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Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS SÍNDROME METABÓLICA: A síndrome metabólica (SM) descreve uma condição na qual anormalidades antropométricas, fisiológicas e bioquímicas promovem considerável aumento do risco para doenças cardiovasculares e diabetes melitus tipo 2. Como fatores mais frequentemente envolvidos na SM estão a obesidade visceral, a dislipidemia, a hipertensão e a resistência à insulina. Estima-se que 22 a 30% dos adultos sejam portadores de SM, prevalência aumenta com a idade, sendo, portanto, ainda mais frequente em idosos. Há também predominância discreta de casos no sexo feminino. O acometimento de crianças e adolescentes tem se tornado cada vez mais precoce e comum, devido à exposição a alimentos ultraprocessados e ao estilo de vida sedentário. ETIOPATOGENIA: Ainda que a etiologia da SM não seja completamente esclarecida, é possível estabelecer relações causais entre esse quadro e a ingesta calórica elevada, uma vez que o acúmulo de gordura visceral é o principal gatilho para as mudanças metabólicas da síndrome. A restrição do crescimento uterino e o ganho de peso elevado nos primeiros 6 meses também podem atuar como agentes predisponentes, gerando um fenótipo poupador de calorias nesses indivíduos. No que se refere à fisiopatologia desse quadro, três mecanismos se destacam como essenciais à progressão da SM, a saber: Resistência insulínica: A insulina, secretada pelo pâncreas em resposta à hiperglicemia, tem função anabólica, inibindo a lipólise e a gliconeogênese hepática ao mesmo tempo em que eleva o consumo de glicose no fígado, músculos e adipócitos. Observa-se que o desenvolvimento de resistência insulínica aumenta a concentração de ácidos graxos livres (AGL) no sangue, criando assim um ciclo vicioso, já que esses compostos irão alterar cascatas de sinalização para insulina em múltiplos órgãos. O resultado geral desse processo é a necessidade de hiperinsulinemia para manutenção de estados normoglicêmicos, porém essa compensação eventualmente falha, com degeneração das células beta- pancreáticas. Ademais, grandes volumes de AGL também aumentam a síntese de triglicérides (TG) e colesterol, especialmente de sua fração VLDL. Há estímulo da proteína CETP, que promove a transferência de TG entre VLDL e HDL, elevando sua depuração e, consequentemente, reduzindo sua concentração no sangue. Essas alterações influenciam fortemente a formação de placas de ateroma, refletindo-se A gordura visceral contribui mais para a resistência à insulina do que a gordura subcutânea, pois a lipólise da primeira aumenta diretamente a concentração de AGL no fígado por meio da circulação esplâncnica Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS laboratorialmente como dislipidemia mista. Outra importante contribuição da resistência insulínica é o desenvolvimento de hipertensão arterial, que ocorre em resposta à perda do efeito vasodilatador desse hormônio e à maior ação vasoconstrictora dos AGL, mediada por espécies reativas de oxigênio (EROS). O sangue também se torna mais viscoso, o que pode ocasionar o desenvolvimento de estados pró- trombóticos, com secreção de citocinas inflamatórias pelo tecido adiposo. Inflamação crônica: As vias patogênicas associadas à SM contribuem para o surgimento de um estado proinflamatório sistêmico que justifica a elevação de marcadores como PCR, citocinas e TNF-α. Como esses “disparos” não são controlados, há tendência a aterogênese e a fibrose vascular, que cronicamente podem desencadear doenças cardiovasculares. Dosagem de biomarcadores inflamatórios na SM A IL-6 atua em diversos tecidos, promovendo os “efeitos metabólicos da obesidade”. No fígado, há aumento na produção de reagentes inflamatórios de fase aguda (retroalimentação de PCR), fortemente associados às complicações da SM. Essa citocina também aumenta níveis de fibrinogênio e fatores de adesão celular, responsáveis por eventos trombóticos e desgaste dos vasos. Os efeitos patogênicos do TNFα são descritos principalmente pela fosforilação de receptores de insulina em serina, afetando a captação hormonal em adipócitos e células musculares, que passam a empregar lipólise para obtenção de energia (aumento de