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LETRAMENTOS MÚLTIPLOS NA ALFABETIZAÇÃO Autoras: Nice Ewald Lenzi Rosangela Cristina Machado Bertram Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Reitor: Prof. Dr. Malcon Anderson Tafner Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Profa. Hiandra B. Götzinger Montibeller Profa. Izilene Conceição Amaro Ewald Profa. Jociane Stolf Revisão de Conteúdo: Profa. Cristiane Lisandra Danna Revisão Gramatical: Profa. Camila Thaisa Alves Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci Reimpressão: Setembro, 2013. CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (047) 3281-9000/3281-9090 Copyright © UNIASSELVI 2011 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 370.414 L575l Lenzi, Nice Ewald. Letramentos múltiplos na alfabetização /Nice Ewald Lenzi; Rosangela Cristina Machado Bertram. Indaial : Uniasselvi, 2011. 150 p.: il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-497-3 1. Alfabetização – letramento. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. Reimpressão: Setembro, 2013. Copyright © UNIASSELVI 2011 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Nice Ewald Lenzi Possui graduação em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa e respectivas literaturas) pela Fundação Universidade Regional de Blumenau, é especialista em Produção Textual pela Universidade do Vale do Itajaí e tem Mestrado em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau, na linha de Discursos e Práticas Educativas. Já atuou como professora do Ensino Fundamental e Médio, tanto em escolas públicas como privadas. Além disso, já foi coordenadora dos Anos Iniciais em escola privada e atualmente é Gestora Pedagógica e Diretora, também em instituição privada. Rosangela Cristina Machado Bertram Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Regional de Blumenau-FURB/ SC (1994), especialização em Atividades Integradas nas Séries Iniciais (1995) e Mestrado em Educação (2010) pela mesma universidade. Atualmente coordena uma escola da rede municipal de ensino na cidade de Timbó, SC. Tem experiência na área da educação infantil, ensino fundamental e médio. Já atuou como tutora em cursos de Educação à Distância. Publicou artigos em eventos, revistas e coletâneas na área de educação. Sumário APRESENTAÇÃO ..................................................................... 7 CAPÍTULO 1 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola ....................... 9 CAPÍTULO 2 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) ................. 37 CAPÍTULO 3 Muitas Linguagens, Múltiplos Letramentos ............................ 69 CAPÍTULO 4 A Prática de Múltiplos Letramentos Implica no uso Competente das Linguagens ................................................ 121 7 APRESENTAÇÃO Caro(a) pós-graduando(a): Múltiplos Letramentos em Alfabetização é o nome da disciplina que iremos conhecer neste Caderno. Para compreender as múltiplas possibilidades que essa temática nos permite pensar e trabalhar, é necessário, primeiramente, que compreendamos muito bem o que é linguagem, língua, letramento e alfabetização. Para desdobrar esses conceitos numa abordagem teórica que leva em consideração também a prática, decidimos organizar quatro capítulos. No primeiro capítulo, apresentaremos nossa concepção de língua e de linguagem. A partir dessas concepções, refletiremos sobre o que é ser autor e leitor, a importância dos gêneros orais e escritos na escola, os gêneros discursivos – primários e secundários e, por fim, a relevância da oralidade na aprendizagem das crianças, principalmente nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Em seguida, trataremos das questões mais específicas de alfabetização e letramento, defendendo a proposta de alfabetizar letrando. Além disso, faremos uma contextualização, de modo a definir quem é esta criança de seis anos que inicia uma trajetória escolar. A partir disso, apresentaremos algumas propostas práticas e finalizaremos abordando o letramento escolar. Já no terceiro capítulo, veremos o papel da escola nos processos de alfabetização e letramento. Acreditamos que os múltiplos letramentos não acontecem isoladamente, muito menos de modo fragmentado. Porém, para a nossa organização didática, estudaremos os letramentos científico, digital/ tecnológico, cartográfico, letramento em história e letramento matemático, contextualizando-os no espaço escolar. Para cada um dos letramentos, traremos sugestões práticas de trabalho. Para finalizar o Caderno, nos propomos a compreender, através da teoria e da prática, o que é fazer uso competente da(s) linguagem (s), desenvolvendo habilidades e atitudes. Para tanto, apresentaremos uma proposta prática de planejamento para o 1º ano do Ensino Fundamental que propicie o trabalho com os múltiplos letramentos. Planejamento e avaliação também serão discutidos no capítulo. As autoras. CAPÍTULO 1 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 3 Compreender o que é língua e linguagem. 3 Refletir sobre os gêneros orais e escritos na escola. 3 Apresentar o conceito de gêneros discursivos: primários e secundários. 3 Reconhecer a relevância da oralidade na aprendizagem das crianças, principalmente nos primeiros anos do Ensino Fundamental. 3 Identificar a escola como um lugar de construção de leitura (leitor) e de escrita (autor). 11 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Contextualização Queremos convidar você, caro leitor, a participar dialogicamente deste primeiro capítulo. Sentimo-nos autoras à medida que pensamos em você, nosso interlocutor. Fizemos algumas escolhas teóricas, trouxemos reflexões práticas, ilustrações, comentários e, como resultado, produzimos um texto que nos une em dialogia, de forma interativa. A interação pode acontecer através de diferentes formas: este caderno, por exemplo, é uma maneira bem concreta de se estabelecer a interação entre nós, os autores, e você, estimado acadêmico. Poderemos refletir sobre os múltiplos letramentos na alfabetização também através de gêneros literários, textos e imagens da Internet, brincadeiras, jogos, planejamentos e uma infinidade de possibilidades de diálogo. Iniciaremos nossos estudos procurando entender a concepção de linguagem presente em pesquisas e documentos norteadores das práticas de alfabetização e de letramento, ampliando nossa compreensão em torno do ensino da língua materna e da aprendizagem de modo geral. Ter clareza quanto à concepção de linguagem é fundamental não só para o entendimento das teorias, mas também para validar a prática docente, pois acreditamos que o professor do Ensino Fundamental, de modo especial dos anos iniciais, deve buscar não somente os conhecimentos de sua área pedagógica, como também os das ciências da linguagem e demais áreas. Por isso, abordaremos os gêneros orais e escritos na escola, a relevância da oralidade (como um resgate da fala e da escuta), a escrita, a leitura sob uma ótica discursiva, e o ser-leitor. Nossa expectativa é que você aceite o convite e sinta-se desafiado, à medida que lê, a refletir teoricamente sobre sua prática docente. Linguagem, um Conceito Fundamental para os Múltiplos Letramentos Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro.(BAKHTIN, 1992, p.113) Comecemos este capítulo pensando na importância que tem a linguagem Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. (BAKHTIN, 1992, p.113). 12 Letramentos Múltiplos na Alfabetização em nossas vidas. É através dela que lemos e compreendemos o mundo e as pessoas em nossa volta. Considerando isso, a nossa concepção de linguagem e, consequentemente, de língua, também é essencial para a prática profissional e para o nosso entendimento de fala, escuta, escrita e leitura, atividades nas quais produzimos e atribuímos sentidos em seus diferentes usos sociais. Observando a tira abaixo, trazemos à tona dois conceitos: o de língua e de linguagem. Figura 1 – Tirinha Fonte: Disponível em: <www.vidasuporte.com.br>. Acesso em: 10 jun. 2011. Veja que interessante: a resposta do programador não corresponde à pergunta de seu interlocutor. Um estava se referindo à linguagem de programação e outro, à língua. Você já parou para pensar qual é a diferença entre linguagem e língua? A gramática de Cereja e Magalhães (2009) explica muito bem a diferença entre linguagem e língua. A linguagem é um processo comunicativo pelo qual as pessoas interagem entre si. Pode ser verbal, falada ou escrita; e não verbal, como a música, a dança, a fotografia, por exemplo. Há ainda as linguagens mistas, como as histórias em quadrinhos, o cinema, o teatro e os programas de TV, que podem reunir A linguagem é um processo comunicativo pelo qual as pessoas interagem entre si. 13 