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TÓPICOS AVANÇADOS DA TEORIA LITERÁRIA Alessandra Bittencourt Flach Estrutura do texto literário em prosa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer os elementos que compõem a estrutura do texto literário em prosa. � Analisar as diferentes formas de construção do texto literário em prosa. � Relacionar a estrutura do texto literário ao gênero textual no qual se manifesta. Introdução Neste capítulo, você vai estudar o texto literário em prosa. Muitas vezes, a palavra “prosa” é tida como sinônimo de “narrativa”, já que muitos textos em prosa contam uma história, uma aventura, ainda que não se limitem a esse tipo textual. Como você vai ver, a prosa é um dos meios pelos quais uma história é contada. Também é comum a oposição entre prosa e poesia. Porém, basta um breve olhar sobre a literatura contemporânea para perceber que os limites entre uma e outra estão cada vez mais tênues. Na leitura de um romance, de um conto ou mesmo de um texto ensaístico, as histórias envolvem os leitores de tal modo que eles pouco refletem sobre como determinadas obras se constituem ou que estra- tégias são utilizadas pelo autor para atingir os efeitos pretendidos. No entanto, há todo um esforço criativo por trás de um texto literário, seja ele qual for, tenha ele a extensão que tiver. O autor, em sua liberdade de composição, determina a forma e os sentidos de seu objeto. Para isso, emprega esforço, talento e conhecimento, por um lado; e, por outro, recorre a conceitos clássicos e comumente aceitos sobre que elementos utilizar para atingir os seus propósitos. Ou seja, por maiores que sejam a criatividade e a engenhosidade, ainda assim existem elementos estru- turantes que servem de referência para a composição artístico-literária. E é justamente um desses elementos — a prosa — que você vai estudar neste capítulo. Você vai aprender sobre as estruturas do texto literário em prosa e sobre as muitas manifestações dessa categoria em gêneros literários distintos. Texto literário em prosa Tendo em vista que o propósito aqui é pensar a literatura, convém iniciar com uma importante observação: é possível identificar uma prosa ficcional e uma prosa não ficcional. Aqui interessa, obviamente, o primeiro tipo. Mas você sabe o que é um texto em prosa? Um texto em prosa, de modo amplo, é aquele no qual a disposição das palavras e das frases se dá de maneira contínua, ocupando até o final da linha e continuando na linha seguinte. As ideias são reunidas em parágrafos e articulam-se por meio de certa reprodução do modo de falar. A metrificação e o ritmo regular não são o aspecto mais evidente. Segundo o crítico Salvatore D'Onofrio (2007, p. 27), “[...] se o espaço gráfico o permitisse, um conto ou um romance poderia ser escrito numa linha única”. Trata-se, portanto, de uma definição formal. Associado a outros elementos, o distintivo prosa configura um conjunto de características que compõem diversos gêneros narrativos — a prosa de ficção. Assim como a poesia, a prosa de ficção tem uma função poética, no sen- tido de que vai além da mera informação ou da linguagem cotidiana. Há um trabalho artístico sobre a linguagem que a distingue da conversa coloquial, por exemplo. A predominância do verso está fortemente relacionada à divulgação oral, à recitação, à música. A métrica regular e a sonoridade favorecem a memorização. A prosa, por sua vez, como você pode notar na evolução dos gêneros, tende à leitura silenciosa e individual. Você já deve ter ouvido falar em “dedo de prosa”, “prosaico” e “prosador”. Os sentidos populares dessas expressões remetem à conversa informal, ao causo, aos diálogos cotidianos. E há certa relação entre a prosa enquanto conversa e a estrutura literária em prosa. Estrutura do texto literário em prosa2 Observe os exemplos de textos literários a seguir. Eles se diferenciam um do outro, entre outros aspectos, pela organização em prosa e em verso. Note o aproveitamento da página em cada caso, bem como a descrição da mulher apresentada em cada obra — de forma detalhada e minuciosa no primeiro caso; de forma sintética e metafórica no segundo. Prosa No limiar da porta entreaberta estava ela de pé. A luz indecisa que vinha da janela ficava exatamente em frente à porta, e iluminava aquela figura com uma luz baça. Era uma criatura pálida, franzina, descarnada; apenas uma blusa e uma saia cobrindo uma nudez trêmula e gelada. Como cinto usava um barbante, como penteado uma fita; tinha os ombros pontudos descobertos, uma palidez loura, linfática, clavículas cor de terra, mãos vermelhas, boca entreaberta e triste, alguns dentes de menos, olhos ternos, ousados, baixos, forma de jovem abortada, olhar de uma corrompida; cinquenta anos e quinze anos misturados; um desses seres ao mesmo tempo frágeis e horríveis, que fazem estremecer os que não fazem chorar (HUGO, 2017, p. 992). Verso Pálida à luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar, na escuma fria Pela maré das águas embalada! Era um anjo entre nuvens d'alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! (AZEVEDO, 2007, p. 131). 