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Autoras: Profa. Camila Cristina Ribeiro Luis Profa. Letícia Cunha de Andrade Oliveira Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Profa. Tânia Sandroni História das Relações Internacionais Professoras conteudistas: Camila Cristina Ribeiro Luis / Letícia Cunha de Andrade Oliveira © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L953h Luis, Camila Cristina Ribeiro. História das Relações Internacionais / Camila Cristina Ribeiro Luis, Letícia Cunha de Andrade Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 172 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Relações internacionais. 2. Sociedade. 3. Guerras. I. Luis, Camila Cristina Ribeiro. II. Oliveira, Letícia Cunha de Andrade. III. Título. CDU 341.12 U508.96 – 20 Camila Cristina Ribeiro Luis Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em 2007, na cidade de Franca, interior de São Paulo. Também pela Unesp, na capital paulista, por meio do programa interinstitucional San Tiago Dantas, é mestre e doutora (2018). Desde a iniciação científica, suas pesquisas enquadram-se na área de paz, defesa e segurança internacional, interesse que surgiu ainda na graduação, quando queria entender as circunstâncias da formulação do projeto Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, proposto pelo Brasil à Organização das Nações Unidas (ONU) em 1986. No mestrado, continuou com os olhos fixos no mar e analisou a participação da Marinha do Brasil na política externa brasileira formulada para a fronteira atlântica. E, por fim, no doutorado, estudou a política de defesa do Brasil no Atlântico Sul. Iniciou a carreira na docência em 2014 na Universidade Paulista (UNIP). Leciona no curso de Relações Internacionais e Ciências Econômicas desde 2017. Letícia Cunha de Andrade Oliveira Possui toda a formação em Relações Internacionais. Concluiu o bacharelado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) em 2011, o mestrado pela Universidade de Brasília (UnB), em 2013, e o doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) em 2019. Na graduação, analisou as propostas de reforma do Conselho de Segurança ONU. No mestrado, analisou o desempenho do Brasil no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). E, no doutorado, analisou a implementação do Programa Mais Alimentos na África, mais especificamente em Moçambique. Em 2017, começou a coordenar o curso de Relações Internacionais do campus de São José dos Campos da UNIP e continuou em sala de aula. Atualmente, contribui com a equipe de professores do curso de Relações Internacionais da UNIP na produção de material didático. Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Bruna Baldez Sumário História das Relações Internacionais APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................................................................................... 11 1.1 Estudos europeus ................................................................................................................................. 13 1.2 Estudos americanos ............................................................................................................................. 16 2 A CONSTRUÇÃO DA “SOCIEDADE INTERNACIONAL EUROPEIA”: DE VESTFÁLIA A VIENA ...................................................................................................................................... 20 2.1 A Guerra dos Trinta Anos e a Paz de Vestfália .......................................................................... 21 2.2 O Congresso de Viena e a sociedade internacional europeia............................................. 28 2.3 Expansão da sociedade internacional europeia ....................................................................... 34 3 O APOGEU DO SISTEMA INTERNACIONAL EUROPEU (1871-1914) ............................................. 38 3.1 Tendências na geopolítica europeia após 1871 ....................................................................... 39 3.2 Economia e relações internacionais ............................................................................................. 41 3.3 A diplomacia de Bismarck ................................................................................................................. 44 3.4 O despertar da bipolaridade na Europa ...................................................................................... 46 4 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ............................................................................................................... 49 4.1 O estopim da Primeira Guerra Mundial ...................................................................................... 50 4.2 O desenrolar do conflito .................................................................................................................... 53 4.3 A Paz de Versalhes ................................................................................................................................ 56 4.4 Discutindo as forças profundas que levaram à Primeira Guerra Mundial .................... 59 Unidade II 5 O PERÍODO ENTREGUERRAS (1919-1939) ............................................................................................ 70 5.1 A Liga das Nações ................................................................................................................................ 71 5.2 A Europa ................................................................................................................................................... 76 5.3 União Soviética, Japão e Estados Unidos ................................................................................... 78 5.4 América Latina, África e Ásia ........................................................................................................... 84 5.5 A retomada das hostilidades ........................................................................................................... 87 6 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) .................................................................................... 93 6.1 A guerra civil europeia ....................................................................................................................... 95 6.2 Mundialização da Segunda Guerra Mundial ..........................................................................100 6.3 Surgimento de uma nova ordem internacional ....................................................................105 Unidade III 7 A GUERRA FRIA (1946-1989) ...................................................................................................................1197.1 Período “quente” da Guerra Fria ..................................................................................................119 7.2 Coexistência pacífica ........................................................................................................................124 7.3 Distensão ...............................................................................................................................................130 7.4 Nova Guerra Fria .................................................................................................................................134 8 O MUNDO GLOBALIZADO (1990-) .........................................................................................................138 8.1 Nova balança de poder ....................................................................................................................139 8.2 Novos problemas globais ................................................................................................................141 8.3 Novas formas de inserção internacional ..................................................................................146 8.4 Fenômenos recentes .........................................................................................................................151 7 APRESENTAÇÃO O livro-texto que aqui se apresenta tem como objetivo auxiliar o estudante de Relações Internacionais em sua jornada de estudos sobre a história das relações internacionais, um assunto denso e rico que muito contribuirá não apenas para sua formação acadêmica, mas também para ampliar seus horizontes sobre o entendimento do mundo. A história das relações internacionais tem como objeto de estudo a formação do sistema internacional contemporâneo, bem como sua evolução ao longo dos últimos séculos. Assim, discutiremos o contexto que resultou na formação do sistema de Estados europeu e da sociedade internacional europeia; sua expansão mundial no século XIX; as rupturas do século XX e a formação de uma sociedade mundial; e a transição da Guerra Fria para o sistema internacional contemporâneo, tudo isso a partir de uma perspectiva histórica, fundamentada em conceitos e elementos históricos. No entanto, pode ocorrer a indagação: por que estudar história se estou cursando Relações Internacionais? Qual a importância do conhecimento histórico na formação do internacionalista, se geralmente lidamos com os fatos do mundo contemporâneo? De fato, tais perguntas perpassam nosso pensamento toda vez que nos deparamos com o estudo da história e são importantes guias para o desenvolvimento deste livro-texto. Como nos explica o professor José Flávio Sombra Saraiva, o mundo atual é moldado pela evolução dos processos internacionais do passado, e, portanto, é importante o domínio do conteúdo histórico para uma análise mais acurada e crítica dos fenômenos do presente. Sobre esse assunto, Gonçalves (2007, p. 13) argumenta: Devido à sua complexidade, o conhecimento dos problemas internacionais contemporâneos requer a análise histórica. Não basta compreender o funcionamento das instituições e a capacidade de codificação conceitual de certos aspectos da realidade. Para a produção do conhecimento, é indispensável acrescentar a esse trabalho intelectual de interpretação da realidade a articulação dos elementos ao longo do tempo. É importante destacar que a história das relações internacionais não se resume ao simples estudo do material produzido pelas chancelarias ou da observação das ações da diplomacia e dos poderes políticos instituídos. Para além dessa abordagem, a disciplina procura esclarecer as configurações do atual cenário das relações internacionais por meio dos processos sociais que se iniciaram e evoluíram em passado recente, moldando o mundo que hoje observamos. A esses processos históricos, Pierre Renouvin, considerado o fundador da história das relações internacionais, chamou de “forças profundas”, isto é, explicações e interpretações da evolução da vida internacional que não eram contempladas nos documentos disponíveis, necessitando, portanto, de um olhar desde uma perspectiva histórica. 