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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR DE SANTA CATARINA – CESUSC FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS DE FLORIANÓPOLIS – FCSF CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO ROSE MARY MAFRA FORNEROLLI O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA NO BRASIL FLORIANÓPOLIS MAIO 2011 Rose Mary Mafra Fornerolli O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a possibilidade de realização da eutanásia no Brasil Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis como requisito à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª MSc. Débora Bonat Florianópolis Maio 2011 Rose Mary Mafra Fornerolli O Princípio de Dignidade da Pessoa Humana e a possibilidade de realização da eutanásia no Brasil Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Direito, aprovado com conceito [ ]. Florianópolis/SC, 16 de maio de 2011. ___________________________________________ Orientador: Prof.a MSc. Débora Bonat Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC ___________________________________________ Membro da banca examinadora Instituição de Ensino Superior ___________________________________________ Membro da banca examinadora Instituição de Ensino Superior AGRADECIMENTOS Na vida temos a opção de várias escolhas, obstáculos, e sonhos a realizar, sem tais nortes, seria difícil cumprir a nossa missão. Para realização deste trabalho, singelo, mas significante neste momento da minha vida, e até mesmo para desmistificar alguns mitos e sofrimentos pessoais, houve a colaboração de muitas pessoas, entre elas meus amigos e familiares. Pelo carinho e pela compreensão nos momentos em que a dedicação aos estudos foi exclusiva, a todos que contribuíram direta ou indiretamente meu eterno AGRADECIMENTO. Agradeço também a minha orientadora Professora Mestra Débora Bonat, pois sua colaboração foi extremamente valiosa ao longo de todo o trabalho, orientando-me com paciência e desprendimento. Mostrou-se interessada, incansável e criativa, enriquecendo este trabalho com seus conselhos sobre quando eu deveria dizer mais e o que acontecia mais repetitivo, quando deveria dizer menos. Obrigada por suas observações críticas e angelicais em seu estímulo. “Para todos aqueles que morreram, morrem e morrerão segundo as convicções dos outros, e não segundo as suas próprias”. Laura Ferreira dos Santos RESUMO A presente monografia tem por fim promover uma análise sobre a possibilidade da prática da eutanásia no Brasil, tendo por fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana. Para este estudo polêmico, adotou-se o método dedutivo e a técnica da pesquisa bibliográfica. Neste contexto, buscou-se defender a eutanásia, no intuito de fornecer um final de vida digna àqueles pacientes acometidos de enfermidades incuráveis, que sofrerão bastante até que a morte se apresente e evitar que sejam submetidos à tortura. Diante de tal situação, o cerne da questão consiste em se desvendar qual a interpretação dada pela legislação ao valor da dignidade ou da inviolabilidade da vida humana para que, a partir daí, cada indivíduo possa refletir e concluir pela sua admissibilidade, autonomia e liberdade. Diante desse quadro constitucional favorável à observância dos valores individuais e ao respeito à dignidade humana, surge a necessidade de ter-se segurança jurídica e de procedimento, quanto à conduta sociedade - médica - familiar e decisão adotada no que tange a observância do pluralismo democrático, atendendo-se os direitos individuais de cada um, entre eles, a opção de se abreviar ou não a vida de um paciente enfermo incurável. Neste sentido, os argumentos da bioética surgem como medida de freio e contrapesos aos avanços crescentes da medicina. Todavia, o estudo pretendeu fornecer o delineamento de alguns parâmetros principiológicos aplicados a eutanásia e a chamada de consciência e reflexão sobre o tema, liberdade e direito, mesmo quando paradoxalmente nega-se a opção de escolha entre a vida e a morte. Palavras-chave: Princípio da dignidade da pessoa humana. Direito à vida. Eutanásia. Bioética. Princípio da proporcionalidade. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS ................................................................................. 10 2.1 Direitos fundamentais como norma ................................................................ 11 2.2 Princípio da dignidade da pessoa humana ..................................................... 14 2.3 Princípio da Liberdade ...................................................................................... 20 2.4 Princípio do direito à vida ................................................................................. 22 3 EUTANÁSIA E BIOÉTICA ..................................................................................... 25 3.1 Eutanásia ........................................................................................................... 25 3.1.1 Classificação da eutanásia ............................................................................... 28 3.1.2 Distinção entre Eutanásia, Distanásia, Ortotanásia e Suicídio Assisitido ......... 29 3.1.3 Requisitos para a prática da eutanásia ............................................................ 32 3.2 Ética e Moral ...................................................................................................... 32 3.3 Bioética .............................................................................................................. 34 3.3.1 Princípios da Bioética ....................................................................................... 37 4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A POSSIBILIDADE DE EUTANÁSIA NO BRASIL ......................................................................................... 43 4.1 Direito à vida, Eutanásia e os argumentos da Bioética ................................. 44 4.2 Princípio da Proporcionalidade ....................................................................... 47 4.2.1 Máximas da proporcionalidade ......................................................................... 49 4.3 A colisão entre o princípio da vida e da dignidade ........................................ 51 4.4 A operacionalização do princípio da proporcionalidade e sua aplicação direta ........................................................................................................................ 55 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 59 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 62 7 1 INTRODUÇÃO A presente monografia consiste em demonstrar os direitos que o paciente adquire, ao se encontrar em fase terminal de uma doença incurável e sem qualidade de vida, de optar por um caminho consciente que reflita uma escolha informada (autonomia) para o término de uma vida antecipada pela eutanásia mostrando-se agente digno até o fim. Por esse motivo, o problema apresentado no presente trabalho tem por objetivo geral contribuir para uma reflexão, considerando serem especiais às circunstâncias do ato eutanásico, porquanto se pode questionara eventual desconsideração da dignidade do ser humano condenado ao sofrimento e à espera da morte certa. É relevante salientar que todas as argumentações se darão sob a luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, visto que é este um dos fundamentos no qual a Constituição Federal de 1988 foi erigida e sem o qual não haveria sentido suscitar debates e polêmicas a respeito do tema em pauta. Seus objetivos específicos são: conceituar direitos fundamentais e o nexo de interdependência com a Constituição do Brasil de 1988; examinar a questão dos direitos fundamentais, especificamente o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana; analisar os conceitos e formas de eutanásia e bioética; interpretar a prática da eutanásia com fulcro no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e demonstrar o entendimento e a possibilidade da legislação brasileira em aceitar a prática da eutanásia. Inicialmente, no primeiro capítulo, serão abordados conceitualmente direitos fundamentais. A Constituição da República Federal Brasileira de 1988 elencou uma lista de direitos fundamentais e definiu objetivos fundamentais do Estado. Conceituar os direitos fundamentais, como expressão de valores ou decisões axiológicas de uma determinada sociedade, consagra a normativa constitucional ao conformar todo ordenamento jurídico. Ressaltem-se, ainda, os direitos fundamentais como norma e a distinção lógica entre regras e princípios. Com efeito, a consagração do princípio da dignidade humana, como valor e fundamento constitucional do estado Democrático de Direito brasileiro, traduz-se na obrigação não só jurídica, mas também no compromisso ético, moral e político de respeitar e garantir condições mínimas de existência 8 humana. Com base nessas premissas, delinear a dignidade e seus dois pilares importantes: igualdade entre os seres humanos e a liberdade, a qual permite ao homem exercer os seus direitos existenciais. O