Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 330 5 Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade: crítica ao papel meramente simbólico desse princípio LAURICIO ALVES CARVALHO PEDROSA Doutor e Mestre em Direito (UFBA), com Estágio de Doutoramento na Justus- Liebig-UniversitätGiessen (Alemanha). Professor de Direito Civil (UESC). ROXANA CARDOSO BRASILEIRO BORGES Doutora em Direito Civil (PUC-SP). Mestre em Instituições Jurídico-Políticas (UFSC). Professora de Direito Civil (UFBA) (UNEB). Artigo recebido em 01/10/2016 e aprovado em 07/07/2017. SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Do individualismo proprietário à atual utilização meramente simbólica do princípio da função social 3 A sustentabilidade como elemento ínsito ao princípio da função social da propriedade 4 Conclusão 5 Referências. RESUMO: O presente trabalho analisa a necessidade de consideração da noção de sustentabilidade como elemento ínsito ao princípio da função social da propriedade, em suas diversas espécies. Com base em uma pesquisa exploratória, de natureza bibliográfica e documental, foram apresentadas propostas de argumentação voltadas para a defesa de um princípio, cujo conteúdo integra uma ética material voltada para garantir a preservação do planeta. Acredita-se que, desse modo, as normas relativas à função social da propriedade deixarão de atuar como mera legislação simbólica – em que a solução para os conflitos é meramente aparente – e poderão adquirir uma adequada eficácia normativa. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade Função Social Função Ambiental Sustentabilidade Legislação Simbólica. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 331 Sustainability as element of social function of property: critical to its merely symbolic role CONTENTS: 1 Introduction 2 From proprietary individualism to the current symbolic use of the principle of social function of property 3 Sustainability as intern element of the principle of social function of property 4 Conclusion 5 References. ABSTRACT: This paper analyzes the need to understand sustainability as an intrinsic element to the principle of the social function of property in its various types. Based on an exploratory, bibliographic and documentary research, argumentative proposals were presented in order to defend a principle whose content belongs to a material ethic, oriented to ensure the preservation of the planet. It is believed, thus, that its rules will no longer act as a symbolic legislation – where the solution to the conflict is merely apparent – and may develop as an adequate and effective regulation. KEYWORDS: Property Social Function Environmental Function Sustainability Symbolic Legislation. Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 332 Le soutenabilité comme un élément dans la fonction sociale de la propriété: la critique du rôle purement symbolique de ce principe SOMMAIRE: 1 Introduction 2 De l´individualisme possessif à l’usage symbolique actuelle du principe de la fonction sociale 3 Le développement durable comme un élément du principe de la fonction sociale de la propriété 4 Conclusion 5 Références. RÉSUMÉ: Cet article analyse la nécessité de considérer la notion de durabilité comme élément du principe de la fonction sociale de la propriété dans ses différentes espèces. D’après une recherche bibliographique, documentaire et exploratoire, des propositions défendent un principe dont le contenu comprend une éthique matérielleorienté pour assurer la préservation de la planète. On croit donc que ses règles n’agiront plus comme une simple législation symbolique et peut acquérir une efficacité normative adéquate. MOTS-CLÈS: Propriété Fonction Sociale Fonction Environnementale Durabilité Législation Symbolique. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 333 1 Introdução O princípio da função social da propriedade é tema já muito discutido e que conta com importantes contribuições que visam uma melhor compreensão do seu conteúdo. Todavia, pode-se afirmar que poucas são as situações nas quais se atende efetivamente ao preconizado pelo referido princípio. Uma leitura superficial dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais pode levar o intérprete a concluir ser simples o respeito aos requisitos exigidos por lei. Afinal, é necessário apenas que se cumpram as exigências do plano diretor, em se tratando de propriedades urbanas, ou que se preenchamos requisitos previstos no artigo 186 da Constituição Federal (BRASIL,1988), nas hipóteses relacionadas a imóveis rurais. Não há dúvidas acerca da necessidade de respeito às referidas exigências. Os questionamentos surgem no momento em que se torna necessário definir seu conteúdo. Nesse sentido, Chaïm Perelman (2005, p. 500) constata que, enquanto as normas se apresentam em uma perspectiva principiológica, portanto, de forma geral e abstrata, se mantém o consenso acerca do seu conteúdo. As dificuldades surgem no momento de precisar o seu significado, tendo em vista a necessidade de conferir-lhes aplicabilidade concreta. Em tais situações, o autor defende ser importante o papel da argumentação na construção de um conteúdo considerado mais adequado, ou seja, mais razoável. O presente estudo propôs-se a apresentar estratégias de argumentação e decisão, diante da necessidade de tornar mais efetivo o princípio da função social da propriedade. Para tanto, buscou-se formular propostas de sentido e justificação aptas a promover uma transformação na interpretação da disciplina jurídica vinculada ao referido princípio, com base nos valores ético-jurídicos constitucionalmente consagrados. As noções de sustentabilidade, desenvolvida por Leonardo Boff (2014), e de legislação simbólica, elaborada por Marcelo Neves (2011), serviram como referenciais teóricos na formulação das ideias que se seguem. Partiu-se, assim, da exigência normativa referente à necessidade de utilização dos recursos naturais de forma racional e adequada, assim como do dever de preservar o meio ambiente. Ademais, prevalece o atual reconhecimento por parte da comunidade internacional em relação à insustentabilidade dos atuais modelos dominantes de produção e consumo. Resta definir o que se entende como racional ou adequado e o sentido de preservação ambiental. Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 334 De todo modo, ao se afirmar cumprida a função social da propriedade em situações nas quais se segue o modelo dominante de produção e consumo de bens, estar-se-á transformando o referido princípio em mero instrumento simbólico de legitimação do status quo, tendo em vista essa estrutura produtiva representar uma grave ameaça à sobrevivência da vida no planeta. Defende-se, por conseguinte, ser a noção de sustentabilidade o elemento apto a promover a superação do uso do referido princípio como mera legislação simbólica, a fim de torná-lo efetivo, de modo a garantir uma sadia qualidade de vida tanto para as presentes quanto para as futuras gerações. 2 Do individualismo proprietário à atual utilização meramente simbólica do princípio da função social O excesso de individualismo marcou a concepção moderna de diversos institutos e estatutos jurídicos, em especial a definição e o conteúdo dos direitos subjetivos, dentre os quais se destaca o Direito de Propriedade. A influência da ideologia individualista sobre esse instituto nos últimos séculos foi tão marcante que até mesmo a reação aos abusos no exercício desse direito, representada pelaconstrução da ideia de que deveria cumprir funções sociais, acabou sucumbindo a tais interesses. Isso limitou sua efetividade e, em muitos casos, o transformou em mero instrumento retórico – ou seja, em uma legislação simbólica voltada apenas para suscitar a confiança dos cidadãos acerca da mudança da perspectiva ideológica representada pelo novo sistema jurídico, inaugurado com a Constituição Federal de 1988 – sem que suas normas sejam concretamente efetivadas. “O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas” (NEVES, 2011, p. 33). Ao longo dos últimos séculos, a propriedade foi sendo, como ressalta Pietro Barcelona (1987, p. 37), aos poucos, abstraída e liberada, transformando-se em abstratas apropriabilidade (appropriabilità) e alienabilidade, e também em instrumento potente, mediante o qual foi possível generalizar a qualificação do sujeito jurídico como sujeito proprietário. Em relação à subjetividade abstrata, a propriedade deixou de ser uma qualidade pessoal e se transformou em elemento integrante da própria subjetividade. Surgiu, então, uma correspondência entre a abstração da propriedade e a abstração do sujeito, o que tornou possível a transformação do originário Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 335 individualismo possessivo em “uma forma geral de organização da sociedade: a sociedade dos proprietários livres e iguais” (BARCELONA, 1987, p. 37). O modelo de propriedade da modernidade tem profunda ligação com a visão atomística da sociedade e pode ser analisado a partir de seu caráter unitário, ilimitado, exclusivista e absoluto. Nesse sentido, a definição do Direito de Propriedade prevista no art. 544 do Código de Napoleão é bastante característica: “o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos” (FRANÇA, 2009)1. A propriedade privada não apenas assumiu o lugar de centro na ordem social, mas todo o sistema jurídico passou a mover-se em torno desse direito. Como ressalta Eroulths Cortiano Júnior (2002, p. 11, 115), a abstração plena do direito proprietário explica sua excepcional capacidade de extensão e de resistência. As definições legislativas abstraíram ao máximo o proprietário, os seus poderes e o objeto de apropriação, de forma a permitir que o modelo proprietário se transformasse em princípio. Trata-se do que Pietro Barcellona (1987, p. 102-105) chama de princípio proprietário ou lógica proprietária, em que esse instituto se transforma de direito da pessoa – do sujeito proprietário – em princípio de organização, mediante uma progressiva desvinculação entre seu novo significado e a sua relação com o domínio da terra. A propriedade adquire o sentido de uma disponibilidade ilimitada dos objetos produzidos e de uma apropriabilidade privada por meio do comércio. Com isso, a pessoa deixa de ser titular de um poder e passa a ser o destinatário potencial dos produtos circulantes no mercado, ou seja, transforma-se em um indivíduo que consome. A princípio, a noção de função social pareceria redundante, uma vez que a principal finalidade do Direito é a busca pelo bem comum. Diante do individualismo exacerbado do século XX, todavia, houve uma deturpação do conceito de direito subjetivo, que tornou necessária a referência expressa à função social. Dessa forma, foi desenvolvida a concepção segundo a qual o exercício de direitos subjetivos somente será admitido pelo Direito se estiver em consonância com os anseios sociais. Assim, buscou-se harmonizar o exercício dos direitos individuais com os dos não-proprietários, bem como com os interesses da sociedade. Na expressão de Orlando Gomes: “No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe 1 No original: “la propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu´onn’en fasse pas unusage prohibé par lês lois ou par les règlements”(FRANCA, 2009). Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 336 deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse dos não-proprietários” (2007, p. 129). Tais ideias se desenvolveram diante de um contexto histórico marcado pelo desequilíbrio social, provocado pelos abusos praticados por aqueles que detinham o poder econômico. Percebeu-se que a crença num equilíbrio natural do mercado era uma falácia, uma vez que os detentores desse poder tinham – e ainda têm – condições de manipular artificialmente determinadas condições, de modo a se beneficiarem em detrimento da maioria da população. Tal exercício abusivo engendrou um poder pessoal e a propriedade converteu-se num título de domínio sobre as pessoas (GRAU, 2005, p. 22). Leon Duguité considerado o responsável por fomentaras discussões relativas à função social da propriedade na esfera jurídica. O autor defendia que a propriedade só deveria ser atribuída àqueles que se encontrassem numa situação econômica característica, que lhes permitisse desempenhar livremente sua missão social. Já o Direito de Propriedade deveria ser compreendido “como justo e concomitantemente limitado pela missão social que se lhe incumbe em virtude da situação particular em que se encontra” (2006, p. 28-29). Desde o fim do século XIX e o início do século XX, a ideia de que os direitos não poderiam mais ser vislumbrados como absolutos e precisavam ter uma função