8 Dessa forma, podemos afirmar que a história tem algo a nos dizer sobre a globalização e a integração econômica; as crises nacionalistas e a ascensão de governos conservadores em todo o mundo; o protecionismo econômico; os desafios ambientais; o peso da cultura nas relações internacionais, entre outros desafios com os quais se deparam nós, internacionalistas. É a partir da perspectiva histórica que nos debruçaremos neste livro-texto para a análise da evolução do sistema internacional contemporâneo, com o propósito de conhecer as forças profundas que o tornaram tão complexo e desafiador na atualidade. Bons estudos! Observação Fazemos referência aos renomados autores Pierre Renouvin e José Flávio Sombra Saraiva. É importante saber que Pierre Renouvin é um historiador francês que organizou e fundamentou essa área de estudo quando lançou, em 1953, sua obra História das relações internacionais, tornando-se referência mundial. José Flávio Sombra Saraiva é um especialista brasileiro em história das relações internacionais, sendo, portanto, uma referência nessa área de estudo no país. Por isso, ao longo do livro-texto, muito nos reportaremos a esses autores, entre outros. INTRODUÇÃO A configuração do sistema internacional contemporâneo teve início nos tratados firmados ao término da chamada Guerra dos Trintas Anos, um conflito que ocorreu no continente europeu na primeira metade do século XVII. O conjunto desses tratados ficou conhecido como Paz de Vestfália, como referência a uma região alemã onde se localizavam as cidades Osnabrück e Münster, em que foram negociados e assinados os acordos. E foi nos tratados que instituíram a Paz de Vestfália e que foram estabelecidos os pilares do moderno sistema de Estados que depois se tornaria mundial: soberania, territorialidade e não intervenção. Desde a Paz de Vestfália, datada de 1648, até os dias atuais, muitas mudanças ocorreram no contexto internacional. O sistema de Estados, apesar de manter os princípios vestfalianos, vem alterando sua interpretação sobre eles conforme a evolução histórica da sociedade mundial. Abordaremos neste livro-texto o processo de formação e evolução do sistema internacional, de forma concisa, para a apoiar os estudos de história das relações internacionais. Para tanto, apoiamo-nos na revisão da bibliografia já produzida por autores renomados indicada para o estudo desta disciplina, a qual será apresentada ao final do livro-texto. Não pretendemos esgotar completamente a produção bibliográfica, tampouco abordar todos os fatos históricos dos últimos quatro 9 séculos; primeiro, por conta do limitado tempo e espaço que uma disciplina de 60 horas de carga horária impõe ao professor, e segundo porque, aqui, empregou-se a metodologia da relevância histórica. Nesse sentido, analisaremos o contexto e os tratados que resultaram na Paz de Vestfália; a sociedade internacional europeia e o sistema de Estados; o Tratado de Viena e o Concerto Europeu; a expansão da sociedade europeia no século XIX; a ascensão alemã e o fim do equilíbrio europeu; a Primeira e a Segunda Guerra Mundial; a Guerra Fria em suas múltiplas fases; a globalização e a nova ordem mundial. Vale destacar que sistema internacional e sociedade internacional, ambos objetos de estudo nesta disciplina, são conceitos diferentes. Conforme explica Hedley Bull (2002), um sistema internacional de Estados consiste em um contexto em que dois ou mais Estados mantêm contato suficiente entre si a ponto de considerar os impactos recíprocos em suas decisões. Porém, para que exista uma sociedade internacional, é necessário que os atores compartilhem regras e valores comuns. No decorrer deste livro-texto e nos estudos de história das relações internacionais, não nos limitaremos ao sistema internacional, mas também analisaremos a evoluçãodos valores, as regras e os interesses que os Estados e demais atores internacionais estabeleceram para a existência de uma sociedade internacional. Não podemos nos esquecer ainda de abordar a própria formação da disciplina História das Relações Internacionais a partir das diferentes interpretações propostas por abordagens oriundas especialmente da Europa e da América, muito embora existam outras perspectivas de diferentes regiões do globo. Alguns recursos utilizados ao longo do texto, como “Observação”, “Lembrete” e “Saiba mais”, vão conferir um tom mais didático a sua leitura e ajudá-lo a fixar o conteúdo de forma mais efetiva. Além disso, ao final de cada unidade, o “Resumo” e os “Exemplos de Aplicação”, resolvidos e comentados, vão ajudá-lo a retomar o conteúdo estudado antes de partir para a próxima parte ou na hora da revisão, tanto para a resolução dos questionários do ambiente virtual quanto para a avaliação presencial no seu polo de apoio presencial. Observação Vestfália não é uma cidade específica, mas sim uma região da Alemanha entre os rios Reno e Weser, onde se encontram as cidades Dortmund, Münster, Bielefeld e Osnabrück. Atualmente, essa região está incluída no estado federal alemão de Renânia do Norte – Vestfália – e parte no estado da Baixa Saxônia. Vale destacar que os limites políticos e geográficos da Europa na época da Paz de Vestfália não eram os mesmos de hoje; portanto, não há correspondência integral da região de Vestfália do século XVII com o presente. 11 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Unidade I 1 A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Abordaremos a trajetória da história das relações internacionais enquanto uma subárea de estudos das relações internacionais, bem como sua contribuição por meio de diversos ângulos para a análise dos fenômenos contemporâneos, com foco, especialmente, nas contribuições europeias e americanas. A história das relações internacionais cresceu em importância quando ocorreram as transformações observadas no cenário mundial entre as décadas de 1980 e 1990. O desmoronamento da União Soviética, o término da Guerra Fria e a emergência da globalização do capitalismo liberal foram fatos que levantaram questionamentos e crises sobre interpretações científicas na área das relações internacionais capazes de explicar o mundo recente (SARAIVA, 2007b). Foi nesse contexto que os historiadores apontaram a necessidade de resgatar os estudos de história nas relações internacionais, despertando a atenção para a história das relações internacionais, que, durante as décadas anteriores, havia ficado em segundo plano. Os debates levantados nesse momento apontavam que, sem as contribuições da história, os fenômenos do presente eram incompreensíveis (GONÇALVES, 2007). Também foi de grande contribuição para a mudança de perspectiva sobre a história a obra de Jean-Baptiste Duroselle, Todo Império perecerá: uma visão teórica das relações internacionais, no início da década de 1980, que se diferenciou da visão dos teóricos tradicionais das relações internacionais à época ao propor uma análise fundamentada na história da crise no Império Soviético num momento que ninguém falava ou sequer imaginava os fatos que estavam por vir (SARAIVA, 2007b). No entanto, quando abordamos a história das relações internacionais, é importante lembrar que sua origem remete à história diplomática, área de estudos que se desenvolveu ao longo do século XIX. Conforme explica Gonçalves (2007), a história diplomática é a história das relações do Estado com outros povos, contada com base nos documentos oficiais do Estado, isto é, notas diplomáticas, memorandos, correspondências, tratados, convenções etc. Nessa perspectiva, a contribuição da história nas relações internacionais se resumia na descrição das ações conduzidas pelos agentes oficias do Estado; em sua maioria, os diplomatas. Não havia nesse ramo de estudos a preocupação em problematizar o tema em análise, mas única e exclusivamente descrever os fatos relativos observados nos materiais das chancelarias. 12 Unidade I Observação Empregamos a palavra “Estado” para nos referir a uma comunidade organizada politicamente em uma estrutura governamental autônoma e espacialmente determinada em um território. No senso comum, utiliza-se a palavra “país” como sinônimo de Estado, muito embora “país” se refira somente aos aspectos geográficos do Estado. Foi após a Revolução Francesa, em 1789, que a história diplomática ganhou força e se tornou uma modalidade de estudos de história. O grande volume de material diplomático produzido a partir do Congresso de Viena em 1815 e a expansão do imperialismo europeu no mundo todo muito contribuíram para esse quadro. Os eventos da Primeira Guerra Mundial e a crise que a ela se seguiu até desembocar na Segunda Guerra Mundial aumentaram ainda mais o interesse nos estudos de história diplomática, que, nesse momento, chegou a seu apogeu. Porém, o desmoronamento da hegemonia europeia sobre o mundo nas décadas da Guerra Fria apontou a insuficiência dessa modalidade de história para explicar as grandes mudanças pelas quais o mundo passava. Observação O termo “diplomacia” deriva do verbo grego diploun, cujo significado é dobrar. Daí o significado de “diploma”: documento oficial gravado em uma placa dupla de bronze. Diploma, portanto, na Roma Antiga, referia-se aos documentos oficiais produzidos pelo governo. Mais tarde, com o emprego de pessoas para arquivar e organizar tais documentos, o termo passou a designar os funcionários do Estado habilitados a informar às autoridades tudo aquilo considerado necessário a respeito dos outros povos. A partir da mesma origem, consolidou-se o significado de “diplomacia” como o modo de conduzir os assuntos do Estado com outros povos essencialmente por meios pacíficos (GONÇALVES, 2007). Nesse contexto, coube a Pierre Renouvin o mérito de proceder