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RIBEIRO_RecordarFoucault

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L~~_~ 
• Ao Leitor sem Medo - Hobbes escrevendo contra o seu 
tempo - Renato Janine Ribeiro 
• Crime, Violência e Poder - Paulo Sérgio Pinheiro (org.) 
• Elegia Erótica Romana - Paul Veyne 
• Escritos Indignados - Paulo Sérgio Pinh~iro 
• Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko 
• Nietzsche Hoje? - Scarlett Marton (org.) 
• A Ordem Médica - Jean Clavreul 
• Passeios ao Léu - Gérard Lebrun 
• Pornéia - Aline Rousselle 
• Repressão Sexual - Essa nossa (deslconhecida - Marilena 
Chauí 
• Sade, Meu Próximo - Pierre Klossowski 
• Terra Sem Mal - O profetismo tupi-guarani - Hé/(me C/astres 
Coleção Primeiros Passos 
• O que é Poder - Gérard Lebrun 
Coleção Tudo é Hist6ria 
• A Etiqueta no Antigo Regime - Renato Janine Ribeiro 
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Renato Janine Ribeiro (orlo) 
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Recordar Foucault 
Os textos do Colóquio Foucault 
0111 °Vi f ~ 
j 1985 
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Copyright © dos Autores 
Capa: 
João Baptista da Costa Aguiar 
Revisão: 
José W. S. Moraes 
Lenilda Soares 
Mârcia Copola 
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Editora Brasiliansa S.A. 
R. General Jardim, 160 
01223 - São Paulo - SP 
Fone (011) 231-1422 
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I'C'" IV 
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Lomce~ ____ ~ ________ _ 
Apresentação - Renato Janine Ribeiro. . . . . . . . . . . . .. . 7 
Transgredir a finitude - GérardLebrun' .. . ; :0_. . • •• • • • 9 
O discurso diferente-RenatoJanine Ribeiro . ... ; ... 0 •• - 24· 
Foucaultleitor de Nietzsche - Scarlett Marton ........ 36 
Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus 
limites - Pie"e Macherey ..................... 47 
A corporeidade outra -José Carlos de Paula Carvalho .. 72 
Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanãlise -
RenatoMezan ... ;'........................... 94 
A loucura antes da história -JoãoA. Frayze-Pereira . . .. 126 
História e doença: a partitura oculta (A lepra em São 
Paulo, 1904-1940) ....,.italoA. Tronca .............. 136 , 
O Alienista de Machado,de Assis: a loucura e a hipérbole 
-Luiz Dantas ... _ ... :' .... _ . : .. ' ... ': ..... '. ' .. '. '. '144 
.. A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e 
Isolda -Hilário FrancoJr . ..................... 153_ 
Charles Baudelaire: o discurso em desordem - Nicolau 
Sevcenko . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 186 
O lugar das instituições na sociedade disciplinar - Salma 
TannusMuchail .......... _ ................... 196 
Genealogia e política - Antonius Jack Vargas Escobar .. 209 
De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil-
L. Margareth Rago ........................... 219 
O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial -
SilviaHunoldLara ............................ 229 
..J 
rf 
Foucault: levantamento bibliográfico de artigos e perió-
dicos - Márcia C. Sampaio Ferraz, Vera Lúcia Jun-
queira, Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunice do Vale 239 
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~. ",,". ". " \.. ~; ",I 
l 1.~". _ 'i., W : :~f~ 
ApresentaçãoOL.. _____ _ 
Michel Foucault faleceu em junho de 1984. Estava em 
plena produção intelectual, e sua morte foi muito sentida -
inclusive no Brasil, onde, das vezes em que esteve, deixou 
amigos, admiradores e idéias. Em São Paulo, especialmente, 
lecionou duas vezes no Departamento de Filosofia da USP, 
uma em 1965, na rua Maria Antônia, outra em 1975, já na 
Cidade Universitária - interrompendo este segundo curso em 
protesto contra atos de repressão policial. Também deu con-
ferências, acorridas, no Rio de Janeiro. 
Para lembrá-lo, O Departamento de Filosofia da USP 
promoveu um Col6quio sobre a sua obra e os seus temas, de 
15 a 20 de abril de 1985, com O apoio da FAPESP e da Bra-
siliense Produções Culturais. Este volume publica parte dos 
trabalhos apresentados ao Col6quio Foucault, que teve a par-
ticipação de quarenta pesquisadores, comunicando-se seus 
interesses, discutindo suas inquietações. 
Recordar Foucault, para n6s, não é porém pagar uma 
dívida da instituição com O visitante: é marcar a nossa proxi-
midade de um pensamento que não nos proporcionou apenas 
conhecimentos, infundiu-nos, também, inquietações - que 
são a consciência de nossos desconhecimentos. Não é esta uma 
velha obsessão filos6fica, a de saber-se que não se sabe? De 
S6crates a Hobbes, a Merleau-Ponty, entre tantos outros, a 
paixão de conhecer esteve ligada a uma depuração, a um des-
prendimento; a douta ignorância, os elogios da curiosidade e 
dafilosofia marcam uma ascese - que é um processo de vida. 
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8 APRESENTAÇÃO 
Este moto perpetuo da curiosidade, que consiste em desfazer 
as figuras que se construiu, desfazê-las com tanto rigor quan-
to se pôs em edificá-las, é um dos sentidos fortes, para n6s, do 
que é pensar. Há, certamente, muitos estilos de pensamento e 
filosofia; neste proprio livro aparecem vários, distintos; mas a 
cercania que temos de Foucault está neste amor a um pensa-
mento que, como o de Heidegger (O que significa pensar?), 
jamais se reduziu à mera razão, a um trabalho de obra que 
nunca restringiu a descoberta em favor da exposição, neste 
amor, enfim, à descoberta que faz e desfaz. Pudéssemos n6s, 
antes de passarmos às falas sobre Foucault, fazer nossas as 
frases dele, perto de morrer, na bela página em que resume o 
que entendeu por filosofia: 
O motivo que me impulsionou [a escrever este livro] foi muito 
simples. Para alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente 
por ele mesmo. É a curiosidade - em todo caso, a única espé-
cie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco 
de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém 
conhecer. mas a que permite separar-se de si mesmo. De que 
valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aqui-
sição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto 
quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem 
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar 
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do 
que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refle-
tir. ( ... ) O "ensaio" - que é necessário entender como expe-
riência modificadora de si no jogo da verdade, e não como 
apropriação simplificadora de outrem para fins de comunica-
ção - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda 
hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerclcio de 
si, no pensamento. (O uso dos prazeres, trad. Maria Thereza 
Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 13) 
Renato Janine Ribeiro 
Organizador do Colóquio Foucault 
Este é o momento de agradecer: à Fundação de Amparo à 
Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo auxilio que proporcionou ao 
Colóquio; a Marilena Chaui, pelo impulso; a Jorge Coli, que se deu 
ao trabalho de transcrever, pelo telefone internacional, a comunica-
ção de Luiz Dantas, para que chegasse a tempo; a Djalma lsidoro de 
Mello, a Scarlett Marton, aos funcionârios do Departamento de Fi-
losofia da USP e a todos os que apoiaram o Col6quio, trazendo-lhe 
os seus textos e idéias, a sua curiosidade ou a sua atenção. 
v 
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Transgredir a tinitude 
Gérard Lebrun* 
F oucauit descreve em várias ocasiões, e sob vários enfo-
ques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao 
passar-se do século XVIII para o XIX, quando desaparecem 
os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História 
Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da repre-
sentação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o 
encadeamento das naturezas simples, ou o encaixamento das 
espécies naturais. Também era óbvio que a ordem das coisas, 
já por seu princípio, era passível de desdobrar-se num quadro. 
Conhecer era ver, "no sentido de perceber". E, mercê do bomuso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, 
da contínua supressão da distância - aliás puramente apa-
rente - entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que 
se rompe quando emergem, desligados da Representação, es· 
tes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a lingua-
gem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e 
se dissolve "o campo homogêneo das representações ordena-
das" . 1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do co-
nhecimento-visão: ver será "conservar, da experiência, a maior 
(*) Da Universidade de São Paulo. 
(1) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 255. (As citações 
são traduzidas do francês, diretamente; damos, porém, 'quando possrvel, a pá-
gina da tradução disponivel em português - neste caso, As palavras e as 
coisas, Lisboa, Portugâlia Editora, 1968, pp. 318-319 - N.T.) 
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I 1 
10 TRANSGREDIR A FINITUDE 
opacidade corporal" possível, e "penetrá-Ia com um olhar que 
nunca lhe traz mais que a sua própria claridade". 2 O ser hu-
mano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Di-
vino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathésis ou 
a ordem taxionômica. Submetido "à Vida, à Vontade, à Pala-
vra", o ser humano - transformado em homem - agora so-
mente poderá praticar o "Conhece-te a ti mesmo" mediante 
recurso a saberes que não mais dependem de sua clara cons-
ciência, e que ameaçam o seu estatuto de Sujeito. 
Assim sendo, esses novos saberes encerraram o ser hu-
mano numa finitude muito diferente da que fora delineada 
pela ontoteologia. 3 Relativamente ao saber divino, a finitude 
clássica designava tudo o que tolhia o acesso do homem à ver-
dade. Qual era o meio excelente de reconhecê-Ia? Os erros dos 
sentidos e da imaginação. Vejo o Sol a duzentos passos, o 
bastão quebrado dentro d'água, a Lua maior no horizonte do 
que no zênite: nostrae naturae infirmitas ... Contudo, quando 
a Vida, a Linguagem e o Trabalho se tomam, na sua própria 
opacidade, objetos de saber, é uma outra idéia de finitude que 
se impõe. Para marcar esta nova Finitude, já não é mais pre-
ciso meditar na dependência da substância criada relativa-
mente ao Criador, ou na fragilidade do "junco pensante" pe-
rante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. 
Não é mais preciso, sequer, confrontar as condições de meu 
conhecimento com a Idéia de um "entendimento intuitivo". 
Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara ao 
pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se 
pode pôr como sujeito e como indivíduo porque já está "apri-
sionado" num elemento estranho, investido por algo que lhe é 
Outro. - Por certo, o classicismo podia falar de "meu lugar 
limitado no universo, (de) todos os marcos que medem o meu 
conhecimento e a minha liberdade" - mas não chegava a 
reconhecer esta alienação constitutiva, inextirpável. 
