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CORPO E MOVIMENTO E-book 1 José Mauricio Conrado Neste E-book: Introdução ���������������������������������������������������� 3 O que pode um corpo? ����������������������������4 Entendendo um pouco a relação entre Corpo, músculo e física �����������������������������������������������11 Corpo e Mente ��������������������������������������������������18 O erro de René Descartes ���������������������������������20 Logo, um movimento nosso é a relação entre mente e corpo ��������������������������������������������������24 O movimento como comunicação do corpo ������25 Considerações finais�������������������������������28 Síntese ���������������������������������������������������������30 2 E-book 1 CORPO E MOVIMENTO E-book 1 INTRODUÇÃO Olá, estudante! Neste primeiro módulo, você aprenderá sobre o papel dos movimentos para a atuação do corpo na vida. Apresentaremos algumas ideias iniciais sobre como o corpo foi entendido em alguns momentos da histó- ria. Também discutiremos o papel da linguagem cor- poral para nossa vida social. Para entendermos estas questões iniciais, vamos conhecer alguns filósofos, cientistas e pesquisadores que estão discutindo o papel do corpo na vida humana. 3 O QUE PODE UM CORPO? Contextualizando-se dentro dos debates que discu- tem – no fim do século 20 e início do século 21 – a emergência da chamada Neurociência, esta disciplina considera que discutir o corpo e seus movimentos é um debate reflexivo que também depende do en- tendimento da relação homem/tecnologia. Nos dias atuais, a presença da tecnologia no cotidiano é algo muito habitual e se faz necessário, portanto, também pensar em como nos movimentamos em meio ao uso de nossos celulares, etc. Para esta discussão, esta disciplina parte de alguns estudos das ciências cognitivas, uma área do co- nhecimento surgida em meados do século 20, com o objetivo de descobrir e construir uma ciência geral do funcionamento da mente/cérebro. Para mais in- formações sobre esta ciência, sugiro que você leia o livro de Jean-Pierre Dupuy: Nas origens das ciências cognitivas. O corpo é, sem dúvida, uma das grandes questões de atenção neste mundo em que vivemos. O tempo todo, presenciamos – na televisão, nas redes so- ciais, nos jornais impressos, na publicidade, enfim, em um número gigantesco de fontes e mídias – o corpo sendo representado e mostrado. Mas, o que realmente significa o corpo para nós? O que significa o corpo e seus movimentos para nossa existência? 4 O filósofo Baruch Spinoza (1632-1677) pergunta: O que pode um corpo? A resposta parece ser simples: sem movimentar o corpo, não faríamos nada do que conquistamos. Seja em nível individual ou coletivo. É pelos movimentos do corpo que que chegamos a um lugar que ainda não conhecemos. É pelos movimentos do corpo que construímos um objeto, como um carro, por exemplo. É pelos movimentos do corpo que escrevemos ou interpretamos um texto. É pelo movimento do cor- po que praticamos esportes e fazemos atividades lúdicas e artísticas, como dançar, interpretar uma peça teatral ou obra cinematográfica. Como se pode perceber, a discussão sobre o Corpo e seus movimen- tos passa por todos os aspectos de nossas vidas, desde questões cotidianas – como trabalhar – até questões mais específicas – como se exercitar ou praticar atividades no campo da arte. Assim, neste primeiro módulo, vamos iniciar o deba- te e a reflexão sobre o Corpo e Movimento a partir, primeiramente, do que seja o movimento, quem está habilitado a investigar seus conceitos e como a área da educação pode utilizar a discussão para ampliar a qualidade da discussão pedagógica. A área da educação precisa debater várias questões que emergiram no século 21. Há questões como o surgimento de tecnologias da informação e da co- municação – como as redes sociais –, há um avanço considerável da neurociência e das ciências cogni- tivas que têm revelado novas questões sobre como 5 nosso corpo aprende novas informações (e um