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, ·IC ." " .' . . ' , '. ~ . . • • f, •• " L~~_~ • Ao Leitor sem Medo - Hobbes escrevendo contra o seu tempo - Renato Janine Ribeiro • Crime, Violência e Poder - Paulo Sérgio Pinheiro (org.) • Elegia Erótica Romana - Paul Veyne • Escritos Indignados - Paulo Sérgio Pinh~iro • Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko • Nietzsche Hoje? - Scarlett Marton (org.) • A Ordem Médica - Jean Clavreul • Passeios ao Léu - Gérard Lebrun • Pornéia - Aline Rousselle • Repressão Sexual - Essa nossa (deslconhecida - Marilena Chauí • Sade, Meu Próximo - Pierre Klossowski • Terra Sem Mal - O profetismo tupi-guarani - Hé/(me C/astres Coleção Primeiros Passos • O que é Poder - Gérard Lebrun Coleção Tudo é Hist6ria • A Etiqueta no Antigo Regime - Renato Janine Ribeiro . , , I ~, Renato Janine Ribeiro (orlo) I ~ ., Recordar Foucault Os textos do Colóquio Foucault 0111 °Vi f ~ j 1985 .1 -.J f \ Copyright © dos Autores Capa: João Baptista da Costa Aguiar Revisão: José W. S. Moraes Lenilda Soares Mârcia Copola _._-~----- , iJFR~S/SCrascSH A "'O' ,,' .De- o .-< 1' .. ,.q,./~4V,.,;..,.O I \ ~C.evu . ( 'r(';:'~:o,,,.,.:;: Enrp!/)lIoo: ~'~ :!.fr~"\ \.V.i '~~;~A~~ F:cCQi: ,'- :':,ço , 2-0 -0-0 ;""\1.: J 6J 41-4 Dal .. :}Joog-DV .n3'!itutol\;u~! j FCH -- ----------- l~ lUU Editora Brasiliansa S.A. R. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP Fone (011) 231-1422 t;'_ J r, r 1 ~: '-.,' .'~ '7 () I'C'" IV /) ~ . ' ~ ,- ~' .. J • Lomce~ ____ ~ ________ _ Apresentação - Renato Janine Ribeiro. . . . . . . . . . . . .. . 7 Transgredir a finitude - GérardLebrun' .. . ; :0_. . • •• • • • 9 O discurso diferente-RenatoJanine Ribeiro . ... ; ... 0 •• - 24· Foucaultleitor de Nietzsche - Scarlett Marton ........ 36 Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites - Pie"e Macherey ..................... 47 A corporeidade outra -José Carlos de Paula Carvalho .. 72 Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanãlise - RenatoMezan ... ;'........................... 94 A loucura antes da história -JoãoA. Frayze-Pereira . . .. 126 História e doença: a partitura oculta (A lepra em São Paulo, 1904-1940) ....,.italoA. Tronca .............. 136 , O Alienista de Machado,de Assis: a loucura e a hipérbole -Luiz Dantas ... _ ... :' .... _ . : .. ' ... ': ..... '. ' .. '. '. '144 .. A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda -Hilário FrancoJr . ..................... 153_ Charles Baudelaire: o discurso em desordem - Nicolau Sevcenko . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 186 O lugar das instituições na sociedade disciplinar - Salma TannusMuchail .......... _ ................... 196 Genealogia e política - Antonius Jack Vargas Escobar .. 209 De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil- L. Margareth Rago ........................... 219 O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial - SilviaHunoldLara ............................ 229 ..J rf Foucault: levantamento bibliográfico de artigos e perió- dicos - Márcia C. Sampaio Ferraz, Vera Lúcia Jun- queira, Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunice do Vale 239 I 1 ~. ",,". ". " \.. ~; ",I l 1.~". _ 'i., W : :~f~ ApresentaçãoOL.. _____ _ Michel Foucault faleceu em junho de 1984. Estava em plena produção intelectual, e sua morte foi muito sentida - inclusive no Brasil, onde, das vezes em que esteve, deixou amigos, admiradores e idéias. Em São Paulo, especialmente, lecionou duas vezes no Departamento de Filosofia da USP, uma em 1965, na rua Maria Antônia, outra em 1975, já na Cidade Universitária - interrompendo este segundo curso em protesto contra atos de repressão policial. Também deu con- ferências, acorridas, no Rio de Janeiro. Para lembrá-lo, O Departamento de Filosofia da USP promoveu um Col6quio sobre a sua obra e os seus temas, de 15 a 20 de abril de 1985, com O apoio da FAPESP e da Bra- siliense Produções Culturais. Este volume publica parte dos trabalhos apresentados ao Col6quio Foucault, que teve a par- ticipação de quarenta pesquisadores, comunicando-se seus interesses, discutindo suas inquietações. Recordar Foucault, para n6s, não é porém pagar uma dívida da instituição com O visitante: é marcar a nossa proxi- midade de um pensamento que não nos proporcionou apenas conhecimentos, infundiu-nos, também, inquietações - que são a consciência de nossos desconhecimentos. Não é esta uma velha obsessão filos6fica, a de saber-se que não se sabe? De S6crates a Hobbes, a Merleau-Ponty, entre tantos outros, a paixão de conhecer esteve ligada a uma depuração, a um des- prendimento; a douta ignorância, os elogios da curiosidade e dafilosofia marcam uma ascese - que é um processo de vida. "" 'f i 8 APRESENTAÇÃO Este moto perpetuo da curiosidade, que consiste em desfazer as figuras que se construiu, desfazê-las com tanto rigor quan- to se pôs em edificá-las, é um dos sentidos fortes, para n6s, do que é pensar. Há, certamente, muitos estilos de pensamento e filosofia; neste proprio livro aparecem vários, distintos; mas a cercania que temos de Foucault está neste amor a um pensa- mento que, como o de Heidegger (O que significa pensar?), jamais se reduziu à mera razão, a um trabalho de obra que nunca restringiu a descoberta em favor da exposição, neste amor, enfim, à descoberta que faz e desfaz. Pudéssemos n6s, antes de passarmos às falas sobre Foucault, fazer nossas as frases dele, perto de morrer, na bela página em que resume o que entendeu por filosofia: O motivo que me impulsionou [a escrever este livro] foi muito simples. Para alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade - em todo caso, a única espé- cie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer. mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aqui- sição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refle- tir. ( ... ) O "ensaio" - que é necessário entender como expe- riência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunica- ção - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerclcio de si, no pensamento. (O uso dos prazeres, trad. Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 13) Renato Janine Ribeiro Organizador do Colóquio Foucault Este é o momento de agradecer: à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo auxilio que proporcionou ao Colóquio; a Marilena Chaui, pelo impulso; a Jorge Coli, que se deu ao trabalho de transcrever, pelo telefone internacional, a comunica- ção de Luiz Dantas, para que chegasse a tempo; a Djalma lsidoro de Mello, a Scarlett Marton, aos funcionârios do Departamento de Fi- losofia da USP e a todos os que apoiaram o Col6quio, trazendo-lhe os seus textos e idéias, a sua curiosidade ou a sua atenção. v ""'oO'.:- •. ~: I ~ . ,.... j ,O'f ~,_, Transgredir a tinitude Gérard Lebrun* F oucauit descreve em várias ocasiões, e sob vários enfo- ques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao passar-se do século XVIII para o XIX, quando desaparecem os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da repre- sentação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o encadeamento das naturezas simples, ou o encaixamento das espécies naturais. Também era óbvio que a ordem das coisas, já por seu princípio, era passível de desdobrar-se num quadro. Conhecer era ver, "no sentido de perceber". E, mercê do bomuso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, da contínua supressão da distância - aliás puramente apa- rente - entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que se rompe quando emergem, desligados da Representação, es· tes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a lingua- gem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e se dissolve "o campo homogêneo das representações ordena- das" . 1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do co- nhecimento-visão: ver será "conservar, da experiência, a maior (*) Da Universidade de São Paulo. (1) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 255. (As citações são traduzidas do francês, diretamente; damos, porém, 'quando possrvel, a pá- gina da tradução disponivel em português - neste caso, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugâlia Editora, 1968, pp. 318-319 - N.T.) rI I 1 10 TRANSGREDIR A FINITUDE opacidade corporal" possível, e "penetrá-Ia com um olhar que nunca lhe traz mais que a sua própria claridade". 2 O ser hu- mano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Di- vino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathésis ou a ordem taxionômica. Submetido "à Vida, à Vontade, à Pala- vra", o ser humano - transformado em homem - agora so- mente poderá praticar o "Conhece-te a ti mesmo" mediante recurso a saberes que não mais dependem de sua clara cons- ciência, e que ameaçam o seu estatuto de Sujeito. Assim sendo, esses novos saberes encerraram o ser hu- mano numa finitude muito diferente da que fora delineada pela ontoteologia. 3 Relativamente ao saber divino, a finitude clássica designava tudo o que tolhia o acesso do homem à ver- dade. Qual era o meio excelente de reconhecê-Ia? Os erros dos sentidos e da imaginação. Vejo o Sol a duzentos passos, o bastão quebrado dentro d'água, a Lua maior no horizonte do que no zênite: nostrae naturae infirmitas ... Contudo, quando a Vida, a Linguagem e o Trabalho se tomam, na sua própria opacidade, objetos de saber, é uma outra idéia de finitude que se impõe. Para marcar esta nova Finitude, já não é mais pre- ciso meditar na dependência da substância criada relativa- mente ao Criador, ou na fragilidade do "junco pensante" pe- rante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. Não é mais preciso, sequer, confrontar as condições de meu conhecimento com a Idéia de um "entendimento intuitivo". Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara ao pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se pode pôr como sujeito e como indivíduo porque já está "apri- sionado" num elemento estranho, investido por algo que lhe é Outro. - Por certo, o classicismo podia falar de "meu lugar limitado no universo, (de) todos os marcos que medem o meu conhecimento e a minha liberdade" - mas não chegava a reconhecer esta alienação constitutiva, inextirpável. Ê verdade que a Terceira Meditação me recorda que "não sou o autor de meu nascimento e de minha existência". Mas, no âmago desta existência, ainda há enorme lista das (2) Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, p. IX. Nascimento da cllnica, Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitãria, 19n, p. XII. 13) Naissance de la clinique, p. 200; Les mots et les choses, pp. 3Zl e segs. Nascimento da clinica, p. 228; As palavras e 8S coisas, pp. 411 e segs. 1.~'" ~ \; .t", .. t; RECORDAR FOUCAULT 11 coisas de que não sou autor: a língua que falo, a sexualidade que me coube, as relações de produção que me tomam, etc. Ora, nestes temas, o pensamento clássico apenas poderia identificar outras tantas formas de minha posição de inferiori- dade perante o infinito - sinais suplementares de uma situa- ção humilhante, é certo, porém ainda assim invejável na or- dem da Criação. Nada, em todo caso, que indique que algo contesta, ameaça o pensamento no seu próprio interior. Uma tal eventualidade cuida Descartes de descartar desde o início: "Nunca se pode excluir que o homem enlouqueça, porém o pensamento, enquanto exercício da soberania de um sujeito que atende ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode ser insensato". 4 - Será preciso aguardar o homem da epis- teme moderna - ou melhor, "a figura nova" que recebeu "esse velho nome" 5 - para que a Finitude não seja mais pen- sada como um território cujos limites posso traçar, mas sim entrevista como a própria sombra do homem, como uma opa- cidade origmária que nenhum exercício da consciência de si jamais poderá dissipar. Ê desta "experiência" que brota a analítica moderna da Finitude: "(o homem), desde que pensa, desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a forma de um ser que já é - numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade - um vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que a ele preexis- tem". ' Assim nasce o "Cogito moderno", a respeito do qual disse Merieau-Ponty que "ele não define a existência do su- jeito pelo pensamento que tem este de existir, nem converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo" . Um cogito, portanto, que constata a impossibilidade de igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou - e que Foucault analisa, pastichando Descartes. - Quando Descartes preten- dia determinar, de maneira apoditica, "qual eu sou eu, eu que eu reconheci ser", ele procedia por exclusões: "Não sou, abso- lutamente, esta reunião de membros ... não sou, absoluta- mente, um ar sutil e penetrante ... não sou, absolutamente, um vento, um sopro ... ". O sujeito moderno certamente tam- (4) Histoire de /a folie à /,âge classique, Paris, Gallimard, 2~ ed., 1972, p. 58; História da/oucura, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 47. (5) Lesmotsetleschoses, p. 333; Aspa/avrss8as coisas, p. 419. (6) Lesmotsetleschoses, p. 324; Aspalavraseas coisas, p. 408 . ri i , \ 12 TRANSGREDIR A FINlTUDE bém poderia praticar a mesma exclusão indefinida: "Poderei eu dizer que sou esta linguagem que falo ... ? Poderei eu dizer que sou esta vida que sinto no fundo de mim ... ?". 7 Não, não posso. E no entanto, por estranhos que me sejam estes ele- mentos, não resido neles como um piloto em seu navio. "Tanto faz eu dizer que sou, ou que não sou, tudo isto." Por isso, é preciso reformular a questão cartesiana, e perguntar: "Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para eu ser o que eu não penso, para que meu pensamento seja o, que eu não sou?". 8 * * * Contudo, é hora de recordar que Foucault não estã fa- lando aqui, em seu próprio nome: contenta-se em designar um lugar, em seu mapa arqueológico, à "Finitude moderna" - e, muitas vezes, dã a palavra a Merleau-Ponty, esse incan- sãvel crítico do "pensamento que sobrevoa". Como poderia o pensamento, perguntava Merleau-Ponty, elidir o seu enrai- zamentono corpo, na linguagem, na infância? A menos que vã viver em Sírius, ele terã de reconhecer que "o espírito é o outro lado do corpo", que ,"o mundo sensível é mais velho que o universo do pensamento". Este tema Foucault retoma quan- do vai descrever o "Cogito moderno": "Como pode o homem ser o sujeito de uma linguagem que se formou sem ele, desde milênios, e cujo sistema lhe escapa ... ?". 9 Vale a pena repetir: Foucault fala aqui como arqueólogo, e descreve a forma de Finitude que devia necessariamente corresponder à "era do homem" . Da mesma maneira, mutatis mutandis, que a Feno- menologia do Espírito descrevia "a consciência infeliz" ou "a Aufkliirung" . Acontece, porém, que o arqueólogo se desfaça de sua neutralidade e emita um juízo - severo - sobre a analítica da finitude. Pois este discurso gira no vazio. O seu combate contra o cientismo e o positivismo jã de nada serve: "A ver- dadeira contestação ao positivismo não estã num retorno ao vivido ... ". O retorno ao vivido fica aprisionado num vaivém (7) Les mots et Iss choses, p. 335; As palavras e as coisas, p. 422. (S) Los mots et les choses, pp. 335-336; As palavras e as coisas, p. 422. {9l Les mots et les choses, p. 334; As palavras e as coisas,pp. 420-421. ~ \, '0. 0 ~; RECORDAR FOUCAULT 13 sem fim, entre a descrição e a fundação. Praticamente não nos reserva surpresas, pois jã estamos previamente assegura- dos de "descobrir no homem o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, para concluir, a verdade de toda a verdade". 10 Mais ainda: esse discurso nos mantém num novo sono dogmãtico, que só acabarã quando se tiver a cora- gem de reconhecer que o homem não passa do nome de um dispositivo da episteme moderna, e quando se tiver "suspen- dido ... o preconceito antropológico sob todas as suas for- mas", para "tornar a interrogar os limites do pensamento". Nietzsche, acrescenta Foucault, foi quem deu o sinal para isso. - Sartre parece constituir o principal alvo dessa pãgina. Mas Foucault visa, para além dele, toda a analítica da finitude - isto é, a fenomenologia e sua derivação existencialista. Depois de analisar a sua dialética com uma minúcia que o leitor des- prevenido confundirã com simpatia, declara-nos sem mais ce- rimônias que toda essa filosofia é estéril, e que o seu esgota- mento bem poderã marcar, de uma vez por todas, a falência de todo um estilo de pensamento. Hã, porém, em pelo menos uma outra passagem de As palavras e as coisas, a abertura de um enfoque algo diferente sobre a fenomenologia. A analítica da finitude - é o que diz Foucault - mostra "como o pensamento pode escapar de si mesmo", e às vezes acontece que ela questione o ser do ho- mem, "nessa dimensão' pela qual o pensamento se dírige ao impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em equívoco, se levãssemos demasiado a sério o projeto oficial de Husserl. A fenomenologia não é "a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente" . 11 Ela também foi uma filo- sofia da "era do homem", de modo que não hã o que estra- nhar se, "apesar de principiar por uma redução ao Cogito, ela sempre foi levada a questões, à questão ontológica". Não hã o que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-se a si mes- mo, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto do homem, que o pensamento do século XIX evocou de ma- neira intermitente. - A fenomenologia, por sinal, não é uma exceção. Outras anãlises de Foucault nos dão a entender que a (10) Les mots et les choses, p. 352; As palavras e as coisas, p. 444. (11) Les motsetles choses, p. 336; As palavras ees coisas, p. 423. 'I \ \1 \1 ri l" ~: 14 TRANSGREDIR A FINlTUDE episteme moderna por mais de uma vez esteve a ponto de su- perar a figura de finitude, ainda aconchegante, por ela mesma constituída, e que ela própria nos convida a problematizar a base da qual trabalhava. * * * Em que consiste exatamente o carãter insatisfatório da "Finitude Moderna" descrita pelos filósofos? Por que precisa ser suspensa essa estrutura? - Uma passagem de Diferença e Repetição, de Deleuze, pode esclarecer esse aspecto da leitura que Foucault faz do século XIX. Os filósofos, diz Deleuze, e em particular os do século XIX, muitas vezes tentaram am- pliar a imagem do qUe eles (comodamente) chamavam de "negativo", de modo a não mais o reduzirem ao erro por dis- tração, tão caro a Platão (vejo Teeteto, e digo-lhe "Bom-dia, Teeteto"). Mas não foram por essa via tanto' quanto deviam. Se tivessem meditado sobre Flaubert, por exemplo, com- preenderiam que uma noção como a da burrice "é objeto de uma questão transcendental: como é possível a burrice". 