social começou a se desenvolver. Nesse sentido, a obra de Otto Von Gierke representa importante marco histórico na defesa da tese de que o Direito Privado deveria ter uma função social. Em um dos últimos trechos da obra, o autor afirma: “Unser Privatrecht wird sozialer sein, oder es wird nicht sein” (1889, p. 45)2. Tais ideias não acarretaram, entretanto, o descrédito das premissas da primeira modernidade, muito menos sua impugnação ou sua confrontação em face de contra princípios antagônicos – seu efeito foi muito mais sutil: enquanto a estrutura externa de valores da modernidade permaneceu intacta, o conteúdo dos conceitos fundamentais foi tão erodido ou alterado, que sua força normativa foi desviada ou sua construção social se tornou evidente e, assim, suas fragilidades foram evidenciadas. O Direito de Propriedade, por exemplo, deixou de ser concebido de modo a destacar como características apenas sua plenitude e exclusividade. A necessidade de mudanças refletiu-se nas Constituições do século XX. Paradigmáticas foram a Constituição Mexicana de 1917 – cujo art. 27, §3o estabelece: “A Nação terá em todo tempo o direito de impor à propriedade privada 2 “Nosso Direito Privado será social, ou não será coisa alguma” (tradução nossa). Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 337 as modalidades que ditem o interesse público (...)” – e a alemã de Weimar, datada de 1919 – cujo art. 153, §3o estipula: “[...] a propriedade obriga. Seu uso também deve servir ao bem da comunidade” (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 182). Consoante ressaltam Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2014, p. 182), esses dispositivos tiveram um profundo impacto na forma de se conceber a propriedade por dois motivos principais: pela adoção desse instituto típico do Direito Privado na Constituição, uma norma de Direito Público; e em razão de se conceber a propriedade privada como fonte não apenas de direitos, mas também de deveres. No Direito Privado, o desenvolvimento da teoria do abuso do direito foi um dos primeiros passos no sentido de impor limites ao exercício de direitos subjetivos, especialmente quando violavaminteresses sociais e econômicos. Passou a ser considerada abusiva a prática de atos que não geravam qualquer benefício ao titular do direito subjetivo, mas, ao mesmo tempo, causavam danos a terceiros. De acordo com Heloísa Carpena (2007, p. 404), a partir da consagração dessa teoria, passou- se a exigir que o exercício de qualquer direito subjetivo estivesse condicionado aos parâmetros de boa-fé, aos bons costumes e à finalidade socioeconômica, ou seja, aos valores sociais que esses conceitos exprimem. Desse modo, foi imposto ao magistrado o desafio de “harmonizar a autonomia individual e a solidariedade social” (2007, p. 418). No Brasil, a primeira Constituição a fazer referência expressa à função social foi a de 1934, ao não admitir o exercício do Direito de Propriedade contra o interesse social. Já a Constituição de 1946 condicionou o uso da propriedade ao bem-estar social, além de fazer referência expressa à necessidade de uma justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos. Somente a partir da Constituição de 1967 é que se utilizou a expressão função social da propriedade com o sentido de princípio informador da ordem econômica. A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), por sua vez, reconhece a função social como um dever jurídico (5o, XXIII), assim como um princípio da ordem econômica (art. 170, III). No âmbito do Direito Privado brasileiro, somente com o advento do Código Civil de 2002 (art. 1.228, §2o) houve uma proibição expressa à prática de atos emulativos e ao abuso do direito pelo proprietário. Até então, a aplicação dessa teoria no Brasil era feita a partir de uma interpretação a contrario sensu3 do art. 160, I do Código Civil 3 Em sentido contrário (tradução nossa). Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 338 de 1916, ou seja, entendia-se como ilícito e, portanto, abusivo, o exercício anormal de um direito. Clóvis Bevilaqua (1936, p. 426), ao analisar o dispositivo atualmente revogado, destacava que a evolução do Direito tinha se operado no sentido do maior desenvolvimento e acentuação dos seus intuitos éticos, com uma correspondente redução dos seus elementos egoísticos, e reconhecia que haveria uma reprovação pela consciência pública em relação ao exercício do direito do indivíduo, quando essa atuação contrariasse o destino econômico e social do Direito em geral. Não obstante a proibição expressa do abuso do direito de propriedade no art. 1.228 do Código Civil de 2002, o referido dispositivo já nasceu anacrônico ao exigir, para a sua verificação, uma análise subjetiva, ou seja, que se constate a intenção do proprietário num momento em que prevalece no Direito Civil brasileiro a análise objetiva do comportamento a partir do princípio da boa-fé. Por outro lado, a teoria do abuso do direito prevista na Parte Geral do Código Civil brasileiro de 2002 (art. 187) prevê que para a ocorrência de um ato abusivo deve ser analisado o comportamento do sujeito (análise objetiva), não sua intenção. Essa teoria é mais atual e, por isso, poderá ser utilizada de forma complementar na interpretação do art. 1.228 do Código Civil, que reconhece a necessidade de respeito à função social da propriedade (BRASIL, 2002). Em estudo acerca do abuso do direito, Rodrigo Mazzei (2006, p. 356) identifica a contradição entre os dispositivos do §2o do art.1.228 e do art. 187 do Código Civil e defende que seja realizada uma interpretação restritiva da norma do art. 1.228, na qual reste afastada a exigência de aferição da intenção, para que se configure o abuso do direito por parte daquele que exerce os poderes inerentes à propriedade. Francisco Cardozo Oliveira afirma que a propriedade compreende a apropriação individual ou coletiva de coisas, possuindo natureza social e econômica. Ademais, reconhece que, mesmo sendo ato de apropriação individual, só se torna possível em sociedade e a partir das relações sociais. Em seguida, afirma que “o pressuposto da apropriação é a existência do outro. É pela presença do outro que é medida a disponibilidade da coisa para apropriação” (2006, p. 115). Assim, os contornos dos modos de apropriação, assim como qualquer disciplina ética e jurídica, são delineados