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107 GÊNEROS TEXTUAIS Unidade III 7 GÊNEROS TEXTUAIS NO CONTEXTO ESCOLAR Todas as questões teóricas sobre gênero e sua análise têm fundamento produtivo ao serem relacionadas às práticas escolares, as quais vivem um momento de transição entre o ensino com uma abordagem tradicional do texto e a construção de novos paradigmas. Veremos agora o posicionamento assumido pelos órgãos competentes político-pedagógicos em relação à questão do ensino de texto. Segundo os materiais oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), o ensino precisa pautar-se na noção de gênero e no método denominado sequência didática. Outro aspecto importante relativo ao ensino de texto é a distinção entre tipologia e gênero, que rompe com a abordagem tradicional. Nesse caso, abre-se a discussão sobre a dissertação ser uma tipologia ou um gênero, questão que será abordada neste momento, com esclarecimentos teóricos. Lembrete Tipo de texto designa uma construção teórica de natureza linguística (léxico, sintaxe, tempos verbais, relações lógicas) e abrange um número reduzido de categorias, a saber: narração, descrição, argumentação, opinião, exposição e injunção. Já os gêneros são decorrentes diretos das formas de representação da palavra aberta às possibilidades diversificadas e múltiplas e acompanham a variabilidade de usos da língua, em um determinado tempo, renovando-se em cada nova etapa do seu desenvolvimento. Por fim, ao falar de ensino hoje, trataremos da relação com a tecnologia e como sua linguagem múltipla tornou-se uma exigência. Assim, desenvolveremos a discussão sobre uma escola conectada no que diz respeito aos gêneros textuais. Antes de desenvolver o tema, vejamos o que diz Marcuschi sobre gêneros e o trabalho do professor na sala de aula. Embora seja hoje amplamente aceito que o trabalho com a linguagem em sala de aula deva ser feito com base em gêneros textuais, não está claro para os professores como trabalhar com textos em sala de aula. Por um lado, 108 Unidade III admitimos que não se trata de ensinar a produzir gêneros simplesmente. É bem verdade que, ao escolher um gênero, já escolhemos, de certa forma, uma forma textual, mas o oposto não ocorre. Não há relação de biunivocidade entre texto e gênero. Você deve explorar esse ponto de vista, em particular, na seguinte questão: quais as relações entre a forma textual e os propósitos do gênero? Aqui residem alguns problemas básicos no trato textual do gênero (que deve ser o trato típico da escola, se ela quer trabalhar com a língua) (MARCUSCHI, 2005, p. 8). Considerando que a educação, enquanto comprometida com o exercício da cidadania, deve criar as condições necessárias a fim de que a competência discursiva seja desenvolvida pelo aluno, como prescrevem os PCN para o ensino/aprendizagem de língua portuguesa, devemos perceber que apenas a garantia de acesso aos conhecimentos construídos e acumulados no decorrer da história da humanidade e às informações disponíveis socialmente permite o exercício pleno da cidadania. Sabemos que a importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente, de acordo com as demandas sociais, as quais, por sua vez, impõem-se a cada momento. Atualmente, é possível notar uma exigência cada vez mais acentuada no que se refere aos diferentes níveis de leitura e escrita. Tal fato demanda uma adequação dos métodos de ensino à constituição de práticas que possibilitem ao aluno desenvolver sua competência comunicativa na interlocução. Nessa perspectiva, não podemos tomar como unidades básicas do processo de ensino da língua materna aspectos que decorrem da análise de letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas e frases, pois, descontextualizados, são frequentemente tomados como referência de estudo gramatical e guardam pouca relação com a competência discursiva. Reconhecemos, como você deve ter percebido, que a unidade básica do ensino da língua portuguesa só pode ser o texto. Nesse momento, vale discutir alguns aspectos centrais que darão base às reflexões que faremos a seguir. Tradicionalmente, o ensino de língua portuguesa tomava a oração e o período como unidades fundamentais para seu estudo e pretendia ensinar o aluno a ler e a escrever por meio do ensino sistemático da gramática e das estruturas da língua escrita. A partir da década de 1980, entretanto, surgiram diversas propostas curriculares que optavam pelo reconhecimento do texto como o novo objeto de estudo. Nesse percurso, em sala de aula, o estudo do texto em seu funcionamento e em seu contexto de produção e leitura tornou-se mais importante que o reconhecimento de suas propriedades formais. Essa visão ganhou força nos programas e propostas curriculares oficiais brasileiros a partir de 1997/1998, com sua incorporação aos PCN de língua portuguesa. A partir de então, passam a ter importância considerável tanto as situações de produção e de circulação dos textos como a significação que nelas se constituem (visto que, para sua compreensão e produção, diferentes conhecimentos e capacidades são necessários). 109 GÊNEROS TEXTUAIS Naturalmente, podemos reconhecer a noção de gêneros (discursivos ou textuais) como um instrumento melhor que o conceito de tipo de texto para favorecer o ensino da leitura e de produção de textos escritos e orais. Na verdade, a escola sempre ocupou o autêntico lugar de produção e utilização de textos e, ao cumprir sua tarefa de ensinar o aluno a ler e a escrever, lançou mão de gêneros, pois, como já vimos, toda forma de comunicação se cristaliza em forma de linguagens específicas. Como na maioria das vezes que os estudos com textos ocorrem na escola, nossa visão de gênero textual tende a ficar restrita a esse espaço, mas isso não é tudo: há outras esferas de circulação dos textos, além da escola. Basta lembrar os meios de comunicação de massa ou as novas tecnologias da informação, como o rádio, o jornal, a TV ou a internet, entre tantas outras. Saiba mais É interessante ler O texto na sala de aula, que aborda aspectos pedagógicos relacionados à leitura e à produção de textos e que, desde sua primeira edição, em 1984, tem sido utilizado como material de apoio indispensável para professores comprometidos com a melhoria da qualidade de ensino da língua materna em nosso país. GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. Os PCN são documentos lançados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) no final dos anos 1990, elaborados por educadores de todas as áreas do conhecimento com a intenção de apoiar e ampliar discussões de caráter pedagógico, visando a uma transformação positiva no sistema educacional brasileiro. Saiba mais Para mais informações sobre os PCN, consulte o site: http://portal.mec.gov.br No cotidiano, temos contato com muitos gêneros de textos verbais, apresentados de modo oral e escrito – conversas formais e informais, conversas telefônicas, entrevistas, comentários sobre assuntos gerais, propagandas de rádio, aulas, debates e outros mais. Como você pode notar, as diferentes situações sociais das quais participamos – como indivíduos e cidadãos – exigem práticas de linguagem organizadas em diferentes gêneros textuais. 110 Unidade III Ora, nessa perspectiva, é necessário e urgente, então, contemplar, na prática pedagógica, a diversidade de textos e gêneros, não apenas em função de seu uso social, mas também considerando que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas. Por diversas vezes, os PCN remetem aos gêneros como objeto de ensino em leitura e produção textual na língua materna nos diferentes períodos da formação escolar e indicam o lugar do texto (oral e escrito) como materialização de um gênero – unidade de trabalho – e, consequentemente, como suporte de aprendizagem de suas propriedades. Vejamos, a seguir, exemplos de algumas delas, reproduzidas dos PCN. 1. Ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se possa dispor tantode uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado (PCN 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, p. 48). 2. Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino (PCN 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, p. 23). 3. Nas inúmeras situações sociais de exercício da cidadania que se colocam fora dos muros da escola – a busca de serviços, as tarefas profissionais, os encontros institucionalizados, a defesa de seus direitos e opiniões – os alunos serão avaliados (em outros termos, aceitos ou discriminados) à medida que forem capazes de responder a diferentes exigências de fala e de adequação às características próprias de diferentes gêneros do oral […]. A aprendizagem de procedimentos apropriados de fala e escuta, em contextos públicos, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la (BRASIL, 1998, p. 25). Os quadros a seguir apresentam os gêneros privilegiados para o trabalho de escuta e leitura de textos e para a prática de produção de textos orais e escritos, conforme critérios amplamente apresentados pelos PCN (3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental). 