Ê verdade que a Terceira Meditação me recorda que 
"não sou o autor de meu nascimento e de minha existência". 
Mas, no âmago desta existência, ainda há enorme lista das 
(2) Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, p. IX. Nascimento da 
cllnica, Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitãria, 19n, p. XII. 
13) Naissance de la clinique, p. 200; Les mots et les choses, pp. 3Zl e 
segs. Nascimento da clinica, p. 228; As palavras e 8S coisas, pp. 411 e segs. 
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RECORDAR FOUCAULT 11 
coisas de que não sou autor: a língua que falo, a sexualidade 
que me coube, as relações de produção que me tomam, etc. 
Ora, nestes temas, o pensamento clássico apenas poderia 
identificar outras tantas formas de minha posição de inferiori-
dade perante o infinito - sinais suplementares de uma situa-
ção humilhante, é certo, porém ainda assim invejável na or-
dem da Criação. Nada, em todo caso, que indique que algo 
contesta, ameaça o pensamento no seu próprio interior. Uma 
tal eventualidade cuida Descartes de descartar desde o início: 
"Nunca se pode excluir que o homem enlouqueça, porém o 
pensamento, enquanto exercício da soberania de um sujeito 
que atende ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode 
ser insensato". 4 - Será preciso aguardar o homem da epis-
teme moderna - ou melhor, "a figura nova" que recebeu 
"esse velho nome" 5 - para que a Finitude não seja mais pen-
sada como um território cujos limites posso traçar, mas sim 
entrevista como a própria sombra do homem, como uma opa-
cidade origmária que nenhum exercício da consciência de si 
jamais poderá dissipar. Ê desta "experiência" que brota a 
analítica moderna da Finitude: "(o homem), desde que pensa, 
desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a forma de um 
ser que já é - numa espessura necessariamente subjacente, 
numa irredutível anterioridade - um vivo, um instrumento 
de produção, um veículo para palavras que a ele preexis-
tem". ' Assim nasce o "Cogito moderno", a respeito do qual 
disse Merieau-Ponty que "ele não define a existência do su-
jeito pelo pensamento que tem este de existir, nem converte a 
certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo" . 
Um cogito, portanto, que constata a impossibilidade de 
igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou - e que Foucault 
analisa, pastichando Descartes. - Quando Descartes preten-
dia determinar, de maneira apoditica, "qual eu sou eu, eu que 
eu reconheci ser", ele procedia por exclusões: "Não sou, abso-
lutamente, esta reunião de membros ... não sou, absoluta-
mente, um ar sutil e penetrante ... não sou, absolutamente, 
um vento, um sopro ... ". O sujeito moderno certamente tam-
(4) Histoire de /a folie à /,âge classique, Paris, Gallimard, 2~ ed., 1972, 
p. 58; História da/oucura, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 47. 
(5) Lesmotsetleschoses, p. 333; Aspa/avrss8as coisas, p. 419. 
(6) Lesmotsetleschoses, p. 324; Aspalavraseas coisas, p. 408 . 
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12 TRANSGREDIR A FINlTUDE 
bém poderia praticar a mesma exclusão indefinida: "Poderei 
eu dizer que sou esta linguagem que falo ... ? Poderei eu dizer 
que sou esta vida que sinto no fundo de mim ... ?". 7 Não, não 
posso. E no entanto, por estranhos que me sejam estes ele-
mentos, não resido neles como um piloto em seu navio. "Tanto 
faz eu dizer que sou, ou que não sou, tudo isto." Por isso, é 
preciso reformular a questão cartesiana, e perguntar: "Que 
devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para 
eu ser o que eu não penso, para que meu pensamento seja o, 
que eu não sou?". 8 
* * * 
Contudo, é hora de recordar que Foucault não estã fa-
lando aqui, em seu próprio nome: contenta-se em designar 
um lugar, em seu mapa arqueológico, à "Finitude moderna" 
- e, muitas vezes, dã a palavra a Merleau-Ponty, esse incan-
sãvel crítico do "pensamento que sobrevoa". Como poderia 
o pensamento, perguntava Merleau-Ponty, elidir o seu enrai-
zamentono corpo, na linguagem, na infância? A menos que 
vã viver em Sírius, ele terã de reconhecer que "o espírito é o 
outro lado do corpo", que ,"o mundo sensível é mais velho que 
o universo do pensamento". Este tema Foucault retoma quan-
do vai descrever o "Cogito moderno": "Como pode o homem 
ser o sujeito de uma linguagem que se formou sem ele, desde 
milênios, e cujo sistema lhe escapa ... ?". 9 Vale a pena repetir: 
Foucault fala aqui como arqueólogo, e descreve a forma de 
Finitude que devia necessariamente corresponder à "era do 
homem" . Da mesma maneira, mutatis mutandis, que a Feno-
menologia do Espírito descrevia "a consciência infeliz" ou "a 
Aufkliirung" . 
Acontece, porém, que o arqueólogo se desfaça de sua 
neutralidade e emita um juízo - severo - sobre a analítica 
da finitude. Pois este discurso gira no vazio. O seu combate 
contra o cientismo e o positivismo jã de nada serve: "A ver-
dadeira contestação ao positivismo não estã num retorno ao 
vivido ... ". O retorno ao vivido fica aprisionado num vaivém 
(7) Les mots et Iss choses, p. 335; As palavras e as coisas, p. 422. 
(S) Los mots et les choses, pp. 335-336; As palavras e as coisas, p. 422. 
{9l Les mots et les choses, p. 334; As palavras e as coisas,pp. 420-421. 
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RECORDAR FOUCAULT 13 
sem fim, entre a descrição e a fundação. Praticamente não 
nos reserva surpresas, pois jã estamos previamente assegura-
dos de "descobrir no homem o fundamento do conhecimento, 
a definição de seus limites e, para concluir, a verdade de toda 
a verdade". 10 Mais ainda: esse discurso nos mantém num 
novo sono dogmãtico, que só acabarã quando se tiver a cora-
gem de reconhecer que o homem não passa do nome de um 
dispositivo da episteme moderna, e quando se tiver "suspen-
dido ... o preconceito antropológico sob todas as suas for-
mas", para "tornar a interrogar os limites do pensamento". 
Nietzsche, acrescenta Foucault, foi quem deu o sinal para isso. 
- Sartre parece constituir o principal alvo dessa pãgina. Mas 
Foucault visa, para além dele, toda a analítica da finitude -
isto é, a fenomenologia e sua derivação existencialista. Depois 
de analisar a sua dialética com uma minúcia que o leitor des-
prevenido confundirã com simpatia, declara-nos sem mais ce-
rimônias que toda essa filosofia é estéril, e que o seu esgota-
mento bem poderã marcar, de uma vez por todas, a falência de 
todo um estilo de pensamento. 
Hã, porém, em pelo menos uma outra passagem de As 
palavras e as coisas, a abertura de um enfoque algo diferente 
sobre a fenomenologia. A analítica da finitude - é o que diz 
Foucault - mostra "como o pensamento pode escapar de si 
mesmo", e às vezes acontece que ela questione o ser do ho-
mem, "nessa dimensão' pela qual o pensamento se dírige ao 
impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em 
equívoco, se levãssemos demasiado a sério o projeto oficial de 
Husserl. A fenomenologia não é "a retomada de uma velha 
destinação racional do Ocidente" . 11 Ela também foi uma filo-
sofia da "era do homem", de modo que não hã o que estra-
nhar se, "apesar de principiar por uma redução ao Cogito, ela 
sempre foi levada a questões, à questão ontológica". Não hã o 
que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-se a si mes-
mo, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto 
do homem, que o pensamento do século XIX evocou de ma-
neira intermitente. - A fenomenologia, por sinal, não é uma 
exceção. Outras anãlises de Foucault nos dão a entender que a 
(10) Les mots et les choses, p. 352; As palavras e as coisas, p. 444. 
(11) Les motsetles choses, p. 336; As palavras ees coisas, p. 423. 
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14 TRANSGREDIR A FINlTUDE 
episteme moderna por mais de uma vez esteve a ponto de su-
perar a figura de finitude, ainda aconchegante, por ela mesma 
constituída, e que ela própria nos convida a problematizar a 
base da qual trabalhava. 
* * * 
Em que consiste exatamente o carãter insatisfatório da 
"Finitude Moderna" descrita pelos filósofos? Por que precisa 
ser suspensa essa estrutura? - Uma passagem de Diferença e 
Repetição, de Deleuze, pode esclarecer esse aspecto da leitura 
que Foucault faz do século XIX. Os filósofos, diz Deleuze, e 
em particular os do século XIX, muitas vezes tentaram am-
pliar a imagem do qUe eles (comodamente) chamavam de 
"negativo", de modo a não mais o reduzirem ao erro por dis-
tração, tão caro a Platão (vejo Teeteto, e digo-lhe "Bom-dia, 
Teeteto"). Mas não foram por essa via tanto' quanto deviam. 
Se tivessem meditado sobre Flaubert, por exemplo, com-
preenderiam que uma noção como a da burrice "é objeto de 
uma questão transcendental: como é possível a burrice". 12 
Como é que o indivíduo é tomado por "uma animalidade dis-
tintivamente humana?" Não se ousou enfrentar esse tipo de 
questões. Mas tais questões tampouco foi possível escamotear 
por completo. - Ora, não é justamente essa situação ambí-
gua que vemos descrita, em algumas pãginas de Foucault? 
Pãginas que merecem ter a nossa atenção, pois nos previnem 
contra a tentação de reduzir sua obra a uma alegre e ligeira 
demolição de saberes ingênuos e farisaicos. Não hã dúvida de 
que Foucault, do começo ao fim, é esse demolidor. Mas serã 
ele apenas isso? Tomemos o exemplo de um saber que ele 
jamais isenta de sua severidade: a psicologia, nascida no sé-
culo XIX, da forma como aparece na Hist6ria da loucura. 
Serã que a psicologia apenas cumpre uma tarefa de oblitera· 
ção e recalcamento? Não apontarã, mesmo sem o saber, para 
a idéia de uma outra "finitude" _ que, esta, jã não seria 
considerada dominãvel? 
Um dos momentos decisivos da Hist6ria da loucura é o do 
apagamento, no final do século XVIII, da noção de Desrazão. 
(12) Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 194-
198. 