AGL). Ação tecido adiposo: A recém-descoberta atividade endócrina do tecido adiposo contribui para a compreensão dos mecanismos envolvidos na SM. Dentre as adipocinas secretadas estão múltiplos hormônios (, peptídeos e citocinas inflamatórias, cujo papel foi descrito anteriormente. A liberação de leptina é proporcional aos níveis de gordura corporal, porém indivíduos obesos apresentam dificuldade na regulação metabólica associada a esse hormônio (controle do apetite, aumento do gasto energético). Esse quadro é chamado de “resistência à leptina”, e contribui fortemente para a associação entre SM, DM e doenças cardiovasculares. Outra importante via neuro-hormonal afetada na SM é o sistema renina- angiotensina-aldosterona, visto que o Respostas da imunidade inata também são desencadeadas pela identificação de ácidos graxos saturados, LDL e metabólitos da MEC como DAMPS por receptores TLR2 e TLR4, corroborando a inflamação intrínseca A concentração de adiponectina, hormônio “antagonista” da leptina e considerado como fator protetor para aterogênese e modulador insulínico, é baixa em indivíduos com síndrome metabólica Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS tecido adiposo secreta angiotensina II, ativando patologicamente a NADPH- oxidase e promovendo a síntese de espécies reativas de oxigênio. Essas EROS levam ao surgimento de injúria vascular, agregação plaquetária inadequada e expressão de NF-kB, que interagem com os demais fatores supracitados na formação de um ciclo vicioso de disfunção, inflamação e fibrose endotelial. Mecanismos fisiopatológicos associados ao desenvolvimento de síndrome metabólica QUADRO CLÍNICO: Além das manifestações associadas à hipertensão e obesidade, o paciente com SM pode apresentar outros achados clínicos, em sua maioria ligados à hiperinsulinemia, a saber: Acantose nigricans: é uma dermatose marcada pela presença de lesões hiperpigmentadas e hiperceratosas de aspecto simétrico, localizadas principalmente nas axilas, nuca e virilha; Hiperpigmentação por acantose nigricans Esteatose hepática: resulta do acúmulo de gotículas lipídicas nos hepatócitos, provocando hepatomegalia e hiperecogenicidade à USG; Esse quadro pode evoluir com esteato-hepatite não alcóolica, capaz de se transformar, cronicamente, em cirrose hepática. Evolução de complicações hepáticas da SM Hiperandrogenismo: caracterizado por hirsutismo, acne e implementação masculina dos pelos. Pode ou não ser associada à síndrome dos ovários policísticos, que cursa com amenorreia e infertilidade. Influência da resistência à insulina sobre o desenvolvimento de disfunções androgênicas Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Síndrome da apneia do sono. DIAGNÓSTICO: Existem diversas propostas para critérios diagnósticos na SM, tendo como características comuns a inclusão de marcadores para fatores de risco cardiovascular modificáveis (hipertensão, dislipidemia), distúrbios do metabolismo da glicose e obesidade. Assim, destacam- se: NCEP-ATP III (usado pela I Diretriz Brasileira para Síndrome Metabólica): descreve o critério mais utilizado, considerando como portador de síndrome metabólica o indivíduo que apresente pelo menos 3 condições definidoras: o Circunferência abdominal > 88cm (mulheres) ou > 102cm (homens); o PA sistólica ≥ 130 ou diastólica≥ 85 mmHg OU pessoas em uso de anti- hipertensivos; o Triglicérides ≥ 150 mg/dl; o Colesterol HDL < 50 mg/dl (mulheres) ou < 40 mg/dl (homens); o Glicemia de jejum ≥ 100 mg/dl. OMS: requer obrigatoriamente que o paciente apresente intolerância à glicose (determinadas por TOTG ou glicemia de jejum) ou resistência insulínica (identificada pela insulina de jejum), além da presença de dois ou mais dos seguintes: o Hipertrigliceridemia (≥ 150 mg/dl); o HDL ≤ 39 mg/dl (♀) e ≤ 35 mg/dl (♂); o PA ≥ 140/90 mmHg ou uso de anti- hipertensivos; o Relação cintura-quadril (RCQ) ≥ 0,85 (♀) ou > 0,9 (♂) ou IMC ≥ 30 kg/m2; o Microalbuminúria ≥ 20 μg/min ou relação albumina/creatina ≥ 30 mg/g. IDF (usado pela Diretriz Brasileira de Dislipidemia e Prevenção de Aterosclerose): apresenta a obesidade como critério obrigatório, com RCQ variável conforme sexo e etnia. Além disso, pacientes devem ter ao menos 2 dos seguintes critérios: o Triglicérides ≥ 150 mg/dl ou em tratamento; o HDL < 50 mg/dl (mulheres) ou < 40 mg/dl (homens); o PA sistólica ≥ 130 mmHg, diastólica ≥ 85 mmHg ou em tratamento; o Glicemia de jejum > 100 mg/dl ou diagnóstico prévio de diabetes. Principais parâmetros diagnósticos para a SM em adultos Circunferência abdominal por etnia Europeus, negros e etnia árabe (H: ≥ 94 cm; M: ≥ 80 cm); Ameríndios e chineses (H: ≥ 90 cm; M: ≥ 80 cm); Japoneses (H: ≥ 85 cm; M: ≥ 90 cm). Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Para tentar diminuir as controvérsias diagnósticas dessa síndrome, foi proposto o “nivelamento” dos parâmetros da NCEP/ATP-III, sem critérios obrigatórios e adequando a circunferência abdominal para o perfil de cada população. “Unificação” dos critérios diagnósticos na síndrome metabólica TRATAMENTO: O principal alvo terapêutico no manejo da SM deve ser a obesidade, já que a perda de peso auxilia a controlar o perfil lipídico e a melhorar os níveis de glicemia e PA, culminando em maior sensibilização à insulina. A meta inicial deve ser a perda de 5 a 10% do peso corporal, índice suficiente para a redução do risco cardiovascular. Objetivos terapêuticos para a síndrome metabólica Mudanças no estilo de vida são essenciais para o alcance desse objetivo, tais como a modificação da dieta, evitação do tabagismo/etilismo e a prática de exercícios físicos (ao menos 150 min/semana de atividade aeróbica moderada). Para além de medidas não farmacológicas, o manejo medicamentoso de componentes da síndrome metabólica também pode ser indicado, a saber: Hipertensão arterial: O controle pressórico, em indivíduos com SM, em como finalidade a diminuição da morbimortalidade cardiovascular e renal. Os medicamentos de uso preferencial são os IECA, BRA e os bloqueadores de canal de cálcio (BCC). Os diuréticos e betabloqueadores também podem ser usados como fármacos complementares na associação de hipotensores. Fluxograma terapêutico geral da hipertensão arterial As metas pressóricas em adultos com alto risco cardiovascular consistem em PA ≤ 130/85 mmHg, porém, em indivíduos com lesão renal (proteinúria franca), o controle deve ser mais rigoroso, com valores < 120/75 mmHg. As seguintes associações medicamentosas apresentam melhor resposta no controle da PA: IECA (ou BRA) + diurético Betabloqueador + diurético BCC + Betabloqueador BCC + IECA Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Cardiopatas e pessoas com > 50 anos devem atingir essas metas de forma mais rápida, com prazo máximo de 6 meses. Princípios gerais para o manejo farmacológico da HAS Diabetes melitus: O tratamento farmacológico da DM é indicado em caso de falha das medidas de mudança de estilo de vida para o controle da glicemia, ou na presença de sintomas agudos de descompensação metabólica. Observa-se, no entanto, que ainda não há estudos suficientes que relacionem o uso de agentes hipoglicemiantes à menor morbimortalidade na SM. Os hipoglicemiantes orais podem ser segmentados em fármacos que diminuem a velocidade de absorção de carboidratos (acarbose), limitam a produção hepática de glicose (biguanidas), aumentam o consumo da mesma (glitazonas) e elevam a secreção de insulina pelo pâncreas (sulfoniluréias e glinidas). Características dos principais hipoglicemiantes orais Para valores de glicemia de jejum < 150 mg/dl, são recomendados os fármacos que não interferem na concentração de insulina, especialmente em pacientes obesos. Quando os resultados estiverem entre 150 e 270 mg/dl, a indicação da terapia dependerá se há predomínio de resistência ou deficiência (secretagogos) desse hormônio. Com a cronificação da doença e a consequente falência pancreática, a monoterapia começa a causar controle errático da glicemia. Assim, é preciso combinar fármacos com mecanismos de ação distintos. A insulina NPH, administrada antes de dormir, deve ser iniciada, ainda em associação com medicamentos orais, na ausência de controle terapêutico adequado, mesmo com dois ou três fármacos orais. Para pacientes com glicose em jejum próxima do normal, mas com hemoglobina glicada alterada, recomenda- se o uso de glinidas ou acarboses, que agem sobre a glicemia pós-prandial Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Tratamento da diabetes melitus tipo 2 em pacientes