111 GÊNEROS TEXTUAIS Quadro 17 – Gêneros privilegiados para a prática de escuta e leitura de textos Linguagem oral Linguagem escrita Literários cordel, causos e similares texto dramático canção Literários conto novela romance crônica poema texto dramático De imprensa comentário radiofônico entrevista debate depoimento De imprensa notícia editorial artigo reportagem carta do leitor entrevista charge e tira De divulgação científica exposição seminário debate palestra De divulgação científica verbete enciclopédico (nota/artigo) relatório de experiências didático (textos, enunciados de questões) artigo Publicidade propaganda Publicidade propaganda Brasil (1998, p. 25). Quadro 18 – Gêneros privilegiados para a prática de escuta e leitura de textos Linguagem oral Linguagem escrita Literários texto dramático canção Literários conto crônica poema De imprensa notícia entrevista debate depoimento De imprensa notícia artigo carta do leitor entrevista De divulgação científica exposição seminário debate De divulgação científica relatório de experiências esquema e resumo de artigos ou verbetes de enciclopédia Fonte: Brasil (1998, p. 25). Lembre-se de que essa é apenas uma das possibilidades existentes de agrupamentos de gêneros, outras também podem ser propostas. Schneuwly e Dolz (2004), por exemplo, propõem como base para o trabalho com gêneros uma organização em cinco agrupamentos não estanques. 112 Unidade III • Gêneros da ordem do narrar: cujo domínio social é o da cultura literária ficcional (como contos de fadas, narrativas de suspense, aventura, ficção científica, fábulas, crônica literária etc.). • Gêneros da ordem do relatar: cujo domínio social é o da representação, pelo discurso, de experiências vividas, situadas no tempo (como diários, autobiografias, biografias, notícia etc.). • Gêneros da ordem do argumentar: cujo domínio social de comunicação é o da discussão de questões sociais controversas, visando a um posicionamento diante deles (como carta de leitor, carta de reclamação, editorial, debate regrado, resenhas críticas etc.). • Gêneros da ordem do expor: cujo domínio social é expor o conhecimento transmitido culturalmente de modo mais sistematizado, ou seja, apresenta textualmente diferentes saberes (como texto explicativo, verbete de dicionário, relato de experiência científica etc.). • Gêneros da ordem do instruir ou do prescrever: cujo domínio social engloba textos variados de instrução, regras e normas, visando à regulação mútua de ações (como manuais explicativos, bulas, regras de jogos, regulamentos, receitas etc.). Há vários gêneros orais e escritos que, em maior ou menor grau, utilizam a tipologia expositiva e que podem contribuir para o desenvolvimento da capacidade de expor ideias nos variados contextos sociais discursivos. Para Schneuwly e Dolz (2004), a tipologia expositiva se insere nas áreas sociais da comunicação como a apresentação em forma de texto de formas dos saberes diversificadas. Por isso, é importante que você apresente a seus alunos um conjunto de textos expositivos para que possam comentar suas impressões e emitir suas opiniões. Lembrete A exposição oral e/ou escrita é um instrumento que possibilita ao ouvinte/leitor e ao expositor aprender sobre vários conteúdos e desenvolver estratégias comunicativas interacionais. Ainda segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998, p. 25), apropriar-se de um gênero e relacioná-lo a seus contextos de produção é uma forma de garantir parte do caminho na direção do domínio de seu uso, seja para atividades de compreensão, seja para atividades de produção, seja para atividades de análise linguística; dessa forma, é certo que os gêneros podem ser um dos articuladores de programas curriculares. A apresentação do gênero na escola, no entanto, deve privilegiar a ideia de tê-lo como objeto e instrumento de trabalho que muito pode favorecer o desenvolvimento da linguagem. Trata-se de colocar os alunos em situações de comunicação as mais próximas possíveis de verdadeiras situações de interação comunicativa, garantindo que façam 113 GÊNEROS TEXTUAIS sentido para eles, e, assim, possam melhor dominá-las como realmente são, mesmo reconhecendo que o trabalho com um gênero qualquer na escola faz dele um gênero escolar. Uma proposta escolar para o ensino de gêneros somente terá sentido se as mais variadas ocasiões de escrita e de fala oferecidas aos alunos não se transformarem, com o tempo e o despreparo de professores (daí a importância de sua atualização), num objeto de ensino sistemático. Assim, criar contextos de produção precisos, bem como elaborar atividades ou exercícios variados, permitirá que os alunos se apropriem das noções, das técnicas e dos instrumentos necessários ao desenvolvimento de suas capacidades de expressão oral e escrita em situações de comunicação diversas. A noção de gênero, para Schneuwly e Dolz (2004, p. 177), permite articular a finalidade geral de aprender a se comunicar, utilizando-se, para tanto, dos meios linguísticos característicos das situações que tornam possível a comunicação. Nós podemos verificar as características dos gêneros nas situações de comunicação se considerarmos as condições de produção do discurso, os objetivos das situações de comunicação e a adequação do tema a ser desenvolvido. • Condições de produção do discurso: os lugares sociais determinam os contextos. Os enunciadores desempenham papéis, ou seja, os participantes da situação comunicativa: um eu que fala para um você num tempo (agora) e num espaço (lugar). • Objetivos das situações de comunicação: o que dizer, para quem dizer, quando dizer e como dizer dependem do objetivo que se quer alcançar. • Adequação do tema a ser desenvolvido: nos remete para a consideração da organização textual e do vocabulário, que devemos escolher em função do tema a ser tratado. Quando o gênero textual entra no contexto escolar, ele sofre alterações por causa da mudança de finalidade. Por exemplo, um texto jornalístico tem sua condição de produção dentro de um contexto da informação do acontecimento, o fato noticioso em ocorrência no cotidiano, mas, quando o mesmo texto jornalístico é utilizado como atividade escolar, além de instrumento de informação, ele passa a ser um instrumento de aprendizagem. Para Rojo e Cordeiro (2007), os gêneros utilizados na escola e incorporados dos aspectos didáticos e pedagógicos são variantes dos gêneros de referência, pois conseguiram ser acessíveis aos alunos. 114 Unidade III Alguns livros didáticos de portuguêstêm apresentado a noção de texto de forma mais ampla, ou seja, considerando a linguagem verbal, visual e a combinação de ambas. Os PCN influenciam a elaboração dos livros didáticos de língua portuguesa e de literatura, mas a novidade é a busca pela interdisciplinaridade. Os PCN vêm reforçar uma tendência de um ensino contextualizado, centrado no texto. No contexto atual de ensino, o livro didático de português pode ser considerado, se não como único material de ensino/aprendizagem em sala de aula, ao menos como o mais importante na maioria das escolas. Mesmo em uma época tão tecnológica, o material didático continua sendo importante. Os gêneros textuais são práticas sócio-históricas que se constituem como ações para agir sobre o mundo e falar sobre ele, formalizando-o de algum modo. Por serem fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social e, portanto, fruto do trabalho coletivo, formas de ação social, modelos comunicativos e eventos textuais, os gêneros textuais apresentam características comunicativas, cognitivas e linguísticas que permeiam a atuação dos indivíduos em sociedade e que têm por objetivo formalizar a enunciação do dizer. O gênero é, enfim, um evento comunicativo caracterizado por um conjunto de propósitos identificados e mutuamente entendidos pelos membros da comunidade em que ocorrem. Os gêneros constituem ações de linguagem que requerem de nós, enquanto produtores de texto, capacidade de escolha para que possamos selecionar, entre os gêneros em circulação, os mais adequados à situação de comunicação. Sendo assim, os gêneros textuais são considerados formas verbais orais, formas verbais escritas e formas não verbais visuais que resultam de enunciados produzidos em sociedade e que, na área do ensino e da aprendizagem, podem ser utilizados como acesso ao letramento. O gênero textual reflete todo o processo social envolvido na comunicação. A tendência atual é ver um contínuo entre texto e discurso como atividade discursiva, uma vez que o gênero é um instrumento de interação social que dá forma à estrutura, representa a atividade, materializa-a e se constitui como espaço de transformação e de possibilidades. É importante lembrar que, nos textos e por meio deles, os indivíduos produzem, reproduzem e modificam práticas sociais. Os gêneros podem ser reunidos em função das regularidades linguísticas. Adotando-se tal critério, percebemos que certas distinções tipológicas indicam o funcionamento dos gêneros em situações de comunicação diversas. Para Schneuwly e Dolz (2004), o ensino do gênero textual deve ser adaptado, pois apresenta características diferentes quando fazemos um relato ou escrevemos instruções. Desse modo, apresentam alguns textos agrupados por aspectos tipológicos, conforme você pode ver na tabela a seguir. 