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1 ~' ." '"' _.L ____ _ •• __ o 
RECORDAR FOUCAULT 15 
Em poucos anos - os que são marcados pelos nomes de Tuke 
e Pinel-, o internamento muda de função. Deixa de consti-
tuir uma simples medida de proteção social. Desde então, os 
loucos não serão mais misturados com os debochados, os pró-
digos e os blasfemos: de elementos a-sociais, convertem-se em 
doentes, objeto de observações e cuidados clínicos. Sem dú-
vida, o asilo continua sendo um recinto de exclusão, e o louco 
não é um paciente qualquer. Se voltou a ser nosso irmão, é 
também uma razão expulsa de si mesma, devolvida à "ino-
cência animal", embora conserve - o que é pior - as apa-
rências da razão. Pois esses insensatos raciocinam e respeitam 
o princípio de contradição. Quem se toma por Napoleão nega 
ser Luís XIV. Aquele que pensa ter um corpo de vidro evita' 
esbarrar em objetos duros ... A essa razão naturalizada, é pre-
ciso dar um estatuto - e foi com este fim que se inventou a 
psicologia: "O que era doença dependerã, agora, do orgânico; 
e o que pertencia à desrazão, à transcendência de seu dis-
curso, serã nivelado no psicológico". IJ O nascimento da psi-
cologia marca portanto, a um só tempo, o abandono da noção 
de Desrazão (que a partir de então se terá por obscurantista) e 
o reconhecimento do fato de que a "doença mental" é, porém, 
alguma coisa que ultrapassa os processos orgânicos - de que 
o tratamento no asilo não se pode reduzir à ducha fria, ao 
chicote ou aos sedativos. Ê preciso falar com os doentes, ter a 
paciência de desemaranhar suas ilusões, tentar devolvê-los à 
sua essência de "sujeitos responsáveis". Se o psiquiatra não é 
um médico como os outros, é portanto porque sua tarefa con-
siste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Des-
razão. 
Como explicar, então, o inesperado banimento desse con-
ceito? Ê nesse ponto que encontramos, pela primeira vez na 
obra de F oucault, o grande corte que separa a era da Repre-
sentação e a era do homem. A Desrazão era um conceito tí-
pico da Representação. Do louco ela fazia um homem cegado, 
apartado da verdade - mais um insensato no sentido bíblico 
do que um doente. Com a "loucura" medicalizada, tudo serã 
bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acesso à Ver-
dade, o contato com o Verbo Divino: estes traços já não per-
(13) Histoire de /a folie, pp. 359-360; História da loucura, p. 337. 
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16 TRANSGREDIR A FINITUDE 
tencem, como sabemos, à "finitude moderna". O que lhe su-
cede é outra coisa: ele se afasta de sua essência (de ser razoã-
vel e de cidadão). Não hã dúvida de que a fronteira entre o 
alienado e o são de espírito continua nitidamente traçada, mas 
a divisão jã não se efetua segundo o mesmo critério. É que, 
agora, "o ser humano não se caracteriza por uma certa rela-
ção com a verdade, mas detém como seu bem próprio, a um 
tempo exposto e escondido, uma verdade".14 E o que mais 
importa, para o saber do século XIX, é que essa verdade ape-
nas esteja ocultada, e que fazê-la reaparecer dependa da arte 
do terapeuta. 
Essa nova percepção que se tem do insensato aparece 
com toda a clareza no texto da Enciclopédia de Hegel a res-
peito da loucura (§ 408). O louco deixou que o "gênio mau" 
da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a 
razão. Os loucos continuam sendo sittliche Wesen, essências 
morais, continuam tendo consciência do Bem e do Mal - e é 
por isso que o seu lugar é no asilo,não na prisão (nada têm a 
ver com os perversos, cujo "único delirio é o do vício", como 
dizia Royer-Collard acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta 
Hegel, pode assim apoiar-se no que hã de "racional" no 
doente para devolvê-lo a seu besseres Selbst, ao melhor de si 
mesmo. O louco é um ser reintegrãvel na razão. 
Essas pãginas contrastam com as que a Fenomenologia 
do espírito consagra ao Sobrinho de Rameau (Foucault refere-
se a elas). O louco, medicalizado por Pinel, não submete mais 
o homem racional à prova que o Sobrinho impunha à "cons-
ciência honesta" da Aufkliirung. O discurso de desrazão do 
Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as 
realidades" a que se apega a "consciência honesta", era a 
encenação cruel de suas contradições. Em Hegel, é este o mo-
mento em que a dialética se alia com a Desrazão contra o 
Entendimento. Mas tal momento serã de curta duração. E o 
elogio de Pinel, na Enciclopédia, mostra o quanto Hegel apre-
cia que o asilo moderno tenha transformado a Desrazão numa 
doença em princípio curãvel - o quanto estã satisfeito de ver 
neutralizada mais essa figura da "Finitude". - Hegel cons-
titui um bom exemplo da maneira como saberes e filosofias 
114) Histoire de la fOlie, pp. 548-549; Hist6ria da loucura, p. 522. 
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RECORDAR FOUCAULT 17 
tornaram inofensiva a questão da loucura, preferindo relegar 
ao esquecimento a risada do Sobrinho e o que nele, segundo 
Foucault, se anunciava: "que o homem é remetido sem cessar 
da razão à verdade não verdadeira do imediato". - Este é o 
primeiro aspecto pelo qual a razão esclarecida assume a tutela 
da loucura. 
Mas quem sabe ler entre as linhas pode interpretar de 
outro modo a "experiência" da loucura tal como foi consti-
tuída pelo começo do século XIX. Não serã, a fronteira que 
separa o louco do são de espírito, mais indecisa do que parece 
à primeira vista? Podemos até nos perguntar se, nessa epis-
teme que postula que "o ser humano deve poder, pelo menos 
teoricamente, tornar-se transparente por inteiro ao conheci-
mento objetivo", não seria a loucura "a primeira figura de 
objetivação do homem". 15 Desde que os loucos são tidos por 
seres racionais em potência, o ser racional é considerado como 
um candidato à loucura. De resto, ele precisa do louco para 
conhecer melhor, por contraste, a sua essência, e determinar o 
perfil de sua normalidade. Assim, diz Foucault, libertando o 
louco de suas cadeias, Pinel "acorrentou ao louco o homem e 
sua verdade. Desde esse dia, o homem tem acesso a si mesmo 
enquanto ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro somente lhe 
é dado sob a forma da alienação ... o homem, hoje em dia, só 
tem verdade pelo enigma do louco que ele é e não é" . 16 
Foucault pretenderã apenas debochar, aqui, do objeti-
vismo das ciências humanas? É pouco provãvel, pois o objetivo 
da arqueologia não é diretamente polêmico. O arqueólogo 
propõe-se remontar até as condições de possibilidade de uma 
"experiência" (da loucura, da clínica). E o Nascimento da clí-
nica precisa: "Este livro não é escrito em favor de uma medi-
cina e contra outra, ou contra a medicina, em favor de uma 
não-medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um 
estudo estrutural que procura decifrar, na espessura do his-
tórico, as condições da própria história". 17 - Lendo esta pã-
sina de Foucault, parece-nos que a superação da "finitude 
moderna" estava incluída na própria cultura que a elaborava. 
- Não diremos que esse tema foi recalcado ou censurado por 
115) Histoire dela folie, p. 481; Hist6ria da loucura, pp. 456-457. 
116) Histoire dela fo/ie, p'. 548; Hist6ria da loucura, pp. 521-522. 
(17) Nsissance de la clinique, p. XV; Nascimento da cllnics, p. XVIII. 
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18 TRANSGREDIR A FINITUDE 
tal cultura (assim retomaríamos aos pressupostos da exegese, 
que faziam horror a Foucault). Antes diremos, para seguir a 
metodologia do autor, que esse tema constitui uma linha de 
"regularidade" legivel nessa "formação discursiva". Tome-
mos um outro exemplo. 
Um dos traços característicos do século XIX é o privilégio 
epistemológico que se concede ao patológico. "Não foi por 
acaso.que o século XIX preferiu perguntar à patologia da me-
mória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lem-
brança, do querer e do indivíduo." 18 Esse tema já aparecia 
nas aulas de Foucault, entre 1953 e 1955: será por acaso que a 
psicologia dos testes e a psicologia da criança nascem do es-
tudo das crianças anormais? de onde vem a noção de idade 
mental, se não for da patologia? de onde vem a pedagogia 
moderna, se não for da intenção de integrar na escola as crian-
ças retardadas? - Não, não foi por acaso que o desapareci-
mento da Desrazão transformou a função do patológico, dei-
xando este de constituir o mero "negativo" da normalidade. O 
doente mental tomou-se um documento vivo, uma mina de 
informações. Ele é irredutivelmente o meu Outro, mas é deci-
frando este Outro que eu tenho as melhores oportunidades de 
aprender quem eu sou. Eis o esboço de uma figura de Finitude 
que não mais se poderá desdobrar sob o olhar de um Sujeito. 
- Relendo o fim da Hist6ria da loucura, quase ousaríamos 
dizer que ocorre como que um "progresso epistemológico", do 
ponto de vista do arque6logo, ao passar-se da era clássica à 
idade da psiquiatria. Na "loucura" moderna, "o homem não 
é mais considerado numa espécie de retiro absoluto perante a 
verdade; ele é a sua verdade e o contrário de sua verdade; ele é 
ele mesmo e outra coisa que não si mesmo ... " . E o mesmo tom 
reaparece na página de As palavras e as coisas que retoma e re-
sume esse tema: "nossa consciência ... vê surgir o que, perigo-
samente, está o mais próximo de nós ... ; a finitude, a partir da 
qual somos e pensamos e sabemos, aparece subitamente à nos-
sa frente - existência a um só tempo real e impossível, pensa-
mento que não podemos pensar, objeto para nosso saber, mas 
que sempre se furta dele" .19 - Contudo, uma coisa é a "expe-
(18) Histoire dela folie, p. 481; História da/aucura, p. 457. 
(19)- Les mots et les choses, p. 387; As palavras e as coisas, p. 487. 