término deste capítulo propõe uma abordagem do direito à vida e, consequentemente, à morte, para repensar a ideia de disponibilidade do bem jurídico ‘vida’ pelo próprio indivíduo, e isso somente se alcança conferindo eficácia à dignidade humana. Já no segundo capítulo é relevante uma abordagem conceitual sobre a eutanásia e bioética, bem como a classificação e requisitos de ambas. Cumpre esclarecer que mesmo diferentes, as classificações apontadas e reconhecidas pelos doutrinadores quanto à conceituação e classificação, o termo eutanásia igualmente não representa tema pacífico, suscitando, portanto, controvérsias com a mesma força que o tema central sugere. Na bioética, variando sua intensidade na medida em que mudam valores morais e éticos, o que interessa é sua ocupação referente à vida humana à luz dos valores aceitos em sociedade. E diante desse quadro constitucional favorável à observância dos valores individuais e o respeito à dignidade humana, é que será analisado o contexto da bioética, debruçado no avanço tecnológico, cabendo aceitar e afastar algumas possibilidades. Por fim, no terceiro capítulo, adentra-se ao estudo específico do tema em pauta deste trabalho, abordagem do princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade de conceber a ideia de uma morte digna através da eutanásia. Sendo toda pessoa considerada um ser racional e dotado de liberdade, por sua natureza, possui um rol de direitos fundamentais e inalienáveis, em vista de sua dignidade, direitos que decorrem dos valores consagrados em função da própria natureza e que devem ser respeitados e garantidos pelo próprio Estado. Pretende-se operacionalizar a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade e suas máximas, onde o controle se dará à medida que o fim desejado tem legitimidade constitucional, propiciando o entendimento de que a referida transformação social começa a admitir a possibilidade da morte denominada como digna, porque preserva, em relação ao doente terminal que vivencia intenso sofrimento, a dignidade de morrer em paz e sem sofrer em demasia. Assim, a presente pesquisa se encerra concluindo que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sendo um princípio base do ordenamento jurídico, autoriza o entendimento de que também a morte sem 9 sofrimento representa ‘viver’ com dignidade, ao menos até os últimos instantes em que esse ‘viver’ é possível. Quanto à metodologia empregada, será utilizado o método dedutivo, e, nas diversas fases da pesquisa, as técnicas bibliográficas, tendo em vista que a fonte de consulta é a descrição do objeto/realidade já realizada por outras pessoas e constante de livros e periódicos. Ressalte-se que, sem a menor pretensão de esgotar o assunto, tentar-se- á estabelecer qual é, em linhas gerais, em face da Constituição Brasileira de 1988, em suas múltiplas relações e possibilidades, o alcance e sentido do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana na realização da eutanásia no Brasil. 10 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais são direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição, nascem e se fundamentam no princípio da soberania popular. Canotilho (2000, p. 387), comenta: as expressões ”direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado, poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço- temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. Neste sentido, Silva (2004) reforça que a expressão ‘direitos fundamentais do homem’ são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade de pessoa humana. Os direitos fundamentais têm como finalidade conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria de natureza material, mas algumas vezes de natureza processual e, consequentemente, limitar a liberdade de atuação dos órgãos do Estado. Assim, cada direito fundamental constitui, na definição de Georg Jellinek (apud LEITE; SARLET, 2009, p. 123), um “direito público subjetivo”, isto é, um direito individual que vincula o Estado. A relação entre o Estado e cada indivíduo deve-se imaginar como uma relação entre duas esferas em interação. Os direitos fundamentais garantem a autonomia da esfera individual e, ao mesmo tempo, descrevem situações nas quais é obrigatório determinado tipo de contato. Perez Luño (1995) sintetiza os direitos fundamentais como a expressão de valores ou decisões axiológicas de uma determinada sociedade, consagrada na normativa constitucional ao conformar todo o ordenamento jurídico infraconstitucional. 11 2.1 Direitos fundamentais como norma A Constituição é norma fundamental do ordenamento jurídico. Como qualquer outra norma, prescreve condutas, autoriza atos, limita e protege direitos de que são titulares os cidadãos a quem ela é destinada. As normas constitucionais dispõem não apenas de força moral, mas também de força jurídica-normativa, cuja função é constituir padrões axiológicos e teleológicos, utilizados pelos operadores jurídicos na concretização e construção do ordenamento jurídico. Canotilho (1998, p. 63), na clássica obra ‘Direito Constitucional’, aponta que o sistema jurídico “é um sistema de regras e princípios, pois a norma tanto pode revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras”. Há entre regras e princípios uma distinção lógica:os princípios não se aplicam de forma automática quando presentes as condições necessárias para sua incidência; ao passo que as regras são aplicadas de modo absoluto, ou não aplicadas. Uma vez presentes as condições fáticas para sua incidência, as regras, sendo válidas, devem necessariamente ser aplicadas, não comportando qualquer exceção. A Constituição é a Lei Fundamental e por isso Suprema. Destarte, é a base e o topo da legislação. Neste sentido, expõe Silva, (1996, p. 48) “todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se conformarem com as normas da Constituição Federal”. No entender de Barroso (1999, p. 156), “por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental”. O constitucionalismo moderno encontra-se embasado no equilíbrio entre os poderes transferidos para as mãos do Estado e o respeito e consequentemente a realização dos direitos fundamentais. O princípio da dignidade da pessoa humana ocupa o epicentro do ordenamento jurídico e o ser humano é o seu mais importante protagonista da dignidade humana e esta, para ser efetiva, exige o respeito aos direitos fundamentais e impõe a exclusão de qualquer espécie de coação ilegal externa que impeça o desenvolvimento da personalidade. É íntima a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana, porque essa é “a medida dos direitos 12 (fundamentais) de tal sorte que, em regra, a violação de um direito fundamental estará sempre vinculada à ofensa da dignidade da pessoa” (FLÓREZ-VALDÉS, 1990, p. 149). Nesse sentido, o constituinte brasileiro de 1988 foi categórico ao inscrever, no inciso III, do art.1º, da Constituição brasileira de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana na categoria de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, além de estatuir que a existência digna é vetor da ordem econômica, no caput do art. 170. Sendo complexo o sistema de direitos fundamentais, Mendes (2004, p. 2) afirma que são necessários esforços para precisar os elementos essenciais dessa categoria e esclarece que: Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto àqueles outros, concebidos como garantias individuais – forma a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático. Canotilho (1991, p. 507) assevera que os direitos fundamentais são aqueles que encontram vigência num determinado momento histórico, quando afirma que “são direitos do homem, jurídicos institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente”. Todos os direitos elencados no catálogo do Título II, da Constituição, dizem respeito aos ‘Direitos e Garantias Fundamentais’, trazem consigo a nota da fundamentalidade formal. É, porém, importante ressaltar que há outros espalhados por todo o texto constitucional. Por força do §2º do artigo 5º da CF, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. É, então, forçoso reconhecer que existem inclusive direitos fundamentais implícitos e até mesmo fora do texto da Constituição. Além disso, o constituinte reconheceu que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer forma constitucional tendente a suprimi-los (art.60, § 4º). Com efeito, se normalmente os direitos fundamentais atuam em diferentes graus de intensidade, em casos excepcionais tal característica fica 13 acentuada, pois pode ocorrer que determinados direitos fundamentais mantenham- se íntegros, alguns restritos e outros com a eficácia completamente suspensa. Os atos emanados do Estado que visem suspender a eficácia dos direitos fundamentais, devem ser excepcionais e estar condicionados ao preenchimento de todos os requisitos formais e substanciais necessários à manutenção do estado de Direito. Como já mencionado, a sociedade se organiza, transfere os poderes para o Estado e legitima o texto constitucional, com a função principal de salvaguardar a dignidade da pessoa humana, o