115 GÊNEROS TEXTUAIS Quadro 19 – Textos e aspectos tipológicos Domínios sociais de comunicação Capacidades de linguagem dominantes Exemplos de gêneros orais e escritos Cultura literária Narrar Imitação da ação através da criação de intriga Conto maravilhoso Fábula Lenda Narrativa de aventura Narrativa de ficção científica Narrativa de enigma Novela fantástica Conto parodiado Documentação e memorização de ações humanas Relatar Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo Relato de experiência vivida Relato de viagem Testemunho Currículo Notícia Reportagem Crônica esportiva Ensaio biográfico Discussão de problemas sociais Argumentar Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição Texto de opinião Diálogo argumentativo Carta do leitor Carta de reclamação Debate regrado Discurso de defesa (advogado) Discurso de acusação (advogado) Transmissão e construção de saberes Expor Apresentação textual de diferentes formas de saberes Seminário Conferência Artigo Verbete de enciclopédia Entrevista de especialista Tomada de notas Resumo de textos “expositivos” ou explicativos Relatório científico Relato de experiência cientifica Instruções e prescrições Descrever ações Regulação mútua de comportamentos Instruções de montagem Receita Regulamento Regras de jogo Instruções de uso Instruções Adaptado de: Rojo e Cordeiro (2007, p. 121). Os agrupamentos sugeridos por Schneuwly e Dolz (2004), por meio dos aspectos tipológicos, não são fixos, pois não se pode fazer uma classificação total e absoluta, mas levam em conta a diversidade e a especificidade dos gêneros. Para uma focalização do ensino de gêneros, é necessário considerar os limites propostos pela situação de aprendizagem. Desse modo, é importante estabelecer a organização e progressão das tipologias em funcionamento nos diversos gêneros, pois essa organização e essa progressão estabelecem transferências e adaptações dos gêneros em intertextualidade. 116 Unidade III Independentemente da definição adotada, você deve ter percebido que cada gênero tem suas especificidades e necessita de observação das particularidades que incorporam novas perspectivas. Parece que apenas a partir da construção de novos instrumentos podemos construir outros ainda mais complexos. É esse o desafio com o qual se depara, atualmente, o ensino da língua portuguesa. Exemplo de aplicação A reflexão é uma proposta de Rojo e Barbosa (2015). Considerando que o elemento mais importante do texto no gênero é seu tema – único e irrepetível, responsável pelos efeitos de sentido do texto – e que os gêneros permitem mecanismos vários de flexibilização em sua forma de composição e estilo, que impacto, em sua opinião, essas perspectivas terão no ensino de leitura e produção de textos na escola? Para ajudar a responder a essa questão, leia o texto de Rojo, elaborado para o Programa Salto para o Futuro (TVEscola/TVBrasil) e posteriormente cedido à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Letramento e diversidade textual “Ler é melhor que estudar.” Essa frase de Ziraldo, já famosa, virou button e foi carregada do lado esquerdo do peito por parte de nossa juventude. Ela nos remete à ineficiência da escola e à sua distância em relação às práticas sociais significativas. Um depoimento da cantora Miúcha, irmã mais velha de Chico Buarque e filha de Sérgio Buarque de Hollanda, historiador de Raízes do Brasil, pode nos esclarecer a razão da unanimidade desta parcela da juventude sobre como se aprende a ler fora da escola: Sua [de Sérgio] influência sobre Chico e os outros filhos se dava de forma sutil. As paredes da casa da família eram cobertas por livros, e o pai incentivava a leitura através de desafios. “Ele não ficava falando para a gente ler”, conta Miúcha. “Mas era um apaixonado por Dostoiévski, conversava muito sobre ele. Nós todos líamos. E tinha Proust, aquela edição de 17 volumes. Ele dizia, desafiando e instigando: “Proust é muito interessante, vocês não vão conseguir ler, é muito grande. Ah, mas se vocês soubessem como era madame Vedurin...” Aí todo mundo pegava para ler. (Regina Zappa, Chico Buarque, p. 93-94) “Ler é melhor que estudar”. Essa é uma opinião quase unânime e compartilhada pela população letrada e pertencente às elites intelectuais brasileiras: intelectuais, professores do ensino fundamental, médio e universitário, jornalistas, comunicadores da mídia. No entanto, a maior parcela de nossa população, embora hoje possa estudar, não chega a ler. A escolarização, no caso da sociedade brasileira, não leva à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, às vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das elites, no início de um novo milênio. Nesse sentido, a elaboração e publicação dos referenciais curriculares nacionais (PCN) representam um avanço considerável nas políticas educacionais brasileiras em geral e, em particular, no que se refere aos PCN de língua portuguesa, nas políticas linguísticas contra o iletrismo e em favor da cidadania crítica e consciente. 117 GÊNEROS TEXTUAIS Um avanço nas políticas educacionais, na medida emque são estabelecidos referenciais nacionais – respeitada a pluralidade cultural do país –, que são relativamente consensuais, sobre o ensino e a educação desejáveis para os jovens brasileiros. Um avanço nas políticas linguísticas contra o iletrismo e em favor da cidadania crítica e consciente, na medida em que são preconizadas práticas e atividades escolares mais aproximadas das práticas sociais letradas e cidadãs. Um dos pontos relevantes e inovadores, na proposta dos PCN, relaciona-se à visão de leitor/produtor de textos que, em muitos pontos, implica revisões conceituais e práticas por parte das escolas e professores. A visão de leitor/produtor de textos presente nos PCN é a de um usuário eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em práticas sociais e em atividades de linguagem letradas que, em diferentes situações comunicativas, utiliza-se dos gêneros do discurso para construir ou reconstruir os sentidos de textos que lê ou produz. Essa visão é bastante diferente da visão corrente do leitor/escrevente como aquele que domina o código escrito para decifrar ou cifrar palavras, frases e textos e, mesmo, daquele leitor/escrevente que, entre os seus conhecimentos de mundo, abriga, na memória de longo prazo, as estruturas gráficas, lexicais, frasais, textuais, esquemáticas necessárias para compreender e produzir, estrategicamente, textos com variadas metas comunicativas Práticas de uso e atividades de linguagem Os objetivos gerais de língua portuguesa para o Ensino Fundamental (PCN, p. 32) situam, como principal objetivo do ensino de língua portuguesa, levar o aluno a “utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condições de produção do discurso”. Já aqui, desloca-se a visão corrente de ensino de língua portuguesa como objetivando a construção de conhecimentos e conceitos sobre a língua e da capacidade de análise linguística em favor de uma visão comunicativa ou enunciativa, em que se trata de ensinar usos da linguagem ao invés de análises da língua. Estes usos são, desde o início, qualificados como usos da linguagem oral e escrita, na compreensão e produção de textos socialmente situados, com finalidades comunicativas e ocorrendo em situações de produção específicas do discurso. Trata-se, portanto, de práticas sociais de uso da linguagem, que podem também ser vistas como atividades de linguagem (SCHNEUWLY; DOLZ, 1997). Neste sentido, práticas de linguagem são uma noção de ordem social, que implica a inserção dos interlocutores em determinados contextos ou situações de produção, a partir dos quais, tendo a linguagem como mediadora, os agentes sociais estabelecem diferentes tipos de interação e de interlocução comunicativa, visando diferentes finalidades comunicativas e a partir de diversificados lugares enunciativos. Claro está, estes agentes sociais dependem de suas experiências de vida, de seu conhecimento acumulado a respeito de tais práticas, para poderem enunciar. 118 Unidade III O desenvolvimento ou aprendizagem, assim vistos, são sempre um processo de apropriação das experiências acumuladas pela sociedade no curso de sua história (práticas sociais e atividades). A apropriação é, por sua vez, um processo de aprendizagem que conduz à interiorização de uma prática social. Assim é que os referenciais enfocam o ensino escolar de língua materna como um processo de continuidade da apropriação de práticas sociais em circulação em espaços públicos e formais. E estas práticas sociais circulam na forma de textos orais ou escritos. Textos (enunciados) e gêneros Há já uma tradição estabelecida na reflexão sobre o ensino de língua portuguesa na escola, segundo a qual a unidade mais relevante de ensino é o texto, que não deve se dar como pretexto para outras atividades de ensino sobre a língua ou sobre a escrita (alfabetização, ortografização), mas que se constitui em objeto de estudo, por si mesmo. Mas os novos referenciais inovam também na definição do que deverá ser estudado com respeito aos textos: “Ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se possa dispor tanto de uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado(...) ” (PCN, p. 48) “Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino” (PCN, p. 23). Ou seja, para além de se estudar o texto em suas propriedades formais e estilísticas particulares, o texto é visto como um exemplar de gênero do discurso e é por meio da exploração das propriedades temáticas, formais e estilísticas comuns e recorrentes num conjunto de textos pertencentes a um certo gênero que se pode chegar à apropriação destas formas estáveis de enunciado. Os gêneros podem ser considerados como instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação (SCHNEUWLY; DOLZ, 1997; DOLZ; SCHNEUWLY, 1996). Trata-se de formas relativamente estáveis tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem. Assim, os gêneros, enquanto formas historicamente cristalizadas nas práticas sociais, fazem a mediação entre a prática social ela própria e as atividades de linguagem dos indivíduos. Os locutores sempre reconhecem um evento comunicativo, uma prática de linguagem, como instância de um gênero (a ação de telefonar como um telefonema; a ação de ensinar na escola como uma aula; a ação de escrever um texto como este para um programa de formação de professores como um artigo de divulgação e assim por diante). O gênero funciona, então, como um modelo comum, como uma representação integrante que determina um horizonte de expectativas para os membros de uma comunidade confrontados às mesmas práticas de linguagem. Os gêneros, portanto, intermedeiam e integram as práticas às atividades de linguagem. São referências fundamentais para a construção das práticas de linguagem. Como tal, do ponto de vista da aprendizagem escolar, os gêneros podem ser considerados como megainstrumentos (SCHNEUWLY, 1994) que fornecem suporte para as atividades de linguagem nas situações de comunicação e que funcionam como referências para os aprendizes. 