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 diferentes linguagens, como o desenho, a palavra, o figurino, a música, o cenário etc. Com o surgimento da era tecnológica, aparece também a linguagem digital, que permite armazenar e transmitir informações em meios eletrônicos. Já a língua é um conjunto de sinais (grafemas, sons e gestos) e de leis combinatórias por meio da qual as pessoas de uma comunidade se comunicam e interagem. A língua pertence a todos os membros de uma comunidade, por isso faz parte do patrimônio sociocultural de cada coletividade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa também esclarecem esses dois conceitos da seguinte maneira: A linguagem é uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história. (...) Dessa perspectiva, a língua é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade. Assim, aprendê-la é aprender não só as palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade em si mesmas. (BRASIL, 2001, p. 22, grifos nossos). Veja a seguir um texto curioso que nos remete à relação intrínseca de uma comunidade com sua língua, mostrando que a língua reflete a história, a cultura e a identidade de um povo: BRASIL DE 180 LÍNGUAS Além do português, há no Brasil aproximadamente 180 línguas indígenas, faladas por 225 etnias. Dessas línguas, 110 são consideradas em extinção, pelo fato de serem faladas por menos de 500 pessoas. Estima-se que, em 1500, cerca de 6 milhões de índios falavam 1078 idiomas. Hoje, a população indígena brasileira chega, no máximo, entre 440 mil e 500 mil indivíduos. Atribui-se o desaparecimento das línguas indígenas às pressões políticas do colonizador e, posteriormente, às necessidades de sobrevivência das populações indígenas. Fonte: CEREJA, W. R; MAGALHÃES,T. C. Gramática reflexiva. 3. ed. São Paulo: Atual, 2009, p. 15. Língua é um conjunto de sinais (grafemas, sons e gestos). 14 Letramentos Múltiplos na Alfabetização Para termos a clareza de qual concepção de linguagem adotamos, é necessário, primeiramente, conhecer as concepções existentes, para depois adequar nossa prática pedagógica, de modo coerente, ao que acreditamos ser linguagem. Geraldi (2004, p.41) nos apresenta três concepções ao pensar no ensino da Língua Portuguesa: 1. Linguagem como expressão do pensamento, na qual a língua é concebida como a gramática tradicional. 2. Linguagem como instrumento de comunicação, que vê a língua como código ou estrutura. 3. Linguagem como forma de interação, de dialogia. Há uma valorização da discursividade, dos gêneros orais e escritos, bem como do contexto social. Koch (2006) procura explicar como entende língua, sujeito, autor, leitor e texto, dentro de cada uma dessas concepções. Segundo a autora, na primeira, a língua é entendida como representação do pensamento e o sujeito, nesse caso, é psicológico, individual, dono de sua vontade, de seu dizer e de suas ações. O texto é um produto do autor, cabendo ao leitor captá-lo passivamente. É o autor que dá sentido ao texto. Já na segunda concepção, quando a língua é concebida como estrutura, Koch (2006) mostra que o sujeito, por sua vez, é predeterminado pelo sistema e o texto é visto como simples produto de codificação e decodificação. O leitor tem o foco no texto, em sua linearidade, reconhecendo o sentido das palavras e as estruturas do texto. O texto é um código que precisa ser decifrado e entendido. Segundo a mesma autora, se considerarmos a língua dialógica e, portanto, interacional, como vimos na terceira concepção apresentada por Geraldi (2004), os sujeitos têm um papel ativo: constroem-se e são construídos no texto. A leitura passa a ser uma atividade interativa, altamente complexa, de produção de sentidos, que leva em conta as experiências e os conhecimentos do leitor. O leitor pode concordar, discordar ou complementar o que foi dito pelo autor. Tanto um quanto o outro são interlocutores: pessoas que participam, por meio do texto, de um processo de produção de sentidos. Há, portanto, uma interação entre autor-texto-leitor. A teoria que fundamenta essa última concepção é do russo Mikhail Bakhtin, considerado filósofo da linguagem. Sugerimos a leitura do sexto capítulo de seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, que trata da interação verbal, bem como o adendo Gêneros do Discurso, apresentado na obra Estética da Criação Verbal. É o autor que dá sentido ao texto. O leitor tem o foco no texto, em sua linearidade, reconhecendo o sentido das palavras e as estruturas do texto. 15 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 BAKHTIN, Mikhail M.; VOLOSHINOV, N.V. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. p. 110-127 BAKHTIN, Mikhail M. (1979) Os gêneros do discurso. In M. Bakhtin. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-269 A leitura destes textos é fundamental, pois sua teoria vem sustentando academicamente muitas pesquisas e fundamentando documentos norteadores como, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), as Propostas Curriculares Estaduais, o Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental (Pró-Letramento) e também este Caderno, afinal, estamos falando em múltiplos letramentos, considerando a diversidade de contextos nos quais estamos inseridos. Para compreendermos o(s) múltiplos letramento(s), torna-se essencial adotarmos uma concepção de linguagem e de língua que nos permita olhar para além do texto, considerando também o contexto. Isso se refere não somente à escrita, mas também à leitura, à fala e à escuta. O princípio que rege a teoria de Bakhtin é o dialogismo, lembrando que tanto a fala quanto a escuta têm grande importância na interação verbal. São as diferentes linguagens e os variados contextos que darão origem à diversidade de letramentos hoje conhecidos. Conforme Sobral (2005, p. 106), o dialogismo se faz presente nas obras do círculo de Bakhtin de três maneirasdistintas: a) como princípio geral do agir – só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir-a-ser, do indivíduo e do sentido, está fundamentado na diferença; b) como princípio da produção dos enunciados/discursos, que advém de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos; c) como forma específica de composição de enunciados/ discursos, opondo-se nesse caso à forma de composição monológica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nas duas outras acepções do conceito. São as diferentes linguagens e os variados contextos que darão origem à diversidade de letramentos hoje conhecidos. 16 Letramentos Múltiplos na Alfabetização Simplificando, para Bakhtin, o dialogismo não rege somente a linguagem, mas a vida, pois considera as relações entre falantes, ouvintes, autores, leitores. Ninguém é sujeito passivo nestas relações, pelo contrário, todos têm um papel ativo no diálogo oral ou escrito. A comunicação não depende só de quem fala, gesticula ou escreve, mas de quem ouve, vê ou lê. Atividade de Estudos: 1) Concebendo a linguagem como interação, de natureza dialógica, qual interpretação você faz da frase ilustrada por Ceó Pontual? Figura 2 – Frase ilustrada Fonte: Disponível em: <http://frasesilustradas.wordpress. com/page/15/>. Acesso em: 12 jun. 2011. 17 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry (29 de junho de 1900, Lyon – 31 de julho de 1944, Mar Mediterrâneo) foi um escritor, ilustrador e piloto da Segunda Guerra Mundial, terceiro filho do conde Jean Saint-Exupéry e da condessa Marie Foscolombe. ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ 2) Qual é a concepção de linguagem que fundamenta os Parâmetros Curriculares Nacionais? Como você entende o trabalho docente que adota essa concepção? ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ Gêneros Discursivos e Escola – que Relação é essa? Sabemos que durante muito tempo o ensino da língua tinha como objeto suas normas, seu código e a consciência individual. Geraldi (2004) foi o precursor da ideia do texto como unidade de ensino, com a publicação do livro “O Texto na Sala de Aula”, organizado como material de apoio 18 Letramentos Múltiplos na Alfabetização aos professores. De um ensino baseado em regras e exceções, cujo foco era a análise da língua e a gramática, passou-se ao ensino procedimental, estudando o uso da língua na leitura e na escrita, relacionando também a gramática ao texto. Na prática, esse ensino foi assumindo um caráter mais cognitivo, e o texto ainda não fora tomado realmente como unidade de ensino, assim como defendia o autor, e sim visto como um pretexto para ensinar estrutura textual, tipologias, coesão, coerência, por exemplo. Só recentemente nas práticas escolares brasileiras a língua passou a ter uma dimensão mais discursiva, tendo como base o aporte teórico bakhtiniano, em que os gêneros discursivos passam a ser instrumentos de ensino. Essa mudança traz muitas implicações para a prática docente, exigindo novas posturas em relação “ao modo de pensar e ao modo de fazer esse ensino” (ROJO; CORDEIRO, 2004, p.12). É nesse aspecto que os gêneros orais e escritos tornam-se o foco de ensino, dando espaço às práticas de letramento, pois há uma valorização dos usos sociais da leitura e da escrita. Você deve estar se perguntando: afinal, o que são gêneros discursivos? Para Bakhtin (2003) são os tipos relativamente estáveis de enunciado, havendo dois tipos: os gêneros primários e os secundários. Cada gênero, seja oral ou escrito, é produzido e entendido dentro de um determinado contexto social, ao qual Bakhtin chama de campo de atividade humana. Assim, dependendo do lugar (campo de atividade humana) onde o gênero for produzido, terá características próprias e singulares. Isso acontece com a linguagem de um modo geral, por exemplo: se estamos conversando entre amigos, nosso vocabulário é mais informal, porém se estivermos em sala de aula, apresentando um trabalho, nossa fala será mais científica e formal. No primeiro caso, estaremos empregando um gênero primário, fruto do cotidiano e, no segundo, um gênero secundário, mais elaborado, produzido em campos políticos, científicos, artísticos etc. A escola é o lugar legitimado socialmente para trabalhar a passagem do uso adequado dos gêneros primários aos secundários. “[...] os gêneros primários são o nível real com o que a criança é confrontada nas múltiplas práticas de linguagem” (SCHNEUWLY et al., 2004, p.30). A criança vai aprendendo na escola que os gêneros Recentemente nas práticas escolares brasileiras a língua passou a ter uma dimensão mais discursiva. A criança vai aprendendo na escola que os gêneros são diferentes entre si, e de que é preciso usá-los com adequação. Os gêneros primários servem como instrumentos para a elaboração dos gêneros secundários, assim a criança começa do simples ao complexo, do real ao científico. 19 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 são diferentes entre si, e de que é preciso usá-los com adequação. Os gêneros primários servem como instrumentos para a elaboração dos gêneros secundários, assim a criança começa do simples ao complexo, do real ao científico. O professor precisa ter essa clareza ao trabalhar com os gêneros na escola. Schneuwly et al. (2004) são pesquisadores que se preocupam em explicar como é possível pensar e aplicar os gêneros orais e escritos na escola didaticamente. Uma das possibilidades para isso é o trabalho realizado através de sequências didáticas. “Sequência didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY et al., 2004, p.97), e tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. Adaptação das sequências às necessidades dos alunos exige, da parte do professor: • analisar as produções dos alunos em função dos objetivos da sequência e das características do gênero; • escolher as atividades indispensáveis para a realização da continuidade da sequência; • prever e elaborar, para os casos de insucesso, um trabalho mais profundo e intervenções diferenciadas no que diz respeito às dimensões mais problemáticas. (SCHNEWLY et al., 2004, p.111) Segundo os mesmos autores, ao escolhermos o gênero a ser trabalhado na escola, devemos tomar o cuidado para que nossa decisão didática não o simplifique. Lembremos que cada gênero é produzido numa esfera social diferente e, quando trazido para dentro da escola, não pode perder suas características,nem se distanciar demasiadamente de seu contexto real, ou seja, ao trazermos o gênero para a sala de aula, o tornamos um material didático, devendo haver o cuidado para não distanciá-lo de sua função social. Cabe a nós propormos aos alunos situações de comunicação que oportunizem a construção de sentidos e o domínio do gênero escolhido. Se optarmos em trabalhar uma receita culinária, o ideal é primarmos pelo espaço adequado: cozinha ou refeitório, termos os ingredientes necessários e aplicarmos o modo de fazer para que o produto final possa ser saboreado e compartilhado. Assim a função social da receita é compreendida, embora a cozinha da escola não seja a mesma da sua casa, ou do restaurante. São infinitas as possibilidades do trabalho com os gêneros, podendo-se optar por contos, parlendas, canções, adivinhas, trava- Vale ressaltar que é necessário adequar os gêneros às suas funções sociais, mesmo que tenhamos nossos objetivos pedagógicos em vista. Cada gênero é produzido numa esfera social diferente e, quando trazido para dentro da escola, não pode perder suas características, nem se distanciar demasiadamente de seu contexto real. 20 Letramentos Múltiplos na Alfabetização línguas, relatos, entrevistas, fábulas, peças de teatro, na oralidade, por exemplo. Já na escrita é possível explorar embalagens, cartazes, quadrinhos, convites, receitas, manual de instrução, poemas, poesias, textos literários e científicos etc. Vale ressaltar que é necessário adequar os gêneros às suas funções sociais, mesmo que tenhamos nossos objetivos pedagógicos em vista. Através do trabalho com os gêneros, podemos enfocar a fala, a escuta, a leitura e a escrita como habilidades de uma competência discursiva. Para tanto, o professor dos anos iniciais deve apropriar-se de alguns conceitos e conhecimentos mais específicos da Língua Portuguesa. Por essa razão, estamos trazendo para este Caderno conceitos de linguagem, língua, gêneros discursivos (orais e escritos), sequência didática, dialogismo, leitura, dentre outros que ainda surgirão no decorrer dos próximos capítulos, porque assumimos uma concepção de linguagem como forma de interação, em que o contexto social também é considerado. Isso explica o valor dos gêneros orais e escritos como instrumentos de ensino e aprendizagem. Utilizaremos o gênero entrevista para que você conheça um pouco mais as ideias do psicólogo suíço Bernard Schneuwly, complementando o que já estudamos até agora. ENTREVISTA COM BERNARD SCHNEUWLY O psicólogo suíço Bernard Schneuwly diz que os professores precisam de material didático para trabalhar com leitura e escrita Você pode não conhecê-lo pelo nome, mas o trabalho do suíço Bernard Schneuwly, professor da Universidade de Genebra, já deixou de ser novidade há algum tempo, principalmente para quem leciona Língua Portuguesa. Suas ideias sobre gêneros e tipos de discurso e linguagem oral estão nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Desde a década de 1980, o psicólogo de 49 anos, doutor em Ciências da Educação, pesquisa como a criança aprende a escrever. Os estudos resultaram na criação de sequências didáticas para ensino de expressão escrita e oralidade. Os conceitos presentes nesse material didático se difundem aos poucos no Brasil. Schneuwly vem colaborando com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em trabalhos na área e pesquisadores da instituição estão publicando uma coleção com sequências didáticas inspiradas no modelo suíço. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu à revista NOVA ESCOLA. 21 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 O que seus estudos propõem de novo no ensino da língua? Bernard Schneuwly - Colocamos a questão da comunicação no centro do ensino da língua materna. Esta é a mudança mais significativa: dar às crianças mais possibilidades de ler, de escrever textos, de aprender gramática e ortografia em função da comunicação. As aulas de gramática devem ser dadas em função dos textos? Schneuwly - É essencial ensinar as crianças a ler e a produzir textos. Quando começam a estudar elas têm de realizar essas tarefas e, de maneira geral, não se dá importância suficiente à questão. Isso não significa deixar de dar também um pouco de gramática à parte. É possível fazer isso analisando sentenças complexas extraídas dos próprios textos. Há ainda uma outra maneira, mais forte na Suíça: pedir que os estudantes escrevam sentenças que depois são usadas para análise e aprendizado. Quanto tempo da aula deve-se dedicar à gramática? Schneuwly - Em meu país, e eu sei que aqui acontece o mesmo, cerca de 70% ou 80% do ensino da língua corresponde à gramática e ortografia e apenas 20% ou 30% à leitura e escrita. Temos trabalhado para chegar a um equilíbrio. Além disso, acho que há gramática demais nas séries iniciais e de menos nas finais. Na Suíça, depois do ensino elementar, os estudantes aprendem apenas literatura. Mas há problemas gramaticais complexos que poderiam ser estudados por jovens de 16, 17, 18 anos. Por que há um peso maior em ortografia e gramática? Schneuwly - Porque é mais fácil dar aulas sobre esses dois temas. Existem livros didáticos e dicionários disponíveis. No