12 Como é que o indivíduo é tomado por "uma animalidade dis- tintivamente humana?" Não se ousou enfrentar esse tipo de questões. Mas tais questões tampouco foi possível escamotear por completo. - Ora, não é justamente essa situação ambí- gua que vemos descrita, em algumas pãginas de Foucault? Pãginas que merecem ter a nossa atenção, pois nos previnem contra a tentação de reduzir sua obra a uma alegre e ligeira demolição de saberes ingênuos e farisaicos. Não hã dúvida de que Foucault, do começo ao fim, é esse demolidor. Mas serã ele apenas isso? Tomemos o exemplo de um saber que ele jamais isenta de sua severidade: a psicologia, nascida no sé- culo XIX, da forma como aparece na Hist6ria da loucura. Serã que a psicologia apenas cumpre uma tarefa de oblitera· ção e recalcamento? Não apontarã, mesmo sem o saber, para a idéia de uma outra "finitude" _ que, esta, jã não seria considerada dominãvel? Um dos momentos decisivos da Hist6ria da loucura é o do apagamento, no final do século XVIII, da noção de Desrazão. (12) Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 194- 198. '0'0 ~; " 1 ~' ." '"' _.L ____ _ •• __ o RECORDAR FOUCAULT 15 Em poucos anos - os que são marcados pelos nomes de Tuke e Pinel-, o internamento muda de função. Deixa de consti- tuir uma simples medida de proteção social. Desde então, os loucos não serão mais misturados com os debochados, os pró- digos e os blasfemos: de elementos a-sociais, convertem-se em doentes, objeto de observações e cuidados clínicos. Sem dú- vida, o asilo continua sendo um recinto de exclusão, e o louco não é um paciente qualquer. Se voltou a ser nosso irmão, é também uma razão expulsa de si mesma, devolvida à "ino- cência animal", embora conserve - o que é pior - as apa- rências da razão. Pois esses insensatos raciocinam e respeitam o princípio de contradição. Quem se toma por Napoleão nega ser Luís XIV. Aquele que pensa ter um corpo de vidro evita' esbarrar em objetos duros ... A essa razão naturalizada, é pre- ciso dar um estatuto - e foi com este fim que se inventou a psicologia: "O que era doença dependerã, agora, do orgânico; e o que pertencia à desrazão, à transcendência de seu dis- curso, serã nivelado no psicológico". IJ O nascimento da psi- cologia marca portanto, a um só tempo, o abandono da noção de Desrazão (que a partir de então se terá por obscurantista) e o reconhecimento do fato de que a "doença mental" é, porém, alguma coisa que ultrapassa os processos orgânicos - de que o tratamento no asilo não se pode reduzir à ducha fria, ao chicote ou aos sedativos. Ê preciso falar com os doentes, ter a paciência de desemaranhar suas ilusões, tentar devolvê-los à sua essência de "sujeitos responsáveis". Se o psiquiatra não é um médico como os outros, é portanto porque sua tarefa con- siste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Des- razão. Como explicar, então, o inesperado banimento desse con- ceito? Ê nesse ponto que encontramos, pela primeira vez na obra de F oucault, o grande corte que separa a era da Repre- sentação e a era do homem. A Desrazão era um conceito tí- pico da Representação. Do louco ela fazia um homem cegado, apartado da verdade - mais um insensato no sentido bíblico do que um doente. Com a "loucura" medicalizada, tudo serã bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acesso à Ver- dade, o contato com o Verbo Divino: estes traços já não per- (13) Histoire de /a folie, pp. 359-360; História da loucura, p. 337. rr Ir: I" ~, :1 I 1 16 TRANSGREDIR A FINITUDE tencem, como sabemos, à "finitude moderna". O que lhe su- cede é outra coisa: ele se afasta de sua essência (de ser razoã- vel e de cidadão). Não hã dúvida de que a fronteira entre o alienado e o são de espírito continua nitidamente traçada, mas a divisão jã não se efetua segundo o mesmo critério. É que, agora, "o ser humano não se caracteriza por uma certa rela- ção com a verdade, mas detém como seu bem próprio, a um tempo exposto e escondido, uma verdade".14 E o que mais importa, para o saber do século XIX, é que essa verdade ape- nas esteja ocultada, e que fazê-la reaparecer dependa da arte do terapeuta. Essa nova percepção que se tem do insensato aparece com toda a clareza no texto da Enciclopédia de Hegel a res- peito da loucura (§ 408). O louco deixou que o "gênio mau" da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão. Os loucos continuam sendo sittliche Wesen, essências morais, continuam tendo consciência do Bem e do Mal - e é por isso que o seu lugar é no asilo,não na prisão (nada têm a ver com os perversos, cujo "único delirio é o do vício", como dizia Royer-Collard acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta Hegel, pode assim apoiar-se no que hã de "racional" no doente para devolvê-lo a seu besseres Selbst, ao melhor de si mesmo. O louco é um ser reintegrãvel na razão. Essas pãginas contrastam com as que a Fenomenologia do espírito consagra ao Sobrinho de Rameau (Foucault refere- se a elas). O louco, medicalizado por Pinel, não submete mais o homem racional à prova que o Sobrinho impunha à "cons- ciência honesta" da Aufkliirung. O discurso de desrazão do Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as realidades" a que se apega a "consciência honesta", era a encenação cruel de suas contradições. Em Hegel, é este o mo- mento em que a dialética se alia com a Desrazão contra o Entendimento. Mas tal momento serã de curta duração. E o elogio de Pinel, na Enciclopédia, mostra o quanto Hegel apre- cia que o asilo moderno tenha transformado a Desrazão numa doença em princípio curãvel - o quanto estã satisfeito de ver neutralizada mais essa figura da "Finitude". - Hegel cons- titui um bom exemplo da maneira como saberes e filosofias 114) Histoire de la fOlie, pp. 548-549; Hist6ria da loucura, p. 522. ~ •• '0'0 : '. b "'~; '. RECORDAR FOUCAULT 17 tornaram inofensiva a questão da loucura, preferindo relegar ao esquecimento a risada do Sobrinho e o que nele, segundo Foucault, se anunciava: "que o homem é remetido sem cessar da razão à verdade não verdadeira do imediato". - Este é o primeiro aspecto pelo qual a razão esclarecida assume a tutela da loucura. Mas quem sabe ler entre as linhas pode interpretar de outro modo a "experiência" da loucura tal como foi consti- tuída pelo começo do século XIX. Não serã, a fronteira que separa o louco do são de espírito, mais indecisa do que parece à primeira vista? Podemos até nos perguntar se, nessa epis- teme que postula que "o ser humano deve poder, pelo menos teoricamente, tornar-se transparente por inteiro ao conheci- mento objetivo", não seria a loucura "a primeira figura de objetivação do homem". 15 Desde que os loucos são tidos por seres racionais em potência, o ser racional é considerado como um candidato à loucura. De resto, ele precisa do louco para conhecer melhor, por contraste, a sua essência, e determinar o perfil de sua normalidade. Assim, diz Foucault, libertando o louco de suas cadeias, Pinel "acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Desde esse dia, o homem tem acesso a si mesmo enquanto ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro somente lhe é dado sob a forma da alienação ... o homem, hoje em dia, só tem verdade pelo enigma do louco que ele é e não é" . 16 Foucault pretenderã apenas debochar, aqui, do objeti- vismo das ciências humanas? É pouco provãvel, pois o objetivo da arqueologia não é diretamente polêmico. O arqueólogo propõe-se remontar até as condições de possibilidade de uma "experiência" (da loucura, da clínica). E o Nascimento da clí- nica precisa: "Este livro não é escrito em favor de uma medi- cina e contra outra, ou contra a medicina, em favor de uma não-medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar, na espessura do his- tórico, as condições da própria história". 17 - Lendo esta pã- sina de Foucault, parece-nos que a superação da "finitude moderna" estava incluída na própria cultura que a elaborava. - Não diremos que esse tema foi recalcado ou censurado por 115) Histoire dela folie, p. 481; Hist6ria da loucura, pp. 456-457. 116) Histoire dela fo/ie, p'. 548; Hist6ria da loucura, pp. 521-522. (17) Nsissance de la clinique, p. XV; Nascimento da cllnics, p. XVIII. L. i~. '''li' ,"_.,,~~, ______ _ r , \1 • 18 TRANSGREDIR A FINITUDE tal cultura (assim retomaríamos aos pressupostos da exegese, que faziam horror a Foucault). Antes diremos, para seguir a metodologia do autor, que esse tema constitui uma linha de "regularidade" legivel nessa "formação discursiva". Tome- mos um outro exemplo. Um dos traços característicos do século XIX é o privilégio epistemológico que se concede ao patológico. "Não foi por acaso.que o século XIX preferiu perguntar à patologia da me- mória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lem- brança, do querer e do indivíduo." 18 Esse tema já aparecia nas aulas de Foucault, entre 1953 e 1955: será por acaso que a psicologia dos testes e a psicologia da criança nascem do es- tudo das crianças anormais? de onde vem a noção de idade mental, se não for da patologia? de onde vem a pedagogia moderna, se não for da intenção de integrar na escola as crian- ças retardadas? - Não, não foi por acaso que o desapareci- mento da Desrazão transformou a função do patológico, dei- xando este de constituir o mero "negativo" da normalidade. O doente mental tomou-se um documento vivo, uma mina de informações. Ele é irredutivelmente o meu Outro, mas é deci- frando este Outro que eu tenho as melhores oportunidades de aprender quem eu sou. Eis o esboço de uma figura de Finitude que não mais se poderá desdobrar sob o olhar de um Sujeito. - Relendo o fim da Hist6ria da loucura, quase ousaríamos dizer que ocorre como que um "progresso epistemológico", do ponto de vista do arque6logo, ao passar-se da era clássica à idade da psiquiatria. Na "loucura" moderna, "o homem não é mais considerado numa espécie de retiro absoluto perante a verdade; ele é a sua verdade e o contrário de sua verdade; ele é ele mesmo e outra coisa que não si mesmo ... " . E o mesmo tom reaparece na página de As palavras e as coisas que retoma e re- sume esse tema: "nossa consciência ... vê surgir o que, perigo- samente, está o mais próximo de nós ... ; a finitude, a partir da qual somos e pensamos e sabemos, aparece subitamente à nos- sa frente - existência a um só tempo real e impossível, pensa- mento que não podemos pensar, objeto para nosso saber, mas que sempre se furta dele" .19 - Contudo, uma coisa é a "expe- (18) Histoire dela folie, p. 481; História da/aucura, p. 