119 GÊNEROS TEXTUAIS As situações comunicativas Para Volochinov (1929, p. 112), “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata” [ênfase do autor]. São elementos essenciais desta situação social mais imediata os parceiros da interlocução: o locutor e seu interlocutor, ou horizonte/auditório social, ao qual a palavra do locutor se dirige. São as relações sociais, institucionais e interpessoais desta parceria, vistas a partir do foco da apreciação valorativa do locutor, que determinam muitos aspectos temáticos, composicionais e estilísticos do texto ou discurso. Fonte: Rojo (2004, p. 104-108). 7.1 Dissertação: tipologia ou gênero? Fazem parte do dia a dia das escolas várias produções de gêneros responsáveis pelo desenvolvimento das práticas didáticas, e muitas delas são objeto de ensino. Nessa perspectiva, seguimos o esclarecimento de Souza (2003), para quem a dissertação é um gênero textual pertencente ao domínio discursivo escolar. Esse gênero só existe na escola, criado para o ensino de produção escrita argumentativa com a finalidade de desenvolver a competência linguística e discursiva do aluno. É um fenômeno histórico e social em que se concretiza a língua, tomado como produto da interação verbal. Seu caráter é dialógico e dialético,ou seja, a dissertação é dialética devido à sua natureza argumentativa e dialógica por pressupor um interlocutor. Segundo a classificação bakhtiniana, esse gênero classifica-se como secundário, uma vez que concebe certo grau de complexidade e orientação para a sua produção. Sua unidade implica uma estrutura composicional, conteúdo temático e estilo individual impresso pelo aluno-produtor. Na produção do gênero dissertação, três características sociointeracionistas estão envolvidas: o contexto de produção, o plano discursivo e o plano das propriedades linguístico-discursivas. O contexto de produção envolve um contexto físico, como o lugar da produção, momento de produção, autor e leitor, um contexto social, com normas, valores, regras e, também, um mundo subjetivo, em que os interlocutores criam uma imagem de si mesmos. O conteúdo temático reflete o mundo subjetivo e social do produtor, explicitando o conhecimento armazenado e organizado na memória do aluno. No caso da dissertação, o contexto abrange seu produtor, que é um indivíduo matriculado na instituição de ensino. A escola é o lugar social de promoção de interação e seu objetivo é desenvolver a competência intelectual do aluno. A posição de produtor no contexto é ocupada pelo aluno, cujo papel é expressar suas ideias e defendê-las por meio de argumentos fundamentados em suas próprias impressões do mundo. A posição de leitor cabe ao professor, o qual possui formação acadêmica e está no papel de ensinar, e aos colegas de 120 Unidade III turma, que podem contribuir para o aperfeiçoamento do texto. Nessa interação, o objetivo é conseguir a adesão do leitor ao ponto de vista do produtor. Pl an o da s itu aç ão d e aç ão d e lin gu ag em Contexto de produção Contexto físico: lugar de produção: instituição de ensino. Momento de produção: hora/aula destinada à produção textual. Produtor: indivíduo que escreveu o texto. Leitor: indivíduo com formação acadêmica voltada para o ensino de língua materna, empregado da instituição, bem como os pares que formam a turma da qual o produtor faz parte. Contexto sociosubjetivo: lugar social: a escola como comunidade promotora de interação e cujo objetivo é desenvolver a competência intelectual do aluno. Papel social do produtor: aluno expressa sua ideia e a defende por meio de argumentos fundamentados nas impressões do mundo. Posição social do leitor: o professor desempenha o papel de leitor e atua como mediador no desenvolvimento da competência comunicativa do aluno. Os colegas de sala são também leitores e promotores da interação. Objetivo: o objetivo do gênero dissertação é obter a adesão do leitor ao ponto de vista do produtor sobre determinado tema. Figura 19 – Plano da situação de ação da linguagem O plano discursivo situa a dissertação no mundo do expor e na tipologia argumentação, cujo conteúdo temático é delimitado ao mundo real do produtor e a progressão temática resulta de um raciocínio lógico ou encadeamento de ideias progressivas. Os processos discursivos revelam o momento histórico e social do aluno, relacionado à ideologia das instituições sociais com a qual esse aluno interage. A concretização do gênero dissertação se dá por meio da relação entre língua e história, formações ideológicas e materialização da língua. Quadro 20 – Plano discursivo • O gênero dissertação se situa no mundo do expor autônomo e desenvolve um discurso teórico. • Sua estrutura composicional (introdução, desenvolvimento e conclusão) ressalta-se pelo propósito específico de cada uma de suas partes. • O tema desenvolvido faz parte do mundo real do aluno-produtor. • A progressão temática é processada a partir de um raciocínio lógico ou encadeamento de ideias expressas verbalmente, de forma que uma ideia implique, necessariamente, o surgimento da ideia seguinte. • O objeto temático detém autonomia completa dos parâmetros da situação de ação de linguagem (aluno-produtor, interlocutor eventual). • Nenhuma unidade linguística refere-se ao aluno-produtor nem a algum espaço-tempo de produção. • O leitor apreende as representações dos mundos formais, a visão de mundo, as crenças e os valores do aluno-produtor e utiliza-os como parâmetro de avaliação, para a adesão ao ponto de vista defendido pelo produtor. • O aluno-produtor deverá demonstrar conhecimentos dos fatos, apresentação de provas e domínio dos argumentos que passa a apresentar. • O estilo individual de cada aluno-produtor também é verificado, bem como o tipo de relação social existente entre os interlocutores. • Os processos discursivos revelam tanto o momento histórico-social vivenciado pelo aluno-produtor quanto a manifestação da ideologia das instituições sociais com a qual esse agente interage. • A percepção de distintos aspectos discursivos dos mundos formais, a visão de mundo, as crenças e os valores que cada agente-produtor internalizou sobre o tema proposto é possibilitada pela proposta de um mesmo tema a vários alunos. Adaptado de: Souza (2003, p. 174). • 121 GÊNEROS TEXTUAIS Por fim, o plano das propriedades linguístico-discursivas da dissertação diz respeito ao discurso teórico, apresentando fraca densidade verbal e elevada densidade sintagmática com frases declarativas próprias do tipo argumentativo. As formas verbais no presente têm valor atemporal a fim de indicar a pretensão do autor em fazer afirmações de valor universal, as quais valem, então, não apenas para o presente, mas para todos os momentos e todas as sociedades. Souza (2003) esclarece que, para que a dissertação se realize como texto argumentativo, deve haver uma estrutura específica, em que exista: • uma relação entre argumentos e uma dada conclusão, além do verbo ser (ou equivalente) no texto; • presença de verbos que põem em relação a causa e o efeito (causar, originar, ocasionar, suscitar, motivar etc.) e/ou alguns verbos dicendi (afirmar, declarar, considerar, implicar, alegar, assegurar etc.); • determinados tipos de frases para adequação dos argumentos, tais como a asserção ou a interrogação. Nunca o imperativo. Além disso, esse gênero precisa ser escrito na variante padrão, atentando-se às normas do uso da língua materna. O aluno recorre, então, à competência linguística. Quadro 21 – Plano das propriedades linguístico-discursivas • Ocorrência de fraca densidade verbal e elevada densidade sintagmática, predominando as frases declarativas. • Predominância das formas verbais no presente com valor atemporal, indicando a pretensão do aluno em fazer afirmações de valor universal. • Emprego da modalidade culta da língua escrita. • Presença de formas da primeira pessoa do plural, que remetam aos participantes da interação verbal, mas não aos interlocutores da interação em curso. • Presença de organizadores textuais com valor lógico-argumentativo (como, embora, mas, de outro lado, ainda). Adaptado de: Souza (2003, p. 180). São empregados também na dissertação os mecanismos de textualização, dos quais passaremos a falar a partir de agora. Mecanismos de conexão: marcam as articulações da progressão temática, como mostra o quadro a seguir. 