intersubjetivamente, o que afasta a ideia de direitos como poderes ilimitados. Após longo processo de evolução histórica, defende-se atualmente a função social de diversos institutos, a exemplo da função social da empresa, da responsabilidade civil e do contrato, assim como se fala não somente em função social da propriedade, mas em funções sociais das diferentes propriedades. “Com efeito, isso requer dotar Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 339 a responsabilidade civil de um instrumental que permita uma operabilidade condizente com sua novel atribuição jurídica: a consecução da função social que tem agora a exercer” (BARROSO, 2006, p. 134). Dessa forma, a satisfação de boa parte dos interesses individuais e coletivos pressupõe que o exercício de situações jurídicas seja caracterizado por uma valoração socialmente útil. Isso significa que a tutela de um interesse pelo ordenamento exige o atendimento concomitante de razões de natureza coletiva (PERLINGIERI, 2002, p. 122), desde que respeitados os direitos personalíssimos e, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana. O reconhecimento das funções sociais foi um passo importante para a redução do caráter individualista de diversos institutos jurídicos, não obstante ser sua aplicação ainda bastante tímida nos tribunais brasileiros. Faz-se necessário reconhecer a função social como integrante de qualquer direito subjetivo, assim como dos diversos estatutos jurídicos, de modo que não se privilegie o interesse privado em detrimento de legítimo interesse coletivo. Para Eroulths Cortiano Júnior (2002, p. 142), a função social promove um redimensionamento do direito de propriedade e não apenas estabelece limite aos poderes proprietários. Com base nesse princípio, advoga que a propriedade deve ser utilizada de forma solidarística. A funcionalização de alguns institutos tem como escopo atingir os objetivos mais importantes do ordenamento jurídico, dentre eles, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A correlação entre propriedade privada e justiça social vê-se sempre ameaçada por um problema de acessibilidade, refletindo o discurso sobre a exclusão, ao se tomar por base uma ordem jurídica civil planificada com base na economia de mercado. Corrigir essa distorção consiste em uma tarefa inarredável do Estado Democrático de Direito. (BARROSO, 2011, p. 161.). Os principais requisitos para que uma determinada propriedade cumpra sua função social encontram-se previstos na Constituição Federal. Com o seu advento, a propriedade privada deixou de ter uma regulamentação exclusivamente privatista e passou a ser tratada como um Direito Privado de interesse público (BORGES, 1998, p. 69). São impostos limites negativos e positivos, o que leva a propriedade a ser chamada de poder-dever ou direito-função. De acordo com Pietro Perlingieri, a história desse instituto consiste numa transição da figura do direito subjetivo para aquela do poder jurídico, “na qual prevalecem limites, gravames, ônus, deveres específicos” (2008, p. 924). A função social consiste na razão pela qual o direito Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 340 de propriedade foi atribuído a determinado sujeito (PERLINGIERI, 2002, p. 226). Consoante afirma Eros Roberto Grau (2005, p. 246), é a função social que a justifica e legitima. O que se percebe no Brasil, entretanto, é a não aplicação do conteúdo do princípio nos termos exigidospelas normas jurídicas que o consagram, razão pela qual a função social da propriedade acaba por desempenhar o papel de mera legislação simbólica, ou seja, voltada para apresentar o Estado como identificado com os valores ou fins protegidos pela norma, sem se preocupar com sua efetiva concretização. Nesses casos, segundo Marcelo Neves, há uma “prevalência do seu significado político-ideológico latente em detrimento do seu sentido normativo- jurídico aparente” (2011, p. 29, grifos do autor). Tal assertiva baseia-se na constatação de que, não obstante a previsão expressa acerca da necessidade de respeito ao princípio da função social da propriedade tanto na legislação constitucional quanto nas normas infraconstitucionais – o que representaria uma identificação estatal com tais valores –, os modelos de produção e consumo de bens atualmente empregados revelam-se insustentáveis e ameaçam a existência da vida no planeta, em desrespeito à exigência constitucional de desenvolvimento sustentável, apto a preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Costumam ser identificadas três principais funções ou finalidades exercidas pela legislação simbólica: 1) a confirmação de valores sociais como forma de reconhecimento da concepção valorativa identificada em determinados grupos sociais; 2) a utilização da lei como álibi, voltada para satisfazer às expectativas dos cidadãos e gerar confiança nos sistemas político e jurídico; e 3) o adiamentoda solução de conflitos sociais por meio de compromissos dilatórios (NEVES, 2011, p. 31-42). Em todos os casos, a eficácia normativa dessas leis desempenha um papel secundário. Diante de tais espécies, constata-se a utilização das normas referentes à função social da propriedade como uma legislação-álibi, na qual se busca dar aparência de solução aos problemas sociais ou até mesmo convencer o público acerca das boas intenções do legislador.Nesse sentido, ressalta Marcelo Neves: Parece, portanto, mais adequado afirmar que a legislação-álibi destina- se a criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente conforme o respectivo texto legal. (NEVES,2011, p. 39). Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 341 Critica-se, assim, a interpretação/aplicação dos textos legais relativos ao princípio da função social da propriedade, em razão de não considerar a ideia de sustentabilidade como requisito essencial, cuja exigência pode ser extraída do texto do art. 225 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), quando se refere à necessidade de preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações (BORGES, 1999). Não se identifica, assim, nas decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ e do Supremo Tribunal Federal – STF, qualquer questionamento desses modelos. Ao contrário, constata-se em julgados do STJ uma referência expressa ao princípio da função social, mesmo diante de atividades produtivas manifestamente insustentáveis (BRASIL, 2016a; BRASIL, 2016b). 