à crítica da história diplomática, de forma a superar as produções historiográficas nos marcos das chancelarias e propor uma interpretação com base em outras perspectivas, as chamadas forças profundas, que impulsionavam as ações daqueles que conduziam as relações entre os Estados. A esse respeito, esclarece Gonçalves (2007, p. 22): [...] Embora a História das Relações Internacionais não negligencie a importância da iniciativa dos Estados, requer a interpretação das influências geográficas, econômicas, culturais e ideológicas que condicionam a ação dos Estados em suas relações externas. Na expressão consagrada por Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle (1967), estas são as “forças profundas” que formam o quadro no interior do qual agem os “homens de Estado”. Isto 13 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS é, são essas forças profundas que dão sentido às decisões tomadas pelos representantes oficiais do Estado nas relações que mantêm com as demais nações e organizações internacionais. É, portanto, ao estudo das mais diversas influências do momento histórico sobre as decisões e ações das pessoas que estão à frente da política dos Estados que se dedica a história das relações internacionais. Essas influências podem ser de natureza diversificada, tais como ideológicas, econômicas, geográficas, sociais, culturais etc., e não podem ser analisadas somente a partir dos documentos produzidos nas chancelarias. Por isso, a história das relações internacionais recorre às mais diversificadas fontes de pesquisa, tanto escritas, como jornais, cartas, panfletos, cartazes, livros, biografias; quanto orais, a fim de realizar a interpretação dos fatos em análise. Assim, é possível ter um panorama mais amplo para compreender os acontecimentos do presente nas relações internacionais. É importante destacar que essa nova abordagem histórica que levou à superação da história diplomática não se restringiu aos estudiosos franceses já citados. Foi considerável a contribuição de outros autores europeus, como os ingleses, além de autores dos países americanos,sobretudo norte-americanos. São a essas produções que nos dedicamos, considerando que é sempre positivo diversificar nossas fontes de leitura e conhecer o máximo da bibliografia produzida pelo estudo em foco. 1.1 Estudos europeus Nos estudos europeus de história das relações internacionais, destacam-se várias correntes, com proeminência das francesas, uma vez que, com o lançamento da obra de Pierre Renouvin, inaugurou-se toda uma tradição francesa na subárea. Aos oito volumes produzidos por Renouvin no início da década de 1950, seguiram-se obras de outros autores, como François Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e René Girault, que definitivamente firmaram a produção da escola francesa sobre a história das relações internacionais. Pierre Renouvin, nascido em Paris em 1983, foi professor na Sorbonne entre 1933 e 1964. Tinha vivenciado e lutado na Primeira Guerra Mundial, em que perdeu o braço esquerdo e o uso da mão direita. Sobrevivente do conflito, Renouvin pertencia a uma geração de europeus que havia não apenas visto os horrores de duas guerras, mas também vivenciado a perda da importância relativa da Europa nas relações internacionais (SARAIVA, 2007b). Como professor universitário, Renouvin estava insatisfeito com as interpretações propostas à época pela história diplomática para as causas das guerras, da paz e de todos os fatos que tumultuaram a sociedade europeia na primeira metade do século XX. A proposta da obra de Renouvin e de seus colegas franceses seria a construção de uma explicação que considerasse os variados aspectos da vida internacional, como as forças materiais e morais que influenciavam o mundo do seu tempo com os movimentos nacionais e a crise econômica. 14 Unidade I É nesse sentido que Renouvin propõe o conceito de “forças profundas”, que se refere ao conjunto de causalidades sobre as quais atuavam as pessoas responsáveis pela política externa dos Estados. Tais causalidades se relacionam aos processos econômicos e materiais, às ideologias correntes, aos elementos culturais, enfim, aos diversos fatores presentes na vida social das comunidades humanas. Conforme explica Canesin (2008, p. 131): Estas “forças profundas” são de diversos tipos e Renouvin as enumera na primeira parte da obra “Introdução à História das Relações Internacionais” (1967) como: geográficas; demográficas; econômicas; da mentalidade coletiva; e correntes sentimentais. Sendo a primeira composta por atributos de posição e espaço que orientam a alocação dos agregados humanos. No segundo caso, discorre-se sobre o papel dos surtos demográficos e movimentos migratórios como constrangimentos do ambiente internacional. Quanto às forças econômicas, estas são divididas entre materiais e financeiras e entre conflitivas e cooperativas. No tocante à mentalidade coletiva, destaca-se o papel constitutivo de sentimento nacional. E, finalmente, dentre as correntes sentimentais, Renouvin dá ênfase aos movimentos nacionalistas e aos pacifistas. Por trás de uma decisão de ministros ou chefes de Estado registrada em documentos oficiais, existe todo um processo de decisão em que tais fatores, de forma consciente ou não, são considerados. Daí a importância da história nas relações internacionais e da superação dos limites impostos pela história diplomática (SARAIVA, 2007b). Jean-Baptiste Duroselle foi um dos mais importantes discípulos de Renouvin, deu continuidade ao esforço da disciplina, com novas publicações conjuntas, e ainda foi responsável pela difusão da escola francesa para outras partes do continente europeu e para o mundo. Sua maior contribuição veio com a obra, já mencionada, Todo Império perecerá, em que Duroselle enxergou a derrocada da União Soviética ainda no início dos anos de 1980. Dessa forma, Duroselle consolidou a escola francesa como a tradição mais longa da história das relações internacionais. René Girault foi o terceiro expoente da escola francesa, que, junto com seus colegas Jacques Thobie e Robert Frank, produziu três volumes abordando a história das relações internacionais europeias entre o século XIX e XX. No presente, a escola francesa continua produzindo obras que analisam a evolução das relações internacionais de 1945 aos nossos dias (SARAIVA, 2007b). Outra tradição relevante quando analisamos as produções europeias em história das relações internacionais é a contribuição dada pela escola britânica; porém, no Reino Unido, ficou mais conhecida como história internacional e teve como ponto de partida a chegada de Donald Watt na Escola de Londres de Economia e Política em 1954, responsável pela formação de talentos dedicados ao estudo. A Watt reuniram-se, entre 1959 e 1984, os historiadores e teóricos Herbert Butterfield, Martin Wigth, Hedley Bull, Adam Watson, entre outros (SARAIVA, 2007b). Entre os temas abordados pela tradição britânica, destacam-se o estudo do Estado nas relações internacionais, a questão da ordem internacional, as biografias de personalidades consagradas na 15 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS condução da política exterior europeia, as causas das guerras mundiais e seus impactos na sociedade e, ainda, as relações entre Reino Unido e Estados Unidos ao longo do século XX. Mais recentemente, na década de 1980, foi também tema de análise da corrente britânica o processo de integração europeia, com uma perspectiva mais crítica, apontando as fragilidades e os desafios da atual União Europeia. No conjunto da produção acadêmica vinculada à escola britânica, é importante dar atenção especial à obra do diplomata e professor Adam Watson, que publicou, em 1981, Diplomacy: the dialogue between States (Diplomacia: o diálogo entre os Estados) e, em 1984, The expansion of international society (A expansão da sociedade internacional), em coautoria com Hedley Bull. Nessas obras, Watson e Bull desenvolvem uma análise de base histórica para a evolução do sistema internacional e da sociedade internacional, observando sistema e sociedade como conceitos diferenciados. Conforme esclarece Saraiva (2007b, p. 20): [...] Watson discute a distinção entre um “sistema de Estados” e uma “sociedade internacional”. O primeiro, anteriormente discutido por Hedley Bull no seu The anarchycal society (A sociedade anárquica), foca a rede de pressões que levam Estados a considerarem outros Estados em seus cálculos e desígnios. A sociedade internacional vincula o sistema ao conjunto de regras comuns, instituições, padrões de conduta e valores que são compartilhados e acordados por Estados. A tradição britânica, portanto, teve o mérito de aprofundar os estudos de história das relações internacionais a partir de um sistema de conceitos que possibilitam compreender as dinâmicas das relações internacionais para além de um mero sistema de ordenamento entre Estados. A percepção da existência de valores e padrões de conduta relativos à existência de uma sociedade internacional, inicialmente europeia e depois mundial, seria o grande diferencial proposto e abordado historicamente pela escola britânica. Demais estudos de história das relações internacionais produzidos em âmbito europeu, menos volumosos, mas não menos importantes, foram desenvolvidos na Itália e na Suíça a partir da difusão da produção da escola francesa e britânica. Na Itália, o nome mais proeminente na disciplina foi Mario Toscano, com estudos sobre a política exterior italiana ainda nos anos de 1950 e 1960. Atualmente, destacam-se os estudos de Ennio di Nolfo, da Universidade de Florença, Brunello Vigezzi, em Milão, e Fulvio D’Amoja. Na Suíça, destacam-se os estudos elaborados por Antoine Fleury, Daniel Bourgeois, Yves Collart, Marco Durrer, Verdina Grossi, entre outros, que abordam com consistência histórica os temas mais contemporâneos das relações internacionais (SARAIVA, 2007b). Os estudos produzidos na Itália e Suíça apontam a consolidação de uma tradição histórica das relações internacionais nesses países. Entretanto, são ainda consideráveis outrasproduções conduzidas em âmbito europeu, ainda que em menor escala. A Bélgica, por exemplo, por meio de análises produzidas por Michel Dumoulin, J. Willequet e J. Stengers, entre outros, enfatizou a importância dos estudos históricos no contexto das relações internacionais belgas sobre a história diplomática. 