457. (19)- Les mots et les choses, p. 387; As palavras e as coisas, p. 487. , \ RECORDAR FOUCAULT 19 riência" que aparece, outra coisa são OS discursos dos psicó- logos, médicos e filósofos que vivem nessa "experiência". Eles preferem representar, a seus olhos e aos nossos, o louco como um ser racional diminuído, quando na verdade o louco, por obra deles, tomou-se aquele cuja presença me faz sentir (ou deveria fazer-me sentir) a minha fragilidade de vemünftiges Wesen, de ser racional. Os saberes esquivaram aquilo mesmo que se anunciava nas suas práticas, nos seus métodos. Ê o que F oucault afirma com toda a clareza no final da Hist6ria da loucura. A psicologia, desde que nasceu, esteve "na encruzi- lhada": ou enfrentar a escura verdade do homem e "terminar filosofando a marteladas", ou então tentar, interminavel- mente, submeter o homem a um "conhecimento verdadeiro", travando ao mesmo tempo uma polêmica, não menos intermi- nável, com as Analíticas da Finitude. Escolheu-se esta última via, a da facilidade. Ajeitando-se de modo a poder. sempre recuperar - quer pelo conhecimento objetivo, quer pelo re- tomo ao vivido - o sentido dos conteúdos da Fínitude, o pen- samento moderno pecou por excesso de timidez . Já a medicina não teve tais pudores. E talvez seja nestas páginas, que descrevem a irrupção da anatomia patológica no saber médico, que melhor se pode perceber o que Foucault esperava de uma radicalização da Finitude. Desde Bichat, a doença não é mais compreendida como uma "contranatu- reza", como uma desrazão orgânica, como o foi na era clás- sica. Também neste domínio a divisão "ser/não-ser" vê-se posta em xeque. Percebe-se que a degeneração dos órgãos não somente obedece a leis, mas que ela é o avesso do funciona- mento do organismo - que "a morte não se insinua apenas sob a forma do acidente possível; ela forma, com a vida, com os seus movimentos e o seu tempo,a trama única que a um só tempo a constitui e a destrói". '" Essa túnica de Nesso, como poderíamos considerá-la como "negativo"? A doença não é desvio: é também uma análise, epistemologicamente preciosa, dos sistemas de tecidos, de seus diversos graus de resistência e fragilidade. E a própria morte não se reduz a "uma noite em que a vida se apaga": 21 é, antes de mais nada, a melhor fonte (20) Naissance de la clinique, p. 159; Nascimento da cllnica, p. 180. (21) Naissance de la clinique, p. 146; Nascimento da cllnica, p. 165. r, , 20 TRANSGREDIR A FINITUDE de informações para o médico. "A partir de agora, é do alto da morte que se podem ver e'analisar as dependências orgâ- nicas e as seqüências patológicas". 22 O que foi denominado o "vitalismo" de Bichat consistiu portanto, acima de tudo, no reconhecer "a ligação fundamental entre a vida e a morte". "Foi quando a morte se tornou o a priori concreto da expe- riência médica que a doença pôde desligar-se da contranatu- reza e tomar corpo no corpo vivo dos individuos".23 Foi nessa nova problematização que nasceu o conhecimento objetivo do individuo vivo, assim como, acrescenta Foucault, "da expe- riência da desrazão nasceram todas as psicologias e a própria possibilidade da psicologia". Em muitas regiões os novos sa- beres transferem, sigilosamente, a verdade do ser humano para uma alteridade indissolúvel - que, no limite, dissolve o homem. Eles abrem "uma enorme sombra" que as analiticas da finitude tentam dissipar - porém em vão. "Esta sombra que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber." 24 * * * V alia, pois, a pena mostrar como a episteme do século XIX conseguiu, em tantos pontos, transformar numa Alteri- dade positiva o que até então fora relegado ao "negativo". É verdade que esses saberes, ao mesmo tempo, fundavam a "fi- nitude moderna", na qual residiu a maior parte das filosofias desde a de Kant, e que continua sendo (por quanto tempo ainda?) a nossa morada. Mas a obra de tais saberes é bem mais instrutiva do que o discurso dos filósofos que só muito raramente consegue pôr-nos perante a alteridade que estã no âmago -de nós mesmos. Enquanto a psicopatologia, a medi- cina, a economia politica pelo menos foram capazes de nos deixar entrever essa Alteridade não dominãvel, os filósofos se preocuparam mais foi com nos orientar na finitude, e com nos persuadir de que, nela, ainda permaneciamos bei Hause. 2S Os filósofos, mesmo quando parecem enfrentar grandes riscos, continuam munidos de um fio de Ariadne; as verdades de fato 1221 Naissance de la clinique, p. 145; Nascimento da cllnica, p. 166. 1231 Naissance de la clinique, p. 198; Nascimento da cllnica, p. m. (24) Les mots st /6S choses, p. 224; As palavras e as coisas, p. 280. 1251 Em casa IN. T.I. 1," , ;.. • - ! • -' .'0'0 ~;, ,.L _ r .. \ "L~ RECORDAR FOUCAULT 21 com que deparam podem, sempre, ser transformadas em ver- dades de razão. É por isso que, dessa finitude moderna, ar- rumada com tanta engenhosidade, era necessário sair. Não para propor outra coisa: simplesmente para viajar com toda-a liberdade. Era preciso cortar as amarras. E é a partir disto que adquire sentido a noção - à primeira vista tão estranha - de "era do homem": positivistas, fenomenólogos, mar- xistas, vocês não sabem que vivem num mesmo e único terri- tório; eu, porém, fui mais adiante. Parece que Foucault deve ter percebido desde cedo a urgência dessa transgressão - que o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e, no mesmo gesto, a afastar de si todo o discurso filosófico. Esta é apenas - não resta dúvida - uma dentre as abor- dagens possíveis da obra de Foucault. Importa, porém, ver a que tipo de colocações ela força o leitor. Em primeiro lugar, deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Fou- cault - o que significaria reinseri-Io num tipo de discurso que ele pretendeu, de forma sistemãtica, subverter. Deve-se ad- mitir que não teria nenhum interesse recolocã-Io à força na vizinhança dessas analiticas da Finitude cujo iminente faleci- mento As palavras e as coisas anunciam, nem tampouco for- çã-Io para dentro do recinto, da clausura, da Metafísica - em suma, fazer aqui o mesmo tipo de exegese a que Heidegger submeteu a obra de Nietzsche. - Mas, em segundo lugar, também se deve admitir que seria grave equívoco reduzir a obra de Foucault a uma metodologia da história ou das ciên- cias humanas, e confiná-Ia na arqueologia. A arqueologia foi um dos métodos de que ele se'valeu - o que lhe permitiu ana- lisar "as formas mesmas da problematização", como diz no Uso dos prazeres, ao distingui-Ia do método genealógico. A arqueologia não dã a chave de seu projeto, mas sim a medida de sua desconfiança face aos "discursos sérios", que ele pre- tendia retirar de circuito de uma vez por todas. Não é a ar- queologia que pode explicar, por exemplo, por que a sua in- vestigação terminou por focalizar-se na questão do sujeito - mas sim a velha paixão que o animava contra as analíticas da Finitude. Citando Veyne: "O método de Foucault tem prova- velmente, como ponto de partida, uma reação contra a onda fenomenológica que, na França, se produziu logo após a Li- bertação [em 1944). O problema de Foucault talvez tenha sido o seguinte: como conseguir mais do que pode uma filosofia da 22 TRANSGREDIR A FINITUDE consciência sem, com isso, cair nas aporias do marxismo?". 26 Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de transgredir, que devemos tomar todo o cuidado para não con- fundir - nem em Foucault nem em Nietzsche - com um furor de destruir. Convém relermos o diâlogo entre o arqueólogo e o filó- sofo, que fecha a Arqueologia do saber. - Você precisou re- cuar em todas as frentes diante dos vãrios estruturalismos, diz o arqueólogo - e, agora, você lhes propõe um acordo amigá- vel. Reconhece as conquistas deles mas, em troca, pede que reconheçam a seriedade das suas problemáticas - o seu di- reito a indagar sobre a origem, a esboçar uma teleologia da história, a instaurar os seus a priori materiais ... Ora, o ar- queólogo recusa-se a firmar esse acordo com um pensamento que se empenha - diz - em "ocultar a crise na qual já faz muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo", crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob todas as suas formas, o questionamento do ser do homem, "enfim e acima de tudo, a questão do sujeito"." Nessas con- dições, é impossivel um compromisso, um meio-termo. É ne: cessário escolher. Ou ficamos nessa "finitude", que permite a continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das dialéticas. Ou então salmos dela, isto é, invertemos o proce- dimento dos filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os con- ceitos-chave repetidos pelas analíticas da Finitude (consciên- cia, indivíduo, sujeito) e vamos procurar a verdadeira identi- dade (ou melhor, as verdadeiras identidades) dessas persona- gens por demais familiares - perguntar quais são as modifi- cações teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram sob tal forma, em tal época, em tal área determinada. Já não nos contentaremos, neste caso, com perguntar de maneira vaga: como é que o homem é sujeito na vida? como é sujeito de uma linguagem mais antiga do que ele? O que os filósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entre- cruzam. São esses trabalhos que precisamos reconstituir - (26) Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire". in Comment on écritl'histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 383; trad. bras., in Como se escreve B his- tória. Foucault revoluciona B história, Brasflia, Editora da Universidade de Bra- sPia, 1982, p. 179. (271 Archéologie du &avoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 266. ~J , ~ , ~. ~-'. ' ~;~':t 4 '. ." t· \ ~----,.... .., RECORDAR FOUCAULT 23 mediante estudos precisos, exame de arquivos, anâlise de prá- ticas. Perguntando, por exemplo: como, no Ocidente, numa épocatal, o homem foi feito sujeito individual? ou se fez su- jeito de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgres- são da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estáva- mos contidos: na possibilidade de irmos escavar, fuçar em toda parte, até mesmo zombando daqueles que nos peçam documentos de identidade - na possibilidade de fazer o Su- jeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços. O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia F oucault em 1983, foi o de "produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura". E esse estudo das modalidades de transformação "dos seres humanos em sujeitos" dividiu-se em três eixos: 1?) a transformação do sujeito em objeto de saber: "objetiva- ção do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filo- logia, de lingüística ... ou ainda, a objetivação do mero fato. de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia"; 2?) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico (louco/são de espirito, cri- minoso/homem de bem ... ); 3?) "a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito ... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexua- lidade". ia E Foucault acrescenta: "Não é portanto o poder, porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas inves- tigações".29 - Eu quis apenas indicar um enfoque possivel, que permitiria tornar essa frase menos desconcertante. (Tradução de Renato Janine Ribeiro) (281 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours phi- losophique au·delà de I'objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984, p. 298 (trad. francesa do original americano: Michel FoUC8UIt. Beyond struc- tura/ism and hermeneutics, Chicago, University cf Chicago Press, 1982). (291 Dreyfus e Rabinow, pp. 296-298. o discurso diferente Renato Janine Ribeiro* Nestas notas quero tratar do fascinio que Foucault mos- tra, em sua obra, pelos textos literários. O seu amor às pala- vras não é apenas o positivismo (Veyne) I de quem, nelas, en- contra o elemento mais tangivel para pensar. o que pensaram os homens; é, sobretudo, uma bibliofilia: um amor - bor- giano - às bibliotecas, a seus textos que subvertem datas e enquadramentos. E não é nos textos teóricos que se esgota esse poder dos escritos, nem a vontade foucaultiana de ler. Assim começa As palavras e as coisas: "Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que sacode, à sua leitura, todas as familiaridades do pensamento - do nosso; do que tem a nossa idade e a nossa geografia -, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a pululação dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo tempo a nossa prática milenária do Mesmo e do Outro. Este texto cita 'uma certa enciclopédia chinesa' onde vem escrito que 'os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade; h) incluidos na pre- sente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inume- ráveis; k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de (*) Da Universidade de São Paulo e do CNPq. (1) Paul Veyne, Foucault revoluciona a História, Brasilia, 1982. ~ ~. • , ~ ',,-1' 'o', " \ .•• L. ~'-L" RECORDAR FOUCAULT 25 camelo; 1) et coetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas'. No deslumbramento desta ta- xinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto". 2 Nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação pelo literário/artístico: o prefácio e o livro nascem de Borges, o capo 1 trata de Velázquez, o capo 3 abre-se com D. Quixote. Estamos, talvez, em pleno exotismo: não apenas porque, via Borges, Foucault cita uma fantástica enciclopédia chinesa; mas porque suas três referências vêm do mundo hispânico - dessas Espanhas que, no imaginário francês, representam desde muito tempo uma relação diferente, desmedida, com as paixões. A idade clássica de que Foucault vai tratar em As palavras, abre-se, assim, sob invocações espanholas: interes- sante maneira de recusar a tradicional ruptura classicismo/ barroco, de nomear como idade clássica algo que não é o clas- sicismo do moi hafssable. No entanto, que são Borges, Velázquez, o Quixote nas análises do Foucault? Se procuramos ver o que, de cada um deles, resta no texto, parece ser pouco: servem a seduzir a atenção, a pontuar o discurso, a ressaltar algo que, adiante, será trabalhado conceitualmente. Exemplar é a conclusão do capo 1, que é fazer o balanço das Meninas de Velázquez (o que explica que muitos leitores de As palavras façam a economia desse capitulo, indo "direto aos conceitos"), como exemplar é, também, a moral que se extrai de Borges. Pensa-se com Borges, com Velázquez; mas o conceito depois explicita, acla- ra o que primeiro se viu sob a forma da figura. Da questão borgiana da impossibilidade de pensar - que Borges igu8J.- mente elabora na sua Busca de Averrois e nos Tradutores das Mil e uma Noites'3- chega-se ao problema fil<,lsófico das epis- temes. Do quadro de Velázquez, vai-se ter à representação clássica. Do Quixote, à crise do mundo quinhentista, à troca de epistemes. Como numa boa coreografia, ou ordenação cê- (2) As palavras e 8S coisas, Lisboa, 1968, p. 3 (p. 7 do original, Les mots et Iss chosesl, cotejado com o Original francês. . (3) Respectivamente, in AntologIa persona/ (Buenos Aires, 1966) e His- toriir'1dela eternidsdlBuenos Aires, 1969). '-.,. . ,-,~j ;í:: r.-~'" 26 o DISCURSO DIFERENTE nica, cada personagem introduz-se, fala e sai; a sua deixa tem hora marcada, e nesta se esgota. Sabe-se, aliâs, que a análise das Meninas foi acrescentada ao livro depois de concluido. E Foucault não tornarâ, em suas principais obras, a dar igual importância à arte, à literatura. Talvez, porém, a arte e a literatura estejam presentes em Foucault numa outra dimensão, mais profunda. Talvez inte- resse menos o texto de Borges, do que o riso por ele produ- zido, que "sacode ... as familiaridades do pensamento". Por- que assim escreve Foucault: batendo-se contra o que, no pen- samento, é hâbito. É notório o cuidado que tem com a escrita: suas imagens, ritmos, pontuação. Mas serâ enganoso reduzir seu estilo à bela forma; escrever, para Foucault, certamente obedece a uma estratégia. E, para entendê-la, o melhor talvez seja situarmos alguns textos - capitulos, parâgrafos, frases - de Foucault. Podemos distinguir, em sua obra, dois tempos - ou mesmo, fora dos tempos, duas posturas: uma consiste na bus- ca das condições de possibilidade, ou de produção, dos textos e leituras. É a que aparece no começo do Nascimento da clí- nica: Foucault cita dois textos de médicos, respectivamente do século XVIII e XIX, para depois ver o que os diferencia; não se trata da passagem da metâfora à denotação - ambos os autores se servem, e com que profusão, de figuras. Porém, como se ordenam umas, e outras, figuras? É essa ordem que a "arqueologia do olhar médico" pretende devassar; interrogar o que subjaz, a rede que funda leituras e textos. A outra pos- tura vê-se em Vigiar e punir. Igualmente Foucault contrasta dois textos - convidando o leitor a imergir-se neles, a fazer ele próprio, antes de qualquer fio condutor, a experiência pri- meira, bruta - talvez até ingênua, no sentido de pouco ar- mada -, dos discursos. Porém, uma vez lidos estes, ele não proporâ mais desvendar os seus fundamentos, OS seus pres- supostos. Serâ - ou fingir-se-â? - mais modesto. "Dentre tantas modificações", diz, "reterei uma": ele próprio grifa o quanto parece arbitrâria sua maneira de recortar a supressão dos suplicios, frente a tantas outras mudanças, talvez de maior monta, no sistema penal e repressivo. "Hoje somos algo le- vados a negligenciâ-la",talvez porque em seu tempo tenha sido tão comentada; "E, de qualquer forma, que importância tem, se a comparamos com ... "; não serâ a desaparição dos .:;' " .;~" • ." .•••. :,I.'~, _____ _ .;,. ... 1_ ..... RECORDAR FOUCAULT 27 suplicios "nada mais que o efeito de remanejamentos mais profundos"? Em outras palavras, não seria o caso de se devas- sar, uma vez mais, a rede da qual dependem os suplicios, e que os produziu? Não; a mira de Foucault mudou: "E no en- tanto um fato subsiste"; pode o sumiço dos suplicios ser mera espuma, de superficie - mas o que conta, no Foucault pós- arqueologia, é justamente o fato. Empirista, Foucault? Possi- velmente; porém, melhor seria dizer, agora, que dispensa as redes - as ordens -, as totalizações e quadros. A modéstia que enverga, minimizando os elementos com que lida, na ver- dade apenas introduzirâ nova estratégia. Que começa por de- sarmar o leitor reticente, ou resistente. Se este quiser reduzir, desde jâ, a supressão do suplicio a efeito da economia, a parte menor numa mudança global das formas penais - Foucault, sem lhe contestar diretamente a análise, reservarâ porém o fato, apresentâ-lo-â como irredutível. Irredutível, essa a deter- minação principal do fato no parâgrafo que estamos comen- tando de FOllcault - essa, a ruptura que então produz com as arqueologias. Mas a que ele visa com a irredutibilidade? É a preparar a construção de um outro tipo de discurso. Um dis- curso cujo traço essencial talvez seja, justamente, o de ser diferente - o de ser inesperado, o de aparecer sob a forma do talvez. Se o fato assim se exibe como irredutível, é porque a sua riqueza excede as leituras dominantes, exige a formulação de novas hipóteses (as quais poderemos chamar, às vezes, de in- terpretações). Estas, Foucault as precede muitas vezes de um "talvez". Assim, ao tirar a conclusão de sua anâlise das Me- ninas: "Talvez este quadro de Velâzquez figure como que a representação da representação clâssica e a definição do es- paço que ela abre ... " (p. 33). Mas sobretudo em A vontade de saber, possivelmente, sob tantos aspectos, o seu manifesto mais radical- o que mais contestou imagens feitas, especial- mente uma pela qual ele próprio era em parte responsâvel, a idéia de que a sexualidade ocidental moderna se caracteriza- ria basicamente por sofrer repressão. O "talvez" não se opõe, por estranho que pareça, ao "fato": evidentemente, num caso Foucault avança uma hipótese, move-se entre possíveis ou, se quisermos, entre interpretações; no outro, procura ater-se a algo inegâvel, irrecusâvel, irredutível, simples quem sabe como um elemento; ambos têm em comum, porém, a humildade, r I . ! 