3 A sustentabilidade como elemento ínsito ao princípio da função social da propriedade Não obstante o consenso atual em torno da necessidade de respeito ao princípio da função social, subscreve-se a crítica desenvolvida por Stefano Rodotà (2013, p. 56), no sentido de que o tratamento da propriedade como um instituto confere- lhe um suposto caráter objetivo, que induz a doutrina a afirmar a necessidade de determinados bens cumprirem tais funções, quando, em verdade, é a atividade do proprietário, ou seja, o exercício desse direito que deve ser realizado em consonância com a função social. A ênfase, portanto, deve ser dada à atividade do sujeito e não apenas ao bem em si (RODOTÀ, 2013, p. 248). Por essa razão, opta-se aqui por fazer referência a estatutos jurídicos proprietários, cujo conteúdo varia de acordo com as diferentes espécies de propriedade disciplinadas. Faz-se necessário, assim, perceber a insuficiência da concepção monista do direito de propriedade, por não ser capaz de abranger os diferentes conteúdos que cada estatuto possui, além de limitar o poder de atuação do proprietário. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira reconhece a impossibilidade de se criar um conceito inflexível para o referido instituto, assim como de compreender que o atual estágio representa sua definitiva fase de desenvolvimento, pois a propriedade vem sofrendo “transformações tão substanciais quanto aquelas que caracterizariam a criação da propriedade individual, ou que inspiraram a sua concepção feudal” (2009, p. 67). Para Stefano Rodotà (2013, p. 56), a existência de múltiplos estatutos proprietários leva à constatação de que hoje o valor ordenador mais importante não é mais aquele da estabilidade, encarnado numa definição abstrata e imutável, mas Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 342 o de movimento, que reconhece um caráter fluido ao conceito de propriedade, em razão das suas diversas disciplinas setoriais. Em sentido semelhante, Hannoch Dagan defende que o termo propriedade deve ser compreendido como um guarda-chuva, capaz de abranger variadas e distintas instituições, cujo conteúdo se modifica conforme o contexto e a natureza do bem em questão. Ressalta, ainda, que as relações fundadas na propriedade promovem algumas das interações humanas mais cooperativas, a exemplo das relações entre cônjuges, parceiros e membros das comunidades locais, de modo que as teorias monistas, ao imporem a aplicação de normas impessoais do mercado a tão distintas esferas, podem produzir o efeito de destruir ou marginalizar as importantes formas de interação e desenvolvimento humanos (2012, p. 1439-1441). Por essa razão, Dagan defende que a concepção de propriedade como um conjunto composto por diferentes institutos não só contraria a subscrição a um compromisso normativo composto por apenas um princípio regulador, que orientaria o Direito de Propriedade, mas também rejeitaria a noção de um equilíbrio particular entre valores que deveriam orientar toda a sua disciplina. Em vez disso, o autor insiste para que a heterogeneidade das atuais doutrinas existentes seja levada a sério e se endosse o entendimento segundo o qual cada instituto busca um equilíbrio entre seus distintos e específicos valores. Dessa forma, seria reconhecido o pluralismo estrutural no âmbito do Direito de Propriedade, uma vez que – ao se admitir e disponibilizar várias estruturas de propriedade diferentes, mas igualmente valiosas – a interação interpessoal proporcionada por esses múltiplos institutos tornaria a autonomia mais significativa (2012, p. 1443-1444). As concepções dominantes acerca dessas funções sociais terminam por legitimar a degradação do meio ambiente –representando uma ameaça à existência de todos os seres vivos do planeta – em razão de não se considerar a ideia de sustentabilidade como elemento essencial às definições (BORGES, 1999), o que transforma tais normas em legislação meramente simbólica, conforme visto anteriormente. Não obstante a existência de diferentes estatutos proprietários, é possível identificar elementos comuns às diferentes funções sociais das propriedades que estejam em consonância com os fundamentos ético-jurídicos e a realidade social do país, a fim de que possam ser adequadamente concretizados (TORRES, 2010, p. 220). Para que tais ideias possam ser efetivadas no Direito brasileiro, faz-se necessário inicialmente perceber a ineficácia jurídica e socialdos requisitos indicados como essenciais ao respeito ao princípio das funções sociais das propriedades. Em regra, Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set.2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 343 a interpretação do referido princípio é realizada com base apenas nos dispositivos normativos específicos que disciplinam cada estatuto, cujo conteúdo varia de acordo com a espécie de propriedade analisada. Aqui se constata, mais uma vez, a valorização do princípio da legalidade como principal regra de interpretação do arcabouço legislativo, em detrimento da sistemática constitucional, a exemplo do julgado: RECURSO ESPECIAL. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. IMÓVEL RURAL. PRÉVIA AVERBAÇÃO DE ÁREA DE RESERVA FLORESTAL LEGAL NA MATRÍCULA DO IMÓVEL. CONDIÇÃO NECESSÁRIA PARA A RETIFICAÇÃO DA ÁREA (LEI 4.771/65, ANTIGO CÓDIGO FLORESTAL, ART. 16, § 8o; LEI 12.651/2012, ATUAL DIPLOMA FLORESTAL, ARTS. 18 E 29). RECURSO PROVIDO. 1. Tanto no revogado Código Florestal (Lei 4.771/65, art. 16, § 8o) quanto na atual Lei 12.651/2012 (arts. 18 e 29) tem-se a orientação de que a reserva legal florestal é inerente ao direito de propriedade e posse de imóvel rural, fundada no princípio da função social e ambiental da propriedade rural (CF, art. 186, II). 2. “É possível extrair do art. 16, § 8o, do Código Florestal, que a averbação da reserva florestal é condição para a prática de qualquer ato que implique transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel sujeito à disciplina da Lei 4.771/65” (REsp 831.212/MG, DJe de 22/9/2009, Relatora Min. Nancy Andrighi). 