16 Unidade I Já na Alemanha, apesar da existência de trabalhos pontuais como o de Leopold von Ranke, não houve o desenvolvimento de uma escola de história das relações internacionais, como observado nos demais países europeus analisados. Observa-se, contudo, uma potencial expectativa de desenvolvimento de estudos alemães na disciplina a partir do esforço de algumas universidades do país, como a Universidade de Saarbrücken, realizados nas últimas décadas. Por fim, cabe mencionar que existem outros estudos pontuais em história das relações internacionais na Espanha, em Portugal, na Suécia e na Rússia, com enfoques próprios. Contudo, a produção e os estudos nesses países ainda são considerados periféricos e insuficientes para conduzir a uma tradição como aquelas observadas na França, no Reino Unido, na Itália e na Suíça (SARAIVA, 2007b). Saiba mais Neste tópico, mencionamos constantemente o autor referência na disciplina José Flávio Sombra Saraiva. Sugerimos, para maior aprofundamento em seus estudos, que leia o capítulo 1 da obra a seguir: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais: o objeto de estudo e a evolução do conhecimento. In: SARAIVA, J. F. S. (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2007b. 1.2 Estudos americanos Os estudos de história das relações internacionais na América concentram-se nos Estados Unidos e América do Norte e também no cone sul do continente, abarcando principalmente Argentina e Brasil. Em nosso país, Gonçalves (2007) destaca a contribuição de José Honório Rodrigues, historiador brasileiro que viveu entre 1913 e 1987, como decisiva para a formação de uma corrente de estudo específica no assunto. Nos Estados Unidos, a predominância do desenvolvimento de uma teoria de relações internacionais a partir da área da ciência política dificultou a formação de uma escola de história das relações internacionais norte-americana. A esse respeito, Saraiva (2007b, p. 30) afirma: Não há, assim, uma escola norte-americana de história das relações internacionais no sentido da francesa ou da britânica. O que existe é uma abordagem histórica das relações internacionais vinculada aos problemas postulados pelos cientistas políticos. Ao mesmo tempo, registra-se uma série de teorias e abordagens norte-americanas que seguem os grandes paradigmas de interpretação histórica dominantes em determinados momentos da vida internacional daquele país. 17 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Dizer que não há uma escola norte-americana de história das relações internacionais, mas apenas uma abordagem histórica em determinadas questões vivenciadas pelos Estados Unidos, significa que não houve entre os intelectuais norte-americanos preocupação em trabalhar especificamente a consolidação desse estudo naquele país. No âmbito da história diplomática, é importante mencionar a obra de Samuel Bemis A diplomatic history of Unites States (Uma história diplomática dos Estados Unidos, em tradução livre), publicada em 1936. Em seu livro, Bemis analisou a história diplomática dos Estados Unidos por meio do material produzido por instituições norte-americanas e discorreu sobre o nacionalismo e conservadorismo dos estudos sociais desenvolvidos nos Estados Unidos daquele período (SARAIVA, 2007b). Posteriormente, Thomas Baily e Charles Beard foram os responsáveis por renovarem os estudos em torno da história diplomática dos Estados Unidos. O primeiro discutiu a formulação da política exterior norte-americana por meio da opinião pública e de outros fatores internos, de forma a revisar a obra de Bemis. Por outro lado, Beard analisou concepções divergentes da política exterior dos Estados Unidos, fundamentando-as na industrialização versus a agricultura, ou seja, por meio de elementos econômicos. Entretanto, nos anos que se seguiram à Guerra Fria, o enfoque dos estudos norte-americanos em relações internacionais não foi aprofundado. A preferência dos intelectuais norte-americanos recaiu sobre a preocupação com o expansionismo da União Soviética e a difusão do comunismo pelo mundo. Dessa forma, os Estados Unidos foram o berço de nascimento da teoria realista das relações internacionais, uma das mais aclamadas nos estudos da área. Observação A teoria realista das relações internacionais, de maneira simplificada, é um instrumento de análise da realidade internacional em que predominam a centralidade e autonomia dos Estados, a escolha racional do chefe de Estado, o interesse nacional e a busca pelo poder, de forma a enfrentar os desafios de um sistema internacional em que prevalecem a desconfiança e a ausência de um governo central acima dos Estados. Tendo como foco a participação decisiva dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, seguida por sua posição privilegiada nos anos da Guerra Fria, autores como Walter Lippmann, Hans Morgenthau e George Kennan publicaram trabalhos que consagraram o realismo como teoria predominante na análise das relações internacionais. Entre esses trabalhos, destaca-se a obra de Morgenthau, A política entre as nações, publicada em 1948, no início, portanto, da Guerra Fria. A obra tornou-se um clássico da área, sendo considerada o fundamento da teoria realista. Mais recentemente houve algumas tentativas de retomar os estudos de história das relações internacionais nos Estados Unidos, porém essas produções seguem sendo irregulares. Assim, não podemos afirmar a existência de uma escola norte-americana na disciplina e nos limitamos apenas a 18 Unidade I dizer que existe somente uma aproximação entre historiadores e cientistas políticos em torno do tema recorrente da inserção internacional dos Estados Unidos (SARAIVA, 2007b). Os estudos realizados a partir dos Estados Unidos disseminaram-se na América do Norte, influenciando as produções acadêmicas do México e Canadá. Por outro lado, as produções elaboradas a partir do cone sul americano, apesar da influência norte-americana, adotam uma perspectiva mais independente e, no caso do Brasil, aproximam-se mais da tradição francesa. Ademais, o tema do desenvolvimento é algo que perpassa os trabalhos de acadêmicos de ambos os países. Na opinião de Saraiva (2007b, p. 35), são os países da América do Sul que possuem abordagens sistemáticas e consideráveis da história das relações internacionais: O reconhecimento de ambos os países como protagonistas da moderna análise histórica culminou, na reunião plenária da Comissão de História das Relações Internacionais, em Montreal, em setembro de 1995, na aprovação da inclusão de um segundo nome latino-americano no seu Bureau. Ladeando Amado Luiz Cervo, o historiador argentino Mario Rapoport foi conduzido à condição de 12º membro do órgão. Na Argentina, os estudos realizados em torno da disciplina têm como tema a inserção internacional argentina frente aos desafios contemporâneos. Também se destacam os estudos sobre a história da política exterior da Argentina, entre os quais cabe mencionar as obras de Guillermo Figari, Passado, presente e futuro da política exterior argentina; e José Paradiso, Debates e trajetórias da política exterior argentina, ambas publicadas em 1993. Além disso, na Argentina, foi criada, no início da década de 1990, a Associação Argentina de História das Relações Internacionais, inicialmente presidida por Marco Rapoport (SARAIVA, 2007b). No Brasil, o esforço no sentido de uma produção consistente nos marcos da história das relações internacionais coube a José Honório Rodrigues (1913-1987). Com o lançamento do livro Brasil e África: outro horizonte, em 1961, Rodrigues inauguroua disciplina História das Relações Internacionais no Brasil; até o momento, só havia História Diplomática. A importância dessa obra é assim resumida por Gonçalves (2007, p. 37): A ruptura que a obra de Rodrigues promoveu, superando a História Diplomática pela inauguração da moderna História das Relações Internacionais, deveu-se a essa transparência política e, sobretudo, à maneira como tratou o passado das relações do Brasil com a África. O autor não visita esse passado para descobrir “tudo” o que compunha as relações entre as partes. Nem tampouco sua pesquisa ficou restrita aos documentos oficiais produzidos pela chancelaria. Sua atitude metodológica é outra: interpela o passado. Isto é, procura demonstrar aquilo que de alguma forma já se sabia, mas era negado pelo conhecimento histórico estabelecido. 19 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Em torno da nova perspectiva promovida por Rodrigues e aprofundada pelo contato com a produção francesa e britânica, delineou-se uma tradição brasileira de estudos históricos das relações internacionais a partir da Universidade de Brasília, que inaugurou o primeiro programa de pós-graduação da América do Sul na disciplina, em 1976, dentro do curso de História. Com base no programa, formou-se um grupo de estudiosos de história das relações internacionais, que reúne Amado Luiz Cervo, Sérgio Bath, Paulo Roberto de Almeida, Moniz Bandeira, Corcino Medeiro dos Santos, Clodoaldo Bueno, José Flávio Sombra Saraiva, entre outros (SARAIVA, 2007b). Entre os estudos produzidos pelo chamado grupo de Brasília, destaca-se a preocupação com a inserção internacional do Brasil desde sua independência. A obra de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil, lançada em 1992, analisa, com riqueza de detalhes e fontes, o percurso do Brasil nos desafios de inserção internacional desde o Império até os anos mais recentes da República. Também é importante mencionar a obra coletiva O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 aos nossos dias, publicada em 1994 (SARAIVA, 2007b). Há ainda os estudos conduzidos para o entendimento de parcerias essenciais na compreensão das relações internacionais do Brasil. Ainda conforme Saraiva (2007b), merecem destaque os estudos de Moniz Bandeira sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos, a Alemanha, a Argentina e a América Latina; de Amado Luiz Cervo, com a Itália; de José Flávio Sombra Saraiva, com a África; e de Francisco M. Doratioto, com o Paraguai. Saiba mais Conheça a obra de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno. É de suma importância para o estudante ler esse clássico para maior aprofundamento nos estudos da história das relações internacionais do Brasil. CERVO, A. L.; BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 4. ed. Brasília: UnB, 1992. Ainda é cedo para afirmarmos a existência de uma escola de história das relações internacionais brasileira tal como aquelas existentes na França e no Reino Unido, mas podemos dizer, sem dúvida, que há uma sólida tradição no Brasil a partir do grupo que se formou em Brasília. Entretanto, os esforços conduzidos pelo grupo de Brasília, ainda que consistentes e de longa data, seguem praticamente isolados no país, visto que existem poucos centros de pesquisa fora do círculo brasiliense. Outros estudos vêm sendo desenvolvidos fora do eixo europeu e americano, muito embora ainda sejam rarefeitos. Na Finlândia e na Rússia, há grupos de estudos começando a desenvolver pesquisa em história das relações internacionais. Na Ásia e Oceania, Israel, a Universidade de Tel Aviv reúne alguns estudiosos. Japão e Austrália estão desenvolvendo perspectivas próprias por meio da Universidade de Sophia, da Organização das Nações Unidas (ONU), em Tóquio, e da Universidade de Sidney. Já na Índia, há um grupo de estudiosos na Universidade de Nova Déli inspirados na tradição britânica (SARAIVA, 2007b). 