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RECORDAR FOUCAULT 19 
riência" que aparece, outra coisa são OS discursos dos psicó-
logos, médicos e filósofos que vivem nessa "experiência". Eles 
preferem representar, a seus olhos e aos nossos, o louco como 
um ser racional diminuído, quando na verdade o louco, por 
obra deles, tomou-se aquele cuja presença me faz sentir (ou 
deveria fazer-me sentir) a minha fragilidade de vemünftiges 
Wesen, de ser racional. Os saberes esquivaram aquilo mesmo 
que se anunciava nas suas práticas, nos seus métodos. Ê o que 
F oucault afirma com toda a clareza no final da Hist6ria da 
loucura. A psicologia, desde que nasceu, esteve "na encruzi-
lhada": ou enfrentar a escura verdade do homem e "terminar 
filosofando a marteladas", ou então tentar, interminavel-
mente, submeter o homem a um "conhecimento verdadeiro", 
travando ao mesmo tempo uma polêmica, não menos intermi-
nável, com as Analíticas da Finitude. Escolheu-se esta última 
via, a da facilidade. Ajeitando-se de modo a poder. sempre 
recuperar - quer pelo conhecimento objetivo, quer pelo re-
tomo ao vivido - o sentido dos conteúdos da Fínitude, o pen-
samento moderno pecou por excesso de timidez . 
Já a medicina não teve tais pudores. E talvez seja nestas 
páginas, que descrevem a irrupção da anatomia patológica no 
saber médico, que melhor se pode perceber o que Foucault 
esperava de uma radicalização da Finitude. Desde Bichat, a 
doença não é mais compreendida como uma "contranatu-
reza", como uma desrazão orgânica, como o foi na era clás-
sica. Também neste domínio a divisão "ser/não-ser" vê-se 
posta em xeque. Percebe-se que a degeneração dos órgãos não 
somente obedece a leis, mas que ela é o avesso do funciona-
mento do organismo - que "a morte não se insinua apenas 
sob a forma do acidente possível; ela forma, com a vida, com 
os seus movimentos e o seu tempo,a trama única que a um só 
tempo a constitui e a destrói". '" Essa túnica de Nesso, como 
poderíamos considerá-la como "negativo"? A doença não é 
desvio: é também uma análise, epistemologicamente preciosa, 
dos sistemas de tecidos, de seus diversos graus de resistência e 
fragilidade. E a própria morte não se reduz a "uma noite em 
que a vida se apaga": 21 é, antes de mais nada, a melhor fonte 
(20) Naissance de la clinique, p. 159; Nascimento da cllnica, p. 180. 
(21) Naissance de la clinique, p. 146; Nascimento da cllnica, p. 165. 
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20 TRANSGREDIR A FINITUDE 
de informações para o médico. "A partir de agora, é do alto 
da morte que se podem ver e'analisar as dependências orgâ-
nicas e as seqüências patológicas". 22 O que foi denominado o 
"vitalismo" de Bichat consistiu portanto, acima de tudo, no 
reconhecer "a ligação fundamental entre a vida e a morte". 
"Foi quando a morte se tornou o a priori concreto da expe-
riência médica que a doença pôde desligar-se da contranatu-
reza e tomar corpo no corpo vivo dos individuos".23 Foi nessa 
nova problematização que nasceu o conhecimento objetivo do 
individuo vivo, assim como, acrescenta Foucault, "da expe-
riência da desrazão nasceram todas as psicologias e a própria 
possibilidade da psicologia". Em muitas regiões os novos sa-
beres transferem, sigilosamente, a verdade do ser humano 
para uma alteridade indissolúvel - que, no limite, dissolve o 
homem. Eles abrem "uma enorme sombra" que as analiticas 
da finitude tentam dissipar - porém em vão. "Esta sombra 
que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber." 24 
* * * 
V alia, pois, a pena mostrar como a episteme do século 
XIX conseguiu, em tantos pontos, transformar numa Alteri-
dade positiva o que até então fora relegado ao "negativo". É 
verdade que esses saberes, ao mesmo tempo, fundavam a "fi-
nitude moderna", na qual residiu a maior parte das filosofias 
desde a de Kant, e que continua sendo (por quanto tempo 
ainda?) a nossa morada. Mas a obra de tais saberes é bem 
mais instrutiva do que o discurso dos filósofos que só muito 
raramente consegue pôr-nos perante a alteridade que estã no 
âmago -de nós mesmos. Enquanto a psicopatologia, a medi-
cina, a economia politica pelo menos foram capazes de nos 
deixar entrever essa Alteridade não dominãvel, os filósofos se 
preocuparam mais foi com nos orientar na finitude, e com nos 
persuadir de que, nela, ainda permaneciamos bei Hause. 2S Os 
filósofos, mesmo quando parecem enfrentar grandes riscos, 
continuam munidos de um fio de Ariadne; as verdades de fato 
1221 Naissance de la clinique, p. 145; Nascimento da cllnica, p. 166. 
1231 Naissance de la clinique, p. 198; Nascimento da cllnica, p. m. 
(24) Les mots st /6S choses, p. 224; As palavras e as coisas, p. 280. 
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RECORDAR FOUCAULT 21 
com que deparam podem, sempre, ser transformadas em ver-
dades de razão. É por isso que, dessa finitude moderna, ar-
rumada com tanta engenhosidade, era necessário sair. Não 
para propor outra coisa: simplesmente para viajar com toda-a 
liberdade. Era preciso cortar as amarras. E é a partir disto 
que adquire sentido a noção - à primeira vista tão estranha 
- de "era do homem": positivistas, fenomenólogos, mar-
xistas, vocês não sabem que vivem num mesmo e único terri-
tório; eu, porém, fui mais adiante. Parece que Foucault deve 
ter percebido desde cedo a urgência dessa transgressão - que 
o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e, no mesmo 
gesto, a afastar de si todo o discurso filosófico. 
Esta é apenas - não resta dúvida - uma dentre as abor-
dagens possíveis da obra de Foucault. Importa, porém, ver a 
que tipo de colocações ela força o leitor. Em primeiro lugar, 
deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Fou-
cault - o que significaria reinseri-Io num tipo de discurso que 
ele pretendeu, de forma sistemãtica, subverter. Deve-se ad-
mitir que não teria nenhum interesse recolocã-Io à força na 
vizinhança dessas analiticas da Finitude cujo iminente faleci-
mento As palavras e as coisas anunciam, nem tampouco for-
çã-Io para dentro do recinto, da clausura, da Metafísica - em 
suma, fazer aqui o mesmo tipo de exegese a que Heidegger 
submeteu a obra de Nietzsche. - Mas, em segundo lugar, 
também se deve admitir que seria grave equívoco reduzir a 
obra de Foucault a uma metodologia da história ou das ciên-
cias humanas, e confiná-Ia na arqueologia. A arqueologia foi 
um dos métodos de que ele se'valeu - o que lhe permitiu ana-
lisar "as formas mesmas da problematização", como diz no 
Uso dos prazeres, ao distingui-Ia do método genealógico. A 
arqueologia não dã a chave de seu projeto, mas sim a medida 
de sua desconfiança face aos "discursos sérios", que ele pre-
tendia retirar de circuito de uma vez por todas. Não é a ar-
queologia que pode explicar, por exemplo, por que a sua in-
vestigação terminou por focalizar-se na questão do sujeito -
mas sim a velha paixão que o animava contra as analíticas da 
Finitude. Citando Veyne: "O método de Foucault tem prova-
velmente, como ponto de partida, uma reação contra a onda 
fenomenológica que, na França, se produziu logo após a Li-
bertação [em 1944). O problema de Foucault talvez tenha sido 
o seguinte: como conseguir mais do que pode uma filosofia da 
22 TRANSGREDIR A FINITUDE 
consciência sem, com isso, cair nas aporias do marxismo?". 26 
Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de 
transgredir, que devemos tomar todo o cuidado para não con-
fundir - nem em Foucault nem em Nietzsche - com um 
furor de destruir. 
Convém relermos o diâlogo entre o arqueólogo e o filó-
sofo, que fecha a Arqueologia do saber. - Você precisou re-
cuar em todas as frentes diante dos vãrios estruturalismos, diz 
o arqueólogo - e, agora, você lhes propõe um acordo amigá-
vel. Reconhece as conquistas deles mas, em troca, pede que 
reconheçam a seriedade das suas problemáticas - o seu di-
reito a indagar sobre a origem, a esboçar uma teleologia da 
história, a instaurar os seus a priori materiais ... Ora, o ar-
queólogo recusa-se a firmar esse acordo com um pensamento 
que se empenha - diz - em "ocultar a crise na qual já faz 
muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo", 
crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob 
todas as suas formas, o questionamento do ser do homem, 
"enfim e acima de tudo, a questão do sujeito"." Nessas con-
dições, é impossivel um compromisso, um meio-termo. É ne: 
cessário escolher. Ou ficamos nessa "finitude", que permite a 
continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das 
dialéticas. Ou então salmos dela, isto é, invertemos o proce-
dimento dos filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os con-
ceitos-chave repetidos pelas analíticas da Finitude (consciên-
cia, indivíduo, sujeito) e vamos procurar a verdadeira identi-
dade (ou melhor, as verdadeiras identidades) dessas persona-
gens por demais familiares - perguntar quais são as modifi-
cações teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram 
sob tal forma, em tal época, em tal área determinada. Já não 
nos contentaremos, neste caso, com perguntar de maneira 
vaga: como é que o homem é sujeito na vida? como é sujeito de 
uma linguagem mais antiga do que ele? O que os filósofos 
chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta 
de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entre-
cruzam. São esses trabalhos que precisamos reconstituir -
(26) Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire". in Comment on 
écritl'histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 383; trad. bras., in Como se escreve B his-
tória. Foucault revoluciona B história, Brasflia, Editora da Universidade de Bra-
sPia, 1982, p. 179. 
(271 Archéologie du &avoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 266. 
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RECORDAR FOUCAULT 23 
mediante estudos precisos, exame de arquivos, anâlise de prá-
ticas. Perguntando, por exemplo: como, no Ocidente, numa 
épocatal, o homem foi feito sujeito individual? ou se fez su-
jeito de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgres-
são da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estáva-
mos contidos: na possibilidade de irmos escavar, fuçar em 
toda parte, até mesmo zombando daqueles que nos peçam 
documentos de identidade - na possibilidade de fazer o Su-
jeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços. 