que significa que os direitos subjetivos devem ter ampla margem de efetividade e proteção. Nesse sentido, Alexy (2008) apresenta os direitos fundamentais como subjetivos, correspondendo a posições jurídicas ocupadas pelo indivíduo de fazer valer suas pretensões frente ao Estado, não podendo esse eliminar tais posições do titular de Direito. Contudo, a garantia das liberdades individuais previstas no texto constitucional não é absoluta, no sentido de que essas garantias dizem respeito ao indivíduo e estariam livres de afetação. É importante destacar que são necessárias restrições, objetivando garantir os direitos fundamentais de terceiros e isso resulta numa relativização do conceito de incompatibilidade com os direitos fundamentais, conforme ensina o citado autor. Direitos fundamentais têm certamente o objetivo de garantir um estado global de liberdade do qual todos se beneficiem. Nesse sentido, eles têm uma relação com a situação de outros titulares de direitos fundamentais. Em complementação, a definição de Bastos (2002, p. 258) também segue a mesma linha: Dá-se o nome de liberdades públicas, de direitos humanos ou individuais, àquelas prerrogativas que tem o indivíduo em face do Estado constitucional ou Estado de Direito. Neste, o exercício dos seus poderes soberanos não vai ao ponto de ignorar que há limites para a sua atividade além dos quais se invade a esfera jurídica do cidadão. Há como que uma repartição da tutela que a ordem jurídica oferece: de um lado ela guarnece o Estado com instrumentos necessários à sua ação, e de outro protege uma área de interesses do indivíduo contra qualquer intromissão do aparato oficial. Somente uma Constituição aberta e repleta de princípios é capaz de adequar-se à rapidez com que as modificações do mundo ocorrem. Tais mudanças, presentes no seio da sociedade necessitam ser minimamente reguladas pelo direito. Mesmo tendo consciência de que o ordenamento não será capaz de prever todas e 14 quaisquer condutas humanas, espera-se que, no mínimo, o ordenamento possua algumas válvulas que permitam a adequação da norma à vida social. O Poder Constituinte originário, ante o trauma decorrente do momento histórico que precedeu a Assembleia Nacional Constituinte, no intuito de assegurar que as atrocidades cometidas pelo regime militar não viessem a se repetir, adotou a mesma concepção teleológica da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que definiu no que consistia o princípio da dignidade da pessoa humana. A Declaração Universal de 1948, objetiva delinear uma ordem pública mundial, fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para titularidade de direitos. [...] A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, vem ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos. (PIOVESAN, 2002, p. 146). Portanto, os direitos fundamentais objetivam assegurar a liberdade do indivíduo, o que só terá sucesso diante de uma sociedade livre,na qual os cidadãos estejam conscientes para participar das decisões acerca de seus interesses e da comunidade. Para Alexy (2008), é essencial entender o conceito de competência para a compreensão da estrutura dos direitos fundamentais, tanto em relação ao cidadão quanto em relação às competências do Estado e isso só é alcançado na análise da relação das competências com direitos a algo e às liberdades. 2.2 Princípio da dignidade da pessoa humana Historicamente, a partir do cristianismo, tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos, possuidor de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade. (PRADO, 2002). Surge com o cristianismo o conceito de pessoa: o homem deixa de ser considerado apenas como cidadão e passa a valer como pessoa, independentemente de qualquer ligação pública ou jurídica. O reconhecimento do valor do homem como homem, implica o surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer, verdadeira esfera de ação dos indivíduos que delimita o poder 15 estatal. Observa-se então “um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre liberdade e autoridade” (PRADO, 2002, p. 114). Da concepção jusnaturalista - que vivenciava seu apogeu justamente no século XVIII -, indubitavelmente, a constatação de que uma ordem constitucional que – de forma direta ou indireta – consagra a ideia da dignidade da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão – somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado. (SARLET, 2009, p. 40). A concepção jusnaturalista consagrou a dignidade humana, partindo da ideia de que os direitos do indivíduo devem ser respeitados e reconhecidos por todos, bem como pelo Estado. Mais tarde, opondo-se à metafísica do pensamento jusnaturalista (os princípios ocupavam uma função meramente informativa) e instituindo-se a fase positivista, os princípios passaram a ser concebidos como fontes do Direito, sendo utilizados apenas na ausência da lei, como forma de suprir as lacunas do ordenamento e resolução dos conflitos de normas. Nessa fase, os princípios ocuparam posição secundária e de subsidiariedade à lei, não podendo sobrepor-lhe, tampouco proceder-lhe. Atuavam somente como fonte supletiva no caso de ausência da lei e como forma de integração do direito, ou seja, não dispunham de autonomia normativa. (BOBBIO, 1995). Na era Pós-positivista, na fase em que hoje ainda se experimentam, os princípios representam tema que centraliza as discussões no âmbito da teoria e da filosofia do direito, refletindo, na esfera do Direito Constitucional. Segundo Farias (2000, p. 54), “a moderna teoria constitucional descobriu que os princípios (notadamente aqueles com respaldo na Lei Maior) formam o ‘coração das constituições contemporâneas’ e, portanto, são instrumentos valiosos para uma adequada interpretação constitucional”. Para Dworkin (1997), o positivismo é extremamente normativo, uma vez que identifica somente as normas, deixando à margem, as diretrizes (fazem referência aos objetivos sociais a serem alcançados) e os princípios (estes se referem a justiça e à equidade). Será o conteúdo material, o determinador da aplicação de um princípio em uma situação particular/específica. Mello (2002, p. 808) observa: 16 Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce de disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. Promulgada no dia 5 de outubro de 1988, A ‘Constituição Cidadã’ como ficou conhecida, foi a primeira Constituição a reconhecer de forma expressa em seu texto, o princípio da dignidade humana. “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: (...) III - a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1999, p. 8). Reconhecendo a existência da dignidade da pessoa humana e sua eminência, a Constituição transformou-a em um valor supremo da ordem jurídica, ao declará-la como um dos fundamentos. Além disso, a Constituição de 1988, ao instituir um amplo sistema de direitos e garantias fundamentais, buscou não só preservar, mas, acima de tudo, promover a dignidade da pessoa humana. Observe-se que concebido como fundamento do Estado, o princípio da dignidade humana não é unicamente uma disposição legal a ser respeitada e, sim, uma imposição normativa, o que significa dizer que todas as ações estatais, que de alguma forma incorrerem em violação a esse princípio não são legítimas porque contrárias aos próprios valores que a Constituição pretende concretizar. Significa dizer que a consecução dos Direitos fundamentais só é possível num Estado Democrático de Direito. Dessa forma, não se pode falar em qualquer outro Direito e garantia constitucional sem aludir à dignidade humana, razão pela qual é denominado princípio unificador (PELEGRINI, 2004). Esse princípio constitui um atributo intrínseco de todo indivíduo, ainda que tenha cometido qualquer ação que não seja dotada de dignidade, pois “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidades e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”, conforme o exposto no artigo 1o da Declaração Universal da ONU de 1948 (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 1). Farias (2000, p. 63) destaca que: o respeito da dignidade humana constitui-se em um dos elementos imprescindíveis para a legitimação da atuação do estado brasileiro. 