20 Unidade I Por fim, na África, há estudos isolados produzidos nas cidades de Dakar, Pretória, Lagos e Cairo, cujo cerne das análises são a questão da dependência e a inserção internacional dos países do continente africano. Contudo, todos esses locais, com exceção da América e da Europa, ainda não se afirmaram como tradição nos estudos de história das relações internacionais, mas estão igualmente contribuindo para sua ampliação e difusão em todo o mundo. 2 A CONSTRUÇÃO DA “SOCIEDADE INTERNACIONAL EUROPEIA”: DE VESTFÁLIA A VIENA A Europa, no início do século XVII (1601-1700), passava por um processo conflituoso entre o esforço para superação de costumes e instituições medievais e a ascensão de novos valores que posteriormente dariam lugar à sociedade internacional europeia consolidada no Congresso de Viena (1815), já no século XIX. Esse processo, contudo, seria lento e marcado por guerras de escala continental, conflitos religiosos, ascensão e quedas de potências e dinastias, consolidação do Estado-nacional, revolução cultural iniciada no Renascimento, Contrarreforma e tantos outros vaivéns observados durante dois séculos. O século XVII, conforme aponta a historiografia europeia, teve início com a execução na Fogueira, em Roma, de Giordano Bruno, filósofo que anunciou a existência de universo infinito, e a expulsão do astrônomo Kepler pela Universidade de Graz. Em meio ao clima de intolerância, perseguição a cientistas, apreensão de livros, pestes, crise econômica e monetária, ocorreu a Guerra dos Trintas Anos (1618-1648), que intensificou o clima de catástrofe e desespero, além de destruição e mortandade generalizada. A guerra não foi apenas um conflito bélico, mas uma crise geral que marcou o início do período conhecido como uma época de estagnação e decadência (CARNEIRO, 2011). A Guerra dos Trinta Anos teve início por questões religiosas, com a intensificação da rivalidade entre o imperador católico do Sacro Império Romano-Germânico e as cidades-Estados que haviam aderido ao protestantismo no norte do território da atual Alemanha, que se opunham ao seu controle (JESUS, 2010). Porém, a justificativa religiosa do conflito, que opunha rebeldes protestantes e defensores católicos da autoridade religiosa e política do imperador, tornou-se mais difusa durante a guerra, com a entrada da França, país católico, mas que apoiava os protestantes, uma vez que temia a expansão do domínio da família imperial Habsburgo na Europa. Saiba mais Para conhecer com profundidade a política exterior francesa nesse período, leia o livro Testamento político escrito pelo primeiro-ministro francês à época da Guerra dos Trinta Anos, o Cardeal de Richelieu, considerado um dos maiores estadistas da França: CARDEAL DUQUE DE RICHELIEU. Testamento político. Abel, [s.d.]. Disponível em: https://www.portalabel.org.br/images/pdfs/o-testamento- politico.pdf. Acesso em: 30 jul. 2020. 21 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Ao fim da guerra, surgiu não apenas um novo equilíbrio de poder, mas também uma nova regra do jogo das relações internacionais fundamentada na Paz de Vestfália, que encerra a Guerra dos Trinta Anos. Ao estabelecer o Estado como entidade política legítima, o conceito principal de soberania consolidou-se nas liberdades dadas às cidades-Estados alemãs em relação à interferência imperial. Por isso, a Guerra dos Trinta Anos e a assinatura dos Tratados de Vestfália são consideradas o marco da construção da sociedade internacional europeia, uma vez que os interesses dos Estados se sobrepõem aos princípios religiosos medievais da soberania universal do papa, chefe da Igreja católica (CARNEIRO, 2011). Além do princípio da soberania, foi instituído também o princípio da não intervenção. Embora o Sacro Império Romano-Germânico tenha continuado a existir até 1806 e os príncipes das cidades-Estados e principados alemães pudessem fazer alianças fora do Império, de forma a exercerem poder independente, nem os príncipes nem o imperador intervieram para resolver problemas no território de outro príncipe.Ademais, foram oferecidas garantias a novas unidades quanto à adesão ao sistema, desde que tivessem atributos como um governo viável, o controle do próprio território e a habilidade para fazer e honrar tratados. Com a expansão colonial no século XIX e a descolonização afro-asiática do século XX, o sistema de Vestfália adquiriu uma abrangência maior, chegando também a todas as regiões do planeta (JESUS, 2010). 2.1 A Guerra dos Trinta Anos e a Paz de Vestfália O cenário que desencadeou a Guerra dos Trinta Anos circunscreve os conflitos religiosos entre católicos e protestantes nos territórios da Europa central, hoje território da atual Alemanha, Áustria, República Tcheca e Hungria, mas à época integravam o Sacro Império Romano-Germânico, uma estrutura feudal com fronteiras pouco definidas, na qual se sobrepunham suseranias e soberanias em múltiplas entidades políticas. O Sacro Império Romano-Germânico foi formado em 962, com a coroação do imperador Otto pelo papa João XII, e durou até 1806, quando foi dissolvido pela invasão de Napoleão. Sua criação pretendia reivindicar a sucessão de Carlos Magno e do antigo Império Romano do Ocidente, herança direta da civilização romana e cristã, fundamentada na Igreja Católica Romana. O Sacro Império, portanto, representava a unidade temporal dos católicos, enquanto o papado representava sua unidade espiritual (CARNEIRO, 2011). Na estrutura política do Império, a sucessão do imperador não era hereditária, e sim eletiva. Abrangendo mais de mil unidades políticas divididas em cidades-Estados, principados, ducados, bispados e territórios eclesiásticos, o Sacro Império Romano-Germânico abrangia uma vasta região da Europa central, porém apenas sete príncipes eram eleitores do imperador: três desses príncipes eram eclesiásticos, os arcebispos de Colônia, Trèves e Mogúncia, e quatro eram eleitores leigos, o Rei da Boêmia, o duque da Saxônia, o margrave (equivalente ao título de marquês, na Europa ocidental) de Brandemburgo e o conde do Palatinado. 22 Unidade I Figura 1 – Mapa do Sacro Império Romano-Germânico em 962 Esse frágil equilíbrio político do Império começou a se deteriorar após a Reforma promovida por Martinho Lutero em 1519. Lutero rebelou-se contra o imperador e o papa e conseguiu o apoio do poderoso duque da Saxônia, onde a Reforma teve profundo apelo. Seguiu-se uma série de conflitos entre católicos e os seguidores da religião reformada de Lutero, os quais passaram a ser chamados de “protestantes”, que só teve uma trégua com a assinatura de um tratado entre o imperador do Sacro Império, Carlos V, e os protestantes reunidos na Liga de Esmalcalda em 25 de setembro de 1555, na cidade de Augsburgo. 23 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Saiba mais Assista ao filme: LUTERO. Direção: Eric Till. Alemanha: Eikon Film, 2003. 121 min. Com a Paz de Augsburgo, seguiu-se um período de tolerância religiosa. Pelo tratado, ficou estabelecido que cada príncipe ou governante teria liberdade de escolher sua religião, que, por consequência, estenderia-se aos seus súditos, porém permitindo a emigração dos descontentes. Entretanto, com a chegada do imperador Rodolfo II ao trono do Império em 1575, com sólida formação católica, acirraram-se novamente as rivalidades religiosas, que se agravaram com impasse de sucessão no Reino da Boêmia. Os protestantes, reunidos na União Evangélica, defendiam que a coroa da Boêmia deveria ser entregue a Frederico V, eleitor do Palatinado e defensor da religião protestante, enquanto os católicos apoiaram a reivindicação de Fernando II, da casa dos Habsburgos, futuro imperador e católico fervoroso. Educado na Igreja católica e herdeiro da aliança entre os Habsburgos e o papado, Fernando II reprimiu violentamente os protestantes, destruiu templos e impôs o catolicismo como única religião a ser praticada do reino. Revoltados com a atitude de Fernando II, os protestantes acusaram-no de romper com a tolerância religiosa estabelecida pela Paz de Augsburgo e reagiram prontamente no episódio que ficou conhecido como Defenestração de Praga: invadiram o palácio real e atiraram pela janela do segundo andar dois ministros e um secretário do rei. O episódio aconteceu em 23 de maio de 1618, data considerada como o início da longa Guerra dos Trintas Anos. Figura 2 – Defenestração de Praga 24 Unidade I A Guerra dos Trinta Anos foi um conflito que opôs não apenas regiões do Sacro Império Romano-Germânico, que queriam autonomia diante do poder imperial, e outras que sustentavam o Império e o papado; também envolveu diretamente os apoiadores católicos do imperador e da dinastia de Habsburgo, Espanha e Polônia contra uma coligação protestante composta pelos príncipes alemães, Países Baixos, Dinamarca, Suécia e a França católica. Dessa forma, conforme explica Carneiro (2011), o confronto tomou proporções internacionais: O que era uma guerra civil do Império Germânico