movi- mento diferente é uma nova informação que precisa ser aprendida pelo corpo, por exemplo), e há também novas questões culturais que influenciam o modo como lidamos com o corpo e como o corpo cria e re- cria seus próprios movimentos. Redes sociais, como o Facebook ou o Instagram, por exemplo, podem até parecer estar distantes da discussão sobre o corpo e movimento, no entanto, essas tecnologias afetam bastante a forma como lidamos com a questão, e acabam por influenciar, também, as questões edu- cacionais presentes neste contexto. Nesse sentido, o papel do corpo é fundamental, pois ele está relacionado a processos culturais e comunicacionais que, no mundo contemporâneo, altamente povoado por tecnologias, ganha outras complexidades, como argumenta o autor argentino Néstor Canclini: O corpo sempre foi portador de cultura: posi- ções e atitudes, vestuário e formas de pintá-lo identificavam a etnia ou o grupo a que se per- tencia, mesmo que viajássemos a outras pa- ragens. Mas as tecnologias da comunicação aumentaram a portabilidade cultural. [...] O ce- lular torna os jovens independentes dos pais, porque estes deixam de saber exatamente onde aqueles estão e o que fazem com seus corpos. Para os jovens, torna-se um recurso para novas experiências corporais e de comu- nicação. Mais do que a localização, importam 6 as redes. Mesmo sentado, o corpo atravessa fronteiras (CANCLINI, 2008, pp.43-44). O que podemos entender é que o corpo – e seus mo- vimentos – é algo importante no processo de cons- trução de novos sentidos para a sociedade. Sendo assim, é preciso representar visualmente nosso co- tidiano. Até o fato de desenhar ou fotografar tem a ver com o corpo e seus movimentos. Uma das necessidades básicas da humanida- de sempre foi a de representar visualmente questões que mexem com seus sentimentos profundos e complexos. Como atestam as pin- turas de manadas encontradas em cavernas, desde a pré-história, o ser humano registra em traços aquilo que considera importante. A cartografia, ciência e arte de elaborar ma- pas, cartas e planos, é uma das mais antigas manifestações da cultura. (LEÃO, 2002, p.15). Para pensarmos nas possibilidades de representar o corpo e seus movimentos é importante também considerar que estamos evoluindo com rapidez que cada vez maior, e as novas tecnologias entram no cotidiano e modificam nossos próprios movimen- tos. Assim, a internet é também um ambiente que inaugura outras possibilidades de evolução das in- formações. Isso não significa instalar previamente um julgamento de valor do tipo “bom” ou “mau” para 7 tal evolução, mas, sim, outras estratégias para que o corpo possa criar e recriar seus movimentos. Como mais uma rede, a internet é um ambiente em que sistemas de informações trabalham com a noção de interatividade, compreendida como possibilidade de extensão do corpo e de seus sentidos no espaço- -tempo: podemos estar em casa e, simultaneamente, conversando e vendo alguém que esteja em outro lugar. No entanto, sabemos ainda muito pouco sobre ou- tros mapas e futuras possibilidades do que possa vir a acontecer com nossa sociedade, e precisamos estar atentos para a questão de como nosso corpo vai se movimentar em relação às novas tecnologias que podem surgir. Assim, se antes da internet nos movimentávamos de determinada forma em nosso cotidiano, depois da rede mundial de computadores, passamos a criar outros tipos de movimento corporal. Basta pensar- mos que existem desde obras de arte, agências ban- cárias, supermercados, filmes, e toda uma gama de objetos off-line que passaram a coexistir com suas versões on-line. A conexão entre as instâncias “on” e “off-line” cria uma rede de sucessivas possibilidades de movimentação para o corpo. Somos uma espécie que tem aptidão para dar senti- do e significado para o mundo e para nós mesmos. E tais significados, além de ser uma singularidade complexa, que marca a identidade do homem em relaçãoàs demais espécies, é também uma espécie 8 de contrato social. Estar