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PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES EM SAÚDE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Reconhecer a história e a utilização da ayurveda. > Relacionar Charaka Samhita, Susruta Samhita e Ashtanga Hridaya à prática ayurveda. > Aplicar o conhecimento dos doshas na compreensão do indivíduo. Introdução A última década testemunhou muitos fatos marcantes que aumentaram a credi- bilidade do antigo sistema védico de medicina conhecido como ayurveda. Esse sistema indiano apresentou um aumento expressivo em popularidade no Ocidente, com muitos profissionais de saúde da medicina tradicional colocando em prática seu simples e profundo sistema de compreensão de saúde/doença baseado principalmente na função integrada dos três doshas (tridosha). Segundo a medicina ayurvédica, os doshas constituem sistemas de função regulatória, cada qual com sua particularidade. Portanto, trata-se de uma ciência que aborda o conhecimento da saúde e a predisposição à doença com base na compreensão do próprio indivíduo, inserido em um ambiente que muitas vezes prejudica seu estado inicial de equilíbrio. Neste capítulo, você verá como se deu o surgimento e a consolidação dessa ciência milenar e conhecerá os principais tratados médicos que a fundamentam e lhe conferem credibilidade. Por fim, estudará sua forma peculiar de atuação na manutenção e reconstrução do equilíbrio do indivíduo baseado principalmente na teoria dos tridoshas. Ayurveda Ana Paula Vieira Marciano Origem e aplicação da ayurveda Há alguma controvérsia sobre exatamente quando se deu início da prática da ayurveda, mas acredita-se que inicialmente seus ensinamentos foram transmitidos por tradição oral, e não por meio de textos (JAISWAL; WILLIAMS, 2016). Muitos creem que suas origens datam de mais de 5000 anos atrás. A civilização védica no sudeste da Ásia migrou para o sul para criar a ayurveda, enquanto a civilização austral criou a medicina tradicional chinesa. Antigos sábios passaram incontáveis horas meditando juntos, e os con- ceitos da ayurveda tornaram-se conhecido por eles. Acredita-se que a esses sábios eram dadas informações diretamente de Deus. Eram estudiosos da natureza e sentiam que compreendiam a lei natural do universo, incluindo o ritmo humano natural (ciclo circadiano) e a conexão com o mundo. A trans- missão dos conhecimentos da medicina ayurvédica de uma geração para a outra iniciou-se na forma oral. Durante esse tempo, os indivíduos eram analisados como seres únicos que entravam em desequilíbrio quando seus sistemas tornavam-se desconectados da natureza. Manifestações de enfer- midades ocorriam quando a cura natural do corpo era prejudicada. Com o passar do tempo, esse conhecimento foi registrado na forma de texto, tendo como tratado médico principal o Charaka Samhita (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Segundo Payyappallimana e Venkatasubramanian (2016), vaidyas (médicos ayurvédicos) carregaram esse conhecimento consigo e trataram milhares de pacientes segundo esse modelo. As abordagens de tratamento envolviam mudanças na dieta, utilização de ervas, uso de massagens e práticas de pu- rificação. Todas essas formas de tratamento tinham como objetivo equilibrar a fisiologia do indivíduo. Eventualmente, esse conhecimento ayurvédico se espalhou para outras partes do mundo. Em 1835, os britânicos proibiram a ayurveda, promovendo em vez disso o crescimento da medicina ocidental. A ayurveda ainda era praticada silenciosamente e continuou a sobreviver durante esse tempo. Centros ayur- védicos não eram tolerados, e foram, de fato, impedidos de disseminar essa sabedoria antiga. Após a independência da Índia, em 1947, a ayurveda pode lentamente ser praticada novamente e em números crescentes. Finalmente, em 1971, a medicina ayurvédica foi autorizada a fazer parte do sistema de saúde oficial da Índia. A partir dessa época, a ayurveda disseminou-se por diversas regiões, como Europa, Japão, Austrália e Rússia, além da América do Norte e do Sul (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Ayurveda2 