3Estrutura do texto literário em prosa O texto literário em prosa tende a projetar o formato da linguagem cotidiana. Por isso, durante muito tempo na história da literatura, esse formato foi consi- derado secundário em relação ao texto em verso. O texto em verso foi tido, por certo período, como a “verdadeira” arte da palavra. Com o tempo, foram surgindo obras escritas em prosa que passaram a se destacar por seu valor estético, mesmo criando uma estrutura textual mais próxima daquela do texto não literário. Na Poética de Aristóteles, obra essencial para a teorização da literatura, pode-se perceber a ausência do texto literário em prosa. A literatura é tida como sinônimo de poesia (poiésis, no sentido de criação). Assim, as distinções propostas entre os gêneros do discurso envolvem diferenças entre tipos de versos. A ausência do verso, ou seja, o texto em prosa, ou uma forma diversa daquela utilizada para compor os gêneros clássicos, eram, para Aristóteles, um problema ainda a ser debatido: “A arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrificadas, estas seja com variedade de metros combinados, seja usando uma só espécie de metro, até hoje não recebeu um nome” (ARISTÓTELES, 2005, p. 19). Ao definir epopeia, tragédia e comédia, Aristóteles vai além da distinção dos versos e da métrica próprios a cada gênero. Considera o assunto, os atores/ personagens, o propósito, o meio de divulgação. O texto em prosa desenvolve-se a partir desses elementos, desdobrando-se em gêneros literários distintos, ainda que com a predominância de uma organização formal característica a todos — a prosa. Categorias do texto literário em prosa Para além da mera distinção gráfica e estrutural entre texto escrito em prosa e texto escrito em verso, você deve perceber que a poesia, de modo geral, está associada à expressão do “eu”, a uma estreita relação entre sujeito e objeto. Já na prosa, nota-se um distanciamento entre o sujeito e o objeto, um interesse por outras realidades. O propósito é narrar ou descrever uma sucessão de eventos no tempo e no espaço. Daí a importância do conceito de verossimilhança, da lógica interna do texto, ou seja, de criar uma impressão de realidade, mesmo que ficcionalmente. O leitor deve aceitar o texto como uma representação lógica possível (mesmo que inexistente na realidade). A prosa literária assume a forma predominante da narrativa, a qual, por sua vez, expressa-se em gêneros como romance, conto, novela, crônica, ensaio literário e teatro. Como você já viu, um texto em prosa pode desdobrar-se em muitas formas, dependendo do objetivo do autor ou, até mesmo, da época em que é escrito. No entanto, existem algumas categorias comuns a todos os textos literáriosem prosa. É elas que você vai ver a seguir. Estrutura do texto literário em prosa4 A epopeia é um gênero literário escrito originariamente em versos. Porém, apresenta uma estrutura narrativa. A palavra epos indica uma forma métrica — o verso hexâmetro, próprio para a recitação. Uma epopeia conta a história de deuses e heróis e tem um propósito exaltatório bem evidente. Isso é percebido nas epopeias de Homero — Ilíada e Odisseia — e também na epopeia portuguesa de Camões — Os lusíadas. Os gêneros literários em prosa têm relação com o aspecto narrativo da epopeia, sendo uma espécie de “versão moderna” desta. Enredo Essa categoria abrange a história ficcional a ser contada, a ação. Os eventos ficcionais são narrados a partir de uma organização própria — enredo, intriga ou trama. Em geral, evidencia-se um conflito e o desenvolvimento das ações (complicadores) para resolvê-lo (desfecho). É importante você notar que o modo como a história é contada deve estar a serviço da verossimilhança, como já referido. Daí a importância das relações entre os acontecimentos e a lógica interna do enredo, ou seja, a credibilidade. O modo como as ações se articulam e se revelam evidencia maior ou menor tensão, impactando diretamente a recepção do leitor. Foco narrativo Um dos elementos essenciais do texto em prosa é o foco narrativo, o ponto de vista a partir do qual a história é contada. Há muitas opções. A escolha depende do efeito pretendido pelo autor. A história pode ser contada por uma personagem (principal ou secundária), por um narrador onisciente, por um narrador intruso, que comenta/explica/direciona a história. Pode haver ainda compartilhamento de narradores, com focos narrativos diversos. Na categoria discursiva, também estão incluídos elementos como a linguagem empregada, as figuras de estilo, a estrutura sintática, o léxico e a confluência de tipos textuais diferentes. Personagens