vivo numa sociedade su- blinha “assinar” esses contratos: nossa existência depende dos sentidos que construímos ao longo da vida – seja pessoalmente, seja coletivamente. Você já parou para pensar que, metaforicamente, o útero materno é um “portal” que nos prepara para a vida? Que, ao nascermos, estamos começando nossa caminhada de construção de sentidos? Nascer sublinha as noções de dentro e fora. A vida de uma célula também enfatiza tais noções. Uma célula tem dobras que marcam sua identidade, no entanto, há permeabilidade nessas membranas que enfatizam a correlação e o continuum entre o dentro e o fora, e, consequentemente, as transforma- ções desta célula: componentes de fora e de dentro da célula são constantemente trocados. Assim, a própria noção de vida significa a criação de identida- des que, pelo jogo incessante entre interior e exterior, experimenta constantes processos de metamorfoses e coevoluções. Identidades em constante processo de mudanças colocam em movimento nossos olhos e alertam para o fato de que o padrão de ser um mero espectador do mundo não seja uma verdade. Pela inevitável marcha da reavaliação do conhecimento que criamos hoje, percebemos muita coisa que antes julgávamos não existir. Em 1981, Heinrich Rohrer e Gerd Bining, do laboratório de pesquisa da IBM de Zurich, in- 9 ventaram o microscópio de escaneamento por tunelamento (STM, do inglês Scanning Tunneling Microscope), o qual “olhou” pela primeira vez a topografia dos átomos, que não podia ser vista anteriormente (Binning & Roher 1999). Com essa invenção a era do ima- terial foi verdadeiramente inaugurada (VESNA; GIMZEWSK, 2002, p. 281). Assim, do “lado de fora”, a cultura e seus “contratos sociais” são metaforicamente um continuum do úte- ro. A Sociedade e a cultura continuam gestando nos- so corpo. O que estamos analisando, o tempo todo, são os significados e desdobramentos que podemos encontrar no processo de estar vivo e produzir movi- mentos. Movimentos que dão sentido a nós mesmos e que participam da vida social. Movimentos do cor- po que também passam a ter novos entendimentos a partir das novas descobertas da ciência. O corpo é também uma mídia? Harry Pross, comunicólogo alemão, desenvolveu uma teoria da mídia que estabelece que o corpo é a mídia primária da comunicação; é o corpo quem produz cheiros, sons, imagens – como os sonhos. Amplificações do emissor para o receptor – livros, por exemplo – são mídias secundárias. Aparatos eletrônicos que amplificam tanto o receptor quanto o emissor no espaço – como televisores – são mídia terciárias, caso também da internet. 10 Entendendo um pouco a relação entre Corpo, músculo e física Segundo Okuno e Fratin: Os músculos do corpo humano, ao exerce- rem forças, podem colocar um objeto em movimento ou mesmo alterar seu estado de movimento. Além disso, as forças também causam deformações de corpos, muitas vezes invisíveis a olho nu. Forças de muitos tipos controlam todos os movimentos do universo (OKUNO; FRATIN, 2007, p.15). A partir dessa ideia inicial, é possível refletir que es- tamos movimentando nossos corpos o tempo todo, o que, por sua vez, produz efeitos sobre nós mesmos e sobre os ambientes onde estamos. E, mesmo que o objetivo desta disciplina não seja dis- cutir as especificidades da fisiologia do movimento, alguns conceitos iniciais desta área serão importan- tes para que possamos enriquecer nossas reflexões sobre como o corpo cria e recria movimentos em diversos contextos. Ainda segundo Okuno e Fratin: A postura corporal incorreta adotada no dia a dia acarreta forças imensas na coluna, que são, em geral, a causa de dores lombares. As forças que atuam no quadril durante o cami- 11 nhar também são muito grandes. Modelos simplificados podem ser usados para o cálculo das forças envolvidas. Os princípios que orientam esses cálculos são as condições de equilíbrio estático do corpo ou de partes dele (OKUNO; FRATIN, 2007, p.129). O assunto sobre o corpo e seus movimentos é bas- tante discutido pela ciência