O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, 
escrevia F oucault em 1983, foi o de "produzir uma história 
dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa 
cultura". E esse estudo das modalidades de transformação 
"dos seres humanos em sujeitos" dividiu-se em três eixos: 
1?) a transformação do sujeito em objeto de saber: "objetiva-
ção do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filo-
logia, de lingüística ... ou ainda, a objetivação do mero fato. de 
ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia"; 
2?) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a 
égide da divisão normal/patológico (louco/são de espirito, cri-
minoso/homem de bem ... ); 3?) "a maneira pela qual um ser 
humano se transforma em sujeito ... a maneira pela qual o 
homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexua-
lidade". ia E Foucault acrescenta: "Não é portanto o poder, 
porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas inves-
tigações".29 - Eu quis apenas indicar um enfoque possivel, 
que permitiria tornar essa frase menos desconcertante. 
(Tradução de Renato Janine Ribeiro) 
(281 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours phi-
losophique au·delà de I'objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984, 
p. 298 (trad. francesa do original americano: Michel FoUC8UIt. Beyond struc-
tura/ism and hermeneutics, Chicago, University cf Chicago Press, 1982). 
(291 Dreyfus e Rabinow, pp. 296-298. 
o discurso diferente 
Renato Janine Ribeiro* 
Nestas notas quero tratar do fascinio que Foucault mos-
tra, em sua obra, pelos textos literários. O seu amor às pala-
vras não é apenas o positivismo (Veyne) I de quem, nelas, en-
contra o elemento mais tangivel para pensar. o que pensaram 
os homens; é, sobretudo, uma bibliofilia: um amor - bor-
giano - às bibliotecas, a seus textos que subvertem datas e 
enquadramentos. E não é nos textos teóricos que se esgota 
esse poder dos escritos, nem a vontade foucaultiana de ler. 
Assim começa As palavras e as coisas: "Este livro nasceu 
de um texto de Borges. Do riso que sacode, à sua leitura, 
todas as familiaridades do pensamento - do nosso; do que 
tem a nossa idade e a nossa geografia -, abalando todas as 
superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata 
para nós a pululação dos seres, fazendo vacilar e inquietando 
por longo tempo a nossa prática milenária do Mesmo e do 
Outro. Este texto cita 'uma certa enciclopédia chinesa' onde 
vem escrito que 'os animais se dividem em: a) pertencentes ao 
imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) 
sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; h) incluidos na pre-
sente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inume-
ráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de 
(*) Da Universidade de São Paulo e do CNPq. 
(1) Paul Veyne, Foucault revoluciona a História, Brasilia, 1982. 
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RECORDAR FOUCAULT 25 
camelo; 1) et coetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) 
que de longe parecem moscas'. No deslumbramento desta ta-
xinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio 
do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um 
outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade 
de pensar isto". 2 
Nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação 
pelo literário/artístico: o prefácio e o livro nascem de Borges, 
o capo 1 trata de Velázquez, o capo 3 abre-se com D. Quixote. 
Estamos, talvez, em pleno exotismo: não apenas porque, via 
Borges, Foucault cita uma fantástica enciclopédia chinesa; 
mas porque suas três referências vêm do mundo hispânico -
dessas Espanhas que, no imaginário francês, representam 
desde muito tempo uma relação diferente, desmedida, com as 
paixões. A idade clássica de que Foucault vai tratar em As 
palavras, abre-se, assim, sob invocações espanholas: interes-
sante maneira de recusar a tradicional ruptura classicismo/ 
barroco, de nomear como idade clássica algo que não é o clas-
sicismo do moi hafssable. 
No entanto, que são Borges, Velázquez, o Quixote nas 
análises do Foucault? Se procuramos ver o que, de cada um 
deles, resta no texto, parece ser pouco: servem a seduzir a 
atenção, a pontuar o discurso, a ressaltar algo que, adiante, 
será trabalhado conceitualmente. Exemplar é a conclusão do 
capo 1, que é fazer o balanço das Meninas de Velázquez (o que 
explica que muitos leitores de As palavras façam a economia 
desse capitulo, indo "direto aos conceitos"), como exemplar 
é, também, a moral que se extrai de Borges. Pensa-se com 
Borges, com Velázquez; mas o conceito depois explicita, acla-
ra o que primeiro se viu sob a forma da figura. Da questão 
borgiana da impossibilidade de pensar - que Borges igu8J.-
mente elabora na sua Busca de Averrois e nos Tradutores das 
Mil e uma Noites'3- chega-se ao problema fil<,lsófico das epis-
temes. Do quadro de Velázquez, vai-se ter à representação 
clássica. Do Quixote, à crise do mundo quinhentista, à troca 
de epistemes. Como numa boa coreografia, ou ordenação cê-
(2) As palavras e 8S coisas, Lisboa, 1968, p. 3 (p. 7 do original, Les mots 
et Iss chosesl, cotejado com o Original francês. 
. (3) Respectivamente, in AntologIa persona/ (Buenos Aires, 1966) e His-
toriir'1dela eternidsdlBuenos Aires, 1969). 
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26 o DISCURSO DIFERENTE 
nica, cada personagem introduz-se, fala e sai; a sua deixa tem 
hora marcada, e nesta se esgota. Sabe-se, aliâs, que a análise 
das Meninas foi acrescentada ao livro depois de concluido. E 
Foucault não tornarâ, em suas principais obras, a dar igual 
importância à arte, à literatura. 
Talvez, porém, a arte e a literatura estejam presentes em 
Foucault numa outra dimensão, mais profunda. Talvez inte-
resse menos o texto de Borges, do que o riso por ele produ-
zido, que "sacode ... as familiaridades do pensamento". Por-
que assim escreve Foucault: batendo-se contra o que, no pen-
samento, é hâbito. É notório o cuidado que tem com a escrita: 
suas imagens, ritmos, pontuação. Mas serâ enganoso reduzir 
seu estilo à bela forma; escrever, para Foucault, certamente 
obedece a uma estratégia. E, para entendê-la, o melhor talvez 
seja situarmos alguns textos - capitulos, parâgrafos, frases 
- de Foucault. 
Podemos distinguir, em sua obra, dois tempos - ou 
mesmo, fora dos tempos, duas posturas: uma consiste na bus-
ca das condições de possibilidade, ou de produção, dos textos 
e leituras. É a que aparece no começo do Nascimento da clí-
nica: Foucault cita dois textos de médicos, respectivamente do 
século XVIII e XIX, para depois ver o que os diferencia; não 
se trata da passagem da metâfora à denotação - ambos os 
autores se servem, e com que profusão, de figuras. Porém, 
como se ordenam umas, e outras, figuras? É essa ordem que a 
"arqueologia do olhar médico" pretende devassar; interrogar 
o que subjaz, a rede que funda leituras e textos. A outra pos-
tura vê-se em Vigiar e punir. Igualmente Foucault contrasta 
dois textos - convidando o leitor a imergir-se neles, a fazer 
ele próprio, antes de qualquer fio condutor, a experiência pri-
meira, bruta - talvez até ingênua, no sentido de pouco ar-
mada -, dos discursos. Porém, uma vez lidos estes, ele não 
proporâ mais desvendar os seus fundamentos, OS seus pres-
supostos. Serâ - ou fingir-se-â? - mais modesto. "Dentre 
tantas modificações", diz, "reterei uma": ele próprio grifa o 
quanto parece arbitrâria sua maneira de recortar a supressão 
dos suplicios, frente a tantas outras mudanças, talvez de maior 
monta, no sistema penal e repressivo. "Hoje somos algo le-
vados a negligenciâ-la",talvez porque em seu tempo tenha 
sido tão comentada; "E, de qualquer forma, que importância 
tem, se a comparamos com ... "; não serâ a desaparição dos 
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RECORDAR FOUCAULT 27 
suplicios "nada mais que o efeito de remanejamentos mais 
profundos"? Em outras palavras, não seria o caso de se devas-
sar, uma vez mais, a rede da qual dependem os suplicios, e 
que os produziu? Não; a mira de Foucault mudou: "E no en-
tanto um fato subsiste"; pode o sumiço dos suplicios ser mera 
espuma, de superficie - mas o que conta, no Foucault pós-
arqueologia, é justamente o fato. Empirista, Foucault? Possi-
velmente; porém, melhor seria dizer, agora, que dispensa as 
redes - as ordens -, as totalizações e quadros. A modéstia 
que enverga, minimizando os elementos com que lida, na ver-
dade apenas introduzirâ nova estratégia. Que começa por de-
sarmar o leitor reticente, ou resistente. Se este quiser reduzir, 
desde jâ, a supressão do suplicio a efeito da economia, a parte 
menor numa mudança global das formas penais - Foucault, 
sem lhe contestar diretamente a análise, reservarâ porém o 
fato, apresentâ-lo-â como irredutível. Irredutível, essa a deter-
minação principal do fato no parâgrafo que estamos comen-
tando de FOllcault - essa, a ruptura que então produz com as 
arqueologias. Mas a que ele visa com a irredutibilidade? É a 
preparar a construção de um outro tipo de discurso. Um dis-
curso cujo traço essencial talvez seja, justamente, o de ser 
diferente - o de ser inesperado, o de aparecer sob a forma do 
talvez. 
Se o fato assim se exibe como irredutível, é porque a sua 
riqueza excede as leituras dominantes, exige a formulação de 
novas hipóteses (as quais poderemos chamar, às vezes, de in-
terpretações). Estas, Foucault as precede muitas vezes de um 
"talvez". Assim, ao tirar a conclusão de sua anâlise das Me-
ninas: "Talvez este quadro de Velâzquez figure como que a 
representação da representação clâssica e a definição do es-
paço que ela abre ... " (p. 33). Mas sobretudo em A vontade de 
saber, possivelmente, sob tantos aspectos, o seu manifesto 
mais radical- o que mais contestou imagens feitas, especial-
mente uma pela qual ele próprio era em parte responsâvel, a 
idéia de que a sexualidade ocidental moderna se caracteriza-
ria basicamente por sofrer repressão. O "talvez" não se opõe, 
por estranho que pareça, ao "fato": evidentemente, num caso 
Foucault avança uma hipótese, move-se entre possíveis ou, se 
quisermos, entre interpretações; no outro, procura ater-se a 
algo inegâvel, irrecusâvel, irredutível, simples quem sabe como 
um elemento; ambos têm em comum, porém, a humildade, 
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28 o DISCURSO DIFERENTE 
a modéstia: nem uma interpretação é excludente de outras, 
nem o fato é mais do que um fato: a pretensão a globali-
zar que caracteriza a interpretação é reduzida por ser, ela, 
uma dentre tantas, enquanto o estatuto irredutível do fato 
é contido por sua nudez mesma, carente de inteligibilidade 
própria. São pouco, poder-se-ia dizer; mas por isso mesmo 
definem um espaço mínimo, próprio distintamente seu: o es-
paço do pouco. Frente a uma história do econômico, pro-
por, como tema de reflexão, os corpos e sua sorte: ades-
tramentos, suplícios. Nesse fato elementar (os corpos não 
são mais supliciados) e nesse talvez (pensar a caça miúda 
da história), Foucault toma gosto e partida. Por isso pode-
mos dizer que sua modéstia é, de certa forma, falsa; que 
visa a delimitar um espaço garantido, resguardando-o de ofen-
sivas adversárias; que a modéstia, em vez de ser tomada por 
seu valor nominal, merece ser decifrada como um protocolo 
diplomático. Este serve para introduzir um discurso cujo vigor 
teórico e cuja exposição às criticas estarão, justamente, no fato 
de ser diferente: de ser inesperado. Pelo menos, é assim que 
começa Vigiar e punir. Da estratégia do discurso diferente faz 
parte uma diplomacia. 