Nos dias atuais, a visão da medicina ocidental ainda está fundamentada basicamente no tratamento dos sintomas diagnosticados, mesmo com ações incipientes na prevenção. Ações medicamentosas e procedimentos invasivos são os recursos mais frequentemente utilizados, o que proporciona um alívio quase imediato dos sintomas no indivíduo. Além disso, outras formas como a utilização de medicamentos preventivos atuam no intuito de diminuir a gravidade da doença, bem como aliviar uma sintomatologia aguda. Na contramão da medicina moderna, a abordagem ayurvédica oferece um fundamento mais holístico em detrimento ao modelo clássico. Para a medicina ayurvédica, curar a mente e o corpo requer um protagonismo do indivíduo, para que ele possa atingir seu estado de equilíbrio. Tal feito pode ser alcançado transformando seu estilo de vida e seus hábitos alimentares com o auxílio de ervas. Essa sabedoria milenar oferece uma gama de etapas com o intuito de gerar uma fisiologia mais equilibrada, garantindo a resolução das diversas enfermidades (SEN; CHAKRABORTY, 2015). A ayurveda emprega a crença de que, para prevenir um sofrimento desne- cessário e retardar o processo degenerativo, é necessária uma intervenção por meio de uma orientação nutricional, medicamentos fitoterápicos, terapia de exercícios, meditação transcendental, rejuvenescimento especial e terapias de purificação. Portanto, a ayurveda se concentra no tipo de pessoa e não no tipo de doença, o que faz com que o método seja centrado no paciente (RAO, 2015). Nesse âmbito, o diagnóstico envolve a observação, toque e anamnese do paciente. O exame clínico inclui diagnóstico de pulso, exame de urina, exame de fezes, exame de língua, exame de corpo, sons, exame ocular, exame de pele e avaliação da aparência corporal total. Cabe salientar a importância, no exame clínico, da avaliação da língua, considerada na ayurveda como o espelho das vísceras. A descoloração e/ou sensibilidade de uma área específica da língua indica um distúrbio no órgão correspondente a essa área. Uma língua esbranquiçada indica um distúrbio do dosha kapha e acúmulo de muco; um a língua vermelha ou verde-amarelada indica um distúrbio do dosha pitta; e uma coloração preta a marrom indica um distúrbio do dosha vata (a análise dos doshas será apresentada mais adiante). Recomenda-se raspar a língua todos os dias (SEN; CHAKRABORTY, 2017). O respador de língua e outros utensílios aplicados na medicina ayurvédica são mostrados na Figura 1. Ayurveda 3 Figura 1. Utensílios empregados em procedimentos de limpeza ayurveda: limpador de língua, pílulas fitoterápicas e irrigador nasal. Fonte: Koldunov/Shutterstock.com. O tratamento na medicina ayurvédica aborda quatro etapas principais. A primeira é o shodan, que indica limpeza/depuração do corpo. A segunda é o xamã, que aborda um método paliativo de tratamento, em que podemos incluir a ioga. Como terceira forma, o rasayan está envolvido com os proces- sos de rejuvenescimento do corpo. Por fim, o satwajaya aborda aspectos da nutrição mental e cura espiritual. Um tratamento de limpeza comum utilizado na terapia ayurveda é o método panchakarma. A terapia panchakarma aplica vários processos para o rejuve- nescimento do corpo, depurando-o e, assim, aumentando sua longevidade. O panchakarma é composto de cinco karmas (ações), que são usadas para remoção de toxinas dos tecidos do corpo: o virechan (purgação pelo uso de pós, pastas ou de cocção com ervas); a ação conhecida como vaman (vômito terapêutico induzido pelo uso de alguns medicamentos); o basti, que trata-se de lavagens intestinais (enemas) preparados a partir de óleos medicamento- sos; o rakta moksha (desintoxicação do sangue); e nasya (administração de medicamentos fitoterápicos para decocções, óleos e vapores por via nasal) (SEN; CHAKRABORTY, 2017). Primeiramente, o panchakarma consiste em três etapas: poorvakarma (processo preparatório do corpo para a terapia);pra- dhankarma (processo principal da terapia); e karma paschat (que consiste em etapas a serem seguidas visando restaurar o sistema digestório e outras