17 Qualquer ação do Poder Público e seus órgãos não poderão jamais, sob pena de ser acoimada de ilegítima e declarada inconstitucional, restringir de forma intolerável ou injustificável a dignidade humana. José Afonso da Silva (1996) destaca que o princípio da dignidade da pessoa humana mostra-se como referencial ao conteúdo de todos os direitos fundamentais. Referindo-se aos doutrinadores José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, o constitucionalista brasileiro acentua: O conceito de dignidade humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo- a nos casos dos direitos sociais, ou invocá-los para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art.270), a ordem social visará a realização da justiça social (art.193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art.250) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana. (CANOTILHO; MOREIRA apud SILVA, 1996, p. 39). Observa-se que, além de um compromisso jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana tem responsabilidade no campo ético, moral e político de respeitar e garantir condições básicas de existência humana, pois nenhum Estado pode pretender assegurar a dignidade ao ser humano sem a implementação eficaz de condições mínimas de sobrevivência. No entender de Canotilho (1991), o princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio estruturalmente aberto, onde o conteúdo a ele atribuídoé dado pelos operadores do direito no momento de sua interpretação e aplicação ao caso concreto. Farias (2000) define como uma categoria axiológica aberta, sendo inadequada conceituá-la de forma fixista. Exige-se dos operadores jurídicos a compreensão de que o princípio da dignidade humana constitui fundamento autônomo à solução de conflitos. Nesse sentido, Alves (2001, p. 135) ressalta que o princípio da dignidade humana, [...] como tantos outros princípios fundamentais inscritos na Constituição, não é apenas ‘fonte de solução jurídica enquanto elemento de interpretação e integração das normas’. Entendemos que é preciso admitir que os princípios constitucionais, como o que consagra a dignidade da pessoa humana, podem servir de fonte autônoma de solução jurídica – ‘ou como juízos concretos do dever ser’, na conhecida expressão de Alexy – para determinar casos, onde, apesar da ausência de regras específicas, se depare com uma situação concreta submetida à decisão judicial que deva 18 ser regulada de modo a salvaguardar a proeminência dos valores existenciais da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana mostra-se como sendo um princípio estruturante, colocando-se, portanto, em uma posição de superioridade relativamente aos demais, uma vez que estabelece os vetores axiológicos sobre os quais se alicerça o estado Brasileiro. A esse respeito assevera Sarlet (2001, p. 112): o princípio da dignidade humana não apenas impõe um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo. [...] a concretização do programa normativo do princípio da dignidade humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente, contudo, ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica que corresponda às exigências do princípio. Com efeito, a consagração do princípio da dignidade humana, como valor e fundamento constitucional do Estado Democrático de Direito brasileiro, traduz-se na obrigação não só jurídica, mas também no compromisso ético, moral e político de respeitar e garantir condições mínimas de existência humana, visto que nenhum Estado pode pretender assegurar dignidade ao ser humano sem a implementação eficaz de condições mínimas de sobrevivência. É importante ressaltar a importância da atividade judicante na construção do conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana, porquanto o juiz não só protege a dignidade das pessoas mediante aplicação da lei, mas importa também a sua participação nos casos em que há ausência da lei reguladora, quando, então, possivelmente, irá valer-se de princípios, dando a esses o conteúdo resultante da sua interpretação ao caso concreto. A dignidade é qualidade intrínseca do indivíduo, sendo irrenunciável e protegida pelo ordenamento jurídico. Além dessas qualidades, esse princípio merece profundo respeito da sociedade e do Estado, devendo ser garantido e protegido até o último dia da vida do ser humano, que tem o direito de possuir uma morte digna. Para Moraes (2002a), a dignidade da pessoa humana representa significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor fonte que conforma e inspira o ordenamento jurídico dos Estados de Direito, traduzindo-se, inclusive, como um dos fundamentos do Estado brasileiro. De forma mais ampla, pode-se afirmar que a consagração expressa do princípio da dignidade da pessoa humana, no rol dos princípios fundamentais da 19 República Federativa do Brasil, constitui-se importante decisão do Legislador constituinte a respeito do sentido, finalidade e justificação do Estado. Canotilho (2000) coloca que, a partir daí reconhece-se que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário. Sarlet (2001) completa afirmando que a pessoa passa a ser o fim a que se destina o exercício do poder estatal, e nunca um meio para que o Estado alcance seus objetivos. Significa dizer que o exercício do poder somente será legítimo caso se paute pelo respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, que passa a ser uma condição para o próprio exercício da democracia. Para Kant (2003), concepção de dignidade prevalece até os dias atuais impregnada no pensamento filosófico-constitucional. O homem é concebido como sujeito do conhecimento e, por isso, é capaz de ser responsável por seus próprios atos e de ter consciência de seus deveres. Assim, mais do que respeitar um dever, tem o homem que se tornar um ser moral. Kant (2003, p. 74), então elaborou o seguinte imperativo categórico “age apenas segundo uma máxima tal que possas querer que ela se torne uma lei universal”. Dessa fórmula o doutrinador conclui que “o homem existe como fim em si mesmo, nunca como meio para realização das vontades”. (KANT, 2003, p. 74). A Declaração Universal dos Direitos humanos proclama, em seu preâmbulo, que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo e, em seu artigo 1º, que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Saber em que consiste essa dignidade, e em que se funda, é de inegável importância, a fim de que tais afirmações não pareçam mero jogo de palavras, ou discurso vazio de sentido prático. Para descobrimos a dignidade da pessoa humana não basta reconhecer no homem atributos só encontráveis nele [...]. Se o fizermos, estaremos situando o homem no plano da animalidade e retirando-o do plano da personalidade. Cumpre, pois, avançar para além das explicações puramente naturalistas, que situam esses atributos na corporalidade do homem, se se quiser construir uma sociedade que [...] veja nele um ser que transcende de sua animalidade para os planos superiores do espírito para ser pessoa. Só assim, compreenderemos o sentido de sua dignidade, que, sendo-lhe inerente, é inalienável, inviolável. (OLIVEIRA, 2000, p. 11). O princípio fundamental da dignidade humana, enquanto expressão positiva do valor fonte do ordenamento constitucional brasileiro acaba por funcionar 20 como um operador deôntico especial, pois, mesmo quando não esteja diretamente envolvido na solução jurídica do caso concreto, o valor que ele traduz será chamado a conformar, orientar e limitar a opção realizada. Nesse sentido, surge o entendimento de José Afonso da Silva (1998), advogando que a dignidade da pessoa constitui bem mais do que princípio jurídico, já que se cuida de valor supremo e fundante de toda ordem jurídica, social e política, base de toda a vida nacional. Constitui a dignidade um valor universal: “mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la considerada e respeitada”. (SARLET, 2002, p. 60). A dignidade da pessoa humana se apresenta como uma fonte aberta de proteção jurídica, não sendo casual o fato de que temas polêmicos sejam discutidos sob a ótica de seu conteúdo protetivo. (SARLET, 2002, p.60). Diante do exposto, a dignidade possui dois pilares importantes, tais como: igualdade entre os seres humanos e a liberdade, permitindo ao homem exercer plenamente os seus direitos existenciais. 2.3 Princípio da Liberdade Os direitos de primeira geração passaram, na ordem institucional, a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem um processo cumulativo e qualitativo, tendo por bússola uma nova universalidade, material e concreta, em substituição da universalidade abstrata e, de certo modo, metafísica, relativa aos direitos humanos no jusnaturalismo do século XVII (BONAVIDES, 2000). Acrescenta Mello (2002) que os direitos fundamentais de primeira geração (direitos civis e políticos) compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais, realçando o princípio da liberdade. Dos múltiplos conceitos para o direito à liberdade, partindo-se de uma perspectiva superficial, a liberdade é uma qualidadeque pode ser atribuída a pessoas, ações e sociedades. 