e popularizado, também, em produtos editoriais. Fique atento Leia o artigo A máquina do eterno movimento e perceba como o movimento está presente em tudo. Até no ato de você ler e estudar este conte- údo, por exemplo. Disponível em: https://super.abril.com.br/ saude/a-maquina-do-eterno-movimento. Podcast 1 Inúmeras pesquisas da neurociência – área impor- tante para a discussão e entendimento das questões sobre corpo e movimento – revela que produzimos inúmeras imagens sobre nosso próprio corpo em nosso cérebro. Para essas pesquisas, as imagens corporais dizem respeito ao modo como “imagina- mos” nós mesmos e o mundo, e que este imaginar 12 https://super.abril.com.br/saude/a-maquina-do-eterno-movimento/ https://super.abril.com.br/saude/a-maquina-do-eterno-movimento/ https://famonline.instructure.com/files/43007/download?download_frd=1 – ou seja, criar imagens mentais – está em constante mudança, de maneira ativa em contato com aquilo que vem da realidade interna do nosso corpo, em diálogo com a realidade externa de nosso corpo – os ambientes pelos quais transitamos, por exemplo. Estes entendimentos provenientes da neurociência nos ajudam a esclarecer algumas questões sobre a locomoção do corpo, e como criamos movimentos. Vamos “imaginar” o que a existência das realidades internas do corpo pode contribuir para que entenda- mos o que significa o corpo criar movimentos. Quando estamos na internet, estaríamos nos movi- mentando também? A internet apresenta peculiaridades para a locomo- ção. Esta operação refere-se a como o movimento se correlaciona com a capacidade do cérebro criar imagens sobre as ações que realizamos. “Andar” ou “navegar” pela internet envolve algumas questões estudadas pelas ciências cognitivas, no que diz res- peito a como o organismo cria relações entre a nossa imaginação e um gesto “real”. É preciso lembrar que o uso da internet significa es- tar “parado”, no senso comum. Daí, ficar sentado na frente de um computador pode ser algo que “atrofia” nosso sistema sensório-motor. Mas, as coisas não são bem assim. Não se pensa em locomoção na internet como atividade motora complexa – como a dança, por exemplo –, pois, basicamente, mover- -se pelo ciberespaço significa articular o movimento das mãos e braços para utilizar o teclado e o mouse 13 ou a ponta dos dedos, no caso de estarmos usando celulares conectados à internet. Mas, ao navegarmos pela internet – ou jogarmos futebol de salão, ou em qualquer outra circunstância que envolva habilidades cognitivas –, estarão presentes a alta complexidade da comunicação interna do corpo e a capacidade de o cérebro criar imagens que acompanham essas ações. Contextualizando que a imaginação se relacione com esta realidade interior do corpo, a produção de imagens internas cria correlações entre imaginar um movimento corporal e realizar este movimen- to. Qualquer tipo de movimento ocasiona situações bastante complexas e que envolvem a questão da imaginação corporal. Se temos enfatizado o corpo e suas singularidades em relação ao ambiente, expli- citando que é impossível separá-los, também argu- mentamos – com base nos estudos neurocientíficos –, que imaginar um movimento e realizá-lo sejam coisas impossíveis de separação. Assim, há pesquisas que analisam o funcionamento do nosso corpo em relação às imagens corporais (conteúdos imaginados), sublinhando que a orga- nização de um gesto envolve a imaginação corpo- ral, criando conteúdos virtuais em outras partes do corpo, imperceptíveis para o próprio indivíduo. “Se quero esticar meu braço à frente, o primeiro músculo a entrar em ação, antes mesmo que meu braço se mexa, será o músculo da panturrilha, antecipando a desestabilização que o peso do braço irá provocar” (GODARD, 1999, p. 15). 