Essa modéstia finta é também - porém - uma finta, 
como na esgrima. Se desarma o leitor, se resguarda para Fou-
cault um espaço de pensamento, igualmente exige que ele 
proponha idéias sempre novas. Não basta dizer que Foucault, 
em tais ocasiões, mudou de idéia quanto a tal ou qual tema; 
ou distinguir, na sua obra, momentos ou fases; porque, justa-
mente, o interessante é que ele pensava por mutação. A mu-
dança não é algo que ocorria a seu pensamento, recortando-o 
em épocas; é o modo pelo qual o seu pensamento, sempre, 
corria. Em seu discurso, Foucault constrói o inesperado. O 
"talvez" não é propriamente um sinal de modéstia; é, antes, o 
distintivo do inédito. Colocar-se de esgueira, de esguelha: a 
maneira foucaultiana de pensar privilegia constantemente o 
inesperado. Voltemos às Meninas. O longo texto que ele lhes 
dedica ergue-se sobre um suspense. Foucault parte do mais 
visível e evidente: o pintor com a palheta a nos olhar. Vai 
depois rodeando, rondando o quadro, suas personagens e par-
tes, até dar no espelho, que reflete e situa el-rei; por que, 
porém, tal seqüência - e não alguma outra igualmente possí-
vel? Diz Foucault que "a relação da linguagem com a pintura 
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RECORDAR FOUCAULT 29 
é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita, nem 
que, em face do visível, ela acuse um déficit que nos esforça-
ríamos em vão por superar. Trata-se de duas coisas irredutí-
veis uma à outra ... " (p. 25). Mas é essa irredutibilidade mes-
ma de uma a outra que permite que Foucault, escritor e não 
pintor, enriqueça o seu texto lendo quadros. Não interessa 
tanto se sua tradução é correta ou não; se o conceito, depois, 
Se apossa do que primeiro apareceu na figura; porque esta, 
ainda que adiante se esvaneça, no discurso age como revela-
dora. 
Lessing 'teorizou, com brilho, essa diferença entre a pin-
tura e a literatura, caracterizando a primeira pela simulta-
neidade das partes no quadro e a segunda pela sucessão dos 
momentos - espaço vs. tempo. O que Foucimlt faz é escan-
dir, no tempo, o quadro. Mas em que tempo? O do suspense. 
O de um texto que vai, a cada tempo, exalando novo e impor-
tante elemento - sempre, de alguma forma, inesperado. Um 
ritmo assim se produz, perturbador, sedutor. A pintura lida 
faz-se, mais e mais, ficção - se nesta damos a primazia ao 
inesperado, ao inventado. 
Como se constrói o inesperado? Para dizê-lo, principie-
mos da boutade, do gosto foucaultiano pela frase de efeito ou 
o repente; veja-se, em As palavras, o seu sarcasmo contra os 
"humanistas": "Constitui, no entanto, um reconforto, e um 
profundo apaziguamento o pensar que o homem não passa de 
um invenção recente, uma figura que não conta dois séculos, 
uma simples inflexão no nosso saber, e que há de desaparecer 
logo que este tenha encontrado uma forma nova" (p. 12). A 
frase que choca ou impressiona tem eficácia - a de ofuscar, a 
de permitir um novo conhecimento mediante o desalojar a ra-
zão, presa das rotinas. Pois o que está suposto, nesse tipo de 
texto, é que não se vai apenas argumentar pela razão com o 
adversário ou o leitor. Vai-se recorrer a outro tipo de pensa-
mento, um que excede a razão, e que para lidar com o adver-
sário bombardeia, se não a este, pelo menos os seus apegos . 
Ao leitor, busca-se surpreender, fazendo que perca suas rotas 
usuais mediante lampejos, pontuais, de sedução (como pode-
ríamos também pensar que agem certos aforismos de Nietzs-
(4) In Laocoonte. 
30 o DISCURSO DIFERENTE 
che); conhecer pelo amor, mas por um estranho tipo de amor, 
o que passa pela sUrPresa. 
A respeito da sUrPresa talvez o melhor texto seja este de 
Brillat-Savarin: "Todo o mérito de uma boa fritura provém da 
surpresa; é assim que se chama a invasão do liquido fervente, 
que, no mesmo instante e!ll que se dá a imersão, carboniza ou 
tosta a superfície externa do cOrPo imergido". 5 O trecho é da 
"Teoria da Fritura", meditação de gastronomia transcenden-
tal na qual Brillat-Savarin elogia esse recurso culinário por-
que introduz, nas festas, uma variaçãopicante nos pratos, 
porque os toma agradáveis à vista e especialmente aos dedos 
das senhoras, porque, finalmente, conserva o paladar primi-
tivo dos alimentos. E a fritura merece realmente uma teoria -
que passa pela química dos alimentos e dos cOrPos - porque, 
agindo mediante extremo choque térmico, supõe um uso mui-
to preciso do tempo: o da rapidez. Recorda outra imagem, de 
mesma época: a da cristalização, que Stendhal usa para expli-
car como se dá o enamoramento. "Nas minas de sal de Salz-
burgo, joga-se, nas profundezas abandonadas da mina, um 
galho de árvore desfolhado pelo inverno; retira-se dois ou três 
meses depois, coberto de cristalizações brilhantes: os menores 
ramos, os que não são mais grossos que a pata de um abe-
lheiro, vêem-se recobertos de uma infinidade de brilhantes, 
móveis e deslumbrantes; não se pode mais reconhecer o galho 
primitivo." 6 
Nos dois casos transfOrma-se o objeto, ou melhor, sua 
superfície externa; esta se toma irreconhecível: na cristaliza-
ção é a mudança que importa, porque o amor-paixão só conta 
no apaixonado, e por isso se nutre somente de aparências (me-
mórias, que são imaginações). Na fritura, porém, diz-se que a 
modificação que embeleza o fora não altera significativamente 
o dentro; este é reconhecível; o que pdderia valer,. igualmente, 
para a cristalização, e só não serve porque nesta não interessa 
o objeto que serviu de suporte aos diamantes. Estes últimos, se 
parecem ser ilusões, são porém a única realidade, porque se 
engastariam em qualquer apoio. Se há diferença nas transmu-
tações, é em primeiro lugar de ênfase (porque na cristalização 
(5) La Physiologie du goút ou méditations de gastronomie transcen-
dante(I825I, Paris, Flammarion, 1982, p.127. 
(61 Stendhal, Del'amour(I8201, cap.lI. 
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'1 RECORDAR FOUCAULT 31 
acentua-se somente a parte externa do objeto), e de tempo, 
em segundo - contrastando a lentidão do cristalizar com a 
rapidez da fritura. Assiste-se, nos dois casos, a uma modifica-
ção do objeto que, sem alterar seu interior, exalta, magnifica 
a sua superfície exterior. A "Teoria da Fritura" de Brillat-
Savarin é também o Glória da fritura. E a fritura, que con-
serva exaltando, é ajóia da culinária, seu momento de brilho. 
A sUrPresa dá ao texto parte de sua força. O uso da sur-
presa, como recurso de pensamento, supõe que se contesta 
uma razão que se restringiu a suas familiaridades, isto é, a 
seus hábitos. Para esse pensamento cansado, a sUrPresa é o 
melhor remédio ou, se quisermos usar a fórmula foucaultiana 
tão freqüente, a melhor estratégia. Assim, os talvez de Fou-
cault, os seus pequenos/atos menos avalizam uma modéstia, 
do que pertencem a um saber e um fazer militares. Foucault 
prolifera referências a estratégias, pensando os discursos. não 
como reflexos ou reprodução (efeitos, em suma), porém como 
aparelhos de guerra, estratégias de poder. Se ele as identifica 
nos discursos alheios, importa que também as assinalemos no 
seu. 
A sUrPresa é um princípio de economia militar - tentar 
fazer que forças relativamente inferiores se valham de agili· 
dade para vencer inimigo mais poderoso; fazer que no tempo 
a rapidez, no espaço a mobilidade, em suma a energia, preva-
leçam sobre a massa. Talvez tenha algo em comum com a as-
túcia,7 porque depende, muito, de se esconder o intuito até o 
momento de fulminar. Usar de sUrPresa na guerra é, podemos 
dizer, introduzir o teatro na arte militar: aumentar, nos en-
contros armados, a importância das simulações, dos disfarces 
e enganos. Contudo, o maior teórico militar do século XIX. 
conde ·von Clausewitz, não preza a sUrPresa: reconhece que 
ela está "no fundamento de todos os empreendimentos, pois 
não se pode conceber, na sua falta, a superioridade em um 
ponto decisivo"; diz que pertence, portanto, à natureza da 
guerra que todo chefe militar queira vencer pela sUrPresa; mas 
sentencia que isso é ilusão. "A sUrPresa faz parte do domínio 
da tática, pela simples razão de que, nesta, todos os dados de 
tempo e lugar são mais curtos. Na estratégia, ela será mais 
(7) o capítulo de Clausewitz sobre a astúcia segue-se imediatamente ao 
que trata da surpresa. 