entanto, muitos educadores não sabem o que fazer no momento de trabalhar leitura e escrita. Eles precisam de material para isso. É o trabalho que o senhor vem desenvolvendo na Suíça? Schneuwly - Sim. Em 1990 houve uma demanda oficial do governo para que o grupo de pesquisa do qual faço parte criasse um material que ajudasse a ensinar expressão escrita e oralidade. Ao mesmo tempo os docentes diziam, em congressos, que precisavam 22 Letramentos Múltiplos na Alfabetização lecionar comunicação, mas não tinham métodos. O fato de os professores terem pedido mudanças foi muito importante. Era sinal de que eles estavam prontos para adaptar-se. Mais do que se tivesse havido uma imposição. Como é o material? Schneuwly - São quatro volumes. Um destinado para 1ª e 2ª séries, um para 3ª e 4ª, outro para 5ª e 6ª e o último para 7ª , 8ª e 9ª. Em todos eles há uma apostila que deve ser usada pelo aluno e outra pelo professor, escrita para que ele possa usá-la sem dificuldade, com apenas um dia de treinamento. São cerca de 40 sequências didáticas para diferentes tipos de texto: científico, ficção científica, histórias de aventuras, crítica literária, entre outros. A oralidade também é trabalhada? Schneuwly - Sim. As crianças a desenvolvem ao fazer uma entrevista, participar de um debate ou expor um tema para uma plateia, por exemplo. Recursos como esses conseguem mudar o trabalho do docente? Ou ele precisa de mais formação? Schneuwly - Esse é um problema importante e sua solução deve levar um longo tempo. Há dois pontos envolvidos. Um é a formação inicial. A nova geração tem uma educação melhor e consegue trabalhar da maneira que propomos com mais facilidade. Por outro lado, há a necessidade de formar aqueles que já estão na ativa, que são numerosos. Com o material em mãos, a capacitação pode se dar na teoria e na prática. Como as sequências são usadas? Schneuwly - A criança entra em contato com vários gêneros de texto que serão vistos novamente no futuro. Na primeira vez que estuda entrevista, por exemplo, ela está no 4º ano. Nessa fase, conhece técnicas simples e vai entrevistar um funcionário do colégio. Ela prepara o questionário, mas aprende que, se formular as questões espontaneamente, conseguirá melhor resultado. Uma folha pode ser levada com a relação de perguntas de um lado e, no verso, palavras-chave. A consulta será feita só se houver problemas. Outra dica é perguntar algo sobre o que o entrevistado acabou de falar, e não apenas emendar uma questão da lista na outra. 23 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1Quando esse mesmo tema será visto novamente? Schneuwly - No 8º ano, só que com técnicas mais elaboradas. Nessa fase, os alunos estão estudando os diferentes modos de falar. Por isso, têm que entrevistar estrangeiros que aprendem francês em Genebra, ou especialistas em oralidade, como um padre ou um advogado. Eles vão ouvir, ler, analisar, observar, comparar, fazer, escrever. Vão aprender também como redigir a abertura do artigo, apresentando o entrevistado. Nosso método leva à análise e à produção de um gênero. O programa se desenvolve em forma de espiral? Schneuwly - Exatamente. O estudante vê determinado gênero uma vez, depois uma segunda e, às vezes, até uma terceira. Debates, por exemplo, são estudados na 3ª, na 6ª e na 9ª séries. A primeira coisa que ele aprende é a ouvir o que está sendo dito. Isso porque é importante usar o que o interlocutor disse, integrando as palavras dele ao seu próprio discurso. Outra coisa: se uma pessoa fala algo que deve ser contestado, isso deve ser feito de maneira não agressiva. São muitas as técnicas. Aprendemos, de maneira natural, os gêneros orais primeiro. Nas aulas eles devem ser ensinados antes dos escritos? Schneuwly - Eles podem ser vistos ao mesmo tempo. A escola não ensina a falar. E os brasileiros, particularmente, se expressam muito bem. As crianças daqui são fantásticas! O que precisamos é prepará-las para situações formais, como um debate, uma exposição para um grupo. Para nós, pode começar ao mesmo tempo, porque a escrita ajuda a oralidade e vice-versa. A psicolinguista argentina Emilia Ferreiro defende há mais de 20 anos a utilização de textos variados, principalmente em substituição à cartilha. Há relações entre as ideias defendidas por ela e as suas? Schneuwly - Acho que dizemos a mesma coisa com outro nome. Talvez uma diferença esteja no fato de que nós, quando trabalhamos com um gênero, nos aprofundamos bastante nele. Isso leva uma semana, duas, até quatro. Uma outra possível diferença é que Emilia Ferreiro trabalha apenas com os pequenos e nós, até com os adolescentes. Mas as ideias provavelmente não são 24 Letramentos Múltiplos na Alfabetização contraditórias. O importante é que os gêneros representam textos como são vistos nas situações diárias. Existe um tipo de texto que só é visto na sala de aula? Schneuwly - Quando você aprende um gênero durante as aulas, ele sai da situação social e se transforma num gênero escolar. Uma entrevista feita nessa situação não é a mesma coisa que uma realizada por um profissional. Para nós, não há problema nisso, porque acreditamos que a escola é uma instituição social onde as pessoas aprendem. Então, é absolutamente necessário que faça adaptações. Emilia Ferreiro critica as cartilhas por serem textos que não existem fora da classe. Não concordo com ela nesse ponto. Por quê? Isso não é verdade? Schneuwly - A ideia de Ferreiro é velha porque parece ruim haver diferença entre a vida real e a escola. É claro que não deve haver uma grande diferença. Mas alguma, sim. Na escola há uma situação social real para a aprendizagem. Lá pode-se correr riscos e cometer erros. Um jornal serve para informar as pessoas. Se você o leva para a sala de aula, ele não está lá mais para esse fim, mas para ser aprendido. Queiramos ou não, não é mais o mesmo contexto social. Quando um professor leva diversos materiais para a sala de aula, está trabalhando com diferentes gêneros de texto? Schneuwly - Não. Gênero é a forma mais ou menos convencional que um texto assume: uma entrevista, uma receita culinária, uma história de aventura. Quando você lê um jornal, por exemplo, há muitos gêneros dentro dele e a criança tem que aprender isso. Gêneros são conteúdos ou ferramentas de trabalho? Schneuwly - São os dois. É muito fácil explicar isso quando se pega uma receita culinária. Ela é um gênero, tem uma certa forma linguística, uma estrutura, um vocabulário, mas ao mesmo tempo é, claro, uma ferramenta usada numa situação de comunicação. Transmite a uma pessoa como se prepara uma omelete, por exemplo. Sem essas formas estabelecidas, a comunicação seria 25 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 muito complicada. Se você não soubesse como é uma entrevista, como seria nossa comunicação nesse momento? Os estudantes expostos a essa metodologia aprendem mais do que a ler e escrever de maneira adequada? Schneuwly - Com certeza. Por exemplo, quando os ensinamos a escrever uma carta para um jornal sabemos que, provavelmente, eles não terão necessidade de produzir muitos textos desse tipo. Mas, nesse processo, aprenderão também a argumentar. Eles adquirem capacidades, principalmente capacidades gerais de comunicação. Fonte: Disponível em:<http://revistaescola.abril.com.br/ lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/ensino- comunicacao-423584.shtml>. Acesso em: 15 jun. 2011. Atividade de Estudos: 1) Bernard Schneuwly fala, em sua entrevista, da importância de centralizar o ensino da língua na comunicação. Explica como é o ensino da língua materna na Suíça e faz um comentário sobre a fala das crianças brasileiras. Que comentário é esse e como você o relaciona com o ensino dos gêneros orais na escola? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) O que Schneuwly entende por gêneros textuais? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 26 Letramentos Múltiplos na Alfabetização ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ A Importância da Oralidade Os gêneros orais e escritos não circulam somente dentro da escola, mas também nas diferentes esferas sociais ou campos de atividades humanas. Por exemplo, escrever um bilhete para a mamãe é bem diferente que redigir um artigo científico. Portanto, temos que cuidar para não escolarizar demasiadamente os gêneros, preservando seus sentidos e seus usos sociais. Na oralidade, não se trata de ensinar a falar, mas sim adequar a fala aos seus diferentes contextos de uso, (...) em que a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio. Em que a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a expressão e a comunicação por meio de textos e não a avaliação da correção do produto. Em que as situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensarem sobre linguagem para poderem compreendê-la e utilizá-la adequadamente. (BRASIL, 2001, p 21). Trabalhar a oralidade em sala implica planejar e aplicar atividades sistemáticas de fala, de escuta e de reflexão sobre a língua, explorando diferentes finalidades comunicativas. Não é a fala pela fala que garantirá aprendizagens. É necessário sairmos do senso comum e ampliar o vocabulário, a compreensão, a reflexão e os usos sociais da fala/escuta. As atividades devem, preferencialmente, estar ancoradas em projetos de estudos, seja qual for a área de conhecimento. Também podem estar relacionadas à rotina e às ações cotidianas que as crianças realizam individualmente e em grupo. Desafios, resoluções de problemas, exposições orais sobre temas estudados, descrições de objetos, de pessoas, de lugares, narração de acontecimentos, apresentação de pesquisas,socialização de tarefas, leitura de seu próprio texto ou de outros autores, literaturas, são algumas possibilidades de enriquecer a oralidade das crianças, permitindo uma dimensão discursiva ao trabalho docente. No que se refere à escuta, também é preciso organizar situações contextualizadas, em que ouvir atentamente é condição necessária para realizar determinadas tarefas. Vivemos numa cultura na qual há uma valorização demasiada da fala e da escrita. Notamos, claramente, nas escolas e também nas famílias, que as crianças têm dificuldade em ouvir. É uma habilidade importantíssima, cujo valor precisamos resgatar. Trabalhar a oralidade em sala implica planejar e aplicar atividades sistemáticas de fala, de escuta e de reflexão sobre a língua. 27 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Primeiramente, o professor precisa valorizar a escuta e oportunizar a construção coletiva de sentidos em relação à fala e à escuta como, por exemplo, a combinação de regras necessárias para o evento comunicativo: ficar quieto e falar quando necessário, esperar a vez de falar, respeitar a fala do outro, responder às perguntas e assim por diante. Sugerimos atividades que utilizem a linguagem oral como situação comunicativa, discursiva e lúdica: caça ao tesouro e jogos, pois dependem da compreensão de regras ou pistas para funcionar; construção de histórias coletivas, em que alguém dá continuidade ao que o colega narra; ouvir e falar parlendas e trava-línguas; entrevistas com personagens da literatura, fantoches ou personalidades locais, valorizando a cultura e a história da comunidade; realizar dramatizações; montar histórias em quadrinhos; criar quadrinhas e apresentá-las ao grupo; promover gincanas que exigem leitura e compreensão das tarefas; criar paródias etc. Devemos propor situações didáticas nas quais essas atividades façam realmente sentido, das mais simples às mais formais, como seminários, debates, discursos, entrevistas, apresentação de peças teatrais, dentre outras. Os projetos e as atividades propostas devem se aproximar da realidade local para que a função social de um determinado gênero seja absorvida e compreendida pelos alunos. SUGESTÃO DE LEITURA PARA EXPLORAR OS GÊNEROS ORAIS: PARLENDAS E POEMAS HORIZONTE Se eu apagasse a fina linha do horizonte será que o céu cairia no mar? E as estrelas e a lua começariam a navegar? Ou será que o mar viraria céu e os peixes aprenderiam a voar? Fardo de carinho, editora Lê, ilustrações de Elvira Vigna Fonte: Disponível em: <http://www.roseanamurray. com/poemas.asp>. Acesso em: 10 jul. 2011. O professor precisa valorizar a escuta e oportunizar a construção coletiva de sentidos em relação à fala e à escuta. 28 Letramentos Múltiplos na Alfabetização Salada, Saladinha: Parlendas Maria José Nóbrega e Rosane Pamplona, organizadoras; ilustrações Marcelo Cipis.1.ed.São Paulo: Moderna, 2005.- (Coleção na Panela do Mingau) As parlendas de “Salada, saladinha” nos despertam para a dimensão lúdica da linguagem, que acabamos por esquecer, à medida que nos afastamos da língua em sua origem oral e popular. Mas de verdade o que temos aqui é poesia, não a poesia lírica e sóbria, mas a poesia-jogo, poesia- brinquedo, poesia provocação. Atividade de Estudos: 1) Pesquise e descubra o que são quadrinhas, parlendas e trava- línguas. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Continue pesquisando e procure obras baseadas nos seguintes gêneros: Piadas: ______________________________________________ Trava-línguas: ________________________________________ Quadrinhas: _________________________________________ Contos: _____________________________________________ Poemas:_____________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Figura 3 – Iivro Infantil 29 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Refletindo Discursivamente sobre Escrita e Leitura Se elegermos o texto como fonte de linguagem dialógica, lugar onde se constroem múltiplos sentidos estaremos aproximando alfabetização e letramento, oportunizando a aprendizagem do sistema convencional da escrita, entendendo a leitura e a escrita como práticas sociais e desenvolvendo habilidades de ler e escrever. Segundo os PCNs, a leitura e a escrita são dois processos de aprendizagem que “devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever.” (BRASIL, 2009, p.27) Relembrando que estamos pautados numa concepção dialógica da linguagem, temos o leitor e o autor como sujeitos que interagem entre si. Tanto o autor quanto o leitor têm seu papel fundamental na interlocução: ambos são ativos, como vimos anteriormente em Koch (2006), há uma relação entre autor/texto/leitor. É função da escola promover situações comunicativas nas quais as crianças construam-se autoras e leitoras de suas produções, socializando seus trabalhos, publicando-os e fazendo-os circular socialmente. Assim, se as crianças produzirem poesias, seria interessante apresentá-las num sarau; se produzirem projetos científicos, organizar uma feira de ciências seria uma boa opção de socialização; se produzirem contos ou narrações, uma tarde ou noite de autógrafos faria aflorar muitos sentidos, dentre eles: ser leitor das produções dos colegas e sentir- se autor à medida que produz, sendo prestigiado pela turma, escola, família, comunidade, conectando a leitura e a escrita ao contexto social. A Construção do Leitor na Escola A leitura está presente na vida cotidiana de todas as pessoas e perpassa todos os espaços sociais, sendo legitimada na escola. É função da escola promover situações comunicativas nas quais as crianças construam-se autoras e leitoras de suas produções, socializando seus trabalhos, publicando-os e fazendo-os circular socialmente. A leitura e a escrita são dois processos de aprendizagem que “devem ocorrer de forma simultânea. 30 Letramentos Múltiplos na Alfabetização O ser leitor é uma condição inerente ao ser humano, é um exercício cotidiano. É viver o ato de ler como uma experiência pessoal, que vai ao encontro do desejo de compreender o mundo (BRASIL, 2009). A compreensão do mundo é o que alimenta o desejo de ler, é o que fomenta a leitura, é o que forma o leitor. Edwigws Zaccur, em seu artigo “É chegada a hora e a vez do leitor”, da coleção Cursos da Casa da Leitura (2009, p.42), propõe a criação do conceito de “ser-leitor como um substantivo composto capaz de expressar essa inalienável condição humana, de ler e compreender o mundo, aprendendo com o vivido [...]”. O ato de ler como uma experiência individual e social se dá quando a leitura é um processo de interação entre o leitor e o texto. Essa interação só é possível quando o leitor processa e examina o texto. É preciso considerar que a leitura tem sempre uma finalidade. Podemos ler para passar o tempo, buscar uma informação, seguir instruções, realizar uma atividade, informar-se, enfim, há uma infinidade de finalidades, mas cada uma é fruto de uma experiência pessoal e social. Sobre a leitura como experiência pessoal do leitor, Sonia Kramer (2009), no texto “Leitura, experiência e formação”, nos diz que: O leitor leva rastros do vivido no momento da leitura para depois ou para fora do momento imediato, isso torna a leitura uma experiência. Sendo mediada ou mediadora, a leituralevada pelo sujeito para além do dado imediato permite pensar, ser crítico da situação, relacionar o antes e o depois, entender a história, ser parte dela, continuá-la, modificá-la, redirecioná- la. (KRAMER, 2009, p. 33-34) Entender a leitura como uma experiência que liga o passado ao presente, e que pode trazer a possibilidade de pensar a experiência vivida, potencializa seu caráter humanizador. Ser-leitor é uma necessidade em sociedades como a nossa, que supervaloriza o ter e que se apresenta, muitas vezes, de forma desumana e desigual. Percebemos que cada vez mais é preciso humanizar os espaços sociais nos quais estamos inseridos e acreditamos que a leitura pode ser, sim, uma forma de humanização. Acreditamos que a formação do leitor deve ter início já na Educação Infantil e continuar ativamente nos primeiros anos de escolarização, perdurando por toda a vida, pois não nascemos leitores e nossa habilidade leitora deve ser aperfeiçoada continuamente. O ato de ler como uma experiência individual e social se dá quando a leitura é um processo de interação entre o leitor e o texto. A formação do leitor deve ter início já na Educação Infantil e continuar ativamente nos primeiros anos de escolarização, perdurando por toda a vida, pois não nascemos leitores e nossa habilidade leitora deve ser aperfeiçoada continuamente. 