Tal categoria implica definir quais são os atores da narrativa, as suas funções, o seu modo de ser, os seus pensamentos, as suas características físicas e psi- cológicas. Conforme o caso, privilegia-se a descrição física ou a psicológica. As personagens podem ser apresentadas pelo viés do narrador, delas próprias 5Estrutura do texto literário em prosa ou de outras personagens. Nessa categoria, percebe-se, ainda, uma escolha do autor em relação à densidade e à profundidade das personagens — se estereotipadas (tipos sociais) ou densas, complexas, contraditórias, intensas. Tempo A categoria descritiva de tempo e espaço é fundamental para construir, aos olhos do leitor, a situação narrativa. Em relação ao tempo, você deve considerar o tempo do escritor, ou seja, a época em que ele vive. O escritor é um sujeito histórico e, assim, em maior ou menor grau, seu contexto influencia a sua obra. Do mesmo modo, o tempo do leitor (que não precisa coincidir com o do autor) certamente impacta o seu modo de ler e compreender o texto. Por fim, o tempo da narrativa, ou do discurso, é aquele no qual se desenvolve a narrativa. Pode ou não coincidir com o tempo do autor e/ou do leitor. O tempo da narra- tiva (interno à narrativa) pode ser cronológico, apresentando uma sequência linear de eventos, ou psicológico, caso em que há uma distorção do tempo sequencial. As categorias na prática Para compreender melhor as categorias do texto literário em prosa, considere o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nele há um narrador em primeira pessoa extremamente tendencioso (foco narrativo), que busca contar o seu passado de modo a comprovar a sua teoria de que fora traído pela esposa, Capitu, e pelo melhor amigo, Escobar (enredo). Para tanto, o narrador emprega, muitas vezes, os discursos religioso e jurídico, a fim de convencer o leitor de sua tese sobre o adul- tério. O tempo predominante da história é o cronológico. O narrador-personagem, um homem de meia-idade, vai descrevendo a sua infância, a sua adolescência e a sua vida adulta. Nesse processo, descreve os lugares onde viveu e as sensações decorrentes de sua memória afetiva. As personagens relacionam-se entre si de modo bastante intenso, evidenciando a complexidade das relações interpessoais. No trecho a seguir, você pode constatar a genialidade do autor ao organizar a narrativa com o intuito de criar dúvida e desconfiança em relação ao que é narrado. Para isso, o narrador busca o diálogo com o leitor, o que mostra a organização discursiva do romance. Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convindo à cons- trução ou reconstrução de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria com muito gosto alguma bela ação contemporânea, se me Estrutura do texto literário em prosa6 lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade (ASSIS, 2008, p. 234). É evidente que a escolha por um narrador em primeira pessoa, que se diz “vítima” de uma traição, que compõe a narrativa a partir de flashbacks e que, em tese, tem o conhecimento de tudo o que aconteceu, impacta o efeito de sentido que a obra pretende. Fato é que, pelo modo como o ro- mance é construído, tem provocado incansáveis debates sobre a traição de Capitu (fato este que jamais será esclarecido, uma vez que a ambiguidade e a dúvida são a intenção do autor). Em caráter hipotético, considere o quanto o sentido da obra mudaria se o foco narrativo fosse outro — um narrador em terceira pessoa, que não comenta os fatos e é neutro, em uma narrativa linear. A articulação dessas categorias, como prova Machado de Assis, é que estabelece a grande distinção das obras literárias, a despeito de serem igualmente escritas em prosa. Gêneros literários em prosa Você já viu previamente o que é a prosa e quais são as suas categorias. Tam- bém viu que o texto em prosa possui vários arranjos, os quais podem levar à formação de diferentes gêneros literários. Você deve notar, no entanto, que cada vez mais, na literatura contemporânea, perde espaço uma definição estanque e definitiva desses gêneros. Para fins didáticos e para melhor compreensão, a conceituação de gêneros literários precisa considerar certa predominância de formas e usos da linguagem literária. Porém, a criação estética não pode ser conformada a um modelo ou regra. A definição clássica de gêneros literários orienta-se a partir da origem lírica, épica e dramática e de seus desdobramentos ao longo do tempo, como você pode ver no Quadro 1. Fonte: Adaptado de Steiger (1972). Lírica Recordação, emotividade e fusão entre sujeito e objeto. Soneto, ode, balada e vilancete. Épica Narração e distanciamento entre sujeito (narrador) e objeto (ação). Epopeia, romance, conto, novela e crônica. Drama Representação e ações apresenta- das pelas personagens. Tragédia, comédia, farsa e auto. Quadro 1. Divisão clássica entre os gêneros literários 