32 o DISCURSO DIFERENTE 
viável na medida em que as iniciativas a se tomar se aproxi-
mem do domínio tático, e mais difícil na medida em que tais 
meios se elevem ao nível da política." 8 Ou seja: a surpresa 
serve para ataques pontuais, como a conquista de uma ponte; 
não, porém, para ganhar uma guerra: se analisamos melhor 
as vitórias obtidas por surpresa, vemos que se deveram antes 
ao despreparo, à distração, aos erros do vencido; em dimen-
são estratégica, seria mais apropriado afirmar que a surpresa 
inflige derrotas, do que faz vitórias. 
Ora, importa notar que, embora Foucault não tenha che-
gado a teorizar a guerra, tanto o seu uso literário da surpresa 
quanto o papel que atribui à estratégia se opõem aos valores 
de Clausewitz. Para o general prussiano, a estratégia tem por 
sujeito o Estado. Ele a define no capo 1 do Livro II de Da 
Guerra: se "a tática é a teoria relativa ao uso das forças arma-
das no combate, a estratégia é a teoria relativa ao uso dos 
combates a serviço da guerra" (p. 118). Mas Foucault, quan-
do propõe uma nova abordagem do poder, em Vigiar e punir, 
diz que sua "microfísica supõe que o poder ... não seja conce-
bido como propriedade, porém como uma estratégia ... que 
receba como modelo a batalha perpétua mais do que o con-
trato que efetua uma cessão, ou do que a conquista que toma 
um domínio" (p. 31 do original francês). Nesse esboço, que 
não chega a ser uma conceituação, vemos que convém mais, a 
Foucault, entender a estratégia segundo a batalha do que se-
gundo a guerra; para Clausewitz, porém, a guerra não se 
pensa pelas batalhas, sequer por uma suposta batalha perpé-
tua; sua compreensão depende da política, tendo o Estado por 
sujeito. O gênio de Frederico, o Grande, esteve justamente em 
esquivar as batalhas que não poderia ganhar; foi bom general 
por ser um grande rei. Já a estratégia, tal como a usa Fou-
cault, não é mesma de Clausewitz: mais parece ser uma am-
pliação do conceito que este tem de tática. E há razão para 
isso: Foucault não dá, ao político ou aos conflitos, um sujeito 
(pouco importa se consciente ou não), que poderia ser o Es-
tado. Prefere situá-los nas instâncias as mais disseminadas -
os "mil poderezinhos" - em que se espalha o social; é por 
isso que a batalha, o choque pontual, servirá de modelo para 
181 Carl von Clausewitz, De la guerre 11832-341, livro 111, capo 9, pp. 
207-208 da trad. francesa; Paris, Minuit, 1970. 
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RECORDAR FOUCAULT 33 
ele pensar o poder. Da mesma forma, a surpresa, que mais 
cabe na batalha que na guerra, que para Clausewitz se restrin-
ge à tática sem jamais se ampliar à estratégia, poderá marcar 
o discurso foucaultiano. 
Entenderemos melhor a surpresa referindo-nos ao c1ause-
witziano Mao Tse-tung. Nos anos 30, tendo que enfrentar 
exércitos do Kuomintang muito superiores ao seu, formulou 
uma linha de combate para o Exército Vermelho: estrategica-
mente, estamos na proporção de um para cada dez inimigos; 
não podemos aceitar uma guerra frontal; só travaremos ba-
talha quando - na dimensão tática, portanto - formos vá-
rios contra um. É claro que isso se enquadra numa estratégia 
mais ampla, a da guerra revolucionária, Mas, pontualmente, 
trata-se de fazer um uso intensivo da surpresa - princípio 
muito mais importante nessa guerra de guerrilhas do que na 
tradicional. Ora, se este é o sentido tático da surpresa, que 
papel ela terá no discurso de Foucault? A surpresa é arma da 
minoria; modo de intervir contra um inimigo superior, num 
ponto seu que é fraco; modo de inverter, pontualmente, a re-
lação de forças, convertendo a inferioridade global em supe-
rioridade local. Um discurso minoritário não é o que tema-
tiza, ou defende, as minorias - raciais, sexuais, religiosas; é o 
que se recusa a globalizar,a totalizar o pensamento _ que 
nega matrizes, como a hegeliana. É essa natureza do discurso 
foucaultiano, essa sua tenção, que fOIja a sua tensão; são as 
surpresas, os inesperados, a aparente arbitrariedade dos re-
cortes e ênfases, que dão ao discurso o seu suspense. , 
Se voltamos agora a Borges e V elázquez, vemos que am-
bos abrem, em As palavras, janelas de imaginário ao pensa-
dor. Cavam, no seu roteiro, o inesperado. Liberando-o dos há-
bitos de uma razão preguiçosa, que se satisfaz com filiações e 
totalidades, a literatura e a pintura fazem-no meditar o pouco 
pensado ou o não-pensável de uma época - temas que serão 
constantes em Foucault. Mas o importante não é a citação de 
Borges, nem a análise de Velázquez: é que o próprio Fou-
cault arme seu discurso de recursos literários, para pô-lo a 
serviço do pensar. Da mesma forma que em seus livros, tam-
bém nas aulas do College de France ele contava histórias 
exemplares; estas até tinham um timing exato: como muitos 
ouvintes gravavam a aula, Foucault aproveitava o momento 
em que trocavam a fita de lado (aos 4S minutos de fala) para 
34 o DISCURSO DIFERENTE 
um interlúdio, uma anedota significativa - que é claro, to-
dos tentavam também gravar; a própria pausa excitava o dis-
curso_ As historietas, imagens e metáforas, o talvez, a sur-
presa e o suspense - todos esses elementos literários, em vez 
de interromperem ou degradarem o discurso, sustentam-no, 
dão-lhe gume_ Ao contrário de uma tradição filosófica forte, 
que desconsiderou o literário como forma de conhecimento, 
Foucault incorporou-o no seu próprio texto, como indutor de 
pensamento. 
Foucault assim segue, mais e mais, a lição de Borges: 
desconcertar os hábitos de nossa razão para fazer-nos pensar. 
Em A vontade de saber, por exemplo, afirma: "Afinal de con-
tas, somos a única civilização em que certos prepostos rece-
bem retribuição para escutar cada qual fazer confidência so-
bre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso 
se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades 
da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em loca-
ção" (p. 13). Da afirmação de fato, peremptória (somos a 
única civilização ... ), salta, não para uma explicação, mas 
para outro registro, hipotético, talvez ficcional: como se. E, se 
não pensarmos a ficção como mentira, mas como acréscimo 
ou invenção, tratar-se-á mesmo de ficção - porque a frase 
vale, antes de mais nada, pelo bene trovato. Foucault não irá 
argumentar, demonstrar; é verdade que o. faz tantas vezes, e 
que seu discurso se escora sempre em rigorosa freqüentação 
dos textos, em sólida informação histórica; mas há ditos, dos 
mais salientes, que seria inútil e dispensável justificar (como 
esse), porque captam de imediato a adesão do leitor - ou 
não. Se a captam é pelo bene trovato, a trouvaille, o achado: 
pelo engenho. E a que monta o achado? É uma forma de in-
venção; não é tanto uma explicação, um simulacro teórico que 
dê conta dos objetos, que os reduza - é a constituição de um 
novo discurso, que com os anteriores dialoga, que a eles se 
agrega, com sua forma nova e distinta. Este discurso dife-
rente, que não quer a prova de verdade, tem o seu muito de 
literário - se pensarmos a literatura, mais uma vez, com Jor-
ge Luís Borges. De quem cito, para concluir, Una rosa ama-
rilla: "Então aconteceu a revelação. Marino viu a rosa, como 
Adão pôde vê-Ia no Paraíso, e sentiu que ela estava em sua 
eternidade e não em suas palavras, e que podemos mencionar 
ou aludir porém não expressar, e que os altos e soberbos vo-
l. 
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L,-
RECORDAR FOUCAULT 
3S 
lumes que formavam num ângulo da sala uma penumbra de 
ouro não eram (como sua vaidade sonhara) um espelho do 
mundo, mas sim uma coisa mais acrescentada ao mundo". 9 
(9) Bhacedor, Buenos Aires, 1965, pp. 31-32. 
Foucault leitor de Nietzsche 
Scarlett Marton* 
As referências de Foucault a Nietzsche estão presentes 
ao longo de sua obra, desde A hist6ria da loucura até os cursos 
proferidos no CoUege de France em 1976 - sem mencionar 
artigos e entrevistas. I As marcas que a leitura do filósofo 
deixou em seu pensamento são, sem dúvida, perceptiveis: de-
sinteresse por uma obra sistemática, primado da relação sobre 
o objeto, papel relevante da interpretação, importância dos 
procedimentos estratégicos e até mesmo absorção da noção de 
genealogia. Seu próprio método teria surgido, de acordo com 
Paul Veyne, da meditação sobre alguns textos de Nietzsche.
2 
Foucault, porém, adverte: "A história do saber só pode ser 
feita a partir do que lhe foi contemporâneo e não, é claro, em 
termos de influência recíproca, mas em termos de condições e 
(*) Da Universidade Federal de São Carlos. 
(1) Dentre eles: a "Resposta ao Circulo de Epistemologia" publicada 
nos Cahiers pau! I'Ana/yse, n? 9, verão de 1968; "Conversa sobre a prisão: 
o livro e seu método", no Magazine Littéraire, n? 101, junho de 1975, e "Ques-
tões a Michel F:~ucault sobre a geografia", em Hérodote. n? 1, 1976. 
(2) "Foucault révolutionne J'histoire" in Gomment on écrit I'histoíre, 
Paris, Seuil, 1978, p. 240, nota 11. Veyne refere-se ao parágrafO 11 da Primeira 
Dissertação de Para a genealogia da moral e aOS aforismos 70 e 604 da edição 
canônica da Vontade de potência. 
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L, 
RECORDAR FOUCAULT 37 
de a priori constituídos no tempo" 3 - o que se poderia aplicar 
a seu próprio pensamento. Não se trata aqui, portanto, de 
analisar de que maneira seu trabalho se teria inspirado nas 
idéias de Nietzsche nem de indagar em que medida seu pro-
jeto teria sido por elas influenciado. 
O que pretendemos é investigar que leitura Foucault faz 
de Nietzsche. Para tanto, contamos examinar dois textos espe-
cificos que tratam diretamente do filósofo: "Nietzsche, Marx, 
Freud", comunicação no Colóquio Nietzsche realizado em 
Royaumont em 1964, e "Nietzsche, a genealogia, a história", 
artigo no volume em Hommage à Jean Hyppolite, de 1971. 