28 o DISCURSO DIFERENTE a modéstia: nem uma interpretação é excludente de outras, nem o fato é mais do que um fato: a pretensão a globali- zar que caracteriza a interpretação é reduzida por ser, ela, uma dentre tantas, enquanto o estatuto irredutível do fato é contido por sua nudez mesma, carente de inteligibilidade própria. São pouco, poder-se-ia dizer; mas por isso mesmo definem um espaço mínimo, próprio distintamente seu: o es- paço do pouco. Frente a uma história do econômico, pro- por, como tema de reflexão, os corpos e sua sorte: ades- tramentos, suplícios. Nesse fato elementar (os corpos não são mais supliciados) e nesse talvez (pensar a caça miúda da história), Foucault toma gosto e partida. Por isso pode- mos dizer que sua modéstia é, de certa forma, falsa; que visa a delimitar um espaço garantido, resguardando-o de ofen- sivas adversárias; que a modéstia, em vez de ser tomada por seu valor nominal, merece ser decifrada como um protocolo diplomático. Este serve para introduzir um discurso cujo vigor teórico e cuja exposição às criticas estarão, justamente, no fato de ser diferente: de ser inesperado. Pelo menos, é assim que começa Vigiar e punir. Da estratégia do discurso diferente faz parte uma diplomacia. Essa modéstia finta é também - porém - uma finta, como na esgrima. Se desarma o leitor, se resguarda para Fou- cault um espaço de pensamento, igualmente exige que ele proponha idéias sempre novas. Não basta dizer que Foucault, em tais ocasiões, mudou de idéia quanto a tal ou qual tema; ou distinguir, na sua obra, momentos ou fases; porque, justa- mente, o interessante é que ele pensava por mutação. A mu- dança não é algo que ocorria a seu pensamento, recortando-o em épocas; é o modo pelo qual o seu pensamento, sempre, corria. Em seu discurso, Foucault constrói o inesperado. O "talvez" não é propriamente um sinal de modéstia; é, antes, o distintivo do inédito. Colocar-se de esgueira, de esguelha: a maneira foucaultiana de pensar privilegia constantemente o inesperado. Voltemos às Meninas. O longo texto que ele lhes dedica ergue-se sobre um suspense. Foucault parte do mais visível e evidente: o pintor com a palheta a nos olhar. Vai depois rodeando, rondando o quadro, suas personagens e par- tes, até dar no espelho, que reflete e situa el-rei; por que, porém, tal seqüência - e não alguma outra igualmente possí- vel? Diz Foucault que "a relação da linguagem com a pintura I. o 1 ~ i ~ .~ RECORDAR FOUCAULT 29 é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita, nem que, em face do visível, ela acuse um déficit que nos esforça- ríamos em vão por superar. Trata-se de duas coisas irredutí- veis uma à outra ... " (p. 25). Mas é essa irredutibilidade mes- ma de uma a outra que permite que Foucault, escritor e não pintor, enriqueça o seu texto lendo quadros. Não interessa tanto se sua tradução é correta ou não; se o conceito, depois, Se apossa do que primeiro apareceu na figura; porque esta, ainda que adiante se esvaneça, no discurso age como revela- dora. Lessing 'teorizou, com brilho, essa diferença entre a pin- tura e a literatura, caracterizando a primeira pela simulta- neidade das partes no quadro e a segunda pela sucessão dos momentos - espaço vs. tempo. O que Foucimlt faz é escan- dir, no tempo, o quadro. Mas em que tempo? O do suspense. O de um texto que vai, a cada tempo, exalando novo e impor- tante elemento - sempre, de alguma forma, inesperado. Um ritmo assim se produz, perturbador, sedutor. A pintura lida faz-se, mais e mais, ficção - se nesta damos a primazia ao inesperado, ao inventado. Como se constrói o inesperado? Para dizê-lo, principie- mos da boutade, do gosto foucaultiano pela frase de efeito ou o repente; veja-se, em As palavras, o seu sarcasmo contra os "humanistas": "Constitui, no entanto, um reconforto, e um profundo apaziguamento o pensar que o homem não passa de um invenção recente, uma figura que não conta dois séculos, uma simples inflexão no nosso saber, e que há de desaparecer logo que este tenha encontrado uma forma nova" (p. 12). A frase que choca ou impressiona tem eficácia - a de ofuscar, a de permitir um novo conhecimento mediante o desalojar a ra- zão, presa das rotinas. Pois o que está suposto, nesse tipo de texto, é que não se vai apenas argumentar pela razão com o adversário ou o leitor. Vai-se recorrer a outro tipo de pensa- mento, um que excede a razão, e que para lidar com o adver- sário bombardeia, se não a este, pelo menos os seus apegos . Ao leitor, busca-se surpreender, fazendo que perca suas rotas usuais mediante lampejos, pontuais, de sedução (como pode- ríamos também pensar que agem certos aforismos de Nietzs- (4) In Laocoonte. 30 o DISCURSO DIFERENTE che); conhecer pelo amor, mas por um estranho tipo de amor, o que passa pela sUrPresa. A respeito da sUrPresa talvez o melhor texto seja este de Brillat-Savarin: "Todo o mérito de uma boa fritura provém da surpresa; é assim que se chama a invasão do liquido fervente, que, no mesmo instante e!ll que se dá a imersão, carboniza ou tosta a superfície externa do cOrPo imergido". 5 O trecho é da "Teoria da Fritura", meditação de gastronomia transcenden- tal na qual Brillat-Savarin elogia esse recurso culinário por- que introduz, nas festas, uma variaçãopicante nos pratos, porque os toma agradáveis à vista e especialmente aos dedos das senhoras, porque, finalmente, conserva o paladar primi- tivo dos alimentos. E a fritura merece realmente uma teoria - que passa pela química dos alimentos e dos cOrPos - porque, agindo mediante extremo choque térmico, supõe um uso mui- to preciso do tempo: o da rapidez. Recorda outra imagem, de mesma época: a da cristalização, que Stendhal usa para expli- car como se dá o enamoramento. "Nas minas de sal de Salz- burgo, joga-se, nas profundezas abandonadas da mina, um galho de árvore desfolhado pelo inverno; retira-se dois ou três meses depois, coberto de cristalizações brilhantes: os menores ramos, os que não são mais grossos que a pata de um abe- lheiro, vêem-se recobertos de uma infinidade de brilhantes, móveis e deslumbrantes; não se pode mais reconhecer o galho primitivo." 6 Nos dois casos transfOrma-se o objeto, ou melhor, sua superfície externa; esta se toma irreconhecível: na cristaliza- ção é a mudança que importa, porque o amor-paixão só conta no apaixonado, e por isso se nutre somente de aparências (me- mórias, que são imaginações). Na fritura, porém, diz-se que a modificação que embeleza o fora não altera significativamente o dentro; este é reconhecível; o que pdderia valer,. igualmente, para a cristalização, e só não serve porque nesta não interessa o objeto que serviu de suporte aos diamantes. Estes últimos, se parecem ser ilusões, são porém a única realidade, porque se engastariam em qualquer apoio. Se há diferença nas transmu- tações, é em primeiro lugar de ênfase (porque na cristalização (5) La Physiologie du goút ou méditations de gastronomie transcen- dante(I825I, Paris, Flammarion, 1982, p.127. (61 Stendhal, Del'amour(I8201, cap.lI. { ". . ;.; , '1 RECORDAR FOUCAULT 31 acentua-se somente a parte externa do objeto), e de tempo, em segundo - contrastando a lentidão do cristalizar com a rapidez da fritura. Assiste-se, nos dois casos, a uma modifica- ção do objeto que, sem alterar seu interior, exalta, magnifica a sua superfície exterior. A "Teoria da Fritura" de Brillat- Savarin é também o Glória da fritura. E a fritura, que con- serva exaltando, é ajóia da culinária, seu momento de brilho. A sUrPresa dá ao texto parte de sua força. O uso da sur- presa, como recurso de pensamento, supõe que se contesta uma razão que se restringiu a suas familiaridades, isto é, a seus hábitos. Para esse pensamento cansado, a sUrPresa é o melhor remédio ou, se quisermos usar a fórmula foucaultiana tão freqüente, a melhor estratégia. Assim, os talvez de Fou- cault, os seus pequenos/atos menos avalizam uma modéstia, do que pertencem a um saber e um fazer militares. Foucault prolifera referências a estratégias, pensando os discursos. não como reflexos ou reprodução (efeitos, em suma), porém como aparelhos de guerra, estratégias de poder. Se ele as identifica nos discursos alheios, importa que também as assinalemos no seu. A sUrPresa é um princípio de economia militar - tentar fazer que forças relativamente inferiores se valham de agili· dade para vencer inimigo mais poderoso; fazer que no tempo a rapidez, no espaço a mobilidade, em suma a energia, preva- leçam sobre a massa. Talvez tenha algo em comum com a as- túcia,7 porque depende, muito, de se esconder o intuito até o momento de fulminar. Usar de sUrPresa na guerra é, podemos dizer, introduzir o teatro na arte militar: aumentar, nos en- contros armados, a importância das simulações, dos disfarces e enganos. Contudo, o maior teórico militar do século XIX. conde ·von Clausewitz, não preza a sUrPresa: reconhece que ela está "no fundamento de todos os empreendimentos, pois não se pode conceber, na sua falta, a superioridade em um ponto decisivo"; diz que pertence, portanto, à natureza da guerra que todo chefe militar queira vencer pela sUrPresa; mas sentencia que isso é ilusão. "A sUrPresa faz parte do domínio da tática, pela simples razão de que, nesta, todos os dados de tempo e lugar são mais curtos. Na estratégia, ela será mais (7) o capítulo de Clausewitz sobre a astúcia segue-se imediatamente ao que trata da surpresa. 