7Estrutura do texto literário em prosa A partir do Quadro 1, você pode perceber que a noção de gênero literário envolve não apenas uma estrutura e uma organização das palavras no texto (verso, prosa), mas também diz respeito ao modo como se dá a relação entre o sujeito e o objeto. Em outras palavras, ao optar por determinadas construções e representações do objeto, o autor define o gênero por meio do qual expressa as suas ideias. O texto em prosa, em linhas gerais, está associado à narrativa. Envolve tanto a prosa de ficção — englobando romance, conto, novela e crônica, ba- sicamente — quanto o teatro. Como o teatro é um gênero que implica outros elementos e meios além do texto literário (é uma produção a priori pensada para a encenação, para o espetáculo), aqui você vai se aprofundar no primeiro grupo, o da prosa de ficção. Você vai ver, então, como as categorias narrativas se articulam a fim de constituir gêneros literários distintos. Mais uma vez, no entanto, vale reforçar a riqueza do texto literário e a liberdade de criação, a ponto de haver,frequen- temente, a desconstrução de modelos. Definição O romance é uma forma narrativa que tem o indivíduo e os seus conflitos como foco (ao contrário da epopeia, que narra grandes feitos de um herói e seu povo). Trata-se de uma forma literária que possibilita muitas variações de temas, enredos, focos narrativos, personagens. Desde o seu surgimento, na Idade Média, até hoje, o romance passou por várias transformações — da temática mais histórica à mais introspectiva. Permanece, porém, a articulação entre enredo, foco narrativo, personagens, tempo e espaço. Compare, por exemplo, os trechos a seguir, que são as linhas iniciais de dois romances dis- tintos: respectivamente, Memorial do convento, de José Saramago, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Como você vai ver, as opções narrativas implicam efeitos completamente diferentes. D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, provavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia. Que caiba a culpa ao rei, nem pensar, primeiro porque a esterilidade não é mal dos homens, das mulheres sim, por isso são repudia- das tantas vezes, e segundo, material prova, se necessária ela fosse, porque abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora a procissão vai na praça (SARAMAGO, 2011, p. 11). Estrutura do texto literário em prosa8 Agora veja o início de Grande sertão: veredas: — Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço; gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu —; e como máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar (ROSA, 2001, p. 23). Ainda que os textos tenham sido escritos sob a mesma categoria (romance) e em época próxima (Memorial do convento foi publicado pela primeira vez em 1982; Grande sertão: veredas, em 1956), as escolhas narrativas feitas em cada um deles — o discurso, a linguagem, o foco narrativo, o tempo — evidenciam a amplitude de formas do gênero. Enquanto um escritor escolhe uma narrativa histórica, o outro escolhe o tempo presente; enquanto um segue uma estrutura sintática convencional, o outro opta pela desconstrução dessa mesma estrutura; enquanto um escolhe um foco narrativo em terceira pessoa, onisciente, o outro dá voz à personagem. As mesmas categorias são compartilhadas pelo conto, porém de forma mais sintética, em extensão mais breve. Ao contrário do romance, o conto não abrange a totalidade do conflito do indivíduo, mas um momento, um flash representativo do todo. Descartam-se, portanto, as análises muito minuciosas por parte do narrador, bem como a narrativa lenta e os enredos muito com- plexos. No conto de Machado de Assis “Ideias de canário”, tem-se a suposta conversa entre um canário metido em filosofias e o seu dono. Ambos discutem o que consideram ser o mundo. Em certo momento, o canário desaparece. O seu retorno e o desfecho do conto se dão de forma bastante rápida e objetiva, retomando vários pontos previamente abordados no conto: — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular... — Que jardim? Que repuxo? — O mundo, meu querido. — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior... — De belchior? Trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior? (ASSIS, 1990, p. 69). 