desdobrou-se no mais agudo conflito da Europa moderna devido à conjunção de diversas disputas: rivalidade franco-espanhola, luta holandesa contra a Espanha pela independência nacional, Reforma e Contrarreforma, que de forma paralela e depois conjugada se somaram para uma deflagração generalizada. Para fins didáticos, esse longo conflito pode ser dividido em cinco fases: a primeira é a fase da Boêmia, de 1618 a 1621; a segunda é a fase do Palatinado; de 1621 a 1624; a terceira é a fase dinamarquesa, de 1625 a 1630; a quarta é a fase sueca, de 1630 a 1634; e a quinta e última fase é a fase francesa, de 1634 a 1648. Em cada uma dessas fases, cada país enfrentou a coalização do Império com a Espanha e os Estados germânicos católicos (CARNEIRO, 2011). Na fase boêmia, o imperador Fernando II, com apoio dos espanhóis, derrotou os protestantes na Batalha da Montanha Branca, e Frederico V, eleitor do Palatinado, foge para Haia, onde se refugia com sua corte. Na fase do Palatinado, ocorreu a ocupação dessa região pelas forças imperiais, e Fernando II acabou com todos os direitos antes gozados pelos protestantes. O Império saiu de tal modo fortalecido que amedrontou outros países protestantes europeus. Assim, na terceira fase, a Dinamarca do rei Christian IV envolveu-se diretamente no conflito em apoio à Boêmia e ao Palatinado, marcando o início da dimensão internacional da guerra. O rei dinamarquês, no entanto, também é derrotado pela coligação do Império com a Espanha, o que fortaleceu ainda mais Fernando II e resultou na promulgação do Edito da Restituição, documento que anulava todos os títulos protestantes sobre as propriedades católicas expropriadas desde a Paz de Augsburgo. A quarta fase da guerra é marcada pela entrada da Suécia, sob o reinado de Gustavo Adolfo, que temia o crescimento do poderio do Império. Apesar de algumas vitórias iniciais e de conquistas territoriais que se estenderam até a Baviera, o rei Gustavo Adolfo foi morto na Batalha de Lützen em 1632, e os suecos foram finalmente derrotados em 1634, na Batalha de Nördlingen. Em 1635, a ocupação sueca da Baviera havia acabado e, no mesmo ano, foi assinada a Paz de Praga, que efetivamente encerrou a participação dos príncipes protestantes na Guerra dos Trinta Anos, deixando a Suécia sozinha em território inimigo. 25 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 3 – A morte do Rei Gustavo Adolfo da Suécia em 1632 Na quinta e última fase, a França declarou guerra aos Habsburgos em 1935. A Paz de Praga alarmou sobremaneira os franceses, que viam o poderio imperial crescendo enquanto estavam cercados por duas monarquias dos Habsburgos, no Sacro Império Romano-Germânico e na Espanha. Portanto, a entrada da França na Guerra dos Trinta Anos, país católico em apoio aos protestantes, nada tinha a ver com questões religiosas, mas sim com o equilíbrio de poder europeu. Conforme esclarece Carneiro (2011, p. 180): A intervenção de uma nação católica no lado protestante da guerra foi uma hábil decisão geopolítica da diplomacia francesa de Luís XIII,por meio de seu chanceler, Richelieu, e após 1643, Luís XIV e Mazarino. A França busca, por meio de negociações separadas com a Suécia, a Bavária e os Países Baixos, obter seus territórios ambicionados, especialmente a Alsácia, e conseguir a derrota da Espanha. O cardeal de Richelieu orientava a política externa francesa de modo a torná-la uma grande potência na Europa em oposição aos domínios da casa dos Habsburgos, e, por isso, a França já estava apoiando indiretamente os esforços de suecos e dinamarqueses na guerra. A intervenção francesa foi decisiva para determinar a vitória dos protestantes e encerrar o conflito que se estendeu até 1648, quando os suecos conseguem tomar o Castelo de Praga na última batalha da Guerra dos Trinta Anos. Nesse mesmo ano, a Espanha, esgotada e passando por rebeliões internas, aceitou a derrota. Os acordos que possibilitaram o término da guerra foram sendo negociados ao longo dos últimos três anos de conflito. As cidades Münster, de precedência católica, e Osnabrück, de precedência protestante, são declaradas zonas neutras para sediar as conferências de paz. As negociações demonstram-se um grande desafio para as potências europeias, visto que era necessária toda uma logística para abrigar, alimentar e manter o correio para todos os negociadores nas duas cidades das mais de cem unidades políticas envolvidas na Guerra dos Trinta Anos (ROMANO, 2012). 26 Unidade I O resultado dessas conferências ficou conhecido como a Paz de Vestfália e reúne um conjunto de 11 tratados. Por meio desses acordos, foi proclamada uma anistia geral, e os vencedores receberam concessões territoriais. A França ganhou a Alsácia, Verdun, Toul e Metz e estabeleceu suas fronteiras na margem oeste do Reno. A Suécia ganhou o controle do mar Báltico e dos estuários dos rios Elba, Oder e Weser, além dos territórios da Pomerânia ocidental. Reconheceu-se ainda a independência da Suíça e das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (CARNEIRO, 2011). Figura 4 – Mapa da Europa em 1648 No que concerne ao Sacro Império Romano-Germânico, também houve importantes mudanças com a Paz de Vestfália. A Paz de Augsburgo, que institui a liberdade religiosa, é reafirmada não apenas na Boêmia, mas em todo o Império. A Bavária ganhou territórios do Alto Palatinado e o direito de voto no Conselho Imperial dos Eleitores, que escolhia o imperador. Brandemburgo ganhou a Pomerânia oriental e outros territórios, que fundamentam o surgimento da Prússia. E, por fim, os diversos Estados alemães independentes alcançaram o direito de conduzir sua própria política externa, fortalecendo o princípio da soberania. Nesse sentido, o Tratado de Vestfália é considerado o primeiro acordo internacional, uma vez que consagrou o exercício da soberania estatal por meio de garantias de não intervenção entre eles e separação entre as esferas da religião e da política. Vestfália, portanto, representa um esforço para a superação da ordem e do direito medievais, pelos quais cabia ao papa o papel de árbitro dos reis, sendo as funções do Estado secular subordinadas à Igreja (ROMANO, 2012). Nessa visão de mundo, há uma clara hierarquia de comando: o papa concede o poder aos reis para governarem, e estes devem usá-lo conforme as regras ditadas pela Igreja. No Sacro Império 27 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Romano-Germânico, a hierarquia descrita incluía ainda o imperador. Vestfália, contudo, estabeleceu a abolição da hierarquia eclesiástica e imperial, na medida em que impôs a igualdade jurídica entre os Estados e a rejeição da autoridade universal do papa. Isso significa que os Estados soberanos não mais reconhecem qualquer autoridade acima de si mesmos. Em Vestfália, a hierarquia medieval é substituída pela anarquia do equilíbrio de poder e a razão de Estado. Ou seja, antes, as ações e decisões dos príncipes eram subordinadas ao imperador e, por conseguinte, eram regulamentadas pelo papado. Após os acordos de Vestfália, os Estados deixam de se sujeitar a normas morais externas a eles próprios e adotam um sistema de reciprocidade fundamentado no reconhecimento mútuo das múltiplas soberanias e no direito internacional moderno dos pactos e tratados internacionais (CARNEIRO, 2011). Reinos Império Papa Principados França Espanha Suíça Holanda Pactos de Lealdade Hierarquizados Múltiplas Independências Figura 5 – Sistema medieval x sistema moderno de Estados Na ausência de um organismo internacional religioso ou jurídico superior aos Estados e entidades políticas para garantir o pacto e servir de árbitro entre os soberanos, como era o caso anterior da Igreja, a Paz de Vestfália é desenhada a partir de um equilíbrio fundamentado na amizade e vizinhança comum de cada parte. Trata-se, portanto, de uma obrigação social entre as entidades soberanas que se definem, ao mesmo tempo, como juízes e partes, com direitos e obrigações mútuas (ROMANO, 2012). Além disso, podemos observar que os tratados de Vestfália estabeleceram a existência de um sistema fundado em preceitos racionais e seculares. A religião, seja católica ou protestante, continuaria tendo um peso considerável na vida social e política das sociedades da época; no entanto, não seria a fé religiosa que guiaria as escolhas e ações dos Estados no sistema internacional. Estes priorizariam seus próprios interesses baseados essencialmente na geopolítica e no equilíbrio de poder (CARVALHO, 2018). Nesse sentido, Carneiro (2011, p. 185) resume a importância dos 11 tratados firmados em 1648 afirmando que: Toda a política moderna e contemporânea, baseada no reconhecimento da legitimidade dos Estados e na constituição de um conjunto político de nações que se reconhecem como parte de um sistema em que rege um direito internacional, deriva do modelo criado e formalizado a partir da Paz de Vestfália. 28 Unidade I A Paz de Vestfália, portanto, pode ser considerada a formalização do nascimento do sistema europeu de Estados, que posteriormente definiu o modelo das comunidades nacionais no Ocidente. Porém, pesquisas como a de Diego Santos Vieira de Jesus (2010) questionam a profundidade das inovações creditadas aos acordos de Vestfália, além de argumentar no sentido de haver “brechas” nos princípios de autonomia e territorialidade que dificultam a manutenção da estabilidade do sistema. Nas palavras dele: O que Vestfália fez, em certa medida, foi consagrar uma ordem cooperativa legal de entidades autônomas não soberanas, o que indica que a soberania não é o único conceito ou forma possível de interpretar a interação entre atores autônomos. Para Jesus, portanto, a ordem de Vestfália não foi em si uma inovação nas relações entre as comunidades políticas nos termos de soberania, mas apenas formalizou um padrão de relações entre os povos europeus já existentes à época da Guerra dos Trinta Anos. De qualquer forma, importa lembrar que Vestfália tornou-se um marco nos estudos de relações internacionais, uma vez que fundamentou uma cultura política compartilhada própria que determina a atual sociedade internacional. 