14 Reflita Em relação à comunicação internanão ser per- ceptível pelo corpo em seu estado de vigília, ou seja, quando estamos conscientes, vale ressaltar que, mesmo que não estejamos percebendo os acontecimentos internos do corpo, eles ocorrem e mantêm nossa vida. A comunicação interna das sinapses, por exemplo, seria um exemplo de coi- sas microscópicas que acontecem internamente e que não “vemos”, mas que são fundamentais para nossas ações. Consciência e inconsciente Sigmund Freud (1859-1939), criticando a raciona- lização excessiva da sociedade, nos fala sobre o inconsciente, no início do século 20. Quando Freud formulou o conceito de inconsciente, ele estava que- rendo dizer que “o homem é um enigma”, já que ainda estamos tentando nos entender e entender nosso papel na sociedade e na natureza. No entanto, não vamos falar do conceito de inconsciente formulado por Freud. Quando discutimos a consciência, nos referimos aos conceitos da neurociência. Assim, a maior parte de nosso pensamento e ações corporais é exercida sem que precisemos organizá- -los conscientemente. Há instruções internalizadas inconscientemente e que coordenam nossos movi- mentos sem a necessidade de nosso permanente estado de vigília. 15 Para andarmos, por exemplo, precisamos conscien- temente decidir pela ação. Mas, não precisamos ficar dando “ordens” às nossas pernas para que elas se movam. Há “ordens inconscientes” para isso. Além disso, mesmo em casos de pessoas com deficiência física, o cérebro pode conservar a representação dos padrões motores e, com a ajuda de próteses e extensões corporais, as ações deste corpo podem reinventar os próprios movimentos corporais. É dessa forma que alguém que precise de uma prótese na perna, por exemplo, consegue desenvolver sua ca- pacidade de caminhar, mesmo que este movimento seja diferente do movimento de outras pessoas. Assim como acontece quando sonhamos que esta- mos correndo e nos “movimentamos” durante o sono, imaginar-se conscientemente nesta ação também aciona nosso sistema sensório-motor, sem que seja necessário que esta corrida aconteça “realmente”. O sistema sensório-motor é formado pelo cérebro, pelo sistema nervoso e pelos músculos. Para as pesquisas recentes em neurociência, toda vez que realizamos uma ação, juntamente com ela, também pensamos e imaginamos esta ação. Por isso, dize- mos que imaginar e “fazer” o movimento são coisas que acontecem juntas. É claro que podemos imaginar um movimento (correr pelo parque, por exemplo) e não “realizá-lo” na prática. Mesmo nessas condições, já estamos acionando nosso sistema sensório-motor. A pesquisadora Raquel Zuanon, em sua dissertação de mestrado, “Coevolução entre corpos – uma inves- 16 tigação com sinais cerebrais” (2001), investiga que, ao imaginar-se dançando, estaríamos acionando regiões cerebrais responsáveis pela coordenação do movimento, lugares do cérebro que guardam pa- drões motores. A autora defende que “o cruzamento de domínios subjetivos e sensório-motor, presentes no ato de imaginar a execução de um movimento, garante então que as informações necessárias para que o movimento ocorra independente do movimento ocorrer” (Op. cit., p. 22). O que se pode perceber, nesta breve introdução à importância da relação entre o corpo, seus músculos e seus movimentos, é que as perspectivas da ciência são importantes para o início das nossas reflexões. Pense em todos os movimentos que você faz duran- te seu dia: imagine o quanto a ação dos músculos do seu corpo provoca alterações em você mesmo e nos ambientes em que você está. Pense em como a ação de todos os indivíduos da sociedade – fato que passa pela ação das forças musculares – afeta, e muito, nossa vida e do nosso planeta. Esta é uma boa forma de começarmos a reflexão sobre Corpo e Movimento: pensando nas realidades quase invisíveis da fisiologia do corpo e chegando à visibilidade das performances corporais em nosso dia a dia. 17 Figura 1: O Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci, é uma das gran- des obras do Renascimento que buscavam entender o corpo e sua capacidade de movimento. Fonte: https://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Homem_Vitruviano_-_Da_Vinci.jpg Corpo e Mente Hoje, em muitas situações, o corpo é visto como