Ayurveda4 formas de procedimentos de absorção do corpo, na tentativa de retornar para o seu estado normal). Podemos citar vários produtos bastante utilizados na ayurveda que auxiliam nas suas diversas técnicas. A manteiga clarificada (ghee) e óleos medicinais são muito usados no processo de oleação. Há também a sudorese provocada pela exposição ao vapor, em determinadas áreas do corpo, bom como o vômito induzido, ou vamana, ocasionado pela administração de de- cocção de alcaçuz e mel em uma preparação de coalhada e arroz. Acredita-se que essas substâncias são responsáveis pelo aumento do efeito de vômito. Por sua vez, a virechana, ou terapia laxativa, é realizada pela administração de ervas e líquidos como sene, leite de vaca, semente de psyllium e óleo de rícino. Os enemas utilizados no panchakarma podem ser preparados a partir de óleos medicinais ou de cocção de ervas como gergelim ou anis (SEN; CHAKRABORTY, 2015). Na prática, a ayurveda aborda oito disciplinas denominadas ashtanga ayurveda: � kayachikitsa — tratamento envolvendo a medicina clínica; � bhootavidya — tratamento de distúrbios psicológicos; � kaumar bhritya — tratamento pediátrico; � rasayana — estudo da geriatria; � vajikarana — tratamento através de afrodisíacos e eugênicos; � shalya — tratamento cirúrgico; � shalakya — tratamento otorrinolaringológico e oftalmológico; � agada tantra — tratamento toxicológico. A medicina moderna avançou muito com práticas abrangentes de pre- venção, como as grandes campanhas de vacinação, mas essa medicina ainda possui uma abordagem dual (tratamento/prevenção) predominantemente ofensiva para a saúde. Nos últimos 50 anos, observa-se um aumento na incidência e gravidade de doenças crônicas, afetando negativamente a saúde da população. Segundo Jaiswal e Williams (2016) a deterioração progressiva na saúde, de uma maneira geral, gera grandes impactos tanto na economia quanto na degradação ambiental do planeta. Assim, a melhoria em nossa saúde seria crucial para a melhoria da saúde do planeta. Diante desse cenário, apresentaremos alguns métodos utilizados pela ayurveda que contribuem para uma melhor prevenção de doenças e manutenção da saúde. A conexão das faculdades sensoriais (visão, audição, olfato, paladar e tato) e da psique, trabalhando o corpo e a mente, é alcançada pela meditação, Ayurveda 5 pranayama (técnica de respiração) e exercícios de ioga. Estudos demonstram benefícios da meditação na saúde, devido à redução da atividade do sistema nervoso simpático e aumento da atividade do sistema nervoso parassimpá- tico. Além disso, a prática de pranayama contribui para o fortalecimento do sistema imunológico, pois aumenta a capacidade vital dos pulmões, reduz o colesterol e a pressão arterial, diminui a frequência cardíaca e regula as funções das glândulas adrenais (JAISWAL; WILLIAMS, 2016). Outro método refere-se ao equilíbrio dos três doshas para uma boa saúde. Os doshas são princípios reguladores fisiológicos fundamentais do corpo, a serem descritos em detalhes posteriormente no capítulo. O equilíbrio do corpo é alcançado pela purificação diária e sazonal do excesso de dosha. Outra contribuição para manutenção da saúde refere-se ao equilíbrio de agni (responsável pela digestão, metabolismo e transformação). Os estados patológicos estão relacionados a uma diminuição de agni (mandagni). Este é estimulado por uma alimentação orientada, recomendando-se comer alimen- tos quentes, leves e frescos, e somente quando há fome. Podemos estimular o agni com ervas, como o gengibre. Na ayurveda uma boa nutrição abrange sabor, qualidade da alimentação, horários corretos do dia, estação do ano e estado da fisiologia corporal (JAISWAL; WILLIAMS, 2016). Por fim, deve-se garantir que os resíduos da digestão e do metabolismo, em vários níveis, sejam bem excretados. Evacue e limpe as cavidades do corpo regularmente. Em conjunto, todos esses métodos ajudam a estabelecer um estado de equilíbrio corporal. Assim, meditação, pranayama e ioga ajudam a equilibrar os doshas, enquanto o agni e a excreção de produtos residuais levam ao alcance de uma saúde