31 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Compartilhar leituras e oferecer oportunidades para que as crianças descubram os encantos da literatura como uma forma de arte, capaz de torná- las mais críticas, sensíveis e criativas, é a grande contribuição que a escola pode dar. Nesse sentido, o professor é um ótimo exemplo de leitor, podendo socializar e compartilhar Só aprender a ler não garante a formação do leitor. A formação do leitor se dá à medida que acontece um encontro do leitor com o texto, o leitor ultrapassa a decodificação e constrói sentidos, interpretando o texto e ampliando a leitura. Para Solé (1998, p. 32), “o processo de leitura deve garantir que o leitor compreenda o texto e que pode ir construindo uma ideia sobre seu conteúdo, extraindo dele o que lhe interessa, em função dos seus objetivos”. Indo além, a leitura precisa ultrapassar a dimensão dos textos e atingir a vida, permitindo que se leia o mundo, conforme argumenta Freire (1997, p.79): A leitura e a escrita das palavras, contudo, passa pela leitura do mundo. Ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra. O ensino da leitura e da escrita da palavra a que falte o exercício crítico da leitura e da releitura do mundo é, científica, política e pedagogicamente, capenga. A partir da reflexão acerca da formação do leitor e do papel da leitura na escola, gostaríamos de tomar a formação do leitor como ponto de partida para repensar a sua história como leitor, afinal, você é ou será um formador de leitores, um promotor de leitura na escola. Revelar-se como leitor ou recordar o que aconteceu na nossa formação literária é um bom exercício para compreendermos a complexidade que é a formação do leitor. Em seguida, compartilharemos com você nossos depoimentos de como somos e nos sentimos leitoras. Cada uma tem a sua história, as suas memórias, a sua construção como sujeito leitor/autor. A leitura precisa ultrapassar a dimensão dos textos e atingir a vida, permitindo que se leia o mundo, conforme argumenta Freire (1997, p.79). 32 Letramentos Múltiplos na Alfabetização Atividade de Estudos: Depois de você conhecer um pouco sobre como nos tornamos leitoras, leia o texto “A lição dos leitores”, de Regina Zilberman (2009, p. 87 - 88), e reflita sobre a sua condição leitor ou leitora. [...] ficcionistas e poetas revelam-se como leitores, ao relembrarem como ocorreu sua formação literária: Carlos Drumonnd recorda a importância que tiveram os 24 volumes da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, publicados no começo do século XX, engolindo suas noites de sono e provocando reações irritadas da mãe e do irmão: [...] Careço ler tudo. A mãe se queixa: Não dorme este menino. O irmão reclama: Apaga a luz, cretino![...] Sempre fui interessada por leitura, mas me tornei uma leitora voraz faz pouco tempo, para ser mais exata no ano 2001. Meu pri- meiro contato significativo com a literatura aconteceu nos cursos de formação na área de leitura promovidos pelo PROLER (Progra- ma de Incentivo à Leitura). Comecei lendo literatura infantil e infanto-juvenil e hoje sou uma apaixonada pela leitura. Ler é uma das minhas atividades preferidas. Entre minhas preferências estão os livros de Monteiro Lo- bato e Lygia Bojunga. Sinto-me leitora porque preciso ler para compreender o mundo e por- que não me canso de ler. Para mim todo dia é dia de leitura. (Rosangela) A minha história é um pouco diferente. Sem- pre gostei muito de escrever, desde peque- na e continuo “pequena” até hoje! Para ter o que escrever, precisamos de conteúdo, de memórias, de alimento “cultural”, “espiritual”, e é essa uma das possibilidades que a lei- tura nos dá. Sem leituras não temos o que dizer, nem o que escrever, tão pouco o quê sonhar... Lemos o tempo todo, não é mesmo? Propagandas, placas, outdoors, cardápios, folder, e-mails, MSN, Facebook, Orkut etc. Essas leituras nos permitem conhecer o mun- do, as pessoas, o contexto no qual vivemos. Isso é fascinante!!!! Na Literatura, também há uma certa magia: podemos conversar com os autores, como se fossem nossos conhecidos, podemos nos colocar no lugar dos persona- gens e viver aventuras, sem sair de casa. Ler para mim é viver e crescer por dentro! (Nice) 33 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 Erico Verissimo, não no interior de Minas Gerais, mas no do Rio Grande do Sul, ouve da mãe advertências similares, enquanto devora as obras de Júlio Verne: À noite, na cama, terminei a leitura daquele primeiro tomo de romance, sem dar atenção às muitas intervenções de D. Bega, que a intervalos me gritava de seu quarto “Apaga essa luz e dorme, menino! Manuel Bandeira, da sua parte, confessa que seu “primeiro contato com a poesia sob forma de versos terá sido provavelmente em contos de fada, em histórias da carochinha” [...]: Procuro me lembrar de outras impressões poéticas da primeira infância e eis que me acodem os primeiros livros de imagens: “João Felpudo”, “Simplício olha pro ar”, “Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz”. Sobretudo este último teve influência muito forte em mim; por ele adquiri a noção de haver uma realidade mais bela, diferente da realidade quotidiana, e a página do macaco tirando cocos para os meninos despertou o meu primeiro desejo de evasão. No fundo, já era Pasárgada que se prenunciava. Drummond, Veríssimo e Bandeira pertencem ao grupo dos melhores escritores brasileiros; seus depoimentos, relembrando a infância vivida no começo do século XX, referem-se a uma época em que não havia televisão, o cinema engatinhava e o computador não frequentava nem as fantasias mais alucinadas de Julio Verne e H.G. Wells, profetas de vários acontecimentos que vieram a se concretizar nas últimas décadas graças ao desenvolvimento tecnológico. 1) O texto acima indica que a leitura está presente em nossa vida em diferentes contextos. Para alguns, talvez esse encontro tenha acontecido no seio familiar, numa biblioteca ou na sala de aula. Para outros, ainda está por vir. E para você, que papel a leitura desempenhou em sua vida? Quando foi que você se sentiu leitor? Escreva sua experiência como leitor: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________ 34 Letramentos Múltiplos na Alfabetização 2) A Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental marcam o início da formação de muitos leitores. É tempo de investir nessa ideia... Liste livros que contribuem para a formação do leitor. Pesquise no site da FNLIJ (www.fnlij.org.br) os livros que receberam alguma premiação nos últimos três anos. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ SUGESTÃO DE LEITURA SANTOS, Eli Regina Nagel dos. Os efeitos de sentidos acerca da leitura: com a palavra os alunos. 2010. 138 f, il. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Ciências da Educação, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2010. Disponível em: <http://www.bc.furb. br/docs/DS/2010/341810_1_1.pdf>. Acesso em: 6 mai. 2010. 35 O Texto e o Contexto da Linguagem na Escola Capítulo 1 REVISTA LEITURAS. Disponível em: <http://portal.mec. gov.br/seb/arquivos/pdf/2006/leituras1.pdf>. Algumas Considerações Neste capítulo, compreendemos o texto e o contexto da linguagem na sala de aula, assim como discutimos a inserção dos gêneros discursivos na escola. E conversamos um pouco sobre o papel na leitura. No capítulo II, veremos basicamente os conceitos de alfabetização e letramento, defendendo a proposta de alfabetizar letrando. Além disso, contextualizaremos um pouco quem é esta criança de seis anos que inicia uma trajetória escolar e apresentaremos algumas propostas práticas, finalizando com o letramento escolar. Referências BAKHTIN, Mikhail M. (1979) Os gêneros do discurso. In M. Bakhtin. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______; VOLOSHINOV, N.V.(1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BRASIL, S.E.F. Parâmetros Curriculares Nacionais: 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental (1997); Língua Portuguesa (2º volume). 