3. Recurso especial provido.” (BRASIL, 2016b) No que se refere à propriedade urbana, por exemplo, deve ser respeitado o que estabelece o §2o do artigo 182 da Constituição Federal (BRASIL,1988), ou seja, exige-se o respeito ao plano diretor que, juntamente com as leis orgânicas, são os instrumentos urbanísticos voltados à disciplina das funções sociais das propriedades urbanas. Já em relação à propriedade rural, requer-se o cumprimento dos requisitos específicos previstos no artigo 186 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que identifica três elementos básicos: econômico, social e ecológico. Nesse sentido, costuma-se afirmar não ser suficiente a mera produtividade para que seja cumprido o princípio da função social da propriedade rural, pois deve haver também uma utilização do solo rural capaz de promover o bem-estar dos proprietários, dos trabalhadores e da coletividade, além da preservação do meio ambiente como direito difuso (BORGES, 1999). Não obstante a existência de diferentes funções sociais das propriedades, cujo conteúdo varia conforme a natureza do bem em apreço, é possível identificar alguns elementos comuns a todas, dentre os quais destaca-se a necessidade de respeito ao meio ambiente. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 344 fundamental (CF, art. 225), apesar de não estar previsto no capítulo que trata dos direitos individuais e coletivos. Nesse sentido, já há entendimento consolidado do STF (BRASIL,1993) em que se reconhecem como direitos fundamentais não apenas aqueles consagrados no artigo 5o da Constituição Federal (BRASIL,1988), mas também outros identificados ao longo do texto constitucional, de forma expressa, ou em razão do regime e dos princípios adotados pela Carta Magna, ou, ainda, em decorrência dos tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário (BRASIL, 1993). Por se tratar de um direito de natureza difusa (BORGES, 1999), é reconhecido ao Estado e à coletividade o dever de garantir e promover o acesso ao meio ambiente equilibrado como um bem jurídico autônomo. Sua disciplina representa mais um elemento na constatação de que a Lei Maior consagrou a indissolubilidade existente entre o Estado e a sociedade civil. No que se refere à exigência relativa à preservação ambiental, novamente se costuma fazer menção ao respeito à legislação infraconstitucional, a exemplo do Código Florestal e de outros diplomas legais, em detrimento da exigência prevista no art. 225 da Constituição Federal (BRASIL,1988), relativa à preservação do meio ambiente também para as futuras gerações. Em que pese a existência de respeitáveis opiniões no sentido de considerar suficiente a aplicação das normas infraconstitucionais, é perceptível a insuficiência de tais definições, em razão dessas concepções legitimarem a atual exploração dos recursos naturais, de modo ainda distante da ideia de sustentabilidade. A expressão uso sustentável está relacionada à capacidade regenerativa do ecossistema (FRANCISCO, 2015, p. 87) e à possibilidade desse uso não representar uma ameaça à vida no planeta Terra. O Papa Francisco (2015, p. 87) identifica o desrespeito à solidariedade e à amizade cívica como fonte de danos ambientais. Assim, entende que a ecologia social é necessariamente institucional e deve alcançar diferentes dimensões, que vão desde os grupos sociais primários, como a família, até as relações internacionais. Tal compreensão coaduna-se com as ideias aqui esposadas, tendo em vista os danos ecológicos ofenderem o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de natureza difusa, cuja fruição somente pode ocorrer de forma coletiva, o que pressupõe uma solidariedade entre todos os membros da sociedade. Dessa forma, toda lesão ao meio ambiente é uma violação não só a esse direito fundamental, como também ao dever de solidariedade social e um Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 345 desrespeito ao objetivo fundamental da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Para que o princípio das funções sociais das diversas propriedades se torne capaz de garantir o respeito aos direitos fundamentais e aos objetivos fundamentais da República, faz-se necessário compreender que a noção de sustentabilidade é ínsita à ideia de proteção ambiental. Há uma definição clássica de sustentabilidade, utilizada pelas Organizações das Nações Unidas – ONU no Relatório Brundtland4, segundo a qual “desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem às suas necessidades e aspirações” (BOFF, 2014, p. 165). Para Leonardo Boff (2014), esse conceito é correto, mas tem como limitações os fatos de ser antropocêntrico e de nada dizer sobre o que ele denomina de comunidade de vida, ou seja, os demais seres vivos que utilizam a biosfera e por isso também precisam da sustentabilidade. Por essa razão, o autor apresenta um conceito mais abrangente, em que busca superar o tratamento do planeta Terra como uma mera coisa ou meio de produção, ressaltando a interdependência e a necessidade de coexistência entre todos os seres vivos: Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e a vida humana, visando a sua continuidade e ainda atender às necessidades das gerações presentes e futuras, de tal forma que os bens e serviços naturais sejam mantidos e enriquecidos em sua capacidade de regeneração, reprodução, e coevolução. (BOFF, 2014, p. 165). Entende-se, assim, que a defesa da sustentabilidade como elemento ínsito às funções sociais, nos termos da definição realizada por Leonardo Boff, está em consonância com o conteúdo dos valores ético-jurídicos constitucionalmente consagrados. Nesse sentido, propugna-se que, não apenas o outro, mas toda a exterioridade – o que abrange a totalidade da natureza – representa um apelo aos seres humanos no sentido de criar uma responsabilidade irrecusável, voltada à manutenção de equilíbrio e harmonia na natureza, situação queinclui, evidentemente, as relações humanas. Por conseguinte, tudo o que circunda os seres vivos deve ser tratado como 4 Relatório Brundtland é o documento intitulado Our Common Future (Em tradução livre, Nosso Futuro Comum), publicado em 1987 pela Organização das Nações Unidas. Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 346 elemento indispensável à constituição e ao desenvolvimento pleno da vida em geral e, por conseguinte, da personalidade única de cada ser humano. A ideia de sustentabilidade está em consonância com uma ética material caracterizada por não se limitar a produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade, mas também por garantir a existência e a harmonia das demais vidas presentes no ecossistema. Considerando a noção de sustentabilidade apresentada, constata-se o atual descumprimento do princípio das funções sociais das propriedades, uma vez que nem a produção nem o consumo estão sendo realizados de modo sustentável, fato que representa uma ameaça à vida na Terra. Em razão de o meio ambiente ser um bem difuso, entende-se que, a partir da noção de sustentabilidade, será possível assegurá-lo não apenas perante as presentes, mas também para as futuras gerações de todos os seres vivos do planeta, o que exigirá um reforço da ideia de solidariedade social. Vale ressaltar, entretanto, a necessidade de se combater possíveis utilizações dessa noção ou até da expressão como mero instrumento de retórica – pois é evidente que os atuais modelos de produção e consumo não são sustentáveis – e o alcance de tal objetivo exige uma profunda alteração da estrutura produtiva, assim como de mentalidades. Tal afirmação não nega, contudo, o avanço representado por referências expressas ao termo sustentabilidade nos julgamentos dos tribunais brasileiros, o que também não afasta a necessidade de aprofundamento do seu conteúdo: ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. SUSPENSÃO DOPROCESSO EXPROPRIATÓRIO. MEDIDA CAUTELAR PELO JUIZ SINGULAR. POSSIBILIDADE. CONCEITO DE FUNÇÃO SOCIAL QUE NÃO SE RESUME À PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL. DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL NÃO RECONHECIDA PELA CORTE DE ORIGEM. MATÉRIA PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. [...] 3. Nos moldes em que foi consagrado como um Direito Fundamental, o direito de propriedade tem uma finalidade específica, no sentido de que não representa um fim em si mesmo, mas sim um meio destinado a proteger o indivíduo e sua família contra as necessidades materiais. Enquanto adstrita a essa finalidade, a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre a sua função individual. 4. Em situação diferente, porém, encontra-se a propriedade de bens que, pela sua importância no campo da ordem econômica, não fica adstrita à finalidade de prover o sustento do indivíduo e o de sua família. Tal propriedade é Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 347 representada basicamente pelos bens de produção, bem como, por aquilo que exceda o suficiente para o cumprimento da função individual. 5. Sobre essa propriedade recai o influxo de outros interesses – que não os meramente individuais do proprietário – que a condicionam ao cumprimento de uma função social. 6. O cumprimento da função social exige do proprietário uma postura ativa. A função social torna a propriedade em um poder-dever. Para estar em conformidade com o Direito, em estado de licitude, o proprietário tem a obrigação de explorar a sua propriedade. É o que se observa, por exemplo, no art. 185, II, da CF. 7. Todavia, a função social da propriedade não se resume à exploração econômica do bem. A conduta ativa do proprietário deve operar-se de maneira racional, sustentável, em respeito aos ditames da justiça social, e como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos uma existência digna. 8. Há, conforme se observa, uma nítida distinção entre a propriedade que realiza uma função individual e aquela condicionada pela função social. Enquanto a primeira exige que o proprietário não a utilize em prejuízo de outrem (sob pena de sofrer restrições decorrentes do poder de polícia), a segunda, de modo inverso, impõe a exploração do bem em benefício de terceiros. 9. Assim, nos termos dos arts. 186 da CF, e 9o da Lei no 8.629/1993, a função social só estará sendo cumprida quando o proprietário promover a exploração racional e adequada de sua terra e, simultaneamente, respeitar a legislação trabalhista e ambiental, além de favorecer o bem- estar dos trabalhadores. 10. No caso concreto, a situação fática fixada pela instância ordinária é a de que não houve comprovação do descumprimento da função social da propriedade. Com efeito, não há como aferir se a propriedade– apesar de produtiva do ponto de vista econômico, este aliás, o único fato incontroverso – deixou de atender à função social por desrespeito aos requisitos constantes no art. 9o da Lei no 8.629/93. 11. Analisar a existência desses fatos, conforme narrado pelo agravante, implica revolvimento de matéria probatória, o que é vedado a esta Corte Superior em razão do óbice imposto pela Súmula 7/STJ. (BRASIL, 2011). Por conseguinte, pode-se afirmar que o princípio das funções sociais das propriedades exige o exercício dos direitos de modo compatível com a preservação dos elementos necessários ao equilíbrio ecológico e ao pleno desenvolvimento de todas as formas de vida do planeta, o que abrange também as futuras gerações. Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 348 4 Conclusão A análise acerca da evolução histórica do Direito de Propriedade demonstra que o individualismo, marcante nos últimos séculos, manteve seu poder ideológico sobre o instituto, de modo que conseguiu transformar o princípio da função social em legislação simbólica, como espécie de legislaçãoálibi, voltada para dar aparência de solução aos problemas socioambientais, quando, em verdade, sua concretização tem contribuído para legitimar modelos de produção e consumo insustentáveis. Não obstante a existência de múltiplos estatutos proprietários, em virtude de uma sociedade cada vez mais complexa, que se reflete em um pluralismo jurídico inerente a qualquer ordenamento jurídico de natureza democrática, é possível identificar elementos comuns às diferentes funções sociais da propriedade. Dentre eles, destaca-se a necessidade de respeito ao meio ambiente, direito fundamental cuja concretização exige modelos sustentáveis de produção e consumo de bens. Portanto, é preciso considerar a sustentabilidade como elemento integrante e comum às definições dos diferentes estatutos proprietários. A atual exploração econômica tem desconsiderado a capacidade regenerativa dos ecossistemas, o que representa uma ameaça à vida no planeta Terra, além de evidenciar o descumprimento do dever de solidariedade social. Somente a partir da consideração da sustentabilidade como elemento ínsito ao princípio da função social da propriedade é que suas normas deixarão de atuar como legislação simbólica, em direção a uma efetiva concretude. 