2.2 O Congresso de Viena e a sociedade internacional europeia A estrutura política arquitetada pela ordem Vestfália, isto é, das “múltiplas independências”, perdurou por um longo tempo, o que possibilitou tanto a realização das estratégias das grandes potências europeias quanto a sobrevivência dos Estados menores. Apesar da persistência de conflitos bélicos, a guerra foi um mecanismo eficiente para manutenção do equilíbrio de poder e, até a ascensão de Napoleão Bonaparte na França, não representou ameaça ao sistema de Estados europeu. Lembrete Equilíbrio de poder é um conceito muito empregado no estudo das relações internacionais, sendo definido por Raymond Aron (2002) da seguinte forma: “a política de equilíbrio se reduz à manobra destinada a impedir que um Estado acumule forças superiores às de seus rivais coligados. Todo Estado, se quiser salvaguardar o equilíbrio, tomará posição contra o Estadoou a coalizão que pareça capaz de manter tal superioridade. Essa é uma regra geral válida para todos os sistemas internacionais”. No período de 1648 a 1789, é possível observar mudanças significativas na geopolítica europeia. A França, sob a monarquia dos Bourbons, tornou-se a principal potência na Europa continental, enquanto o advento do poder hegemônico da Grã-Bretanha nos mares e no comércio internacional superou o poder marítimo holandês. Na Península Ibérica, a Espanha enfrenta um processo de longo declínio que culminou com a guerra de sucessão ao trono espanhol iniciada em 1701 e encerrada em 1714 (MAGNOLI, 2012). 29 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Nesse conflito, a França de Luís XIV, por seu lado, apoiava a pretensão de Felipe d’Anjou, neto de Luís XIV; já a Grande Aliança, formada por Grã-Bretanha, Portugal, Prússia e Holanda, defendia que o trono espanhol fosse assumido por Carlos, do Sacro Império Romano-Germânico. Com a eleição de Carlos como imperador do Sacro Império, a Aliança perdeu força, uma vez que não interessava às potências europeias que Carlos acumulasse as duas coroas. Assim, as negociações de paz tiveram início em 1713 na cidade holandesa de Utrecht e encerraram-se em 1715. Na Paz de Utrecht, a questão de sucessão ao trono espanhol foi solucionada em favor de Felipe d’Anjou, rei Felipe V da Espanha, e, além disso, foram confirmados os princípios de soberania, não intervenção, equilíbrio de poder, a prevalência do direito internacional e a retomada à guerra como último recurso. Como observa Amado Luiz Cervo (2007a, p. 43), entre os séculos XVII e XIX, foram consolidados os valores de uma sociedade internacional europeia conforme estabelecido na Paz de Vestfália: A filosofia política de Vestfália fez avançar a sociedade internacional europeia em termos conceituais: a nova ordem era fruto na negociação, legitimava uma sociedade de Estados soberanos, enaltecia a associação e a aliança, mas não era ingênua a ponto de ignorar a hierarquia e hegemonia entre Estados e a mobilidade da balança de poder. O direito internacional modernizou-se. O jurista holandês Grotius deu aos europeus a convicção de que as relações internacionais haviam migrado para fora da anarquia maquiavélica quando os convenceu de que obedeciam a um conjunto de princípios, valores e regras aceitos e praticados pelos novos Estados-nação. A estrutura pluripolar da ordem de Vestfália deu origem a uma nova configuração geopolítica na Europa que posteriormente abriria caminhos para as guerras napoleônicas. A Grã-Bretanha era a maior potência emergente no período e fundamentou sua ascensão em um poderoso poder naval para garantia de sua segurança no equilíbrio de poder com potências continentais. Na parte oriental, a Rússia também vinha praticando uma política de afirmação como potência emergente, enquanto no Ocidente a Espanha, enfraquecida pelos conflitos em que se envolvera desde o século XVII, declinava definitivamente. Na parte mais central do continente, França e Áustria mantinham seus status enquanto a Prússia almejava converter-se em polo de influência no espaço alemão (MAGNOLI, 2012). No entanto, no final do século XVIII, a eclosão da Revolução Industrial e da Revolução Francesa levaria ao desabamento de toda a estrutura construída na Paz de Vestfália. Com a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra entre as décadas de 1770 e 1780, o mundo material mudou substancialmente, abrindo espaço para o capitalismo industrial e uma nova classe dirigente, dinâmica, cujos ideais e valores moldariam não apenas a Europa, mas também o mundo a partir da expansão da sociedade europeia na segunda metade do século XIX. Por sua vez, a Revolução Francesa derrubou violentamente todos os resquícios da estrutura política medieval, substituindo a soberania real absolutista pela soberania popular (MONDAINI, 2011). Entre 1792 e 1815, houve guerra ininterrupta em toda a Europa e em alguns locais do mundo, desencadeada pela força do ideário revolucionário francês. A França revolucionária adotou valores 30 Unidade I universais que não eram compatíveis com as monarquias absolutistas na Europa, desencadeando uma rápida reação dos Estados que defendiam os valores tradicionais. A contrarrevolução, no entanto, alimentou o imaginário de Napoleão Bonaparte em torno de um Império Francês e empregou o grande exército revolucionário como instrumento pelo qual a revolução projetou-se no cenário internacional, ameaçando não apenas um Estado ou uma coalizão, mas todo o sistema de Estados europeu (MAGNOLI, 2012). Para melhor compreensão desse contexto, faz-se necessário entender os três momentos ou “eras” em que didaticamente se divide o curso da Revolução Francesa: a era das constituições (1789-1792); a era das antecipações (1792-1794); e a era das consolidações (1794-1815). Na primeira era, observa-se a tentativa de estabelecimento de uma monarquia constitucional, que resultará na elaboração da Constituição de 1791. O objetivo das principais lideranças era reformar o regime absolutista e instituir os direitos civis (MONDAINI, 2011). Na segunda era, ocorreu a radicalização do processo, em que os jacobinos, grupo mais revolucionário, assumiram a liderança e lutaram pela eliminação de todos os resquícios de origem nobre ou burguesa. Foi a fase em que a guilhotina espalhou o terror em todo o território francês. Na última era, a fase política da Revolução teve o objetivo de consolidar as instituições burguesas na França, sendo o Exército, sob liderança de Napoleão Bonaparte, o principal instrumento de pacificação e unificação da nação francesa (MONDAINI, 2011). Sob o comando de Napoleão, a França revolucionária anexou a Bélgica à margem esquerda do Reno, modificou os governos da Suíça e da Holanda, estabeleceu posições na Espanha e em regiões da Itália, enfim, tentou formar um Império continental. Em contrapartida, seis coalizações internacionais foram formadas para enfrentar o Exército Francês, lideradas pela Grã-Bretanha e compostas por Rússia, Áustria, Suécia e Prússia. No seu auge, em 1802, o Império de Napoleão estendia-se por parte considerável da Europa (MAGNOLI, 2012). A partir de 1812, após inumeráveis vitórias, Bonaparte amargou uma imensa derrota na campanha da Rússia, seguida de outra derrota na campanha da França com o cerco de Paris pela sexta coalização. Após a capitulação de Paris em março de 1814, Napoleão renunciou e foi exilado pelos aliados na ilha de Elba. Em 1815, ainda tentou retornar ao trono francês, então ocupado por Luís XVIII, porém foi definitivamente derrotado na Batalha de Waterloo, na Bélgica, pelo general Wellington. Napoleão foi novamente exilado na ilha de Santa Helena, onde terminou seus dias (MONDAINI, 2011). No decorrer desses anos de guerra, o mapa geopolítico da Europa foi redesenhado diversas vezes, e a mudança mais significativa do ponto de vista da geografia política foi a consolidação do Estado-nacional, com fronteiras bem delimitadas e instituições e leis unificadas sob uma só autoridade soberana. Além disso, a comunidade feudal consistia em uma propriedade de algum nobre, herdada pelos seus descendentes, mas agora deixa de ser propriedade da nobreza para ser nacional. O reconhecido historiador inglês Eric Hobsbawm (1974, p. 99) assim descreveu os impactos da Revolução Francesa em termos político-sociais: 31 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS “A Revolução Francesa”, observava De Bonald em 1796, “é um acontecimento único na história”. A frase é enganadora: ela foi um acontecimento universal. Nenhum país estava imune a ela. Os soldados franceses que guerrearam de Andaluzia a Moscou, do Báltico à Síria estenderam a universalidade de sua revolução mais eficazmente do que qualquer outra coisa. E as doutrinas e instituições que levaram consigo, mesmo sob o comando de Napoleão, desde a Espanha até a Ilíria, eram doutrinas universais, como os governos sabiam e como também os próprios povos logo viriama saber. As guerras napoleônicas marcaram o fim das múltiplas independências da Paz de Vestfália, porque não foram apenas guerras interestatais, em que as unidades políticas se reconhecem como legítimas. A França revolucionária de Napoleão Bonaparte tinha pretensões imperiais, ou seja, almejava destruir a ordem internacional vigente para construir uma nova ordem que refletisse seus próprios valores. As guerras travadas por Bonaparte tinham, portanto, características imperiais com o objetivo de eliminação de inimigos e formação de uma unidade superior aos demais. Assim, as negociações de paz deveriam suprimir o agressor que buscava a hegemonia e restaurar a ordem (MAGNOLI, 2012). Nesse sentido, as potências europeias, uma vez derrotado o Império Francês, reuniram-se no Congresso de Viena em 1815 na tentativa de reconstituir a ordem internacional europeia. Porém, decidiram que não mais convinha restabelecer o sistema das múltiplas independências diante da possibilidade de que isso implicasse o perigo de uma nova aventura imperial. Dessa forma, a sociedade internacional europeia evolui para um sistema de colaboração e controle pelas grandes potências (CERVO, 2007a). O Congresso de Viena ocorreu oficialmente entre novembro de 1814 e junho de 1815 com o objetivo de reorganizar a ordem europeia após as guerras napoleônicas. No entanto, havia muitos outros interesses em jogo de cada uma das quatro grandes potências que derrotaram Napoleão Bonaparte: à Grã-Bretanha, interessava a edificação de uma ordem baseada no consenso e estabelecimento de quesitos de segurança que impedissem o surgimento de um Estado hegemônico na Europa; a Prússia almejava manter uma política de influência da região alemã e, para tanto, via a anexação do Reino da Saxônia como condição indispensável; por sua vez, a Rússia exigia a formação de um Estado polonês unificado, porém subordinado às prerrogativas de Moscou, e conflitava com os interesses da Prússia e Áustria; e a Áustria desejava não somente conter a expansão russa em território polonês, mas também tinha pretensões territoriais sobre o leste e sul da Europa. As negociações, como descreve Demétrio Magnoli (2012), desenrolaram-se em diversas fases. A primeira fase, antes da abertura do Congresso, caracteriza-se pela discussão dos procedimentos da negociação, cujo resultado foi a manutenção das discussões territoriais somente entre as quatro grandes potências, excluindo a França restaurada e outros países que participaram das guerras napoleônicas, como Espanha e Suécia. Houve protestos por parte da França, porém, nessa fase, sem resultados. 