objeto a ser manipulado. Há muitos padrões impos- tos que fazem do corpo um objeto de manipulação. No entanto, há uma abertura maior para se debater que o corpo é mais do que um objeto manipulável. O corpo é um contexto que influencia diretamente a vida em sociedade, uma vez que entender o papel 18 e os limites do corpo pode ajudar na construção de uma sociedade mais consciente de si mesma. Nesse sentido, se, atualmente, há um novo movimen- to por parte da ciência para se perceber o corpo de uma forma mais humana, nem sempre o corpo es- teve iluminado dessa forma. Se estudar as relações entre Corpo e Movimento requer perceber as inter- -relações entre os movimentos que o corpo produz e seus efeitos nos ambientes – da mesma forma que os ambientes exercem influência sobre o corpo –, por muito tempo, achou-se que o corpo era um contexto sem a mesma importância que a alma. Segundo Ghiraldelli (2007), o filósofo René Descartes (1596-1650) foi um dos grandes responsáveis pelo entendimento do corpo como objeto manipulável. Para esse filósofo, corpo e mente são contextos com- pletamente separados e incomunicáveis. René Descartes formulou a ideia de que a Res cogi- tans (a alma) está separada da Res extensa (a ma- téria). Segundo Paul Churchland: Para Descartes, o você real não é seu corpo material, mas sim uma substância pensan- te e não-espacial, uma unidade individual da coisa-mente, totalmente distinta de seu corpo material (CHURCHLAND, 2004, p. 27). Descartes está certo de que possamos existir pelo pensamento, por isso, ele duvida sempre de seu corpo material. Já a alma, argumenta Descartes, 19 pode ser conhecida, ao contrário “do corpo”. Para Descartes, os movimentos que o corpo poderia exercer e modificar os ambientes – assim como os sentidos que possuímos e que nos ajudam a perce- ber o mundo e a nós mesmos – era algo com valor negativo. O que isso quer dizer? Descartes despre- zava o corpo, seus sentidos e as possibilidades de percepção do mundo advindas daí. O erro de René Descartes Muitos cientistas – dentre eles neurocientistas que têm investigado a forma como nosso corpo também é importante para o pensamento que criamos – têm criticado a forma como René Descartes lidava com a noção de corpo. Dentre esses neurocientistas, é no- tório o papel de António Damásio, cujos livros O Erro de Descartes (1997) e O Mistério da Consciência (2004) têm sido importantes instrumentos para dis- cutirmos as relações entre corpo e movimento e, sobretudo, como aprendemos com os movimentos que o corpo cria. 20 Figura 2: O Filósofo René Descartes em pintura de Frans Hals. O pen- samento cartesiano foi o responsável pela separação entre razão e emoção, corpo e mente. Mas, hoje, a neurociência tem mostrado que não há separação radical entre tais contextos: somos razão e emoção, corpo e mente ao mesmo tempo. Fonte: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Ficheiro:Frans_Hals_-_Portret_van_Ren%C3%A9_Descartes.jpg Durante o dia – o tempo todo –, infinitas imagens emergem à nossa consciência, também trazendo consigo muita coisa a nosso respeito. Damásio (2004) aponta a consciência como um processo de 21 representações e criação de imagens. Ou seja, para qualquer movimento que o corpo realiza, há imagens correspondentes em nossa consciência. As sinapses em nosso cérebro, por menores que sejam essas estruturas, estão em constante processo de conexão entre si. Estas conexões das sinapses estão intima- mente envolvidas na produção dos movimentos que observamos. Para o homem, o sentido de self é um processo que diz respeito a se ter conhecimento dessas imagens e de suas linguagens e, sobretudo, que se existe no mundo: trata-se de uma consciência de altonível ou do “sentido de saber que se sabe”. Para Damásio, o self é uma espécie de interface entre a realidade interna e a realidade externa do corpo, o que cor- responde a toda a riqueza da vida de nosso mundo mental. A consciência seria um fenômeno que torna o homem capaz de perceber-se como um nó de fluxos