5 Referências BARCELLONA, Pietro. L’individualismo proprietario. Torino: Bollati Boringhieri Editore, 1987. BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade civil por dano ambiental. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ______. A realização do direito civil: entre normas jurídicas e práticas sociais. Curitiba: Juruá, 2011. BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v. 1, 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936. BOFF, Leonardo. A grande transformação: na economia, na política e na ecologia. Petrópolis, RJ: Vozes,2014. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 349 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função ambiental da propriedade. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 09, jan./mar. 1998, p. 67-85. ______. Função ambiental da propriedade rural. São Paulo: LTR, 1999. ______. O novíssimo Código Florestal e seu desenho da função ambiental da propriedade. In: BARROSO, Lucas Abreu; MIRANDA, Alcir Gursen de; SOARES, Mário Lúcio Quintão (Coord.). O Direito Agrário na Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 19 set. 2017. ______. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Diário Oficial da União. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/ L10406.htm>. Acesso em: 21 set. 2017. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1447082/TO, de 10 de maio de 2016. Relator: Ministro Paulo Tarso de Sanseverino. Brasília, 2016a. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=IT A&sequencial=1511186&num_registro=201400780431&data=20160513&form ato=PDF>. Acesso em: 27 set. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1455709/SP, de 5 de maio de 2016. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília,2016b. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&s equencial=1465668&num_registro=201401164526&data=20160513&formato= PDF>. Acesso em: 27 set. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 843.829-MG, de 19 de novembro de 2015. Relator: Ministro Raul Araújo. Brasília, 2015. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC& sequencial=55104896&num_registro=200600922139&data=20151127&tipo=5 &formato=PDF>. Acesso em: 27 set. 2016. ______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial no 1138517/MG, de 18 de agosto de 2011. Relator: Ministro Humberto Martins. Brasília, 2011. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/ mediado/?componente=ITA&sequencial=935830&num_registro=200900858110 &data=20110901&formato=PDF>. Acesso em: 27 set. 2016. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 939- 7/DF, de 15 de dezembro de 1993. Relator: Ministro Sydney Sanches. Brasília, 1993. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor. asp?numero= 939&classe=ADI>. Acesso em: 10 set. 2010. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511186&num_registro=201400780431&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511186&num_registro=201400780431&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1511186&num_registro=201400780431&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1465668&num_registro=201401164526&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1465668&num_registro=201401164526&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1465668&num_registro=201401164526&data=20160513&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=55104896&num_registro=200600922139&data=20151127&tipo=5&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=55104896&num_registro=200600922139&data=20151127&tipo=5&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=55104896&num_registro=200600922139&data=20151127&tipo=5&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=935830&num_registro=200900858110&data=20110901&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=935830&num_registro=200900858110&data=20110901&formato=PDF https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=935830&num_registro=200900858110&data=20110901&formato=PDF http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=939&classe=ADI http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?numero=939&classe=ADI Sustentabilidade como elemento da função social da propriedade Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 350 CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no Código Civil de 2002: relativização de direitos na ótica civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. DAGAN, Hanoch. Pluralism and Perfectionism in Private Law. Columbia Law Review, v. 112, 2012. DUGUIT, Leon. Fundamentos do direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2006. FRANÇA. Ministère de la Justice. L’article 544 du code civil, clef de voûte du droit de propriété. Le portail de la Justice et du droit. Paris, 20 juil. 2009. Disponível em: <http://www.justice.gouv.fr/justice-civile-11861/larticle-544-du-code-civil-clef- de-voute-du-droit-de-propriete-23903.html>. Acesso em: 27 mar. 2016. FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’: Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Edições Loyola, 2015. GIERKE, Otto. Die soziale Aufgabe des Privatrechts. Berlin: Springer Verlag, 1889. GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo Direito Privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MAZZEI, Rodrigo. Abuso do direito: contradição entre o §2o do art. 1.228 e o art. 187 do Código Civil. In: BARROSO, Lucas Abreu (Org.).Introdução crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense 2006. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. v. IV. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PERLINGIERI, Pietro. Perfis de direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. http://www.justice.gouv.fr/justice-civile-11861/larticle-544-du-code-civil-clef-de-voute-du-droit-de-propriete-23903.html http://www.justice.gouv.fr/justice-civile-11861/larticle-544-du-code-civil-clef-de-voute-du-droit-de-propriete-23903.html Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 19 n. 118 Jun./Set. 2017 p. 330-351 Lauricio Alves Carvalho Pedrosa — Roxana Cardoso Brasileiro Borges 351 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. RODOTÀ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privata e i beni comuni. Terza edizione. Bologna: Il Mulino, 2013. TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
Compartilhar