122 Unidade III Quadro 22 – Ocorrências de mecanismos de conexão em dissertações Funções Unidades linguísticas Exemplos Segmentação: delimita partes do discurso (teórico, interativo, relato interativo ou narração). Depois disso, assim, desse modo, sem dúvida, inevitavelmente, atualmente etc. Votando estamos simultaneamente governando o nosso país. Atualmente estamos vivenciando acontecimentos absurdos aos nossos olhos. Demarcação ou balizamento: demarca as fases de uma sequência. Primeiramente, em primeiro lugar, entretanto, no entanto, além disso, por outro lado, mas também etc. Além disso, os cobradores, na sua maioria, desrespeitam os passageiros. Empacotamento: mostra da interligação das frases à estrutura que constitui a fase de uma sequência. Então, finalmente, de fato etc. Assim ouve-se bastante falar desseproblema e não se consegue resolvê-lo; então vem a ideia de que o homem já nasce com a tendência à corrupção. Encaixamento: estabelece relação de dependência entre duas frases gráficas (subord.) Ante de, embora, desde que, porque etc. ... já a escravidão, embora ainda existente, é ilegal em grande parte do mundo. Ligação: articula duas ou mais frases sintáticas em uma só frase gráfica (justaposição e coordenação). E, bem como, nem, isto é, ou seja etc. ... mundo não vai evoluir de forma alguma, e as pessoas vão continuar a se autodestruir por coisas que não valem a pena. Adaptado de: Souza (2003, p. 179). Observação Quando um elemento A é retomado pelo elemento B temos referência anafórica. Por exemplo, em “os valores da sociedade são outros: ela prefere justiça a perdão”, a palavra “ela” retoma “sociedade”. Mecanismos de coesão nominal: articulam argumentos de caráter mais abstrato por meio de anáforas nominais. Quadro 23 – Ocorrências de mecanismos de coesão nominal em dissertações Funções Unidades linguísticas Exemplos Introdução: inserção da unidade-fonte, origem da cadeia anafórica. Nomes e sintagmas nominais. O abuso sexual é sempre um ato covarde de violência, principalmente, quando as vítimas são crianças e adolescentes. O Brasil apresenta a décima economia do mundo, mas esconde a degradante situação de pobreza. Retomada: reformulação da unidade fonte no decorrer do texto. Aspectos nominais, anáforas pronominais, elipses. A desigualdade social no Brasil e no mundo é muito grande. Por causa dela as pessoas ofendem umas às outras. Essas pessoas precisam aprender que cor da pele não revela cor da alma. Fonte: Souza (2003, p. 179). 123 GÊNEROS TEXTUAIS Mecanismos de coesão verbal: explicitam as relações de continuidade, descontinuidade e/ou oposição existente entre as significações expressas pelo verbo. Quadro 24 – Ocorrências de mecanismos de coesão verbal em dissertações Funções Tempos verbais Exemplos Temporalidade primária: relacionada com um dos eixos de referência ou com a duração associada ao eixo de produção. Presente com valor atemporal. O nosso Brasil precisa de um rumo, e este rumo quem garante somos nós, começando pelo voto. Temporalidade secundária: situa um processo em relação ao outro. Presente, pretérito perfeito, futuro do presente para falar de fatos numa temporalidade. O escândalo dos padres pedófilos fez tremer as bases do sistema em voga na Igreja Católica. A pedofilia não é um crime a ser comunicado, mas sim um pecado a ser confessado. Adaptado de: Souza (2003, p. 179). Enfim, não cabe mais a classificação tipológica: narração, descrição e dissertação. Consolida-se a concepção de dissertação como gênero textual situado na esfera discursiva escolar com propósitos comunicativos e pedagógicos. Exemplo de aplicação Leia o texto seguinte e, depois da leitura, responda: até que ponto o texto lido insere-se no gênero dissertação? Internet: ponte ou muro entre as pessoas? A internet é um grande passo rumo aos avanços tecnológicos do século XXI. Ela é cada vez mais utilizada nos quatro cantos do mundo por pessoas que têm a intenção de se informar, manter contanto com os semelhantes e facilitar sua vida. Para isso, utilizam e-mails, blogs, chats, MSN, sites de relacionamento, entre outros meios de aproximação on-line. Muitos indivíduos já se conheceram pela internet; amigos, profissionais e estudantes com interesses em comum, e até mesmo casais. Mas até que ponto essa comunicação virtual é válida? Ela estreita os laços afetivos ou extingue? É evidente que o uso da internet, de certa forma, afastou os seres humanos no que diz respeito ao contato físico. Se antes telefonávamos e ouvíamos a voz do outro, hoje é mais prático e financeiramente mais em conta enviar um e-mail ou uma mensagem instantânea via msn, com direito até a um beijo virtual e a um aceno, caso os usuários façam uso de webcams. Cartas e telegramas também são quase lembranças do passado, bem como o carinho físico, o beijo e o abraço, que acabam, muitas vezes, ficando para trás, devido à comodidade do meio virtual e à falta de tempo. 124 Unidade III Contudo quantos filhos que estão distantes de seus pais se comunicam via internet? Quantos amigos se lembram de você, mandando e-mails animados, com belas mensagens? Quantas vezes seu namorado lhe envia um romântico “te amo” pelo MSN naqueles dias em que o encontro é quase impossível? Para manter contato e mostrar que lembramos de alguém, temos saudades, gostamos muito daquela pessoa, é que utilizamos a internet. Ela estreita laços afetivos e facilita nossas vidas, pois nem sempre é possível estar na companhia física daqueles que amamos. Que importância tem se o casal se conheceu na rede, trocou ideias, falou de sentimentos que, talvez ao vivo, não tivesse coragem de expressar e se apaixonou? Que diferença faz se encontramos uma amiga maravilhosa trocando scraps pelo Orkut? Se há empatia e um bom relacionamento, não será a distância que impedirá que uma relação exista. Além do mais, se nos comunicamos virtualmente com amigos que moram na nossa cidade, isso não dispensará que nos encontremos. Ao contrário, ajudará a fortalecer a amizade, que será mantida diariamente, afinal, enquanto estamos num escritório diante de um computador, não custa dar uma pausa e abrir a caixa de entrada de e-mails. Quem resiste? Além do mais, faz bem saber que se é amado e querido por aqueles que estão à nossa volta, e nem sempre estão presentes fisicamente. A internet veio para estreitar os laços afetivos, e não para extingui-los, uma vez que a utilizamos para demonstrar nossos sentimentos por alguém. O importante é ter bom senso para utilizá-la, não extrapolando e passando horas diante do computador, pois não podemos fazer com que ela substitua o calor humano que cada um tem para oferecer. Fonte: David (s.d.) 7.1.1 Escola conectada: gêneros multimidiáticos Caro aluno, você sabe o que é um fanclipe? Já produziu algum? Você tem hábito de acessar YouTube? O que costuma ver nesse mundo virtual? Já editou vídeos para videoblog? Fanclipe, vídeos virtuais, fanfics e tantos outros gêneros textuais emergentes circulam na nossa sociedade. Até que ponto as escolas ajudam na produção e divulgação de tais gêneros? Esses gêneros estão relacionados à profusão de linguagem, meios, multimídias, suportes que trazem a necessidade de esclarecimentos sobre tal evolução terminológica. Assim, Tanzi Neto et al. (apud ROJO, 2013, p. 141) apresentam o quadro panorâmico disposto a seguir. 125 GÊNEROS TEXTUAIS Quadro 25 – Terminologia Termo Entendimento Modalidade Representações das linguagens Multimodalidade Uma das características dos sistemas midiáticos Multimodal: o mesmo conteúdo pode ser encontrado em múltiplas representações Mídia Década de 1980: meios de comunicação de massa; meios de transmissão de notícias e informações: jornais, rádio, revistas e televisão Década de 1990: sentido alastrado (qualquer meio de comunicação de massas) Década de 2000: tecnologias, equipamentos e linguagens que neles circulam, “cultura das mídias” Dias atuais: o emprego se generalizou, refere-se também aos processos de comunicação mediados por computador Rubrica “mídia”: qualquer meio de comunicação Cultura oral, escrita, impressa, cultura de massa, cultura das mídias e cibercultura Multimídia Misturas híbridas entre as mídias Hipertexto Textos em ambiente de hipermídia Texto escrito absorvido por processos de digitalização Vínculos não lineares entre fragmentos textuais associativos, interligados por conexões conceituais (campos), indicativas (chaves), ou por metáforas visuais (ícones) que remetem, ao clicar de um botão, de um percurso de leitura a outro, em qualquer ponto da informação ou para diversas mensagens, em cascatas simultâneas e interconectadas Características: alinearidade e interatividade Hipermídia Misturas entre sistemas de signos diversos e linguagensdistintas, configuradas em estruturas hipertextuais Ambientes de hipermídia: coabitação do hipertexto com os multimeios, misturas de sons, ruídos, imagens de todos os tipos, fixas e animadas, configurando os ambientes de hipermídia Extensão do hipertexto: combinação de hipertexto com multimídias, multilinguagens Integração de dados, textos, imagens e sons em um único ambiente digital Os gêneros são híbridos e complexos devido aos diversos suportes, usos dos sistemas semióticos, de design, entre outros. Multimodal é um conjunto de sistemas de significação integrados nos textos multimídia eletrônico. Envolve no modo de significação: • design linguístico; • design sonoro; • design espacial; • design visual; • design gestual. 