perfeita. Tratados médicos que consolidaram a prática ayurvédica A ayurveda tem suas bases estabelecidas por antigas escolas que ensinavam a filosofia hindu, denominadas vaisheshika, e pela escola de lógica conhecida como como nyaya. A escola vaisheshika pregou sobre inferências e percepções que devem ser obtidas sobre as condições patológicas de um paciente com indicação para tratamento. Por sua vez, a escola nyaya propagou seus ensinamentos com base em que se deve ter um amplo conhecimento da condição do paciente e da sua doença antes do tratamento. A escola vaisheshika classifica os atribu- Ayurveda6 tos de qualquer objeto em seis tipos: substância, particularidade, atividade, generalidade, hereditariedade e qualidade (JAISWAL; WILLIAMS, 2016). Mais tarde, as escolas vaisheshika e nyaya se fundiram, o que permitiu valorizar e disseminar o conhecimento sobre a ayurveda. Mesmo antes dessas escolas serem estabelecidas, a origem da ayurveda era considerada divina. Acreditava-se que o criador do universo transmitira esse conhecimento ho- lístico de cura para os sábios visando o bem-estar da humanidade (JAISWAL; WILLIAMS, 2016). Esse conhecimento milenar foi passado dos sábios para os discípulos e depois para o indivíduo comum por meio de várias escrituras e histórias. As informações sobre as propriedades curativas das ervas foram compostas na forma de poemas, chamados shlokas, usados por sábios para descrever o uso de plantas medicinais. Acredita-se que o sistema hindu de cura foi baseado em quatro distintas codificações de conhecimento (Vedas): Yajur Veda, Rig Veda, Sam Veda e Atharva Veda. O Rig Veda é o mais conhecido de todos os quatro conhecimentos e descreve 67 plantas e 1.028 shlokas. O Atharva Veda e o Yajur Veda descrevem, respectivamente, 293 e 81 plantas medicinais úteis (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). De acordo com os tratados médicos, foi apenas durante o período pós- -védico (800 a.C. a 1000 d.C.) que a antiga medicina indiana começou a se desenvolver e a assumir a forma como é conhecida atualmente. Uma interes- sante história ilustra o encanto e a dificuldade em obter informações precisas sobre esses conhecimentos vedas, assim como em decifrar fatos da prática ayurvédica. Relata-se que durante uma conferência de antigos rishis (viden- tes), foi determinado que alguém deveria obter conhecimentos médicos para curar os muitos males que assolavam a humanidade. Esse conhecimento foi transmitido pelo criador divino Brahma para Daksha, depois para os gêmeos Ashwini e, finalmente, para Indra, Senhor dos Céus. Bharadwaja se ofereceu em missão de trazer as informações necessárias de Indra. Assim, teria sido Agnivesha (cerca de 800 a.C.), um estudante do mestre Purnavasu Atreya, o autor do primeiro tratado ayurvédico indiano (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Portanto, as escrituras Rig Veda e Atharva Veda são atribuídas a Purnavasu Atreya, sendo que esse conhecimento foi editado por Charaka e alguns outros estudiosos. Atualmente esse texto é dividido nos tomos Charaka Samhita, que descreve todos os aspectos da medicina ayurvédica, e Sushruta Samhita, que descreve os aspectos relacionados à ciência antiga da cirurgia. Essas duas lendárias compilações ainda são utilizadas por praticantes da medicina tradicional (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Ayurveda 7 Para nos aprofundarmos nos textos de Charaka Samhita, é preciso discorrer sobre o médico Charaka. Há uma discordância considerável sobre o período durante o qual Charaka viveu, com estudiosos citando de 500 a.C. a 200 d.C. Também pouco se sabe sobre sua biografia. Sugere-se que o nome Charaka foi adotado como uma denominaçãogenérica para médicos errantes. Charaka foi importante por reescrever e editar o texto de Agnivesha, enquanto o pró- prio texto de Charaka foi mais tarde revisado por Dridhbala. Portanto, este tornou-se o tratado médico atualmente disponível como Charaka Samhita. A obra compreende 120 capítulos e é dividida em oito seções. Traduções do texto original em sânscrito para o inglês contemplam