Refazendo o percurso desses textos, esperamos mostrar, num 
primeiro momento, como algumas idéias de Nietzsche são ilu-
minadas pela perspectiva foucaultiana, para depois inquirir se 
não chegam a opor-lhe certa resistência. 
Na comunicação de 64, Foucault aproxima Marx, Nietz-
sche e Freud, fazendo ver que no século XIX eles teriam inau-
gurado uma nova hermenêutica: em vez de multiplicarem os 
signos, modificaram sua natureza e criaram outra possibili-
dade de interpretá-los. Se na hermenêutica do século XVI os 
signos se dispunham de modo homogêneo em espaço homo-
gêneo, remetendo-se uns aos outros, no século XIX aparecem 
de modo muito mais diferenciado, segundo a dimensão da 
profundidade, entendida como exterioridade. Se antes o que 
dava lugar à interpretação era a semelhança, que enquanto tal 
só podia ser limitada, agora a interpretação torna-se tarefa 
infinita. Nessa medida, a filosofia de Nietzsche - que é o que 
nos interessa - seria "uma espécie de filologia sempre em 
suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sem-
pre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma 
absoluta". 4 
Essa idéia, aliás, aparece em outros textos. No prefácio 
ao Nascimento da clínica, Foucault afirma que Nietzsche, fi-
lólogo, comprova que à existência da linguagem se vinculam a 
possibilidade e necessidade de uma critica.5 Em As palavras e 
as coisas, declara que Nietzsche, filólogo, foi o primeiro a apro-
(3) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 221. 
(4) "Nietzsche, Freud, Marx", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont -
Philosophie, n? VI, Paris, Minuit, 1967, p. 188. 
(5) Naissance dela clinique, Paris, PU F, 2~ ed., 1972, prefácio, p. XII. 
I, 
38 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE 
ximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a lin-
guagem. 6 E, ao tratar da renovação das técnicas de interpre-
tação no século XIX, sustenta que a filologia se tornou a 
forma moderna da crítica e recorre, para ilustrar essa tese, à 
análise de uma passagem do Crepúsculo dos idolos: "Temo 
que não nos desvencilharemosde Deus, porque ainda acredi-
tamos na gramática ... ". 7 Deus estaria antes num aquém da 
linguagem do que num além do saber. 8 
Em Royaumont, Foucault vê a interpretação como tarefa 
infinita e liga seu caráter sempre inacabado a dois outros 
princípios: se ela não pode acabar, é porque não há nada a ser 
interpretado (todo interpretandum já é um interpretans); e, 
como ela não acaba, acha-se obrigada a voltar-se sobre si 
mesma (toda interpretação é levada a interpretar-se). Assim, 
para Nietzsche, as palavras não passariam de interpretações; 
estas apareceriam como signos ao buscarem justificar-se, e os 
signos, ao tentarem recobri-Ias, nada mais seriam do que 
máscaras. Foucault encararia, desse ponto de vista, a análise 
etimológica do termo agathos - presente no quarto e quinto 
parágrafos da Primeira Dissertação de Para a genealogia da 
moral - onde Nietzsche mostra como esse termo nasce do 
conceito de "nobre", no sentido de posição social. E provavel-
mente leria, ainda nessa perspectiva, a afirmação do segundo 
parágrafo da mesma Dissertação: "O direito dos senhores, de 
dar nomes, vai tão longe, que se poderia permitir-se captar a 
origem da linguagem mesma como exteriorização de potência 
dos dominantes: eles dizem, 'isto é isto e isto', eles selam cada 
coisa e acontecimento com um som e, com isso, como que 
tomam posse dele". 
Finalmente, duas conseqüências decorrem do princípio 
de a interpretação ter de voltar-se sobre si mesma: ela não tem 
um termo de vencimento como os signos, mas seu tempo é 
circular; e não se ocupa mais com o significado, mas indaga 
(6) Lesmotsetleschoses, p. 316. 
O) Crepúsculo dos ídolos, a "razão" na filosofia, § 5. Utilizamos a edi-
ção das obras de Nietzsche organizada por G. ColIi e M. Montinari, Berlim, 
Walter de Gruyter & Co., diferentes datas conforme os volumes. Sempre que 
possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o vo-
lume Nietzsche _ Obras Incompletas, da coleção "Os Pensadores", São Pau-
lo, Abril Cultural, 2~ ed., 1978. 
(8l Cf. Lesmotsetleschoses, p. 311. 
b 
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RECORDAR FOUCAULT 39 
quem interpretou. Em Nietzsche, diz Foucault, "o princípio 
da interpretação nada mais é do que o intérprete". ' Nessa 
direção, leria provavelmente o aforismo 45 de Humano, de-
masiado humano, no qual o filósofo afirma que bem e mal 
têm uma dupla pré-histórica: em primeiro lugar, "na alma 
das raças e castas dominantes" e, em segundo, "na alma dos 
oprimidos, dos impotentes". Bem e mal não indicariam um 
significado, mas imporiam interpretações, e lidar com elas 
importaria perguntar quem as colocou. 
Portanto, no entender de Foucault, o caráter inovador do 
pensamento nietzschiano residiria no fato de ter inaugurado 
uma nova hermenêutica. Nietzsche não se empenharia em 
tratar dos significados nem se preocuparia em falar do mun-
do, mas se dedicaria a interpretar interpretações. E, ao fazê-
lo, partiria sempre da pergunta por quem interpretou. Nessa 
medida, sua filosofia seria antes de mais nada filologia sem 
ponto de chegada. Abrindo o espaço filológico-filosófico com 
a questão: quem fala? ligaria a possibilidade e necessidade de 
uma crítica com a reflexão radical sobre a linguagem. Por ora, 
deixemos em suspenso essas colocações e passemos ao exame 
do texto de 71, para adiante retomá-las. 
Em "Nietzsche, a genealogia, a história", Foucault recu-
pera, ainda que rapidamente, a questão da interpretação, li-
gando-a desta vez à idéia de genealogia. Com isso, é levado a 
referir-se necessariamente ao que chamamos, em Nietzsche, 
de teoria das forças. Nesse artigo, a genealogia nietzschiana é 
entendida como análise da proveniência e história das emer-
gências. Proveniência e emergências constituiriam seu objeto. 
A proveniência (Herkunft) não funda, não aponta para uma 
continuidade, não é uma categoria da semelhança. Perguntar-
se pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de 
uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para 
assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda 
está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fun-
dá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar 
desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob 
o que se imagina conforme a si mesmo. A emergência (Ents-
tehung), por sua vez, não se confunde com o termo final de 
. um processo, mas constitui "princípio e lei singular de uma 
(9) "Nietzsche, Freud, Marx", p. 191. 
40 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE 
aparição". 10 No indagar sobre a emergência de um órgão ou 
de um costume, não se trata de explicá-los pelos antecedentes 
que os teriam tornado possíveis, mas de mostrar o ponto de 
seu surgimento; não cabe compreendê-los a partir dos fins a 
que se destinariam, mas detectar um certo estado de forças 
em que aparecem. 
Nessa perspectiva, seria possível considerar, por exem-
plo, a genealogia dos conceitos "bem" e "mal". A análise de 
sua proveniência mostraria que não existem em si, idênticos a 
si mesmos; ao contrário, comportam marcas diferenciais, tra-
duzem acidentes e desvios de percurso, denunciam heteroge-
neidades. A história de suas emergências revelaria que, em vez 
de constituírem termos finais de um processo, surgem em cer-
tos estados de forças. Seria possível ainda ler a exigência 
mesma que Nietzsche se impõe no prefácio a Para a genealo-
gia da moral, parágrafo 6: "Precisamos de uma crítica dos 
valores morais, devemos começar por colocar em questão o 
valor mesmo desses valores, isto supõe o conhecimento das 
condições e circunstâncias de seu nascimento, de seu desen-
volvimento, de sua modificação (a moral como conseqüência, 
sintoma, máscara, tartufaria, doença, mal-entendido, mas 
também como causa, remédio, stimulans, empecilho ou ve-
neno), enfim, um conhecimento tal como nunca existiu até o 
presente e como nem mesmo se desejou". 
Segundo Foucault, a emergência diz respeito à entrada 
em cena de forças. Ao irromperem, lutando umas contra as 
outras, é sempre uma mesma peça que se apresenta: a que 
envolve dominantes e dominados. Assim como do domínio de 
classes por outras classes surge·a idéia de liberdade, e do do-
mínio das coisas pelos homens aparece a lógica, do domínio 
de homens por outros homens vai nascer a diferenciação dos 
valores. Com esses processos de dominação, estabelecem-se 
sistemas de regras; contudo, ao contrário do que se poderia 
supor, eles não visam a suprimir a guerra e instaurar a paz. 
"A regra", afirma Foucault, "é o prazer calculado do com-
bate, é o sangue prometido. Permite relançar sem cessar o 
jogo da dominação, põe em cena uma violência meticulosa· 
(10) "Nietzsche, la gênêalogie. I'histoire", ;n Hommage à Jean Hyppo-
lite, Paris, PUF, 1971, p. 154. 
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L 
RECORDAR FOUCAULT 41 
mente repetida." 11 Portanto, a existência de regras possibilita 
a inversão de uma relação de forças, viabiliza que sejam do-
minados os que dominam. Ao apossarem· se de sistemas de re-
gras estabelecidos, as forças impõem-lhes uma nova direção. 
Desse ponto de vista, seria possível entender, por exemplo, a 
tese nietzschiana da transvaloração de todos os valores, trans-
valoração que já se verificaria, num primeiro momento, com o 
advento do cristianismo, Seria ainda possível compreender a 
afirmação do parágrafo 195 de Para alem de Bem e Mal: 
"Nessa inversão dos valores (que emprega a palavra 'pobre' 
como sinônimo de 'santo' e 'amigo') reside a importância do 
povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na moral" . 
De acordo com Foucault, sistemas de regras, como valo-
res morais, conceitos metafísicos (inclusive a idéia de liber-
dade), procedimentos lógicos e até a própria linguagem, não 
têm um significado originário, mas são vazios, feitos para se-
rem utilizados. Estão à mercê de forças, que deles se apossam, 
imprimindo-lhes em cada inversão de relação, em cada pro-
cesso de dominação, um novo sentido, E assim se acha outra 
vez cercada a questão da interpretação. "Interpretar", afirma 
Foucault, "é apoderar-se,

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