126 Unidade III O design, por sua vez, abrange determinados elementos: • design linguístico: inclui delivery, vocabulário e metáfora, modalidade, transitividade, nominalização de processos, estrutura da informação, relações de coerência local e relações de coerência global; • design sonoro: constitui-se de música e efeitos sonoros, entre outros da linguagem; • design espacial: constitui-se de ecossistema e significação geográfica, significação arquitetônica e outros elementos relativos; • design gestual: constitui-se de comportamento, corpo físico, gesto, sensualidade, sentimentos e afetos, cinestesia, proxêmica etc.; • design visual: envolve cores, perspectiva, vetores, figura e fundo etc. Entre os gêneros multimodais e cada vez mais híbridos, o vid está assumindo papel fundamental na cultura dos jovens, pois permite a estes tornarem-se agentes culturais como leitores e produtores. Vid é um gênero audiovisual produzido, distribuído e apreciado na internet (YouTube, Vimeo, Daylimotion, Facebook etc.). No entanto, é comumente marginalizado e excluído do ambiente escolar. Assim, os vids circulam entre o culturalmente valorizado e o desvalorizado, desqualificados também pelo mercado fonográfico e audiovisual. Em defesa de uma maior presença dos vids em sala de aula, Rojo e Moura (BUNZEN; MENDONÇA, 2013) ressaltam a necessidade de se apropriar de mais informações sobre esse gênero. O vid tem como objetivo remixar (misturar) diferentes materiais de origem diversa a fim de criar uma nova narrativa, geralmente comentando ou criticando os próprios materiais de origem. Em outros termos, é uma leitura subversiva do cânone. Esses estudiosos levantaram cinco grandes redes sociais que têm os vids como gênero fundamental: • anime: AMV; • música: songvids ou mashups; • games: machinima; • séries televisas, filmes de ficção científica e terror: fanvids; • político: political remix. Um dos vids que se tornou famoso em 2004, circulando em diversas mídias no mundo, foi o political remix “Imagine This”, de John Callaghan (Cal-TV). Nesse remix, Cal-TV faz George Bush declamar a música de John Lennon Imagine durante a campanha presidencial americana em que Bush foi reeleito. 127 GÊNEROS TEXTUAIS O remix faz uma pesada crítica à política de armamento e de intervenção de Bush e, ao mesmo tempo, é um songvid, com base na música de Lennon. Devido à impossibilidade de a escola abordar todos os gêneros da hipermodernidade, Rojo e Barbosa (2015) propõem quatro esferas importantes na vida cultural da nossa sociedade para a montagem de um currículo que atenda ao ensino de gêneros diversos: • a esfera jornalística, que é responsável pelo controle e circulação de informações; • a esfera da divulgação da ciência (inclusive na escola); • a esfera da participação na vida pública (produção e consumo, esfera política etc.); • a esfera artística, por meio da qual a cultura e a arte são produzidas. A esfera jornalística configura-se por: • Temas: — Empresas jornalísticas e o jornalismo 3.0. — Prós e contras da ausência de editoriais. — Informação e opinião, os processos da web 2.0 e as redes sociais. — Web 2.0 e os diferentes papéis exercidos pelos participantes da esfera. — Quantidade versus qualidade de informação (confiabilidade, profundidade, nível de cobertura). — Redistribuição simples versus redistribuição qualificada. • Processos/ ações: — Seguir/ser seguido; curtir, comentar, compartilhar, redistribuir; remixar; clipar; curar. Quadro 26 Hipermídia de base escrita Hipermídia de base em áudio Hipermídia de base em vídeo Hipermídia de base em foto Hipermídia de base em design Blog, carta, comentário de leitor Programa de rádio Crônica visual Charge digital Revista digital Documentário Fotorreportagem Jornal de TV Álbum noticioso Meme Reportagem multimídia Fonte: Rojo e Barbosa (2015, p. 142). 128 Unidade III • Dimensões da formação: — Usuário funcional, criador de sentidos, analista crítico, transformador na perspectiva do produtor e do leitor/ouvinte/expectador. Quanto à esfera da vida pública (produção e consumo, esfera política etc.), verificamos: • Temas: — Usos político e comercial das redes sociais. — Novas formas de mobilização, manifestação e organização política. — Juventude e participação social. — As redes sociais e as mobilizações: “rolezinho”, flasmobs, manifestações. — Intervenções urbanas: performance, parkour, microrroteiro, grafite, pichação etc. — Anúncio publicitário, propaganda: - Impressa. - TV. - Rádio. - Digital. - Campanha publicitária etc. — Folhetos, flyers, guia. — Carta de reclamação, carta de solicitação, carta comercial, e-mails/mala direta, boletos e contas etc. — Propaganda eleitoral, panfleto, filipeta, programa de gestão, debate, assembleia, carta aberta, carta de protesto etc. • Processos/ações: — Seguir/ser seguido; curtir, comentar, compartilhar, redistribuir; remixar; clipar; curar. 129 GÊNEROS TEXTUAIS Quadro 27 Hipermídia de base escrita Hipermídia de base em áudio Hipermídia de base em vídeo Hipermídia de base em foto Hipermídia de base em design Projeto de intervenção Jingle Manifesto Mashup Meme Carta de leitor. Playlist comentada Vídeo-minuto Álbum fotográfico Microrroteiro Programa de rádio Miniconto-multimodal E-zine Fonte: Rojo e Barbosa (2015, p. 143). • Dimensões da formação: — Usuário funcional, criador de sentidos, analista crítico, transformador na perspectiva do produtor e do leitor/ouvinte/expectador. Por fim, a esfera artístico-literária configura-se: • Temas: — Cânone, cultura popular, cultura de massa e os hibridismos. — Prós e contras da ausência editoriais. — E-books, livros interativos e os leitores de livros digitais. — Redes sociais e a produção cultural. • Processos/ações: — Seguir/ser seguido; curtir, comentar, compartilhar, redistribuir; remixar; clipar; curar. Quadro 28 Hipermídia de base escrita Hipermídia de base em áudio Hipermídia de base em vídeo Hipermídia de base em foto Hipermídia de base em design Blog literário, comentário, resenha Canção Crônica visual Poema digital Revista digital Mashup Videoclipes Fotonovela Curta Narrativa colaborativa Microrroteiro Playlist comentada Programa de rádio Vídeo-minuto Álbum fotográfico Leitura dinâmica Novela radiofônica HQ digital Fanfic Documentário Miniconto-multimodal E-zine Fonte: Rojo e Barbosa (2015, p. 143). 130 Unidade III • Dimensões da formação: — Usuário funcional, criador de sentidos, analista crítico, transformador na perspectiva do produtor e do leitor/ouvinte/expectador. Saiba mais A seguir, uma breve lista de sites e ferramentas para trabalhos com gêneros multimodais, multimídias na escola: Revista interativa: SCOOPIT. Animação. [s.d.]. Disponível em: https://www.scoop.it/topic/ animação. Acesso em: 13 nov. 2020. Rede social de leitores: http://www.skoob.com.br Playlist feita no microblog Tumblr: http://trilhassonoras.tumblr.com. Exemplo de aplicação Exemplo 1 Selecione um conto de fadas tradicional e misture (remixe) o conto com imagem de gêneros do discurso científico (tais como gráficos, infográficos, mapas, plantas baixas etc.). Que efeitos você obtém? Exemplo2 Uma playlist comentada é produzida a partir de um critério de seleção de canções e conta com um texto de apresentação/descrição das músicas, além de comentários apreciativos sobre elas. a) Escolha uma das playlists a seguir e diga qual foi o critério de organização. Que tipo de informações sobre as canções são dadas? O que na canção é alvo de comentário/avaliação? http://releituramusical.tumblr.com http://trilhassonoras.tumblr.com 131 GÊNEROS TEXTUAIS http://cidadaodesdesempre.tumblr.com http://periferiaemdestaque.tumblr.com Agora, observe o quadro a seguir e responda ao que se pede. Quadro 29 Critério de organização Informações sobre os artistas/grupos e as canções Aspecto/elemento da canção que é alvo de comentário/avaliação Releitura musical Trilhas sonoras Cidadão desde sempre Periferia em destaque b) O que a produção de uma playlist comentada permite trabalhar em termos de ações, práticas e procedimentos próprios da web? c) Como a escola pode atuar na promoção da participação nesse gênero playlist, que funciona na web? Exemplo 3 Crie verbetes para os seguintes termos conforme seus conhecimentos (não é para copiar de dicionário etc.): anime music vídeo (AMV), fandom, fanfic fan film, fanzine, machinima, post, vid e wiki. 8 GÊNEROS DE MANIFESTAÇÃO POPULAR 8.1 Gênero de tradição oral: literatura de cordel Em nosso cotidiano, coexiste uma infinidade de textos – orais e escritos – que fazem parte do contexto social, os quais são utilizados conforme as nossas intenções comunicativas e necessidades de interação. Esse fato nos leva à consideração do gênero como uma forma de ação social. Assim, para cada prática social há uma prática discursiva. Portanto, no dia a dia, se tivermos que transmitir uma informação, teremos de observar primeiramente a quem se destina a mensagem e, a partir daí, elaborarmos o nosso texto de acordo com todos os elementos que constituem um gênero, qual é sua estrutura composicional, o conteúdo que deve e pode ser tratado, além do estilo (isto é, do modo de dizer). A partir daí, produziremos o texto, tendo em vista a prática discursiva à qual está relacionado, seguindo todos os critérios de coerção que o próprio gênero propicia; então, teremos condições de produzir adequadamente todo tipo de texto. Por outro lado, enquanto leitores, temos também expectativas que a coerção do gênero nos propõem e, dessa forma, atribuímos coerência (ou não) ao texto recebido por nós. Os gêneros funcionam como uma espécie de guias de comunicação, pelas quais produzimos e apreendemos informações, assim como interagimos por meio delas. 