mais de mil páginas. O material aborda anatomia, fisiologia, diagnóstico e tratamento (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). No seu tratado, Charaka enfatizou uma abordagem racional da etiologia e do tratamento das doenças e se fundamentou fortemente no exame físico e na observação direta. Ele acreditava que o sucesso nessa área exigia um trabalho em equipe, enfatizando que a habilidade do médico precisava ser complementada por cuidados de enfermagem adequados, intervenções dietéticas e terapêuticas e participação ativa do paciente (RAO, 2015). Charaka introduziu o conceito de digestão, imunidade, metabolismo e características herdadas. Além disso, atribuiu um papel central ao coração e ensinou que o corpo continha 360 ossos (incluindo os dentes). Ele foi muito aceito por propor uma ideia revolucionária: que a prevenção era tão ou mais importante que o tratamento. Além disso, ele acreditava que o tratamento deveria ser personalizado para cada paciente, visto que as condições em que a doença se manifestava variam entre um paciente e outro. O tratado Charaka Samhita foi um marco importante no avanço da medicina indiana antiga, quebrando a crença de que a doença era causada por forças sobrenaturais, exigindo tratamento por meio de orações e rituais. Em vez disso, Charaka acreditava que a doença era causada por fenômenos naturais, não espirituais, e, portanto, eram necessários meios para possibilitar a cura (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Outro tratado médico de suma importância na ayurveda intitula-se Sushruta Samhita, atribuído ao médico indiano Sushruta, considerado o pai da cirurgia indiana, bem como o primeiro cirurgião plástico do mundo. Talvez seja considerado o mais relevante de todos os antigos médicos indianos. Estudou medicina e cirurgia com Divodasa Dhanvantari, rei de Kashi (Vara- nasi), e fundador da ayurveda. Princípios éticos introduzidos no Ocidente por Hipócrates, (médico grego, pai da medicina ocidental) têm grande semelhança com os princípios promulgados inicialmente por Sushruta e, posteriormente, Ayurveda8 por Charaka. Sushruta enfatizou a importância do equilíbrio entre o conhe- cimento teórico e a experiência prática para obtenção de bons resultados (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). O texto atribuído a Sushruta denomina-se Sushruta Tantra, embora não disponível em sua forma original. Posteriormente, foi revisado e expandido por Nagarjuna, no tratado médico que agora conhecemos como Sushruta Samhita. Ele contém capítulos sobre reconhecimento e tratamento de doenças, instrumentos cirúrgicos, procedimentos cirúrgicos e gestão de intoxicações. Tópicos de interesse específico incluem hemorroidas, obstrução intestinal, cuidado de feridas, aplicação de curativos, perfuração do lóbulo da orelha, cirurgia de catarata, cateterismo vesical, uso de sanguessugas, bem como tratamento de mulheres e crianças (SEN; CHAKRABORTY, 2017). Álcool e outros sedativos à base de plantas foram mencionados no texto, cujas utilizações propiciavam o domínio da dor, efeitos de am- nésia e controle do movimento do paciente. Sushruta foi o primeiro médico a defender a fisioterapia para pacientes em recuperação de uma cirurgia. As técnicas descritas por ele foram usadas por cirurgiões britânicos na Índia no século XVIII e por cirurgiões italianos dois séculos antes (SEN; CHAKRABORTY, 2017). Detalhes vitais dos tratados de Charaka Samhita e Susruta Samhita foram compilados e atualizados inicialmente nos textos Astanga Sangraha e poste- riormente no tratado Astanga Hridaya. Este refere-se a outro tratado médico ayurvédico com grande impacto, ao relacionar a interferência ambiental na saúde humana. Postulado pelo médico indiano chamado Vagbhata, autor dos textos médicos Ashtanga Hridaya e Ashtanga Sangraha (MUKHERJEE; VENKATESH; PONNUSANKAR, 2010). Seguidor da escola Charaka, sua obra, junto com as obras de Charaka e Sushruta, são citadas como Brhat Trayi (uma tríade de grandes composições). A composição do Ashtanga Hridaya é condensada e mais focada, sendo os textos mais uma