21 Para Alexy (2008), a base do conceito de liberdade é constituída por uma relação triádica entre um titular de uma liberdade (ou de uma não-liberdade), um obstáculo à liberdade e um objeto da liberdade. A liberdade limita-se até onde não prejudique outrem; todos têm direito à liberdade, desde que assegurem ao próximo o exercício dos mesmos direitos. Em relação aos direitos de primeira geração, mencionamos as afirmações feitas por Spitzcovsky e Tura (1993, p. 8): “a liberdade sofre restrições sempre que estiver em jogo a preservação da sociedade e da vida alheia”. Fazem parte do conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana uma gama de direitos que a Constituição Federal expressamente tratou de referir ao longo do seu texto, tais como as liberdades: liberdade de expressão, liberdade de locomoção, liberdade religiosa, liberdade de associação, dentre outras. Qualquer ato, seja do poder público ou do próprio particular, que implique limitação ou violação a essas liberdades, atenta certamente contra a dignidade humana. Nesse sentido, Farias (2000, p. 81) acrescenta: o princípio da dignidade humana constitui o fundamento material não apenas à liberdade, mas a todos os direitos fundamentais, representando um ‘consenso axiológico normativo’ da sociedade brasileira acerca de certos valores básicos, isto é, os direitos fundamentais, que devem orientar a conduta de todos, que se trate de órgãos estatais ou de cidadão. O mesmo autor destaca que o princípio da dignidade humana exerce papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência (FARIAS, 2000). Sarlet (2009, p. 115) afirma que: não se pode desconsiderar [...] que a liberdade e a igualdade são noções indissociáveis da dignidade de cada pessoa, justificando, o reconhecimento de direitos fundamentais diretamente vinculados à proteção das liberdades pessoais e da isonomia. Ao referir-se à liberdade jurídica, que é uma manifestação especial do conceito amplo de liberdade, está a se falar do objeto da liberdade como uma alternativa de ação, o que significa dizer uma ‘liberdade negativa’. Assim sendo, distinguir liberdade positiva e negativa está no fato de na primeira, o objeto da liberdade ser uma única ação; já na segunda, o objeto consiste em uma alternativa de ação. Desta forma, para criação de uma situação de 22 liberdade jurídica é necessária apenas uma abstenção estatal, quer seja, uma ação negativa. […] segundo o Tribunal Constitucional Federal, o direito geral de liberdade pode, para além da proteção de ações, ser estendido à proteção de situações e posições jurídicas do titular de direitos fundamentais. Portanto, esse direito não protege apenas o seu “fazer”, mas também o seu “ser” fático e jurídico. Somente após essa ampliação é que o direito geral de liberdade se torna um direito exaustivo à liberdade geral contra intervenções. (ALEXY, 2008, p. 343-344). A liberdade assegura que o indivíduo é livre para ir e vir, sempre respeitando os direitos fundamentais regidos pela lei. Ao ser resguardada, ela garante um bem fundamental da pessoa, não somente ao que se refere às ações do indivíduo, como de igual forma na esfera jurídica. É importante analisar se o bem protegido pelo direito de liberdade é uma ação ou um estado do titular de direitos fundamentais. Ao se tratar de um estado, é possível determinar uma proibição. A liberdade limita-se até onde não cause danos a outra pessoa, todos tem direito à liberdade, desde que assegurem ao próximo o exercício dos mesmos direitos. A realidade e a materialidade devem estar presentes na liberdade e na igualdade, pois não há igualdade formal sem liberdade real. 2.4 Princípio do direito à vida No que se refere à vida, é importante ressaltar seu fundamento jusnatural, apesar das disposições positivadas. A justificativa buscada no direito natural reside no aspecto de que não pode o direito atribuir à pessoa o direito à vida, mas apenas reconhecê-lo, pois a vida é um direito que existe ‘desde sempre’, e independente de positivação para existir. Diniz (2007, p. 22), reforça: Ainda que não houvesse tutela constitucional ao direito à vida, que, por ser decorrente de norma de direito natural, é deduzida da natureza do ser humano, legitimaria aquela imposição erga homnes, porque o direito natural é o fundamento do dever-ser, ou melhor, do direito positivo, uma vez que se baseia num consenso, cuja expressão máxima é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto concebido pela consciência coletiva da humanidade civilizada. 23 Não obstante, isso não impede que o direito à vida se torne uma norma positiva. Pelo contrário, a positivação é salutar e imprescindível para bem defender a vida, porquanto garante a coercibilidade e a imponibilidade, características de que carece o direito natural. A Constituição de 1988 não se limitou a garantir “os direitos concernentes à vida”, indo além e defendendo a vida em si, e não apenas seus desdobramentos. Essa Constituição vigente traz, em seu artigo 5º, o seguinte trecho: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]. Em sendo direito fundamental, a vida é também um direito absoluto, ou seja, imodificável, visto que o teor do artigo 60, § 4º, IV, da Constituição não pode ser objeto de proposta de emenda, constituindo-se cláusula pétrea. Este direito absoluto a vida, deverá ser interpretado por certo, em proteção ao seu “núcleo essencial”: aqui posto, o caso em concreto. É dever de o Estado assegurar o direito à vida, e este não consiste em manter-se vivo, mas se ter vida digna quanto a subsistência. Moraes (2000, p. 87): “O Estado deverá garantir esse direito a um nível adequado com a condição humana respeitando os princípios fundamentais de cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. No mesmo sentido, Irany Novah Moraes (1987, p. 47): “A constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de ter a vida digna quanto à subsistência”. A Constituição ainda é o único instrumento competente para promover a justiça e democracia onde o indivíduo ativo e participativo exerça autonomia optando sobre sua vida ou morte digna. Entende-se então que o direito à vida é obrigação do Estado e não uma imposição do Estado, sendo que a questão relacionada à dignidade é fator obrigatório para a manutenção da vida humana. Para delinear melhor o entendimento quanto ao valor da dignidade da pessoa humana, Sarlet (2001, p. 110-111) afirma: 24 o que se percebe em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forme objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não forma garantidas, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana. Nota-se assim, que não se pode privilegiar apenas a dimensão biológica da vida humana, negligenciando a qualidade de vida do indivíduo, pois um indivíduo que se encontra em estado terminal irreversível e com sofrimentos físicos insuportáveis, não apresenta mais vida. Isso porque que não goza mais do direito à vida, nem sequer apresentadignidade, estando privado de liberdade e do exercício de muitos de seus direitos, não podendo usufruir das próprias funções vitais. O direito à vida retrata o próprio direito ao respeito à vida, e isso somente se alcança ao se conferir eficácia à dignidade humana. 25 3 EUTANÁSIA E BIOÉTICA Neste capítulo, far-se-á uma abordagem conceitual sobre eutanásia e bioética, bem como a classificação de ambas. A prática da eutanásia constitui-se uma relação entre indivíduos diferentes, com valores morais distintos, construídos a partir de uma relação simbólica, particular com o mundo. Decorrendo deste fato, há necessidade de encontrar um ponto de partida, para a reflexão bioética que seja comum a todos os seres racionais. É evidente que o tema está intimamente ligado aos campos da ética e moral, portanto uma rápida abordagem sobre os seus conceitos. 3.1 Eutanásia A Eutanásia sempre foi um instituto presente ao longo das gerações. Por toda sua complexidade e acaloradas discussões que o tema suscita, a conceituação e o estudo da origem do vocábulo eutanásia são aspectos importantes a serem abordados. Como primeiro registro, tal prática consta do ‘Livro de Samuel’, no Antigo Testamento bíblico, apesar do termo ter sido criado pelos gregos, que adotavam o que se chama ‘falsa eutanásia’, pois o sentido verdadeiro da palavra é ‘morte piedosa’, e eles praticavam a eutanásia basicamente em sua forma eugênica. (JUNGES, 1999). Junges (1999) informa que a palavra foi usada pela primeira vez por Suetônio, na obra ‘A vida dos Doze Césares’ (século II, d.C.), quando narra a morte suave do Imperador Augusto, expressando a ideia de que se pode ser autor da morte, assim como se é da vida. O termo Eutanásia foi criado no século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), em sua obra ‘Historia vitae et mortis’, (História da Vida e da Morte). Sustentou a tese de que, nas enfermidades consideradas incuráveis, era absolutamente humano e necessário proporcionar uma morte ‘boa e honrosa’, 26 cessando dessa forma o sofrimento dos enfermos, considerado por Bacon o “tratamento adequado às doenças incuráveis”. (Santos, 1992, p. 209) Originário do grego, o termo eutanásia remete à ideia de ‘boa morte’ ou ‘morte apropriada’. A esse respeito, Pessini cita Francis Bacon: O ofício do médico não é somente restaurar a saúde, mas também mitigar as dores e tormentos das enfermidades; e não somente quando tal mitigação da dor [...] ajuda e conduz à recuperação, mas também quando, esvaindo-se toda esperança de recuperação, serve somente para conseguir uma saída da vida mais fácil e equitativa [...]