32 o DISCURSO DIFERENTE viável na medida em que as iniciativas a se tomar se aproxi- mem do domínio tático, e mais difícil na medida em que tais meios se elevem ao nível da política." 8 Ou seja: a surpresa serve para ataques pontuais, como a conquista de uma ponte; não, porém, para ganhar uma guerra: se analisamos melhor as vitórias obtidas por surpresa, vemos que se deveram antes ao despreparo, à distração, aos erros do vencido; em dimen- são estratégica, seria mais apropriado afirmar que a surpresa inflige derrotas, do que faz vitórias. Ora, importa notar que, embora Foucault não tenha che- gado a teorizar a guerra, tanto o seu uso literário da surpresa quanto o papel que atribui à estratégia se opõem aos valores de Clausewitz. Para o general prussiano, a estratégia tem por sujeito o Estado. Ele a define no capo 1 do Livro II de Da Guerra: se "a tática é a teoria relativa ao uso das forças arma- das no combate, a estratégia é a teoria relativa ao uso dos combates a serviço da guerra" (p. 118). Mas Foucault, quan- do propõe uma nova abordagem do poder, em Vigiar e punir, diz que sua "microfísica supõe que o poder ... não seja conce- bido como propriedade, porém como uma estratégia ... que receba como modelo a batalha perpétua mais do que o con- trato que efetua uma cessão, ou do que a conquista que toma um domínio" (p. 31 do original francês). Nesse esboço, que não chega a ser uma conceituação, vemos que convém mais, a Foucault, entender a estratégia segundo a batalha do que se- gundo a guerra; para Clausewitz, porém, a guerra não se pensa pelas batalhas, sequer por uma suposta batalha perpé- tua; sua compreensão depende da política, tendo o Estado por sujeito. O gênio de Frederico, o Grande, esteve justamente em esquivar as batalhas que não poderia ganhar; foi bom general por ser um grande rei. Já a estratégia, tal como a usa Fou- cault, não é mesma de Clausewitz: mais parece ser uma am- pliação do conceito que este tem de tática. E há razão para isso: Foucault não dá, ao político ou aos conflitos, um sujeito (pouco importa se consciente ou não), que poderia ser o Es- tado. Prefere situá-los nas instâncias as mais disseminadas - os "mil poderezinhos" - em que se espalha o social; é por isso que a batalha, o choque pontual, servirá de modelo para 181 Carl von Clausewitz, De la guerre 11832-341, livro 111, capo 9, pp. 207-208 da trad. francesa; Paris, Minuit, 1970. ~ , J ~ (:1 " !1 11 ~ j 4 . i'>e t ! , < l .. 'a- l.. ' RECORDAR FOUCAULT 33 ele pensar o poder. Da mesma forma, a surpresa, que mais cabe na batalha que na guerra, que para Clausewitz se restrin- ge à tática sem jamais se ampliar à estratégia, poderá marcar o discurso foucaultiano. Entenderemos melhor a surpresa referindo-nos ao c1ause- witziano Mao Tse-tung. Nos anos 30, tendo que enfrentar exércitos do Kuomintang muito superiores ao seu, formulou uma linha de combate para o Exército Vermelho: estrategica- mente, estamos na proporção de um para cada dez inimigos; não podemos aceitar uma guerra frontal; só travaremos ba- talha quando - na dimensão tática, portanto - formos vá- rios contra um. É claro que isso se enquadra numa estratégia mais ampla, a da guerra revolucionária, Mas, pontualmente, trata-se de fazer um uso intensivo da surpresa - princípio muito mais importante nessa guerra de guerrilhas do que na tradicional. Ora, se este é o sentido tático da surpresa, que papel ela terá no discurso de Foucault? A surpresa é arma da minoria; modo de intervir contra um inimigo superior, num ponto seu que é fraco; modo de inverter, pontualmente, a re- lação de forças, convertendo a inferioridade global em supe- rioridade local. Um discurso minoritário não é o que tema- tiza, ou defende, as minorias - raciais, sexuais, religiosas; é o que se recusa a globalizar,a totalizar o pensamento _ que nega matrizes, como a hegeliana. É essa natureza do discurso foucaultiano, essa sua tenção, que fOIja a sua tensão; são as surpresas, os inesperados, a aparente arbitrariedade dos re- cortes e ênfases, que dão ao discurso o seu suspense. , Se voltamos agora a Borges e V elázquez, vemos que am- bos abrem, em As palavras, janelas de imaginário ao pensa- dor. Cavam, no seu roteiro, o inesperado. Liberando-o dos há- bitos de uma razão preguiçosa, que se satisfaz com filiações e totalidades, a literatura e a pintura fazem-no meditar o pouco pensado ou o não-pensável de uma época - temas que serão constantes em Foucault. Mas o importante não é a citação de Borges, nem a análise de Velázquez: é que o próprio Fou- cault arme seu discurso de recursos literários, para pô-lo a serviço do pensar. Da mesma forma que em seus livros, tam- bém nas aulas do College de France ele contava histórias exemplares; estas até tinham um timing exato: como muitos ouvintes gravavam a aula, Foucault aproveitava o momento em que trocavam a fita de lado (aos 4S minutos de fala) para 34 o DISCURSO DIFERENTE um interlúdio, uma anedota significativa - que é claro, to- dos tentavam também gravar; a própria pausa excitava o dis- curso_ As historietas, imagens e metáforas, o talvez, a sur- presa e o suspense - todos esses elementos literários, em vez de interromperem ou degradarem o discurso, sustentam-no, dão-lhe gume_ Ao contrário de uma tradição filosófica forte, que desconsiderou o literário como forma de conhecimento, Foucault incorporou-o no seu próprio texto, como indutor de pensamento. Foucault assim segue, mais e mais, a lição de Borges: desconcertar os hábitos de nossa razão para fazer-nos pensar. Em A vontade de saber, por exemplo, afirma: "Afinal de con- tas, somos a única civilização em que certos prepostos rece- bem retribuição para escutar cada qual fazer confidência so- bre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em loca- ção" (p. 13). Da afirmação de fato, peremptória (somos a única civilização ... ), salta, não para uma explicação, mas para outro registro, hipotético, talvez ficcional: como se. E, se não pensarmos a ficção como mentira, mas como acréscimo ou invenção, tratar-se-á mesmo de ficção - porque a frase vale, antes de mais nada, pelo bene trovato. Foucault não irá argumentar, demonstrar; é verdade que o. faz tantas vezes, e que seu discurso se escora sempre em rigorosa freqüentação dos textos, em sólida informação histórica; mas há ditos, dos mais salientes, que seria inútil e dispensável justificar (como esse), porque captam de imediato a adesão do leitor - ou não. Se a captam é pelo bene trovato, a trouvaille, o achado: pelo engenho. E a que monta o achado? É uma forma de in- venção; não é tanto uma explicação, um simulacro teórico que dê conta dos objetos, que os reduza - é a constituição de um novo discurso, que com os anteriores dialoga, que a eles se agrega, com sua forma nova e distinta. Este discurso dife- rente, que não quer a prova de verdade, tem o seu muito de literário - se pensarmos a literatura, mais uma vez, com Jor- ge Luís Borges. De quem cito, para concluir, Una rosa ama- rilla: "Então aconteceu a revelação. Marino viu a rosa, como Adão pôde vê-Ia no Paraíso, e sentiu que ela estava em sua eternidade e não em suas palavras, e que podemos mencionar ou aludir porém não expressar, e que os altos e soberbos vo- l. ~ L,- RECORDAR FOUCAULT 3S lumes que formavam num ângulo da sala uma penumbra de ouro não eram (como sua vaidade sonhara) um espelho do mundo, mas sim uma coisa mais acrescentada ao mundo". 9 (9) Bhacedor, Buenos Aires, 1965, pp. 31-32. Foucault leitor de Nietzsche Scarlett Marton* As referências de Foucault a Nietzsche estão presentes ao longo de sua obra, desde A hist6ria da loucura até os cursos proferidos no CoUege de France em 1976 - sem mencionar artigos e entrevistas. I As marcas que a leitura do filósofo deixou em seu pensamento são, sem dúvida, perceptiveis: de- sinteresse por uma obra sistemática, primado da relação sobre o objeto, papel relevante da interpretação, importância dos procedimentos estratégicos e até mesmo absorção da noção de genealogia. Seu próprio método teria surgido, de acordo com Paul Veyne, da meditação sobre alguns textos de Nietzsche. 2 Foucault, porém, adverte: "A história do saber só pode ser feita a partir do que lhe foi contemporâneo e não, é claro, em termos de influência recíproca, mas em termos de condições e (*) Da Universidade Federal de São Carlos. (1) Dentre eles: a "Resposta ao Circulo de Epistemologia" publicada nos Cahiers pau! I'Ana/yse, n? 9, verão de 1968; "Conversa sobre a prisão: o livro e seu método", no Magazine Littéraire, n? 101, junho de 1975, e "Ques- tões a Michel F:~ucault sobre a geografia", em Hérodote. n? 1, 1976. (2) "Foucault révolutionne J'histoire" in Gomment on écrit I'histoíre, Paris, Seuil, 1978, p. 240, nota 11. Veyne refere-se ao parágrafO 11 da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral e aOS aforismos 70 e 604 da edição canônica da Vontade de potência. < , L, RECORDAR FOUCAULT 37 de a priori constituídos no tempo" 3 - o que se poderia aplicar a seu próprio pensamento. Não se trata aqui, portanto, de analisar de que maneira seu trabalho se teria inspirado nas idéias de Nietzsche nem de indagar em que medida seu pro- jeto teria sido por elas influenciado. O que pretendemos é investigar que leitura Foucault faz de Nietzsche. Para tanto, contamos examinar dois textos espe- cificos que tratam diretamente do filósofo: "Nietzsche, Marx, Freud", comunicação no Colóquio Nietzsche realizado em Royaumont em 1964, e "Nietzsche, a genealogia, a história", artigo no volume em Hommage à Jean Hyppolite, de 1971. Refazendo o percurso desses textos, esperamos mostrar, num primeiro momento, como algumas idéias de Nietzsche são ilu- minadas pela perspectiva foucaultiana, para depois inquirir se não chegam a opor-lhe certa resistência. Na comunicação de 64, Foucault aproxima Marx, Nietz- sche e Freud, fazendo ver que no século XIX eles teriam inau- gurado uma nova hermenêutica: em vez de multiplicarem os signos, modificaram sua natureza e criaram outra possibili- dade de interpretá-los. Se na hermenêutica do século XVI os signos se dispunham de modo homogêneo em espaço homo- gêneo, remetendo-se uns aos outros, no século XIX aparecem de modo muito mais diferenciado, segundo a dimensão da profundidade, entendida como exterioridade. Se antes o que dava lugar à interpretação era a semelhança, que enquanto tal só podia ser limitada, agora a interpretação torna-se tarefa infinita. Nessa medida, a filosofia de Nietzsche - que é o que nos interessa - seria "uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sem- pre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta". 