132 Unidade III Partindo da classificação de Bakhtin (em gêneros primários e gêneros secundários), alguns gêneros inscrevem-se no contexto de uma dada cultura desde suas origens. Trata-se dos gêneros especialmente ligados à tradição oral de uma cultura. É o que ocorre, por exemplo, com os mitos e com as lendas, gêneros que auxiliam na construção da identidade de um povo. Desse modo, Brandão (2012, p. 51) define mito como: narrativa dos tempos fabulosos ou heroicos, cheia de simbologias, geralmente ligada à cosmogonia e referente a deuses que encarnam as forças da natureza e os aspectos da condição humana; é a representação de fatos ou personagens reais, modificada pela imaginação popular e pela tradição. Pelo fato de obtermos pelo mito imagens que representam modelos de vida os quais devem ser adaptados ao tempo em que se vive, ele se torna um instrumento de ensino no tocante à sabedoria da vida. A autora destaca, ainda, a noção de inconsciente coletivo na interpretação dos mitos na linha junguiana, para a qual o inconsciente coletivo compreende a camada mais profunda da mente humana que constitui: parte da humanidade, do patrimônio existencial do ser, que se encontra presente nas nossas mentes individuais. Em outras palavras, é algo que pertence à humanidade em geral e que se atualiza em cada uma de nossas vidas particulares (BRANDÃO, 2012, p. 51). Nessa perspectiva junguiana, o mito nasce na interioridade psíquica e reflete-se na exterioridade cultural. Já a lenda é um gênero que teve origem no cristianismo, por tratar-se de histórias e de depoimentos sobre a vida de um santo relatados em festas solenes. Todavia, o uso mais comum do termo está associado ao conceito de saga, que, conforme as teorias sobre gênero, trata-se de: um relato referente ao passado, mais particularmente ao passado remoto, tal como se transmitiu de geração em geração, chegando a se consolidar enquanto tradição de histórias repletas de ingenuidade e transformadas pela faculdade poética da sensibilidade popular (BRANDÃO, 2012, p. 52). Os valores morais transmitidos por meio das lendas tornam-se educativos para a comunidade em que se inserem. Distingue-se, portanto, lenda de mito, tendo em vista ser este uma ação nitidamente personalizada, ao passo que a lenda apresenta o elemento coletivo. Nesse sentido, a lenda dá conta de explicar alguns elementos da natureza ao mesmo tempo que apresenta uma experiência de vida, a qual induz a maiores reflexões, em que prevalece uma moral, um ensinamento. 133 GÊNEROS TEXTUAIS Vale apresentar também o conceito de superstição, que, segundo Brandão (2012, p. 53): constitui uma espécie de desvio do sentimento de religiosidade que, com base no temor e na ignorância, induz à aceitação de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança em coisas ineficazes. Trata-se de crendice: apego exagerado a qualquer coisa, geralmente sem fundamentação, crença em presságios tirados de fatos puramente fortuitos. Como se pode observar, apesar de mito, lenda e superstição aparentarem-se, distinguem-se por suas peculiaridades. Entretanto, por se tratar de gêneros populares, de origem na tradição oral, acabam se aproximando no decorrer do tempo. Desse modo, os mitos aproximam-se das lendas por ambos compreenderem história miraculosa do sobrenatural e do que dele se aproxima. A superstição, (BRANDÃO, 2012, p. 53), pode muitas vezes ser fragmento de um velho mito e, como resultado dessa fragmentação do mito, as superstições se constroem com base na noção de “esquecimento” da unidade explicativa, tendo em consequência a entrada ou a presença de um novo componente que é o medo, o terror. Esses gêneros são úteis, partindo-se do princípio de que o indivíduo pode resgatar sua identidade cultural por meio deles. Outro gênero com tradição oral, além dos exemplificados aqui, é o cordel. Trata-se de uma narrativa oral, com origens medievais e populares. Dessa origem, o cordel mantém uma função social educativa: de ensinamentos e aconselhamento. O cordel passou a ser considerado literatura e, entre suas características, constam as designadas a seguir. Marcas formais do poema de cordel: • estrofe de seis versos (sextilha); • verso setessilábico; • estrofes com quatro versos (quadras); • acróstico (na última estrofe). Gêneros: • pelejas; • romances históricos e de aventuras; 134 Unidade III • histórias de amor; • narrativas de amor; • narrativas sensacionais. Classificação dos textos segundo o número de páginas: • romance (24, 32, 48 ou 64); • folheto (8, 16 ou 4); • folha volante (avulsa). Estrutura cíclica da narrativa: • situação inicial de equilíbrio; • degradação do desequilíbrio; • tentativa de resgate do equilíbrio da situação inicial; • volta do equilíbrio inicial. Temática: • presença religiosa: moral cristã, conservação de costumes, papel conservador da mulher. Linguagem popular falada: • léxico; • prosódia/alterações fonéticas; • vacilações ortográficas (na reprodução escrita); • sintaxe. Linguagem: • figuras de linguagem; • paralelismo; • interdiscursividade. O cordel A chegada de Lampião no céu configura-se um dos mais incorporados no cotidiano dos leitores desse tipo de texto, de acordo com a pesquisadora Marcela Evaristo (apud BRANDÃO, 2012). 135 GÊNEROS TEXTUAIS Esse cordel compõe um folhetode oito páginas com versos setessilábicos e contém estrofes com sete versos cada. Observação Lampião é o mais conhecido dos cangaceiros, célebre pelas bravatas e pela crueldade. Venceu e enganou várias vezes as forças policiais, sendo, por fim, assassinado. Tornou-se figura lendária na cultura nordestina. A chegada de Lampião no céu foi publicado em 1959 e narra a tentativa de Lampião de conquistar um lugar no céu, uma vez que não consta na lista da salvação e é impedido de entrar por São Pedro. A chegada de Lampião no céu Rodolfo Coelho Cavalcante 1 Lampião foi no inferno Ao depois no céu chegou São Pedro estava na porta Lampião então falou: Meu velho não tenha medo Me diga quem é São Pedro E logo o rifle puxou 2 São Pedro desconfiado Perguntou ao valentão: Quem é você meu amigo Que anda com este rojão? Virgulino respondeu: Se não sabe quem sou eu Vou dizer: sou Lampião. 3 São Pedro se estremeceu Quase que perdeu o tino Sabendo que Lampião Era um terrível assassino Respondeu balbuciando: O senhor... está... falando... Com... São Pedro... Virgulino! 136 Unidade III 4 Faça o favor, abra esta porta Quero falar com o senhor Um momento, meu amigo Disse o santo: faz favor Esperar aqui um pouquinho Para olhar o pergaminho Que é ordem do Criador 5 Se você amou o próximo De todo o seu coração O seu nome está escrito No livro da salvação Porém, se foi um tirano Meu amigo, não lhe engano Por aqui não fica, não 6 Lampião disse: está bem Procure que quero ver Se acaso não tem aí O meu nome pode crer Quero saber o motivo Pois não sou filho adotivo Pra que fizeram-me nascer? 7 São Pedro criou coragem E falou pra Lampião: Tenha calma cavalheiro Seu nome não está aqui, não Lampião disse: é impossível É uma coisa que acho incrível Ter perdido a salvação 8 São Pedro disse: está bem Acho melhor dar um fora Lampião disse: meu santo Só saio daqui agora Quando ver o meu padrinho Padre Cícero, meu filhinho Esteve aqui mas foi embora 137 GÊNEROS TEXTUAIS 9 Então eu quero falar Com a Santa Mãe das Dores Disse o santo ela não pode Vir aqui ver seus clamores Pois ela está resolvendo Com o filho intercedendo Em favor dos pecadores 10 Então eu quero falar Com Jesus crucificado Disse São Pedro um momento Que eu vou dar o seu recado Com pouco o santo chegou Com doze santos escoltado 11 São Longuinho e São Miguel, São Jorge, São Simão, São Lucas, São Rafael, São Luiz, São Julião, Santo Antônio e São Tomé, São João e São José Conduziram Lampião 12 Chegando no gabinete Do glorioso Jesus Lampião foi escoltado Disse o Varão da Cruz Quem és tu filho perdido Não estás arrependido Mesmo no Reino da Luz? 13 Disse o bravo Virgulino Senhor não fui culpado Me tornei um cangaceiro Porque me vi obrigado Assassinaram meu pai Minha mãe quase que vai Inclusive eu coitado 138 Unidade III 14 Os seus pecados são tantos Que nada posso fazer Alma desta natureza Aqui não pode viver Pois dentro do Paraíso É o reinado do riso Onde só existe prazer 15 Então Jesus nesse instante Ordenou São Julião Mais São Miguel e São Lucas Que levassem Lampião Pra ele ver a harmonia Nisto a Virgem Maria Aparece no salão 16 Aglomerada de anjos Todos cantando louvores Lampião disse: meu Deus Perdoai os meus horrores Dos meus crimes tão cruéis Arrependeu-se através Da Virgem seus esplendores 17 Os anjos cantarolavam saudando a Virgem e o Rei Dizendo: no céu no céu Com minha mãe estarei Tudo ali maravilhou-se Lampião ajoelhou-se Dizendo: Senhora eu sei 18 Que não sou merecedor De viver aqui agora Julião, Miguel e Lucas Disseram vamos embora Ver os demais apartamentos Lampião neste momento Olhou pra Nossa Senhora 139 GÊNEROS TEXTUAIS 19 E disse: Ó Mãe Amantíssima Dá-me a minha salvação Chegou nisto o maioral Com catinga de alcatrão Dizendo não pode ser Agora só quero ver Se é salvo Lampião 20 Respondeu a Virgem Santa Maria Imaculada Já falaste com meu Filho? Vamos não