compilação do existente conhecimento da época. Vagbhata rompeu com a tradição da época, questionando os conceitos e ideias por trás dos doshas kapha, pitta e vata. Sua obra enfatizava a importância da higiene pessoal para a boa saúde, e introduziu a importância do combate à poluição, discorrendo sobre o papel dos contaminantes na água dos rios e seus efeitos negativos na saúde. A obra também aborda o preparo de vários antídotos e a elaboração de suas fórmulas, algumas das quais estão em uso até hoje (como a tintura asafetida churna, utilizada contra problemas estomacais) (SEN; CHAKRABORTY, 2017). Particularidades do indivíduo pela óptica ayurvédica Ayurveda 9 A ayurveda acredita que todo o universo é composto por cinco elementos: vayu (ar), jala (água), aakash (espaço ou éter), prithvi (terra) e teja (fogo), referidos em geral como pancha mahabhoota. Pela combinação deles de maneiras variadas formam-se três humores (energias) básicos do corpo humano, vata dosha, pitta dosha e kapha dosha, chamados coletivamente de tridoshas (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). A teoria tridosha define as três energias ou princípios fundamentais que governam as funções básicas de nossos corpos nos níveis físico e emocional. Cada indivíduo tem um equilíbrio único dessas três energias. Algumas pessoas serão predominantes em um dosha, enquanto outras são uma mistura de dois ou mais doshas. Vamos examinar cada um deles a seguir. Os indivíduos do tipo vata dosha são compostos dos elementos ar e éter. Isso significa que possuem qualidades semelhantes a esses elementos. O indivíduo predominantemente vata é muito parecido com o vento — é leve, frio, seco e móvel. No corpo, as pessoas com natureza vata experimentam mais dessas qualidades. Seus corpos tendem a ser leves, seus ossos finos e sua pele e cabelos secos. Eles geralmente se movem e falam rapidamente. Quando desequilibrados, podem perder peso, ter constipação e apresentam fraqueza nos sistemas imunológico e nervoso (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Essas qualidades também se refletem em sua personalidade. Aqueles com uma natureza vata tendem a ser falantes, entusiasmados, criativos, flexíveis e enérgicos. No entanto, quando desequilibrados, também podem ficar facilmente confusos e oprimidos, ter dificuldade em se concentrar e tomar decisões e ter problemas para dormir. Isso fica mais evidente quando eles estão sob estresse. Emocionalmente, são desafiados por emoções frias como preocupação, medo e ansiedade (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Para trazer equilíbrio ao vata, são elaborados programas que enfatizam as qualidades opostas de calor, peso (nutrição), umidade e estabilidade. Na alimentação, isso se reflete no consumo de grãos e vegetais cozidos, bem como na ingestão de leite morno com temperos. Ervas picantes como o gen- gibre, que aumentam o calor interno, e ervas nutritivas como ashwagandha trazem equilíbrio a vata. Os programas ayurvédicos incluem não apenas ervas e dieta, mas também terapias com cores e aroma, desintoxicação, ioga e meditação (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Já as pessoas do tipo pitta dosha são compostas dos elementos fogo e água. Pitta tende a ser quente, afiado e penetrante. Também é um pouco volátil e oleoso. A natureza oleosa de pitta está relacionada ao componente secun- dário da água. Pessoas com uma natureza pitta refletem essas qualidades. Eles tendem a ser quentes e ter pele um tanto oleosa, olhos penetrantes e Ayurveda10 feições marcantes. Também tendem a terpesos moderados e boa musculatura. Quando desequilibrados, tendem a apresentar diarreia, infecções, erupções cutâneas e fraqueza no fígado, baço e sangue (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Essas qualidades também se refletem em suas personalidades. Pessoas pitta tendem a ser comunicadores altamente focados, competitivos, capazes, corajosos, enérgicos e muito objetivos. Emocionalmente, são desafiados pelas emoções acaloradas de raiva, ressentimento e ciúme. Para trazer equilíbrio ao pitta, os programas são