. Em nossos tempos, os médicos fazem questão de escrúpulo e religião o estar junto ao paciente quando ele está morrendo [...], devem adquirir habilidades e prestar atenção em como o moribundo pode deixar a vida mais fácil e silenciosamente. A isso eu chamo a pesquisa sobre a “eutanásia externa” ou “morte fácil”. (BACON apud PESSINI, 2004, p. 105). Em seus estudos, o filósofo inglês Francis Bacon demonstra que a eutanásia seria um marco precursor de uma visão diferenciada e próxima da atual, em que o médico tinha como função não apenas e puramente aplicar seus conhecimentos para curar, mas igualmente para diminuir as dores de uma doença incurável e mortal. Proporcionar aos seus pacientes uma morte indolor, calma e doce, abreviando o seu sofrimento. Etimologicamente, conclui-se que o termo encontra berço na língua grega ‘eu’ + ‘thantos’ podendo-se conceituar como a morte boa, a morte calma, a morte piedosa e humanitária, ou seja, a morte que afasta o ser humano de um sofrimento físico maior, abrandando, portanto essa dor com abreviação do resultado já aguardado (a própria morte). Inicialmente, a prática da eutanásia era vista não como morte, e sim como cuidados paliativos do sofrimento, como acompanhamento psicológico do doente e outros meios de controle da dor, bem como a interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia, ou seja, não visaria à morte, porém, deixar que esta ocorresse da forma menos dolorosa possível. (GOMES, 2007). Com a evolução dos tempos, a eutanásia adquiriu variadas definições, como por exemplo: “é a morte que alguém proporciona a uma pessoa que padece de uma enfermidade incurável ou muito penosa, e a que tende a extinguir a agonia demasiada cruel ou prolongada”. (ASÚA, 2003, p. 185). Em outras palavras, o sentido do vocábulo eutanásia, se aproxima da dignificação do sentido da vida, do valor da vida humana e expressar que deve prevalecer o bem estar do ser humano, que tenha uma vida digna por toda sua 27 existência, até o ponto em que por sacrifício ou sofrimento descomunal, essa vida vegetativa não tenha mais sentido. De acordo com Menezes citando Pinam y Malvara a eutanásia é aquele ato em virtude do qual uma pessoa dá morte a outra, enferma e parecendo incurável, ou a seres acidentados que padecem dores cruéis a seu rogo ou requerimento e sob impulsos de exacerbado sentimento de piedade e humanidade. (PINAM Y MALVAR apud MENEZES, 1977, p. 39-40). Foi somente a partir do século XIX que o termo começou a ser empregado no sentido de procurar a morte com doçura. E é exatamente nesse sentido que o termo é usado atualmente. A troca de significado aconteceu justamente quando a morte passou a ser vista como um evento antinatural. Sua assepsia não mais permite a experiência de vivenciar as dores e o sofrimento da terminalidade, tanto pelos moribundos quanto pelos familiares. Então, se ela não chega suave, deve ser procurada. (GOMES, 2007). Conceituação moderna e sintetizada pode-se estabelecer que eutanásia, seja pela origem etimológica da palavra, ou pela definição que o termo alcançou na evolução dos tempos, visa minorar o sofrimento daquele ser humano que padece ante uma enfermidade incurável, buscando, antes de causar-lhe um mal, dar-lhe algo que possa ao menos reduzir o sofrimento vivenciado. É importante esclarecer que não é suficiente a enfermidade ser incurável, dolorosa e também não o sentimento de piedade do agente ativo diante do sofrimento do próximo. Faz-se necessário que o enfermo consinta, peça e até rogue, querendo a morte, na medida em que visa pôr termo a dor e sofrimento, para que se tenha a eutanásia. É necessário, elencar os elementos específicos para a constatação de ocorrência de eutanásia: a morte deve acontecer sem dor ou sofrimento para o enfermo ou, quando muito, com dor ou sofrimento rápido; o fim pretendido com o procedimento deve ser exclusivamente o de pôr fim à dor e ao sofrimento experimentado pelo enfermo, e a realização do procedimento deve ter sido solicitada pelo enfermo ou por familiares capazes de demonstrar que esse teria sido o desejo do paciente caso estivesse consciente. Assim, para Carnevalli (2003), o conceito de eutanásia é o de uma ação ou omissão, com a finalidade de causar a morte em um ser humano, com o intuito de pôr fim ao seu sofrimento, sempre a pedido deste ou de seus familiares, tendo 28 em vista que a vida que levam não se encontra dotada de nenhuma qualidade, tratando-se aqui, de forma explícita, de “Eutanásia Voluntária”. A vida para ser humana tem que ser digna, como digna deverá ser a morte, pois do contrário também ela não será humana. 3.1.1 Classificação da eutanásia Em virtude à grande diversidade e classificações encontradas na doutrina, foi feita uma reunião de determinadas espécies. Quanto ao tipo de ação: a) Ativa/comissiva ou positiva: ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins humanitários, misericordiosos (como no caso da utilização de uma injeção letal); terceira pessoa, ou seja, o médico ministra substância capaz de provocar a morte instantânea e indolor, pondo fim à vida do enfermo diretamente. b) Passiva/omissiva/negativaou ortotanásia: palavra derivada do grego, é (orto o mesmo que correto e thanasia , igual à morte). Aparece como o limite certo da vida. Quando a morte ocorre por omissão em se iniciar uma ação médica que garantiria a perpetuação da sobrevida (por exemplo, deixar de se acoplar um paciente em insuficiência respiratória ao ventilador artificial); não mata diretamente, apenas deixa de prolongar a vida irreversivelmente condenada. É a oportunidade da morte correta, sem ultrapassar barreiras e sem motivar debates com princípios Éticos, Teológicos ou Jurídicos. c) Duplo Efeito: quando a morte é acelerada como consequência de ações médicas não visando ao êxito letal, mas sim ao alívio do sofrimento de um paciente terminal (por exemplo, emprego de uma dose de benzodiazepínico para minimizar a ansiedade e a angústia, gerando, secundariamente, depressão respiratória e óbito). A propósito dessa teoria do duplo efeito, esclarece Leo Pessini (2001, p. 120): 29 a distinção ética entre prover cuidados paliativos que podem ter como efeito colateral a morte e provocar a eutanásia é sutil, porque em ambos os casos a ação que causa a morte tem o objetivo de aliviar o sofrimento. O objetivo dos primeiros é aliviar apesar do efeito colateral fatal, enquanto a intenção da última é causar a morte como um meio para aliviar o sofrimento. Quanto ao consentimento do paciente: outra maneira de se classificarem as várias modalidades de eutanásia leva em conta não só as consequências do ato, mas também o consentimento do paciente (MARTIN, 1998): a) Eutanásia Voluntária: a qual atende uma vontade expressa do doente – o que seria um sinônimo do suicídio assistido. Esta se subdivide em autônoma e heterônoma. A primeira, por se constituir modalidade de suicídio (promoção da própria morte sem intervenção de terceiros), não punível pelo direito penal pátrio; b) Eutanásia Involuntária: que ocorre se o ato é realizado contra a vontade do enfermo – ou seja, sinônimo de ‘homicídio’; c) Eutanásia não Voluntária: quando a morte é provocada sem que o paciente tivesse manifestado sua posição em relação ao assunto. 3.1.2 Distinção entre Eutanásia, Distanásia, Ortotanásia e Suicídio Assisitido A eutanásia, como já mencionado, é a morte dada àquelas pessoas que sofrem de moléstias incuráveis e dolorosas, próximas ao fim, com intuito de abreviar-lhes o sofrimento, inspirada no sofrimento da compaixão e solidariedade humana. A eutanásia ou ‘boa morte’ ou eutanásia ativa, de acordo com Costa, Garrafa e Oselka (1998), tem como proposta induzir a morte precoce de uma maneira suave e sem dor, ou seja, ela tem como fim eliminar o sofrimento do paciente com a morte do mesmo, enquanto portador da dor, como meio para atingir esse fim. Outro termo relacionado à eutanásia é a distanásia. Cumpre esclarecer que essa forma é o oposto da eutanásia. A distanásia é o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento e angústia do doente, mesmo sabendo-se que não existem, até o presente momento, chances de cura ou melhora no quadro clínico. Conforme Diniz (2007, p. 316), “trata-se do prolongamento exagerado da 30 morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo da morte”. A eutanásia e a distanásia, como procedimentos médicos, têm em comum a preocupação com a morte do ser humano. A primeira, porém, se preocupa com a qualidade de vida humana na sua fase final, eliminando o sofrimento, enquanto a segunda se dedica ao prolongamento ao máximo a quantidade de vida, por meios artificiais. A ortotanásia surge em oposição à distanásia. Em 28 de novembro, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução 1.805 /2006, que pôs fim a qualquer dúvida a respeito da ausência de obrigação médica no caso em tela. Tendo em vista sua importância, transcrevemos seu conteúdo: Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. (MOREIRA, 2008, p. 2). Esse sintético normativo deixa claro que não há obrigação do médico em prolongar a vida do paciente a qualquer custo e que cabe a este ou a seu representante legal decidir a respeito da continuação do tratamento, contando com todas as informações disponíveis sobre as alternativas terapêuticas. Consegue-se preservar a autonomia individual e a dignidade do paciente, que receberá os cuidados necessários ao alívio de seu sofrimento. Para Cabette, (2009, p. 25), em verdade, “o fundamento principal da ortotanásia é a absoluta ineficácia de uma