negues nada – Já ó Mãe Amantíssima Senhora Gloriosíssima Sou uma alma condenada 21 Disse a Virgem mãe suprema Vai-te pra lá Ferrabrás A alma que eu pôr a mão Tu com ela nada faz Arrenegado da Cruz Na presença de Jesus Tu não vences, Satanás 22 Vamos meu filho vamos Sei que fostes desordeiro Perdeste de Deus a fé Te fazendo cangaceiro Mas já que tu viste a luz Na presença de Jesus Serás puro e verdadeiro 23 Foi Lampião novamente Pelos santos escoltado Na presença de Jesus Foi Lampião colocado Acompanhou por detrás O tal cão de Ferrabrás De Lúcifer enviado 140 Unidade III 24 Formou-se logo o júri Ferrabrás o acusador Lá no Santo Tribunal Fez papel de promotor Jesus fazendo o jurado Foi a Virgem o advogado Pelo seu divino amor 25 Levantou-se o promotor E acusou demonstrando Os crimes de Lampião O réu somente escutando Ouvindo nada dizia A Santa Virgem Maria Começou advogando 26 Lampião de fato foi Bárbaro, cruel, assassino Mas os crimes praticados Por seu coração ferino Escrito no seu caderno Doze anos de inferno Chegou hoje o seu destino 27 Disse Ferrabrás: protesto Trago toda anotação Lampião fugiu de lá Em busca de salvação Assassinou Buscapé Atirou em Lúcifer Não merece mais perdão 28 Levantou-se Lampião Por esta forma falou Buscapé eu só matei Porque me desrespeitou E Lúcifer é atrevido Se ele tivesse morrido A mim falta não deixou 141 GÊNEROS TEXTUAIS 29 Disse Jesus e agora Deseja voltar à terra A usar de violência Matando que só uma fera? Disse Lampião: Senhor Sou um pobre pecador Que a Vossa sentença espera 30 Disse Jesus: Minha mãe Vou lhe dar a permissão Pode expulsar Ferrabrás Porém tem que Lampião Arrepender-se notório Ir até o “purgatório” Alcançar a salvação 31 Ferrabrás ouvindo isto Não esperou por Miguel Pediu licença e saiu Nisto chegou Gabriel Ferrabrás deu um estouro Se virou num grande touro Foi dar resposta a Lumbel 32 Resta somente saber O que Lampião já fez Do purgatório será O julgamento outra vez Logo que se for julgado Farei tudo versejado O mais até lá freguês Fonte: Brandão (2012, p. 142-145). Após a leitura, conhecemos o esforço do herói-bandido Lampião, que tenta falar com os santos e, finalmente, tem uma entrevista com Jesus, justificando sua vida irregular e cheia de crimes. No entanto, é a Virgem Maria – diante de quem Lampião se arrepende de seus pecados – que assume a proteção do cangaceiro e intercede em seu favor perante o filho. Forma-se um júri, com representante de Lúcifer, e Jesus determina que Lampião deve passar pelo purgatório para conseguir a salvação. 142 Unidade III Esse cordel constitui-se da tipologia narração, cuja estrutura é cíclica. • Situação inicial: Lampião chega ao céu. • Desequilíbrio: ele quer entrar e não consegue, passando, então, a fazer tentativas para conseguir. • Constatação do desequilíbrio: Lampião consegue uma entrevista com Jesus, justifica seus crimes, porém não se arrepende e é condenado. • Tentativa de resgate do equilíbrio: Lampião arrepende-se diante da Virgem Maria, que o defende diante do júri. • Volta à situação inicial de equilíbrio ou resolução: Lampião tem nova chance, mas tem de passar pelo purgatório. A influência religiosa é evidente na dualidade céu-inferno e perpassa outros conhecidos textos de cordel, causando interesse no leitor pela continuidade: A chegada de Lampião no inferno, A chegada de Lampião no purgatório, Lampião e Maria Bonita no paraíso. As continuidades, por sua vez, estabelecem uma relação comercial e sustentam economicamente o escritor, que marca sua autoria por meio de um acróstico. 32 Resta somente saber O que Lampião já fez Do purgatório será O julgamento outra vez Logo que se for julgado Farei tudo versejado O mais até lá freguês Um aspecto marcante da literatura de cordel é a interdiscursividade percebida pela heterogeneidade presente nas narrativas. O cordel remete, por exemplo, a passagens bíblicas, bem como influencia outros gêneros como poema e letra de música. É o caso do poema de Carlos Drummond de Andrade e da letra de música de Ednardo. Caso do vestido Carlos Drummond de Andrade Nossa mãe, o que éaquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. 143 GÊNEROS TEXTUAIS Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. 144 Unidade III Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos. Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. O seu vestido de renda, de colo mui devassado, mais mostrava que escondia as partes da pecadora. 145 GÊNEROS TEXTUAIS Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava. Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno. Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão. Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança 146 Unidade III daquele dia de cobra, da maior humilhação. Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou. Mas então ele enjoado confessou que só gostava de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender dona casada pisando no seu orgulho. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? 147 GÊNEROS TEXTUAIS quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? Olhei muito para ela, boca não disse palavra. Peguei o vestido, pus nesse prego da parede. Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio, mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher, põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho. O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada. Fonte: Brandão (2012, p. 167-168). O poema de Drummond remete à versificação clássica da narrativa de cordel ao ser composto na forma de verso setessilábico. 148 Unidade III A sua temática enfatiza o papel tradicional da mulher, que é capaz de tudo pelo homem. As duas personagens principais são rivais e sofrem total humilhação até serem degradadas, chegando ao ponto da loucura em nível mental e espiritual e, no nível material, da perda de bens. Verificamos a mesma utilização da forma sintática que remete ao cordel: Eu não tinha amor por ele ao depois amor pegou Em A chegada de Lampião no céu, encontramos: Lampião foi ao inferno Ao depois no céu chegou A semelhança é percebida também nas repetições de palavras e expressões e nas estrofes com dois versos, características dos desafios: Nossa mãe, o que é aquele Vestido, naquele prego? (...) Nossa mãe, dizei depressa Que vestido é esse vestido (...) Nossa mãe, esse vestido Tanta renda, esse segredo! (...) Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? (BRANDÃO, 2012, p. 167-168). Por fim, observemos a letra de música de Ednardo. 149 GÊNEROS TEXTUAIS Pavão Mysteriozo Ednardo Pavão mysteriozo Pássaro formoso Tudo é mistério Nesse teu voar Ai se eu corresse assim Tantos céus assim Muita história eu tinha prá contar... Pavão mysteriozo Nessa cauda aberta em leque Me guarda moleque De eterno brincar Me poupa do vexame De morrer tão moço Muita coisa ainda quero olhar... Pavão mysteriozo Meu pássaro formoso No escuro dessa noite Me ajuda a cantar Derrama essas faíscas Despeja esse trovão Desmancha isso tudo Que não é certo não 150 Unidade III Pavão mysteriozo Um conde raivoso Não tarda a chegar Não temas minha donzela Nossa sorte nessa guerra Eles são muitos Mas não podem voar... Fonte: Brandão (2012, p. 172). Essa letra de música remete a um cordel pela formação poética das estrofes com sete versos, que é comum nos folhetos. Além disso, as marcas da oralidade são bastante claras. Minha história eu tinha pra contar Me guarda moleque Me poupa do vexame Quanto à narrativa, alude à história contada nos folhetos, como no caso do romance de José Camelo de Melo Resende. O próprio título faz remissão explícita, mas também a menção ao nobre, “um conde raivoso”, e em relação à mocinha, “não temas minha donzela”. O “pavão misterioso” é o elemento mágico que perpassa a obra e remete ao sonho, ao maravilhoso e, em determinados versos, a quase uma oração no sentido religioso. Nos versos “Me poupa do vexame/De morrer tão moço” estabelece-se uma conexão com a própria vida do nordestino, em que se morre antes dos 20 anos em razão de pobreza ou doença, e de velhice, antes dos trinta. Saiba mais A vida do nordestino, “vida severina”, marcada de sofrimento e lirismo, pode ser conhecida na obra de João Cabral de Melo Neto. MELO NETO, J. C. de. Morte e vida severina e outros poemas em voz alta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. 151 GÊNEROS TEXTUAIS Exemplo de aplicação O texto completo do cordel O pavão misterioso, de José Camelo de Melo Resende, pode ser encontrado facilmente na internet. Após a leitura, sintetize a narrativa, seguindo os dois planos de sua estrutura: o plano real, em que é enfatizada a condição econômica concreta da personagem, e o plano do maravilhoso, ligado ao belo, ao fascínio e à luta para alcançar um objetivo. 8.2 Gênero de rua: grafite No fim do século XX, o grafite alcançou ruas, viadutos, muros, prédios particulares e públicos, isto é, o cenário urbano das inúmeras cidades do mundo. Essa apreensão da cidade como unidade de percepção contínua e global supõe uma outra maneira de ver a cidade, uma espécie de olhar tátil, responsável pela apreensão do sinestésico tecido urbano: sonora, visual, gestual, olfativo, sinestésico, enfim […] o usuário é ao mesmo tempo, ator e espectador do espetáculo: o uso é leitura da cidade, ao mesmo tempo, em que é o agente capaz de transformar o espectador em ator (FERRARA, 2009, p. 120). No entanto, apenas
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