elaborados para enfatizar as qualidades opostas de frescor, peso (nutritivo) e secura. Especiarias fres- cas como erva-doce são recomendadas na dieta, junto com alimentos como vegetais crus, arroz cozido e trigo, assim como a maioria dos feijões. Ervas doces como shatavari são usadas para nutrir o corpo, enquanto os amargos, como a raiz do dente-de-leão, temperam o fogo (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Dentro do kapha dosha, há uma predominância dos elementos água e terra. Como esses elementos, kapha tende a ser frio, úmido, estável e pesado. No corpo, essas qualidades se manifestam como ossos densos e pesados, pele lustrosa e flexível, baixo metabolismo e estruturas grandes e atarracadas. Além disso, aqueles com natureza kapha tendem a se sentir relaxados. Quando desequilibrados, os indivíduos kapha tendem a ganhar peso e a apresentar fraquezas nos pulmões e nos seios da face, onde há acúmulo de muco (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). Os elementos água e terra também se refletem na personalidade. A na- tureza pesada e estável de kapha se reflete em uma personalidade estável, que não é propensa a flutuações rápidas. Aqueles com uma natureza kapha lidam muito bem com o estresse, muitas vezes nem mesmo percebendo que ele existe. Não gostam de mudanças, são geralmente conservadores e preferem manter as coisas como estão. Além disso, buscam conforto, o que está relacionado à natureza suave e aquosa de kapha. Muito conforto, no entanto, pode levar à falta de motivação e à sensação de travamento. Quando kapha está desequilibrado, surgem fortes emoções de depressão e letargia (ROTTI; RAVAL; ANCHAN, 2014). A fim de trazer equilíbrio para a natureza kapha, as qualidades opostas de leveza, secura e calor são recomendadas. Essas qualidades são integra- das em programas dietéticos e fitoterápicos, bem como em aromatizantes e cromoterapia, desintoxicação, ioga e meditação. Grãos como quinoa e amaranto são recomendados, bem como especiarias picantes como pimenta caiena. Muitos vegetais e poucas nozes ou laticínios são prescritos. Ervas purificadoras, como dente-de-leão, e outras picantes, como cravo-da-índia, trazem equilíbrio ao kapha. Ayurveda 11 Na ayurveda, acredita-se que o catabolismo do corpo seja governado por vata, o metabolismo seja regido por pitta e o anabolismo por kapha. Para um estado saudável de saúde, um equilíbrio entre os três doshas e outros fatores devem ser mantidos. Para a ayurveda, qualquer desequilíbrio entre os três doshas pode causar um estado de doença ou enfermidade (RAO, 2015). Na medicina ayurvédica, um perfeito equilíbrio entre os elementos da natureza e as tridoshas no corpo humano deve ser mantido para garantia de um estado saudável de vida. Além dos doshas, outros importantes fato- res considerados na doutrina ayurveda são os tri malas e trayodosa agni. Tri malas são os três tipos de resíduos formados no corpo devido às suas funções metabólicas e digestivas: mutra (urina), purisa (fezes) e sveda (suor) (SEN; CHAKRABORTY, 2017). A ayurveda explica que, se o equilíbrio entre os tridosha não forem man- tidos, os resíduos do corpo não serão efetivamente eliminados, o que leva a complicações adicionais, como diarreia, constipação, asma, artrite reumatoide e outras complicações. Se o mutra mala (urina) não for removido do corpo, pode causar infecções do trato urinário, cistite e dor gástrica. Se o sveda mala não é eliminado do corpo, pode causar irritação na pele, problemas e equilíbrio inadequado de fluidos. De acordo com os princípios de ayurveda, o fogo biológico do corpo para todos os processos com funções metabólicas é chamado de agni. Existem 13 categorias de agni em um corpo humano, sendo o mais importante aquele responsável pelo fogo digestivo, chamado de jatharagni. Jatharagni tem uma relação próxima com pitta e finalmente com vata do corpo. Quando o fogo digestivo do corpo é intensificado pelo aumento das condições de acidez, a elevação dos níveis de pitta e seus sintomas relativos são observados. O fogo digestivo é importante no controle da microflora