sem complicações cardiovasculares Recomendações terapêuticas para DM em pacientes com doença aterosclerótica Dislipidemia: O manejo da dislipidemia visa a prevenção de eventos cardiovasculares, de modo que as metas laboratoriais devem ser ajustadas individualmente, conforme o grau de risco de cada paciente. Mesmo que o LDL não seja um critério diagnóstico da SM, sua redução é considerada uma meta terapêutica primária, assim como o aumento de HDL. Metas lipídicas no tratamento da dislipidemia As estatinas são consideradas como fármacos de primeira escolha, agindo sobre a maior expressão hepática de receptores LDL (aumento da captação dessa lipoproteína), além de promover a diminuição da síntese de colesterol e triglicérides. Como o metabolismo dessas drogas ocorre no fígado, recomenda-se evitar sua associação a indutores do citocromo P450, como ciclosporinas, macrolídeos, antifúngicos imidazólicos e ISRS. Os fibratos, por sua vez, modulam genes associados à maior expressão de lipase lipoproteica e apolipoproteínas, o que implica em maior redução de triglicérides, quando comparados às estatinas. Por esse motivo, eles são considerados medicamentos de 1ª linha para indivíduos com hipertrigliceridemia > 500 mg/dl. A associação entre as classes de hipolipemiantes deve ser reservadas a quadros refratários, identificados após ausência de resposta à reavaliação laboratorial em 30-40 dias. Nesses casos, também podem ser usados o ômega-3 e a niacina. A niacina é uma vitamina com importante ação no aumento do HDL, mas que deve ser administrada junto ao AAS para aumentar a tolerabilidade. O uso de estatinas deve ser mantido de forma permanente, pois o benefício cardiovascular é tempo-dependente. Torna-se necessária a dosagem laboratorial de CK a cada 6 meses, para determinar a possibilidade de continuar o tratamento Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS Redução do perfil lipídico com o uso de hipolipemiantes Obesidade: o Tratamento farmacológico: Essa estratégia é recomendada a indivíduos com SM e obesidade (IMC ≥30 kg/m²) ou sobrepeso (IMC entre 25kg/m² e 30kg/m²), desde que na presença de outras comorbidades e que não tenham apresentado resposta após 1 a 3 meses de tratamento não medicamentoso.A sibutramina (10-20 mg/dia), droga que inibe a recaptação de serotonina e noradrenalina (modulação da saciedade e do apetite) se mostra bastante eficaz na perda de peso, sendo segura e bem tolerada. Os principais efeitos adversos são boca seca, constipação intestinal, insônia, irritabilidade e cefaleia, além de possível aumento da pressão arterial (monitoramento com ajuste da dose de anti-hipertensivos). Ação neuro-hormonal da sibutramina O orlistat (120 mg, 2-3x/dia, junto às refeições), por sua vez, age não só no emagrecimento, mas também em sua manutenção. A esteatorreia é um efeito colateral comum, secundário ao mecanismo de ação da droga. Impacto do orlistat sobre o metabolismo de lipídeos o Tratamento cirúrgico: Sua indicação é considerada em caso de obesidade mórbida (IMC > 40 kg/m²) ou em indivíduos com IMC > 35 kg/m² e comorbidades, sendo necessária tentativa prévia de tratamento, sem sucesso. Mesmo cumprindo esses critérios, o indivíduo interessado deve ser aprovado por uma equipe multiprofissional e se mostrar orientado e motivado, para que o procedimento seja feito. Devido ao mecanismo de ação semelhante, ISRS (antidepressivos) como a fluoxetina e a sertralina também podem ter impacto sobre a perda de peso, ainda que de modo transitório Júlia Figueirêdo – DESORDENS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS A abordagem cirúrgica da obesidade pode ser restritiva, reduzindo a entrada de alimentos no tubo digestivo, e/ou disabsortiva, dificultando a absorção de calorias e nutrientes. Cirurgia bariátrica com técnica em sleeve (esq.) e by- pass (dir.) Algumas complicações associadas a essas intervenções são o dumping (mal- estar após alimentação rica em açúcares), colelitíase (estase biliar) e a carência nutricional, manejada com a suplementação vitamínica regular. O sucesso da cirurgia bariátrica é determinado por IMC < 35 kg/m² OU perda ponderal > 50% do excesso de peso presente no período pré-operatório
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