em permanente mudança, assinalando que a ação de conhecer está presente e em pleno movimento. Trata-se de uma espécie de “filme”, como define o próprio autor. Esse “filme” passa em nossa mente e narra quem somos, nos lembra que sonhamos, com quem nos relacionamos, algo estranho ou diferen- te que esteja acontecendo conosco, as coisas que criamos. Estar consciente é perceber o cruzamento de milhares de mapas imagéticos em nossa mente. Mapas que contam e criam e recriam nossa história: Como tomamos conhecimento de que esta- mos vendo determinado objeto? Como nos 22 tornamos conscientes no sentido pleno da palavra? Como o sentido do self é implantado na mente no ato de conhecer? Só visualizei o caminho para uma possível resposta às questões sobre o self depois que comecei a ver o problema da consciência em função de dois atores principais, o organismo e o objeto. E em função das relações que esses atores mantêm durante suas interações naturais. O organismo em questão é aquele dentro do qual a consciência ocorre; o objeto em ques- tão é qualquer objeto que vem a ser conhecido no processo de consciência; e as relações entre organismo e objeto são os conteúdos do conhecimento que denominamos consci- ência. Vista desta perspectiva, a consciência consiste em construir um conhecimento sobre dois fatos: um organismo está empenhado em relacionar-se com algum objeto, e o objeto nessa relação causa mudança no organismo (DAMÁSIO, 2000, p. 38). Dos sonhos à nossa consciência desperta, estamos o tempo todo tentando conhecer – através de imagens. Esse conceito do sentido do self apontado aqui enfa- tiza a consciência de um corpo imerso em uma busca incessante pelo conhecimento, um corpo imerso em coisas que já viu ou ainda não está vendo. Conhecer é lidar com as imagens criadas nesses percursos. 23 Logo, um movimento nosso é a relação entre mente e corpo A complexidade singular da consciência, sua capa- cidade de gestar o conhecimento que adquire e de se refazer a partir desse conhecimento têm possi- bilitado a recriação do universo da imagem. Nesse sentido, há espaços em que identificamos a criação da imagem, sobretudo pela criatividade em sua utili- zação. Desde as recentes – porém restritas – tecno- logias de simulação de realidade e óculos de imersão em realidade virtual e até hologramas, refletem as diversas possibilidades complexas da tecnologia contemporânea de criar imagens. A dança também já experimenta o espaço do com- putador. Como argumenta a critica de dança Helena Katz, a dança e seus movimentos são uma forma de pensamento do corpo, significando, dentre outras características, um corpo em processo de exploração do espaço. 24 Figura 3: Espetáculo de Debora Colker. A dança é uma das manifes- tações artísticas mais representativas do corpo e seus movimentos. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cia_de_Dan%C3%A7a_ Deborah_Colker.jpg O movimento como comunicação do corpo As perfomances do corpo também são complexas e diversas. A noção de performance utilizada aqui não se refere apenas ao sentido artístico, como es- tudado por Renato Cohen, em seu livro Performance como Linguagem (1980). Nesta obra, o autor diz que a performance é também uma linguagem artística híbrida que utiliza fundamentalmente o corpo. Além do sentido artístico, é possível utilizar a pa- lavra performance com o sentido de um indivíduo que cria e recria variadas ações, um gesto ou olhar, em um espaço também em movimento e que as- sim pode promover perfomances/atuações neste 25 https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cia_de_Dan%C3%A7a_Deborah_Colker.jpg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cia_de_Dan%C3%A7a_Deborah_Colker.jpg ambiente. Uma ação pode ser entendida como uma performance que diz respeito aos deslocamentos que um corpo faz. Não se trata necessariamente de um corpo da arte. Um corpo em seu cotidiano constrói performances o tempo todo. Por exemplo, um corpo que percorre algum ambiente vai correlacionar suas