”: “um filho na força da idade e netos adultos impunham um atraso aos seus desejos” (Tac. Ann. 4, 3). Isso sugere que, mais do que se tornar um imperador no lugar de Tibério, Sejano ambicionava apenas a posição de regente durante a minoridade de um herdeiro (Seager, 2005: 153). O primeiro passo executado por Sejano para atingir seus planos seria eliminar Druso César, com quem já havia se indisposto. Para tanto, seduziu Lívia Júlia e com ela começou a conspirar (Tac. Ann. 4, 1-3). Druso faleceu em 14 de setembro de 23 de uma longa doença que à época passou como uma fatalidade, mas que anos mais tarde seria denunciada por Apicata, a esposa repudiada por Sejano, como tendo sido provocada por um lento e fatal envenenamento administrado por Lívia Júlia (Tac. Ann. 4, 8-10). Sejano se voltou, então, contra Agripina, incitando contra ela o ódio de Lívia, mãe de Tibério, e a cumplicidade de Lívia Júlia (Tac. Ann. 4, 12). Aos poucos, convenceu Tibério das conspirações de um suposto “partido de Agripina” (Tac. Ann. 4, 17). Desde 24, intentou uma série de processos de lesa-majestade contra pretensos membros dessa “facção”. Em 26, seus agentes infiltrados convenceram a própria Agripina de que Tibério pretendia envenená-la (Suet. Tib. 63). Exaurido pelo esgarçamento de suas relações com a família imperial, mas certamente também pelo fracasso de sua política de fortalecimento do Senado, Tibério deixou Roma nesse mesmo ano para um retiro na Campânia e, a partir do ano seguinte, na ilha de Capri (Suet. Tib. 39-41; Tac. Ann. 4, 57-59). O caminho estava aberto para supremacia de Sejano, nomeado por Tibério para gerir em seu nome os assuntos do Império na capital. Tibério nunca mais retornaria a Roma. Não compareceu nem mesmo aos funerais de sua mãe Lívia, em 29 d.C., com quem, de resto, já não mantinha boas relações (Tac. Ann. 5, 1-2; Dio Cass. 58, 2). Em sua ausência, Sejano se viu livre para eliminar Agripina e seus filhos. Pouco depois da morte de Lívia, uma carta oficial de Tibério foi lida no Senado atacando a arrogância de Agripina e a licenciosidade de Nero. Fora da cúria, uma multidão portando as imagens de Agripina e Nero protestava, alegando que a carta lida era falsa, atentava contra a família de Germânico e não contava com o consentimento do Príncipe (Tac. Ann. 5, 3-4; Courrier, 2014: 876- 877). Na ocasião, nenhuma iniciativa foi tomada contra os dois, mas os protestos forneceram a Sejano os elementos que lhe faltavam para convencer Tibério da suposta ameaça que corria. Em pouco tempo, Agripina e Nero foram exilados, a primeira na ilha de Pandatária, o segundo na ilha de Pontia, enquanto que Druso, no ano seguinte, seria confinado aos porões do palácio em Roma. Submetidos a inúmeros maus-tratos, os três morreriam de inanição em circunstâncias suspeitas (Suet. Tib. 53-54). O único filho de Germânico que escaparia ileso seria Caio Calígula, que Tibério acolheria na ilha de Capri após o fim de agosto de 30 (Suet. Calig. 10). Sejano atingiu o auge de seu poder em 31, quando compartilhou o consulado com Tibério em sua ausência e finalmente se casou com Lívia Júlia. Mas antes do fim desse mesmo ano, ele e toda sua família estariam mortos, suas estátuas derrubadas e seu nome apagado de todo registro público (Seager, 2005: 180-188). A razão alegada por Tibério para castigar Sejano, conforme ele mesmo registrou em um trecho de suas memórias citado por Suetônio, foi que ele “havia descoberto a sua raiva furiosa contra os filhos de seu filho Germânico” (Suet. Tib. 61). Não se sabe se, conforme a versão oficial, Sejano havia de fato conspirado contra Caio Calígula. O que é certo é que, alertado por Antônia, a viúva de seu irmão, Tibério parece ter-se dado conta de que Sejano perseguia às suas custas objetivos próprios (Joseph. AJ 18, 180-182). Preso no Senado quando acreditava prestes a receber o poder tribunício, Sejano foi estrangulado na prisão na mesma noite, seu corpo ultrajado pela multidão durante três dias, seus filhos condenados à morte, sua filha estuprada pelo carrasco, “sob o pretexto de que seria ímpio assassinar uma virgem na prisão”. Lívia Júlia, do mesmo modo, foi executada por ordem de Tibério após Apicata denunciar sua participação na conspiração contra Druso César. Seguiu-se uma perseguição implacável contra aliados e apadrinhados por Sejano, o que em muito contribuiria para a reputação de crueldade de Tibério (Dio Cass. 58, 11-15). Os últimos anos do principado de Tibério foram chamados de um “reinado do terror” em razão dos inúmeros processos por traição que se sucederam à queda de Sejano. O rótulo se justifica menos pelo número das vítimas efetivas do que pela atmosfera de pânico e histeria que prevaleceu, na qual