intervenção médica extremada para evitar a morte do paciente”. Já o suicídio assistido ocorre quando alguém ajuda a pessoa que não dispõe de meios para consumar, por si mesma, o próprio óbito, a se matar oferecendo-lhe meios idôneos para tal. A vítima é quem provoca, por atos voluntários, sua própria morte. Para que a ação de auxílio a suicídio tenha valoração de eutanásia, é necessário que o paciente tenha solicitado a ajuda para morrer, 31 diante do fracasso dos métodos terapêuticos e dos paliativos contra dores, o que acaba por retirar a dignidade do paciente, segundo seu próprio entendimento. Nas palavras de Cabette (2009, p. 20): Nesses casos pode-se falar no chamado suicídio assistido, que se aproxima da eutanásia, mas não é sinônimo. Freire de Sá esclarece em sua obra a distinção entre essas figuras, lançando mão do escólio de Ribeiro: Na eutanásia, o médico age ou omite-se. Dessa ação ou omissão surge diretamente a morte. No suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é consequência de uma ação do próprio, que pode ter sido orientado, auxiliado ou apenas observado por esse terceiro. Tem-se como exemplo o caso retratado pelo filme ‘Mar Adentro’ (MAR..., 2004): a solicitação ou consentimento partindo do ofendido não afastam a ilicitude da conduta. Diferentes sejam as classificações apontadas e reconhecidas pelos doutrinadores, à conceituação e a classificação do termo igualmente não representa tema pacífico, suscitando, portanto controvérsias com a mesma força que o tema central suscita, variando sua intensidade à medida que variam os valores morais e éticos defendidos pela sociedade local. Observa-se, que os autores que “defendem” a prática apontam para a necessidade de que seja respeitada a liberdade de escolha do homem que padece e que decide, como agente competente e autônomo, pôr fim aos seus dias, além de argumentar que a eutanásia se reveste de um genuíno caráter humanitário, propiciando que se livre o enfermo de um sofrimento insuportável, encurtando uma vida considerada sem qualidade, pelo próprio paciente, não vislumbrando mais nenhum sentido para ser vivida. Não se pode propor a prática da eutanásia deliberadamente, quando não há a promoção de uma morte impulsionada pela compaixão em relação ao enfermo. É a motivação humana, aliada a um quadro de doença incurável e mal irrepreensível, que indicará a verificação da prática da eutanásia, pois, caso contrário falar-se-á de um crime. Para que haja o procedimento da eutanásia, é necessário se levar em conta os requisitos básicos, onde estesgiram em torno da preservação da atividade médica de responsabilidades penais, e buscam o respeito à autodeterminação do ser humano, prestigiando a autonomia da vontade do enfermo. 32 3.1.3 Requisitos para a prática da eutanásia Para a prática da eutanásia, nos países em que ela é permitida, deve ser observada uma série de requisitos para que não se verifique a figura do homicídio, tais como: a) a solicitação voluntária bem pensada, repetida e explícita do paciente, b) relação de confiança entre o médico e o paciente, a ponto do profissional poder constatar, de fato, se o pedido foi voluntário e pensado, c) sofrimento sem perspectiva de melhora e insuportável, segundo opinião médica existente, d) discussão entre médico e paciente de alternativas para a eutanásia, e) consulta do médico a outro médico, f) execução médico-técnica esmerada da eutanásia (SÁ; NAVES, 2009). Neste ponto, diferencia-se a ‘Eutanásia Ativa’, caracterizada pela ação do médico, e a ‘Eutanásia Passiva’, chamada ortotanásia, caracterizada pela omissão do profissional. 3.2 Ética e Moral Ética é um conjunto de regras, princípios e formas de pensar, direcionada a realizar o bem em si mesmo, sendo contrário a tudo que for contaminado de indignidade. (VÁSQUEZ, 2000) Portanto, a ética não se aplica como forma de agir, essa fica a cargo da moral, que é determinante na forma do agir. A ética é a designação filosófica sobre a moral, isto é, sobre as regras e os códigos morais que norteiam a conduta humana. Assim sendo, cabe atribuirmos à ética como a ciência da conduta humana. (VÁSQUEZ, 2000). A ética pode ser entendida como reflexão dos costumes e ações humanas, sendo importante analisar-se sob o prisma da sociedade em que se situa o estudo, devendo sempre ser respeitado o costume, o direito e qualquer outro modo indicativo referente a tal grupo ou camada social. 33 Por ser parte da filosofia, a ética tem como objetivo a ação humana, fixando-se não no que o homem é de fato, mas sim no que ele deve ser e fazer de sua vida. (VÁSQUEZ, 2000). Expressa a reflexão filosófica sobre a conduta moral dos indivíduos, ou seja, acerca das regras e códigos morais que norteiam a conduta humana. Tem como pretensão definir as bases do fato moral e determinar as diretrizes e os princípios abstratos da moral. (SÁ, 2005). Resumindo, a ética é o estudo das ações e dos costumes humanos ou análise da própria vida considerada virtuosa. Da necessidade de conviver-se em sociedade, surge a moral, tida como a reunião de regras que são determinantes para o relacionamento dos indivíduos. Assim, quando se indaga o que é correto, aborda-se a ética; a seguir, quando há a ação, questiona-se a moral, uma vez que é referente ao ato em si. Moral quanto as suas raízes etimológicas, tem-se que: mos igual a moral, (mos igual a mores), por sua vez, mores é igual a costume. A moral possui a capacidade de discernir entre o bem e o mal, e de interpretar o valor das condutas e de agir em conformidade com os padrões morais, tornando-se responsável pelas ações, emoções e consequências. (GOLDIM, 2000). Embora sejam usadas frequentemente como sinônimos, a ética e a moral não o são. Pois, a ética estuda, aconselha e até ordena, mas a moral é coexistente, sendo ambas relacionadas a valores e a decisões que levam as ações com todas as suas abrangências para o próprio indivíduo e a coletividade. (ADONI, 2001). Tanto a moral como o Direito baseiam-se em regras que visam estabelecer certa previsibilidade para as ações humanas. Ambas, porém, se diferenciam. A moral estabelece regras assumidas pela pessoa como uma forma de garantir o seu bem-viver. A moral independe das fronteiras geográficas e garante uma identidade entre pessoas que sequer se conhecem, mas utilizam este mesmo referencial moral comum. O Direito busca estabelecer o regramento de uma sociedade delimitada pelas fronteiras do Estado. As leis possuem uma base territorial e valem apenas para aquela área geográfica onde uma determinada população ou seus delegados vivem. Portanto, a ética objetiva desvendar aquilo que o homem ‘deve fazer’. Seu campo é o do juízo de valor e não o do juízo de realidade, ou da existência. Desse modo, o estudo desse comportamento, no que se refere aos profissionais médicos, 34 vai representar o estudo da atuação do profissional médico no que se refere aos seus deveres e direitos, disciplinados de forma exaustiva, no Código de Ética Médica (BRASIL, 1996). 3.3 Bioética A bioética, segundo Jean-Jacques Israel (1998) se propõe a estabelecer a conexão entre a vida biológica e a ética. A manipulação dos instrumentos científicos e o seu consequente emprego na vida humana permitem construir um conhecimento “interdisciplinar, ligado à ética, que investiga, na área das ciências e da saúde, a totalidade das condições necessárias à administração responsável da vida humana, em geral, e da pessoa humana, em particular”. (SAUWEN; HRYNIEWICZ, 2000, p. 21). O biodireito se utiliza, metodologicamente, dos estudos da bioética e da biogenética e constrói um estatuto jurídico regulador das ações que afetem a vida ao privilegiar a ética na condição de vetor primordial da atuação científica. As regras jurídicas devem preservar a dignidade humana contra a ‘coisificação’ do ser humano. Por conseguinte, o estudo da ciência deixa de ser ‘um fim em si mesmo’ e se transfigura um instrumento a favor da integridade dos valores sociais. (SÉGUIN, 2001). A bioética surge como uma preocupação ética aos avanços tecnológicos, especialmente na área da biotecnologia (ciências médico-biológicas), objetivando trazer critérios éticos e morais a cientistas e investigadores, propondo limitações ao progresso científico de sorte a preservar-se a dignidade e a vida humana como prioridades absolutas. Para essas descobertas científicas que relacionam a relação do Homem com a vida, é forçosa a existência de normas que regulamentem a própria liberdade e os limites daquelas condutas que podem ou não ser praticadas. Nesse sentido, Dall’Agnol (2005) observa a necessidade da reflexão sobre o valor da vida para se pensar mais profundamente os problemas da bioética. Por um lado, a ciência não pode ser mitificada como a detentora única da verdade. Por outro, não pode ser condenada como malévola; obscurantismo deve ser evitado. 