perfomances a este espaço e às modificações que este próprio espaço realiza. Esse argumento parte da premissa de que corpo e ambiente são processos em permanente processo transformação. As performances também podem ser entendidas como os movimentos que criamos e que, por sua vez, recriam a nós mesmos e aos próprios ambientes: frequentar uma academia é modificar o corpo. Este corpo modificado vai promover modifi- cações nos ambientes (um corpo com maior massa muscular precisa de mais alimentos, por exemplo). Além disso, como podemos perceber pelos estudos de António Damásio, dentro do corpo há diversos processos de comunicação acontecendo. Saiba mais Não estamos sozinhos na natureza. Até mesmo quando o assunto é comunicação corporal. Leia a reportagem abaixo e saiba que o movimento é uma forma de linguagem e comunicação em di- ferentes espécies da natureza. Disponível em: https://super.abril.com.br/ ciencia/expressao-corporal/ 26 Podcast 2 Reflita A linguagem corporal é algo muito importante para nossa espécie e para outras espécies tam- bém. A fala é importante para o dia a dia, mas o corpo tem muitos gestos que emitem men- sagens. Há fases em nossa vida em que ainda não utilizamos a fala, e os gestos e expressões corporais são importantes. Pense em como uma criança que ainda está desenvolvendo a capaci- dade de falar e escrever depende de seus gestos e expressões faciais para se comunicar com o mundo. Faça uma leitura da reportagem sobre o papel da linguagem corporal na educação infantil relacio- nando as ideias apresentadas até aqui. Disponível em: https://br.blastingnews.com/ educacao/2017/02/o-lugar-da-linguagem-corpo- ral-na-educacao-infantil-001470874.html 27 https://famonline.instructure.com/files/43008/download?download_frd=1 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentamos aqui uma breve introdução às refle- xões sobre movimento, comunicação e expressão corporal como algo oriundo das relações entre corpo e movimento. Estudamos, também, que o debate sobre o corpo tem espaço na filosofia e na ciência. Essas áreas são importantes para a discussão sobre corpo e movimento e, sobretudo, sobre a relação desse contexto para a educação. Assim, este módulo ajudou a esboçar algumas evidências: • Sociedade e cultura estão em pleno processo de desenvolvimento. E a forma como lidamos e enten- demos nosso corpo e seus movimentos são impor- tantes para o desenvolvimento pessoal e também social. • Os ambientes não são uma “coisa”, um mero obje- to, mas são contextos dinâmicos. Assim, as mudan- ças nos ambientes vão gerar mudanças nas formas como nos movimentamos. No caso do movimento – uma dança, por exemplo –, as mudanças no am- biente impactam. Podemos dançar em um espaço com muita ou pouca luz, e isso já cria modificações em nosso corpo. A questão é: como o corpo cria mo- vimentos e pode se relacionar com o novo ambiente? 28 • O próprio corpo é também algo em constante processo, desenhado pelo trânsito de informações entre mente e sistema sensório-motor. Locomover- se cria uma rede de informações corporais inter- nas em correlação com as realidades externas do ambiente. Esta articulação confere ao corpo suas singularidades. 29 Síntese Referências Bibliográficas & Consultadas CANCLINI, Néstor. Leitores, Espectadores e Internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008. CHURCHLAND, Paul. Matéria e Consciência. São Paulo: Unesp. 2004. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1980. DAMÁSIO, António. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DUPUY, Jean Pierre. Nas Origens das ciênciascog- nitivas. São Paulo: Unesp. 2001. OKUNO, Emico; FRANTIN, Luciano. Desvendando a Física do Corpo Humano. São Paulo: Manole, 2007. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. In: SOTER, Silvia e PEREIRA, Roberto. Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 1999. GHIRALDELLI Jr, Paulo. O Corpo: Filosofia e Educação. São Paulo: Ática, 2007. LEÃO, Lúcia. 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