normal, funções digestivas adequadas e fornecimento de energia para todo corpo. Qualquer perturbação no seu equilíbrio cria desconforto para o trato gastrointestinal e resulta em complicações patológicas como úlceras, diarreia e constipação (SEN; CHAKRABORTY, 2017). Para determinar a constituição de uma pessoa, um especialista clínico em ayurveda conduz uma consulta de aproximadamente duas horas, exami- nando cada aspecto da pessoa. Essa avaliação física, emocional e espiritual identifica o equilíbrio das energias no corpo do indivíduo, bem como as áreas de desequilíbrio. Uma vez que a natureza da pessoa e o desequilíbrio são identificados, o especialista clínico em ayurveda pode então montar um programa de tratamento envolvendo dieta e ervas apropriadas, aromas, cores, ioga e meditação, com o objetivo de restaurar ou manter o equilíbrio. Ayurveda12 Portanto, considerando a constituição corporal, a história patológica, as características dos doshas, o estilo de vida e as condições ambientais com a rotina do indivíduo, a ayurveda tem muitas estratégias de tratamento visando promover seu bem-estar. Assim, fica claro que a ayurveda apresenta inúme- ras contribuições no campo da ciência, incluindo diversos utensílios (óleos e ervas) e métodos (pradhankarma) para garantia de um corpo harmônico. Associado a isso, a medicina ayurvédica propõe uma base que lhe confere sustentação e credibilidade científica — a teoria do tridosha (vata, pitta e kapha). Essa teoria fundamentalmente traz a ayurveda para o campo da aplicação clínica, ao oferecer um formato compreensível para sua utilização na causa da saúde humana. Vimos que a aplicação correta dessa teoria, que preconiza o funcionamento fisiológico do corpo vivo, garante o equilíbrio dos três doshas e contribui para a ideia ayurvédica da relação saúde/doença em um sentido mais amplo. Diante desse cenário, a ayurveda marcou o início de uma nova era, com uma maior receptividade à medicina oriental. Suas práticas complementares deram vida a uma visão integral de saúde, com uma abordagem orientada para um sentido mais amplo de cura, que visa tratar o corpo, a mente e o espírito, buscando a qualidade de vida total. Associado a isso, os princípios ayurvédicos promovem atitudes positivas como melhorias nas relações entre médico e paciente, combinadas a tratamentos convencionais e terapias complementares com segurança e eficácia cientificamente comprovadas. Referências JAISWAL, Y. S.; WILLIAMS, L. L. A glimpse of Ayurveda - The forgotten history and prin- ciples of Indian traditional medicine. J Tradit Complement Med., v. 28, n. 7, p. 50-53, 2016. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5198827/. Acesso em: 18 dez. 2020. MUKHERJEE, P.; VENKATESH, P.; PONNUSANKAR, S. Ethnopharmacology and integrative medicine — let the history tell the future. Journal of Ayurveda and Integrative Medicine, v. 1, n. 2, 2010. Disponível em: https://link.gale.com/apps/doc/A231482263/AONE?u=ca pes&sid=AONE&xid=cbe95796. Acesso em: 18 dez. 2020. PAYYAPPALLIMANA, U.; VENKATASUBRAMANIAN, P. Exploring Ayurvedic Knowledge on Food and Health for Providing Innovative Solutions to Contemporary Healthcare. Front. Public Health, v. 4, n. 57, 2016. Disponível em: https://www.frontiersin.org/ articles/10.3389/fpubh.2016.00057/full. Acesso em: 18 dez. 2020. RAO, G. Integrative approach tohealth: Challengesand opportunities. 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Revival, modernization and integration of Indian traditional herbal medicine in clinical practice: Importance, challenges and future. Journal of Traditional and Complementary Medicine. v. 7, n. 2, p. 234-244, 2017. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28417092/. Acesso em: 18 dez. 2020. Leituras recomendadas MARKLE, W. A. Compreendendo a saúde global. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. PORTER, M. E. Repensando a saúde: estratégias para melhorar a qualidade e reduzir os custos. Porto Alegre: Bookman, 2007. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Ayurveda14
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