3. ed. Brasília: MEC/SEF, 2001. BRASIL. Casa da leitura. Cursos da Casa da Leitura, 2. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009. CEREJA, Willian Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática Reflexiva. 3. Ed. São Paulo: Editora Atual, 2009. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Sao Paulo : Paz e Terra, 1997. 36 Letramentos Múltiplos na Alfabetização GERALDI, João Wanderley (organizador). O texto na sala de aula. 3. ed. rev. São Paulo: Editora Ática, 2004. KOCH, Ingelore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. 2. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2006. KRAMER, Sonia. Leitura, experiência e formação. In: Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Brasil).Cursos da Casa da Leitura, 2.-Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009. ROJO, Roxane e CORDEIRO, Glaís Sales. Apresentação: Gêneros Orais e escritos como objetos de ensino: modo de pensar, modo de fazer. In: SCHNEUWLY, Bernard et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. (As faces da lingüística aplicada). SCHNEUWLY, Bernard et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 278 p. (As faces da lingüística aplicada). SOBRAL, Adail. Ético e estético. Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. IN: BRAIT, Beth. (Org) Bakhtin – Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 103-121. SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Trad. Cláudia Schilling, 6.ed.-Porto Alegre: Artmed, 1998. ZACCUR, Edwiges. É chegada a hora e a vez do leitor? In : Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Brasil).Cursos da Casa da Leitura, 2.-Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009. ZILBERMAN, Regina. A lição dos leitores. In: Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Brasil).Cursos da Casa da Leitura, 2.-Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009. CAPÍTULO 2 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: 3 Compreender o que é letramento e alfabetização. 3 Contextualizar o letramento no Brasil. 3 Refletir sobre o alfabetizar letrando. 3 Identificar a criança de 6 anos que frequenta o 1º ano. 3 Abordar o letramento escolar. 39 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 Contextualização Certamente você já ouviu falar em alfabetização e letramento ou, então, em “alfabetizar letrando”. Em que medida esses dois processos se aproximam e se distinguem? O que é alfabetizar? E letrar? Nossas práticas pedagógicas contemplam a alfabetização e o letramento? Nesse capítulo discutiremos, através de alguns gêneros e autores, a importância da leitura/escrita em nossa vida e, consequentemente, em nosso trabalho docente, além de conceituar a alfabetização e o letramento, contextualizando-os no Brasil. Refletiremos sobre o letrar e alfabetizar, sem perder de vista os gêneros orais e escritos como práticas sociais. Estaremos também propondo algumas atividades que privilegiem a alfabetização e o letramento nas primeiras séries/anos do ensino fundamental. Finalizaremos analisando o letramento no contexto escolar. Alfabetizar e Letrar: Texto e Contexto Para iniciar os nossos estudos, convidamos vocês para a leitura atenta do poema abaixo. Palavras Mágicas Palavras a gente escreve, Palavras a gente lê, Palavras a gente fala E ouve, sei lá por quê! Palavras pedem palavras, Mal acabam de ser ditas: Tanto faz se são faladas Ou se apagam com borracha... Há palavras esquisitas, Complicadas de falar; Há palavras já tão ditas Que eu me cansei de escutar! 40 Letramentos Múltiplos na Alfabetização E deve haver as que escondem Algum tipo de poder: Condão, magia ou encanto Pra fazer e desfazer. Mas quais? São muitas, são tantas! Quem poderá me dizer? São mágicas as palavras? É o que eu queria saber... Fonte: RIOS, Rosana. Palavras Mágicas. São Paulo: Ed. Studio Nobel, 2010, p.15. Ao ler o poema, não fizemos somente uma decodificação de palavras, versos e estrofes, ou seja, não lemos somente o texto, mas também as entrelinhas, o seu contexto. Para realizarmos a leitura do texto, tivemos que fazer uso de nossas capacidades de decodificação: conhecimento alfabético, relação entre grafema e fonema, pontuação etc. Essas capacidades básicas são aprendidas durante o processo de alfabetização. Já para entendermos o contexto do poema são necessárias capacidades de compreensão, interação com o texto, inferências, produção de sentidos, interdiscursividade, intertextualidade, apreciação, frutos do letramento, dos usos sociais da leitura e da escrita. A riqueza e a diversidade de letramento(s), nesse sentido, são múltiplas, pois o texto ganha diferentes valores nos mais diversos contextos. Solicitamos que você faça a leitura dos textos a seguir e procure captar quais sentidos podemos atribuir à palavra, seja escritaou falada. 41 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 O poema do célebre poeta, Lindolf Bell, retrata a complexidade da palavra. Leia e reflita acerca do uso da palavra. PROCURO A PALAVRA PALAVRA Não é a palavra fácil que procuro. Nem a difícil sentença, aquela da morte, a da fértil e definitiva solitude. A que antecede este caminho sempre de repente. Onde me esgueiro, me soletro, em fantasias de pássaro, homem, serpente. Procuro a palavra fóssil. A palavra antes da palavra. Procuro a palavra palavra. Esta que me antecede Para mim a palavra é texto e contexto, pensamento e ação... Com ela podemos falar sério e brincar, nos esconder e nos declarar. A palavra é romance, poema, poesia, conto, crônica, teoria... É a pá Que lavra A alma E faz brotar Os sentidos Dos pensamentos Às ações Fazendo-nos humanos Despertando o pior e o melhor de nós A vida é mesmo feita de escolhas Então, irriguemos nossos dias Buscando as mais belas palavras Para cultivar as melhores ações Autora: Nice A palavra é expressão, sentimento, ponto de vista, pergunta, resposta, representação do que pensamos e somos. A palavra falada pode... Provocar Acalmar Libertar Atrair Violar Recuperar Aproximar Enfim, palavras fertilizam os espaços e desatam amarras. As palavras, se bem faladas, podem mover as mais altas barreiras, mas, se mal faladas, podem erguer muralhas. Palavras são poderosas. Autora: Rosangela 42 Letramentos Múltiplos na Alfabetização E se antecede na aurora E na origem do homem Procuro desenhos dentro da palavra. Sonoros desenhos, tácteis, Cheiros, desencantos e sombras. Esquecidos traços. Laços. Escritos, encantos re-escritos. Na área dos atritos. Dos detritos. Em ritos ardidos da carne e ritmos do verbo. Em becos metafísicos sem saída. Sinais, vendavais, silêncios. Na palavra enigmam restos, rastos de animais, Minerais da insensatez. Distâncias, circunstâncias, soluços, Desterro. Palavras são seda, aço. Cinza onde faço poemas, me refaço. Uso raciocínio. Procuro na razão. Mas o que se revela, arcaico, pungente, eterno e para sempre, vivo, vem do buril do coração. Fonte: Disponível em: <http://www.antoniomiranda.com.br/ iberoamerica/brasil/lindolfo_bell.html>. Acesso em: 10 out. 2011. Outro texto que nos remete à complexidade da palavra é o texto do escritor Monteiro Lobato, do livro “Memórias da Emília”. Leia o texto e reflita acerca do processo de escrita do próprio autor. [...] Isso de começar não é fácil. Muito mais simples é acabar. Pinga-se um ponto final e pronto; ou então, escreve-se um latinzinho: FINIS. Mas começar é terrível. Emília pensou, pensou, e por fim disse: - Bote um ponto de interrogação; ou, antes, bote vários pontos de interrogação. Bote seis... O Visconde abriu a boca. - Vamos, Visconde. Bote aí seis pontos de interrogação, insistiu a boneca. - Não vê que estou indecisa interrogando-me a mim mesma? E foi assim que as “Memórias da Marquesa de Rabicó” principiaram dum modo absolutamente imprevisto. (LOBATO, 1994,p. 10) 43 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 Atividade de Estudos: 1) Agora, em meio a tantos pontos de vista, expressos em diferentes gêneros textuais, escreva o que para você é a palavra. Você pode fazer uso de poema, poesia, crônica, cartaz, acróstico... Pense no valor da palavra em sua vida, na profissão, nos relacionamentos, na construção de seus conhecimentos e descobertas... Figura 4 - Frase ilustrada _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ _________________________________ Fonte:Disponível em: <http://frasesilustradas.wordpress. com/page/26>. Acesso em: 15 out. 2011. Depois de aquecer a mente com muitas palavras, vamos descobrir qual é o sentido da palavra letramento para nós, neste capítulo. Letramento O Dicionário de Análise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004) aponta três sentidos para o termo letramento: • o primeiro sentido remete a um conjunto de saberes