9Estrutura do texto literário em prosa O gênero novela, em termos de extensão, é intermediário — com uma história não tão desenvolvida e detalhada como é possível no romance, mas também não tão sintética e pontual como no conto. De forma recorrente, na novela, há uma série de pequenas histórias “encaixadas” em uma macrofábula. Portanto, em uma estrutura menos definida e mais aberta que o romance (que, necessariamente, precisa construir o início, o meio e o fim). A mesma lógica é seguida pelas novelas televisivas, em que personagens entram e saem da história sem grande impacto para a obra como um todo. Um bom exemplo de novela é Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Nela, um grupo de amigos, reunidos em uma taverna, compartilha histórias e experiências de bebedeiras e aventuras sexuais (macrofábula). Cada capítulo destina-se ao relato (um tanto fantasioso) de cada um dos amigos (histórias “encaixadas”). Por fim, tem-se a crônica literária (em oposição à crônica histórica, poli- cial, esportiva, política). Trata-se de uma forma curta, amparada ou não em um fato real, em uma notícia, mas que transcende o simples registro cronológico do tempo do autor. Ela evidencia um olhar poético sobre o tempo, sobre um fato, sobre um episódio do cotidiano, sobre um tipo social. Também é recorrente que o ato de escrever seja o próprio tema da crônica. O meio de divulgação primário — jornais e revistas — é outro aspecto que costuma caracterizar a crônica. A seguir, leia um trecho de A última crônica, de Fernando Sabino. A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. [...] (SABINO, 2007, p. 188). A prosa poética Você ainda deve atentar a um último ponto: a prosa poética. Na medida em que as disposições dos gêneros literários e as suas categorias não são estanques, o ficcionista pode explorar os seus limites, “brincar” com o texto. Visualmente, é fácil perceber se um texto literário é escrito em prosa ou verso. Essa distinção, porém, não é definidora da poesia ou da prosa de ficção. Estrutura do texto literário em prosa10 Antes de mais nada, observe o trecho a seguir, retirado do romance O vendedor de passados, do escritor angolano Eduardo Agualusa (2004, p. 178): Então, como num bailado lento: Ângela atravessa a cozinha, passa rente à mesa, com a mão direita recolhe a pistola, com a mão esquerda afasta Félix, aponta ao peito de Edmundo e dispara. Tanto pela extensão quanto pela clara presença das categorias que defi- nem o romance — enredo linear, sequenciamento de ações no tempo e no espaço, narrador em terceira pessoa, personagens —, não há dúvida quanto à composição do livro. É um romance. No entanto, no trecho citado, você pode perceber que o autor busca criar um efeito impactante em sua obra, chamando a atenção do leitor. E como ele faz isso? Incluindo um trecho em verso, que se diferencia, em termos de metro e ritmo, do restanteda obra. Se considerado como um texto autônomo, desvinculado do resto, esse trecho seria classificado como poesia, pois predominam aí as características líricas. Mesmo sem a rigidez formal, se percebem a disposição gráfica de verso (inclusive com aproveitamento do espaço da página, que é uma tendência contemporânea da poesia), o paralelismo (“com a mão”), as repetições fônicas, as imagens. Inclusive, essa organização métrica cria a sensação de imagem vagarosa, como se fosse uma cena filmada em câmera lenta. Além disso, o destaque para a imagem da personagem em ação — Ângela — gera outra ruptura com as estruturas literárias convencionais. A poesia, tradicio- nalmente, esteve sempre associada ao belo, aos temas elevados. O romance, ao trivial, ao comum. Porém, o lirismo aqui está justamente no ato de violência. Há um contraste entre o movimento delicado (bailado) e a ação brutal (disparo da arma). Claro está, e o escritor Eduardo Agualusa acaba de mostrar, que, para além da simples divisão gráfica e sintática entre prosa e poesia, outros aspectos se articulam para construir o efeito do texto literário. Quando esses elementos se fundem, há a chamada prosa poética. E são esses processos que despertam a atenção e o interesse do leitor. 11Estrutura do texto literário em prosa AGUALUSA, E. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELS; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 2005. ASSIS, M. de. Dom casmurro. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. ASSIS, M. de. Ideias de canário. In: ASSIS, M. de. Páginas recolhidas. Rio de Janeiro: Garnier, 1990. AZEVEDO, Á. Soneto. In: SIMPSON, P.; MARQUES, P. (Org.). Antologia da poesia romântica brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Lazuli Editora, 2007. D´ONOFRIO, S. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007. HUGO, V. Os miseráveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. t. 1. ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SABINO, F. A última crônica. In: SANTOS, J. F. (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. SARAMAGO, J. Memorial do convento. 41. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. STEIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972. Leituras recomendadas ABDALA JÚNIOR, B. Introdução à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995. AZEVEDO, Á. Noite na taverna. Porto Alegre: L&PM, 1998. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DUCROT, O.; TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. GANCHO, C. V. 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