4 Essa idéia, aliás, aparece em outros textos. No prefácio ao Nascimento da clínica, Foucault afirma que Nietzsche, fi- lólogo, comprova que à existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de uma critica.5 Em As palavras e as coisas, declara que Nietzsche, filólogo, foi o primeiro a apro- (3) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 221. (4) "Nietzsche, Freud, Marx", in Nietzsche, Cahiers de Royaumont - Philosophie, n? VI, Paris, Minuit, 1967, p. 188. (5) Naissance dela clinique, Paris, PU F, 2~ ed., 1972, prefácio, p. XII. I, 38 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE ximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a lin- guagem. 6 E, ao tratar da renovação das técnicas de interpre- tação no século XIX, sustenta que a filologia se tornou a forma moderna da crítica e recorre, para ilustrar essa tese, à análise de uma passagem do Crepúsculo dos idolos: "Temo que não nos desvencilharemosde Deus, porque ainda acredi- tamos na gramática ... ". 7 Deus estaria antes num aquém da linguagem do que num além do saber. 8 Em Royaumont, Foucault vê a interpretação como tarefa infinita e liga seu caráter sempre inacabado a dois outros princípios: se ela não pode acabar, é porque não há nada a ser interpretado (todo interpretandum já é um interpretans); e, como ela não acaba, acha-se obrigada a voltar-se sobre si mesma (toda interpretação é levada a interpretar-se). Assim, para Nietzsche, as palavras não passariam de interpretações; estas apareceriam como signos ao buscarem justificar-se, e os signos, ao tentarem recobri-Ias, nada mais seriam do que máscaras. Foucault encararia, desse ponto de vista, a análise etimológica do termo agathos - presente no quarto e quinto parágrafos da Primeira Dissertação de Para a genealogia da moral - onde Nietzsche mostra como esse termo nasce do conceito de "nobre", no sentido de posição social. E provavel- mente leria, ainda nessa perspectiva, a afirmação do segundo parágrafo da mesma Dissertação: "O direito dos senhores, de dar nomes, vai tão longe, que se poderia permitir-se captar a origem da linguagem mesma como exteriorização de potência dos dominantes: eles dizem, 'isto é isto e isto', eles selam cada coisa e acontecimento com um som e, com isso, como que tomam posse dele". Finalmente, duas conseqüências decorrem do princípio de a interpretação ter de voltar-se sobre si mesma: ela não tem um termo de vencimento como os signos, mas seu tempo é circular; e não se ocupa mais com o significado, mas indaga (6) Lesmotsetleschoses, p. 316. O) Crepúsculo dos ídolos, a "razão" na filosofia, § 5. Utilizamos a edi- ção das obras de Nietzsche organizada por G. ColIi e M. Montinari, Berlim, Walter de Gruyter & Co., diferentes datas conforme os volumes. Sempre que possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o vo- lume Nietzsche _ Obras Incompletas, da coleção "Os Pensadores", São Pau- lo, Abril Cultural, 2~ ed., 1978. (8l Cf. Lesmotsetleschoses, p. 311. b i.... RECORDAR FOUCAULT 39 quem interpretou. Em Nietzsche, diz Foucault, "o princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete". ' Nessa direção, leria provavelmente o aforismo 45 de Humano, de- masiado humano, no qual o filósofo afirma que bem e mal têm uma dupla pré-histórica: em primeiro lugar, "na alma das raças e castas dominantes" e, em segundo, "na alma dos oprimidos, dos impotentes". Bem e mal não indicariam um significado, mas imporiam interpretações, e lidar com elas importaria perguntar quem as colocou. Portanto, no entender de Foucault, o caráter inovador do pensamento nietzschiano residiria no fato de ter inaugurado uma nova hermenêutica. Nietzsche não se empenharia em tratar dos significados nem se preocuparia em falar do mun- do, mas se dedicaria a interpretar interpretações. E, ao fazê- lo, partiria sempre da pergunta por quem interpretou. Nessa medida, sua filosofia seria antes de mais nada filologia sem ponto de chegada. Abrindo o espaço filológico-filosófico com a questão: quem fala? ligaria a possibilidade e necessidade de uma crítica com a reflexão radical sobre a linguagem. Por ora, deixemos em suspenso essas colocações e passemos ao exame do texto de 71, para adiante retomá-las. Em "Nietzsche, a genealogia, a história", Foucault recu- pera, ainda que rapidamente, a questão da interpretação, li- gando-a desta vez à idéia de genealogia. Com isso, é levado a referir-se necessariamente ao que chamamos, em Nietzsche, de teoria das forças. Nesse artigo, a genealogia nietzschiana é entendida como análise da proveniência e história das emer- gências. Proveniência e emergências constituiriam seu objeto. A proveniência (Herkunft) não funda, não aponta para uma continuidade, não é uma categoria da semelhança. Perguntar- se pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fun- dá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina conforme a si mesmo. A emergência (Ents- tehung), por sua vez, não se confunde com o termo final de . um processo, mas constitui "princípio e lei singular de uma (9) "Nietzsche, Freud, Marx", p. 191. 40 FOUCAULT LEITOR DE NIETZSCHE aparição". 10 No indagar sobre a emergência de um órgão ou de um costume, não se trata de explicá-los pelos antecedentes que os teriam tornado possíveis, mas de mostrar o ponto de seu surgimento; não cabe compreendê-los a partir dos fins a que se destinariam, mas detectar um certo estado de forças em que aparecem. Nessa perspectiva, seria possível considerar, por exem- plo, a genealogia dos conceitos "bem" e "mal". A análise de sua proveniência mostraria que não existem em si, idênticos a si mesmos; ao contrário, comportam marcas diferenciais, tra- duzem acidentes e desvios de percurso, denunciam heteroge- neidades. A história de suas emergências revelaria que, em vez de constituírem termos finais de um processo, surgem em cer- tos estados de forças. Seria possível ainda ler a exigência mesma que Nietzsche se impõe no prefácio a Para a genealo- gia da moral, parágrafo 6: "Precisamos de uma crítica dos valores morais, devemos começar por colocar em questão o valor mesmo desses valores, isto supõe o conhecimento das condições e circunstâncias de seu nascimento, de seu desen- volvimento, de sua modificação (a moral como conseqüência, sintoma, máscara, tartufaria, doença, mal-entendido, mas também como causa, remédio, stimulans, empecilho ou ve- neno), enfim, um conhecimento tal como nunca existiu até o presente e como nem mesmo se desejou". Segundo Foucault, a emergência diz respeito à entrada em cena de forças. Ao irromperem, lutando umas contra as outras, é sempre uma mesma peça que se apresenta: a que envolve dominantes e dominados. Assim como do domínio de classes por outras classes surge·a idéia de liberdade, e do do- mínio das coisas pelos homens aparece a lógica, do domínio de homens por outros homens vai nascer a diferenciação dos valores. Com esses processos de dominação, estabelecem-se sistemas de regras; contudo, ao contrário do que se poderia supor, eles não visam a suprimir a guerra e instaurar a paz. "A regra", afirma Foucault, "é o prazer calculado do com- bate, é o sangue prometido. Permite relançar sem cessar o jogo da dominação, põe em cena uma violência meticulosa· (10) "Nietzsche, la gênêalogie. I'histoire", ;n Hommage à Jean Hyppo- lite, Paris, PUF, 1971, p. 154. " , , l L RECORDAR FOUCAULT 41 mente repetida." 11 Portanto, a existência de regras possibilita a inversão de uma relação de forças, viabiliza que sejam do- minados os que dominam. Ao apossarem· se de sistemas de re- gras estabelecidos, as forças impõem-lhes uma nova direção. Desse ponto de vista, seria possível entender, por exemplo, a tese nietzschiana da transvaloração de todos os valores, trans- valoração que já se verificaria, num primeiro momento, com o advento do cristianismo, Seria ainda possível compreender a afirmação do parágrafo 195 de Para alem de Bem e Mal: "Nessa inversão dos valores (que emprega a palavra 'pobre' como sinônimo de 'santo' e 'amigo') reside a importância do povo judeu: com ele começa a revolta dos escravos na moral" . De acordo com Foucault, sistemas de regras, como valo- res morais, conceitos metafísicos (inclusive a idéia de liber- dade), procedimentos lógicos e até a própria linguagem, não têm um significado originário, mas são vazios, feitos para se- rem utilizados. Estão à mercê de forças, que deles se apossam, imprimindo-lhes em cada inversão de relação, em cada pro- cesso de dominação, um novo sentido, E assim se acha outra vez cercada a questão da interpretação. "Interpretar", afirma Foucault, "é apoderar-se,
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