elementares, em parte, mensuráveis: saber ler, escrever, contar, oriundas das pesquisas 44 Letramentos Múltiplos na Alfabetização internacionais que avaliam os níveis de letramento dos países a partir de indicadores comuns; • o segundo designa os usos sociais da escrita: ler, escrever e questionar os materiais escritos. Devido às diferentes esferas sociais, parece legítimo conceber vários tipos de letramentos: o familiar, o escolar, o religioso, o digital; • o último concebe o letramento como uma cultura que se opõe à cultura da oralidade. Estudar o letramento nessa perspectiva é analisar os usos da escrita, a divisão social dos saberes, os valores particulares veiculados pelo mundo letrado. Como podemos observar na primeira explicação, o letramento aparece como indicador de leitura com caráter avaliativo. É bom esclarecer aqui que letramento não é só saber ler e escrever, e sim saber usar socialmente a escrita. Então, esse sentido atribuído ao termo não será utilizado em nossa abordagem. Na última concepção, há uma ampla valorização da “cultura escrita” em detrimento da cultura oral. Também não é esse entendimento que desejamos dar ao letramento neste caderno. Queremos, sim, entender letramento(s) como práticas sociais de leitura e de escrita, observando os diferentes contextos em que acontecem as situações comunicativas. Assim, é possível que em diversos contextos sociais haja também diferentes letramentos. Soares, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da Universidade Federal de Minas Gerais, nos apresenta uma ampla discussão em torno de alfabetização e letramento, definindo o último como uma versão da língua inglesa literacy, que vem do latim littera (letra), mais o sufixo cy (qualidade, condição, estado). “Literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever” (SOARES, 1998, p. 17). Sendo assim, “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever; o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.” (SOARES, 1998, p. 18). Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever; o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.” (SOARES, 1998, p. 18 Letramento não é só saber ler e escrever, e sim saber usar socialmente a escrita. 45 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 A autora entende o letramento sob duas dimensões: a individual e a social. Na dimensão individual são consideradas as habilidades de leitura e de escrita, o que nos leva a pensar em alfabetização, no sentido do código escrito. Já o letramento como dimensão social é um fenômeno cultural, entendido nas atividades sociais que demandam o uso da escrita, que, por sua vez, compreende também duas perspectivas: a revolucionária ou radical, relacionada ao processo de transformação social, caracterizando o modelo ideológico de letramento; e a progressista ou liberal, preocupada com o processo de adaptação social dos indivíduos, identificando-se com o modelo autônomo de letramento. Somos letrados à medida que sabemos ler em diferentes lugares e sob diversas condições, não somente na escola, quando usamos a leitura como fonte de informação e interesse, fazendo uso dela em nossa vida diária. O mesmo acontece com a escrita: fazemos uso de mapas, placas,lista de compras, Orkut, MSN, receitas culinárias, PowerPoint e outras formas escritas para nos orientar no mundo, fazemos compras, tiramos extratos bancários, preparamos pratos saborosos, apresentamos trabalhos acadêmicos. É importante registrar que o letramento tem aspectos ideológicos e políticos, considerando sua estreita relação para com a cidadania, pois novas realidades exigem o aprimoramento dos usos sociais da leitura e da escrita nos diferentes gêneros, inclusive no mundo profissional. Assim, o letramento permite ao indivíduo uma maior participação ou inserção na cultura letrada. Poderíamos dizer até que é uma forma de adaptação, de sobrevivência do indivíduo na sociedade atual. Atividade de Estudos: O letramento envolve diversas situações de escrita e de leitura que inserem o indivíduo numa sociedade letrada. Agora observe o cartoon de Luciano Rocha e responda: Somos letrados à medida que sabemos ler em diferentes lugares e sob diversas condições, não somente na escola, quando usamos a leitura como fonte de informação e interesse, fazendo uso dela em nossa vida diária. 46 Letramentos Múltiplos na Alfabetização Figura 5 – Cartoon sobre a leitura Fonte: Disponível em: <http://luccianorocha.blogspot.com/2009/03/eleitos- os-melhores-cartoons-do-mundo.html>. Acesso em: 15 out. 2011. 1) Qual é a intenção visível dos leitores? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Avaliando o contexto no qual os leitores se encontram, o que você vê? ____________________________________________________ 47 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 3) Qual é a relação que você faz entre o cartoon e o uso social da leitura e da escrita? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Analise as propostas a seguir: • Proposta 1: Esta proposta está relatada no livro Alfabetização e Letramento na Sala de Aula e foi escrita por um grupo que compõe o CEALE (Centro de alfabetização, leitura e escrita – FaE - UFMG). Leia os nomes dos livros, recorte os títulos e organize-os em ordem alfabética: 48 Letramentos Múltiplos na Alfabetização No caso desta atividade, quando pensamos na ordem alfabética tendo em vista seus usos sociais, podemos afirmar que se trata de uma atividade escolarizada e não uma atividade de letramento social, pois no sistema de classificação e organização de bibliotecas, por exemplo, o acervo está reunido por assunto e não em ordem alfabética. Atividades como essa fazem parte do processo de alfabetização e ensinam a utilizar a ordem alfabética, porém não o seu uso social. • Proposta 2: Organize a agenda telefônica do grupo de alunos da nossa sala, colocando os sobrenomes em ordem alfabética. Esta é uma proposta de atividade que utiliza o uso social da ordem alfabética, portanto é uma atividade de letramento. Quando a criança recorrer ao uso de catálogos, dicionários, listas telefônicas ou na lista de chamada da escola, irá encontrar a ordem alfabética. Assim, o professor poderá trabalhar a ordem das letras do alfabeto para que a criança saiba localizar o endereço ou telefone de alguém numa lista, procurar lojas, produtos 49 A Articulação entre Alfabetização e Letramento(s) Capítulo 2 e serviços em catálogos, encontrar determinada palavra no dicionário, localizar nomes em listagens de concursos. Fica claro que aprender a ordem das letras do alfabeto tem usos sociais. • Proposta 3: Cada aluno deverá copiar o nome completo de um colega numa tira de papel. Quando todos tiverem copiado, os nomes serão embaralhados e depois colocados em ordem alfabética. Esta proposta está no livro “Uma professora muito maluquinha”, do Ziraldo. Leia um trecho do livro: “Gastamos quase a aula inteira só para descobrir que o nome de um colega chamado Pedro da Silva Marins tinha que ficar na frente do nome de outro colega que, imaginem só! Chamava-se Pedro da Silva Martins. Em compensação ficamos craques em dicionários e catálogos”. (ZIRALDO, 1995, p.24). Essa atividade apresenta o uso social da escrita, pois em dicionários é utilizada a ordem alfabética. Esta atividade também é uma atividade muito utilizada no letramento escolar, que estudaremos mais adiante. Atividade de Estudos: 1) Apresentamos propostas que envolvem alfabetização e propostas que envolvem letramento. Agora é a sua vez de selecionar atividades que apresentem a perspectiva do alfabetizar letrando. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 50 Letramentos Múltiplos na Alfabetização ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Letramento no Brasil Segundo Soares (2003), nos países desenvolvidos, o letramento, usando a palavra empregada no Brasil, surge a partir da constatação de que a população, embora alfabetizada, não usava de forma competente seus conhecimentos de leitura e de escrita nas diversas situações de comunicação. Assim, em Portugal surge literacia, nos países de língua inglesa, literacy, e nos de língua espanhola, literacidad, um novo termo para explicar essa nova realidade ou fenômeno. Já no Brasil o movimento acontece em direção contrária, pois os índices de nossas pesquisas se referiam mais ao analfabetismo do que à competência leitora propriamente dita. Isso explica porque até hoje usamos dois termos: alfabetização e letramento. A palavra letramento aparece pela primeira vez em nosso país, na década de 80, com a publicação de “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”, de Mary Kato. É interessante observar que também no meio acadêmico o uso dos
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