35 A prática da eutanásia é milenar e conceituada como a morte que alguém proporciona a uma pessoa que padece de uma enfermidade incurável ou muito penosa, e que tem como objetivo abreviar o sofrimento do paciente, ou seja, não visa exterminar humanos, e sim, o respeito ao ser humano, evitando sofrimentos e tortura ao término de sua vida. Além disso, apoia-se nos princípios norteadores da bioética, Autonomia, Beneficência e Justiça, os quais reconhecem a autonomia do paciente terminal e de sua escolha ou não, por uma morte digna. Neste contexto, surge a questão de até quando prolongar a vida de um indivíduo que sofre de uma doença incurável, já no seu estágio final, sem chance de cura? Seria moralmente condenável abreviar essa vida? Com a evolução assustadora das técnicas científicas, a humanidade se viu diante de problemas que ultrapassam os valores fundamentais de utilidade. Em virtude dessa problemática, a Bioética surge como um ramo da filosofia destinado a questões referentes à vida do homem. É a ética da vida, refletindo sobre questões surgidas com o progresso científico. Por não se tratar de uma disciplina isolada, torna-se difícil conceituar o vocábulo bioética, pelo fato de ser interdisciplinar “na medida em que congrega esforços de profissionais ou pensadores de todos os campos do conhecimento humano, no intuito de clarificar até que ponto uma descoberta e suas aplicações podem ou não ferir valores fundamentais”. (SAUWEN; HRYNIEWICZ, 2000, p. 9).Não obstante a natural dificuldade de se estabelecer um conceito unívoco para um termo que se imiscui com outros campos do conhecimento, foi o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter o primeiro a referir-se à bioética quando da publicação, em 1971, de seu livro ‘Bioethics: a bridge to the future’. E o fez com o objetivo de propor um nome “para uma nova disciplina que, ao unir os valores éticos aos fatores biológicos, servisse como ligação entre ambas as culturas”. (CARVALHO, 2001, p. 74). Daí a explicação para a composição grega do neologismo: ‘bio’ representa a ciência dos sistemas viventes, e ‘ethike’, o conhecimento dos sistemas de valores humanos. Etimologicamente, a palavra bioética significa: bio (vida) e ethos (ética), modo de ser. Bioética é o ato correto de lidar com a vida, ou o que deveria ser o correto, podendo, ainda, ter a compreensão das relações do homem com a vida, sob o enfoque das escolhas boas e más, do ponto de vista ético: a reflexão ética do ‘bem’ e ‘mal’, do ‘justo’ e do ‘injusto’. A definição etimológica se apresenta como um 36 elemento fundamental, para esclarecer o que significa bioética enquanto disciplina que estuda questões referentes à vida, a busca pela compreensão sobre o que se entende por bioética atualmente. (GOLDIM, 2000). Maria Berenice Dias (2004) resume bioética em ‘ética da vida’ e apresentando como principal característica, o fato de ser uma ciência interdisciplinar. A bioética, considerada como ponte de encontro entre a medicina e os valores fundamentais de moral e de direito. A bioética impulsiona inúmeras mudanças de paradigmas, até então considerados invulneráveis. A discussão sobre a eutanásia seja jurídica ou não, envolve diretamente a bioética, como medida de freio e contrapeso aos avanços crescentes da medicina. A bioética, em resumo, trata da vida, da natureza, da fauna, e da vida humana à luz dos valores humanos aceitos em uma sociedade democrática, pluralista, secular e conflitiva. Assim sendo, para este trabalho, o que interessa é aquela que se ocupa com o tema referente à vida humana à luz dos valores aceitos em sociedade. A Bioética surgiu em virtude da preocupação da utilização dos conhecimentos médicos na vida dos pacientes. Instituiu-se em 1974 uma Comissão norte-americana visando à proteção dos direitos humanos na pesquisa biomédica que culminou com a publicação, após quatro anos de exaustivos trabalhos, debates e discussões, do chamado Relatório Belmond, que se tornou um verdadeiro guia para a ética da experimentação humana. Esse relatório, com publicação em 1978, estabeleceu pela primeira vez, a utilização sistemática dos princípios vetores da bioética (Autonomia, Beneficência e Justiça). (SANTOS, 1998). Em 1979, o Professor David J. Roy, diretor do Centro de Bioética da Universidade de Montreal, acrescenta uma nova característica ao instituto da Bioética reconhecendo seu caráter interdisciplinar, o que significa a interação de diferentes áreas de conhecimento na procura de soluções. Dela participam diferentes visões atuando profissionais das áreas de saúde, filósofos, teólogos, juristas, sociólogos, economistas, administradores, etc. Além disso, no processo de decisão participam não só médico e paciente, mas sim, toda generalidade de sujeitos e segmentos da sociedade envolvidos, médico, paciente, familiares, outros profissionais, a justiça, a comunidade, etc. (CARNEIRO et al, 1998). 37 Em 1995, aprimorando sua definição de 1978, o professor Waren Reich inclui aspectos de sistematização, interdisciplinaridade e pluralismo como característicos da bioética. Lucilda Selli (1998, p. 43), define os princípios da autonomia, beneficência e da justiça “como princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação em seres humanos, tanto nas ciências do comportamento quanto na biomedicina”. 3.3.1 Princípios da Bioética Levando-se em consideração a relevância das questões surgidas com o avanço tecnológico das ciências em relação à vida, conclui-se que essa mesma tecnologia não é suficiente para responder a muitos questionamentos éticos e morais. De forma sintética, esses princípios elementares da bioética serão abordados a seguir, lembrando, que devem funcionar de forma harmônica, e é a circunstância da ação que decide qual deles deverá ser aplicado. a) Princípio da Autonomia: ou princípio do respeito às pessoas que está intimamente ligado ao conceito de dignidade humana. Diz respeito à capacidade de as pessoas decidirem por si próprias o que lhes parecer melhor. A autonomia, no âmbito da relação médico-paciente, traduz-se no respeito daquele à vontade deste, “bem como a seus valores e crenças. è reconhecido, destarte, o domínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade”. (CARVALHO, 2001, p. 77). A formulação de tal princípio foi influenciada pela ética do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804): as pessoas jamais devem receber tratamento na qualidade de meios para fins de outras pessoas, pois ao homem é legítimo ter direito às suas autonomias. Ser autônomo e escolher autonomamente não é a mesma coisa do que ser respeitado como agente autônomo. Ser respeitado significa ter reconhecido seu direito de autogovernar. O sujeito está autorizado a determinar-se autonomamente, livre de limitações e interferências, onde o sujeito é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais. O princípio da autonomia expressa este respeito. (JUNGES, 1999, p. 41). 38 Kant (apud MORENTE, 1980, p. 257-258) em sua doutrina distinguindo autonomia de heteronomia pregava: “a vontade é autônoma quando dá a si mesma sua própria lei [...] Age de tal maneira que o motivo, o princípio que te leve a agir, possas tu querer que seja uma lei universal.” Vai ao encontro da concepção de que a pessoa deve ter liberdade no sentido de isenção de qualquer influência na tomada de decisão e volitividade no sentido de capacidade de agir intencionalmente. Ser compreendida e tratada como ente autônomo, exasperando-se o dever de cuidado, zelo, diligência e efetiva proteção às pessoas que tenham sua autonomia diminuída. A heteronomia é exemplificada por Kant como o funcionamento da natureza segundo leis alheias à nossa vontade. Nesse mesmo sentido, Rachel Sztajn (1997, p. 28) Para bioética a ideia é que a autonomia significa que um ser humano, exatamente por sua humanidade, não tem poder, e nem deve tê-lo, para impor sua vontade sobre outro ser humano; em outras palavras, segundo os princípios da bioética ninguém, notadamente o médico, deve coagir outrem, o paciente, limitar suas atividades ou impor sobre outrem sua vontade. Essa liberdade e respeito à privacidade estão na raiz da dignidade humana, pois a manifestação autônoma da pessoa, por dispor e regrar os próprios interesses deve estar livre de influências, coação ou pressão externa para produzir os regulares efeitos previstos no ordenamento jurídico. Tal respeito à pessoa é defendido no Relatório Belmont de 1979, afirma Dall’Agnol (2005), onde uma pessoa tem valor, não preço. Aplicando-se esse princípio a uma questão ampla da bioética, ele significa, por exemplo, que qualquer agente é autônomo para decidir se quer continuar a viver em certas circunstâncias ou não. Em suma, as teorias acerca da autonomia concordam quanto à essência que envolve um conceito de liberdade aliado ao de volitividade: Liberdade no sentido de isenção de qualquer influência na tomada de decisão e volitividade no sentido de capacidade de agir intencionalmente. b) Princípio da Beneficência: beneficência, do latim ‘bonum facere’ (fazer o bem), é o princípio ético que remonta ao juramento de Hipócrates (apud VASCONCELOS, 1974, p. 198) (o pai da medicina), que consagra implicitamente esse princípio: “Usarei o poder para ajudar os doentes com melhor de minha habilidade e julgamento; abster-me-ei
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