32 Unidade I Ainda no contexto das preliminares, iniciou-se em outubro de 1814 a segunda fase das negociações, na qual as grandes potências expuseram suas reivindicações territoriais e estudaram os possíveis cenários de compromisso. Nesse momento, ficou clara a dificuldade de estabelecer um equilíbrio geral na Europa sem que fosse resolvida a questão regional entre os Estados alemães. Para a Grã-Bretanha, um eixo de entendimento entre Prússia e Áustria com apoio dos ingleses seria ideal para equilibrar qualquer pretensão hegemônica da Rússia e França. Porém, devido ao fracasso das negociações entre as potências centrais, a França foi convidada a ingressar no núcleo das potências, dando início à terceira fase do Congresso de Viena (MAGNOLI, 2012). Entre dezembro de 1814 e janeiro de 1815, desenrolou-se a terceira fase de negociações e foram os momentos mais tensos do Congresso. A Prússia, recuada pela entrada da França no círculo fechado das potências, impôs suas condições sobre territórios alemães e poloneses sob ameaça do recurso à força caso não fosse atendida. Os ânimos foram contidos após recuo da Rússia em suas pretensões sobre a Polônia, que abriu caminho para um entendimento geral. Na quarta fase, ocorreu o processo de negociação final liderado pela Grã-Bretanha. O texto do tratado possibilitou à Rússia a formação do Estado polonês independente, porém descrito como um patrimônio hereditário da dinastia russa; a Prússia recebeu territórios a leste do Reno e parte do reino da Saxônia, além de outros territórios reivindicados; a Áustria perdeu poder no espaço alemão, mas, em contrapartida, obteve territórios ao sul da Europa; a Grã-Bretanha, em suas pretensões de segurança, conseguiu estabelecer o Reino da Holanda, abrangendo a Bélgica, que funcionaria como barreira às pretensões francesas na região; por fim, a França obteve a formação de uma Confederação dos Estados Alemães, de forma a dificultar a pretensão da Prússia e da Áustria de avançarem sobre a região (MAGNOLI, 2012). O novo desenho do mapa europeu (figura adiante) beneficiou, sobretudo, a Grã-Bretanha, que alcançou todos os objetivos de segurança sem renunciar à prática de não intervir nos assuntos continentais, além de obter o desejado equilíbrio que possibilitou aos ingleses perseguirem sua política de expansão mundial. O isolamento britânico gerou protestos por parte das monarquias centrais, que reuniam Rússia, Áustria e Prússia, quando ocorreram revoltas liberais na Espanha, influenciadas pelos valores da Revolução Francesa. O episódio levou as três monarquias a estabeleceram a Santa Aliança, fundamentada nos valores cristãos e absolutistas, de forma a afastar os ideários franceses. Diversos reis e príncipes aderiram ao documento da Santa Aliança, abalando a opinião liberal europeia. Diante disso, a Grã-Bretanha formulou a Quádrupla Aliança, composta também por França, Espanha e Portugal, com a finalidade de preservar a ordem edificada em Viena. Por esse mecanismo, ocorreriam conferências periódicas para sustentar o Concerto Europeu (MAGNOLI, 2012). 33 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 6 – A Europa após o Congresso de Viena, 1815 A partir de 1815, as cinco grandes potências europeias (Grã-Bretanha, Áustria, França, Prússia e Rússia) agiam como diretório, realizando intervenções coletivas para manutenção do equilíbrio e da ordem de Viena. O sistema das múltiplas independências e a razão de Estado foram substituídos pela hegemonia coletiva e pelo equilíbrio de poder entre os cinco grandes. Amado Cervo (2007a, p. 47) assim resume o novo contexto das relações internacionais que emergiu do Congresso de Viena: A legitimidade desse sistema internacional, o Concerto Europeu, fundava-se nos benefícios que seus membros supunham derivarem de seu funcionamento: como os extremos – a potência singular independente ou a hegemonia singular absoluta – não podiam impor-se, a prática tornava o sistema legítimo ao erradicar os males dos extremos. O senso realista das concepções e práticas da política internacional do Concerto Europeu do século XIX pretendeu corrigir o sistema de igualdade jurídica dos Estados implementado no século XVII, porque este último revelou-se incapaz de evitar a dominação dos impérios. Foi além, ao indicar que os grandes devem atender a interesses de todos os Estados-membros da sociedade internacional. 34 Unidade I O Concerto Europeu mostrou-se um mecanismo eficiente para manutenção da estabilidade europeia até a ascensão da Alemanha unificada. Por meio desse mecanismo de equilíbrio de poder, foi possível um longo período de paz que durou cerca de cem anos, com apenas conflitos esporádicos que não colocavam em risco o sistema de Estados europeu. Nesse período, a burguesia europeia e a ordem liberal capitalista atingiram seu auge e materializaram a força de expansão da sociedade europeia para todo o globo. 2.3 Expansão da sociedade internacional europeia No decorrer do século XIX, a Europa mergulhou em duas ondas que conformariam o mundo contemporâneo: o nacionalismo e o liberalismo. As reivindicações do liberalismo econômico e democrático e do nacionalismo viriam a ser gradualmente realizadas nas décadas seguintes, resultando em um período no qual consagrou-se a soberania popular, e o mundo tornou-se capitalista (HOBSBAWM, 1974). Na década de 1840, um novomovimento revolucionário abalou a França, espalhou-se por diversas cidades europeias e se generalizou em 1848, ficando conhecido como Primavera dos Povos. Iniciado após uma crise econômica na França, o levante popular derrubou a monarquia francesa de Luís Felipe, restaurada após o Congresso de Viena, dando origem a um novo período republicano. Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, foi o primeiro presidente eleito, porém, em 1851, pouco antes de terminar seu mandato, Luís Bonaparte, por meio de um golpe de Estado, instaurou o Segundo Império, declarando-se imperador com o título de Napoleão III. Em outros países europeus, também ocorreram diversas manifestações populares, que resultaram na abolição da servidão feudal na Áustria e na Hungria, no fim da monarquia absolutista na Dinamarca, no federalismo na Suíça, além de despertar o nacionalismo italiano e alemão, que resultou nas guerras de unificação em ambos os países, encerradas em 1870 e 1871, respectivamente. Por sua vez, a Rússia, sob alegação de proteção das minorias eslavas nos Bálcãs, tentou anexar a região da Crimeia, àquela época, parte do território do Império Otomano. Entretanto, com a intervenção de ingleses e franceses, a Rússia não atingiu seu objetivo. A Guerra da Crimeia e as guerras de unificação da Itália e da Alemanha redesenharam o mapa da Europa e resultaram na formação de duas novas potências no quadro geopolítico europeu. Ainda assim, o sistema de equilíbrio europeu, que emergiu do Congresso de Viena exercido por meio da hegemonia coletiva das cinco grandes potências, tornou-se o centro do poder mundial a partir do qual ocorreu a expansão da sociedade europeia para todo o mundo durante o século XIX. O resultado do encontro da sociedade internacional europeia com as demais regiões do globo foi a construção de um sistema mundial, no qual os europeus determinaram as relações com os novos Estados (CERVO, 2007a). 35 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 7 – A Europa em 1871 Seja pela força, seja pela negociação de acordos, a Europa montou um efetivo esquema de dominação por todo o mundo. Aos novos Estados, era exigido que copiassem o modo de vida europeu em todas as áreas, incluindo a organização interna, o livre comércio externo e, sobretudo, os códigos e regras de conduta do Direito Internacional. Desse modo, conforme argumenta Amado Cervo (2007a, p. 48), a expansão europeia se deu em três dimensões: dominação estratégica, exploração econômica e imperialismo cultural. Em suas palavras: O resto do mundo foi posto sob controle hegemônico do concerto dos europeus. A Revolução Industrial forneceu-lhes os meios, a sociedade internacional europeia, as regras, os princípios e os valores. A resistência era minguada. Os europeus iriam impor às sociedades menos complexas ou organizadas e também às grandes civilizações seu modo de fazer comércio e de explorar a terra e os recursos naturais, como também regras e instituições desenvolvidas na matriz do sistema. As reações aos mecanismos de dominação serviam para expandir regras e instituições, como efeito desejado ou odiado, pouco importava: honrar contratos e acordos e internacionais, garantir imunidades diplomáticas ou dos comerciantes, aceitar consulados. 36 Unidade I A primeira grande região a ser integrada no processo de expansão da sociedade europeia de Estados soberanos foi a América. Uma vez superada a estrutura colonial, as jovens nações americanas foram aceitas como novos membros do sistema internacional organizado a partir da Europa. Para tanto, foi importante o apoio da França aos Estados Unidos, que, por motivos de estratégia, optou pelo lado norte-americano na Guerra de Independência desse país. Igualmente foi importante o reconhecimento da Grã-Bretanha à emancipação dos países latino-americanos, uma vez que permitiria a abertura de novos mercados aos produtos ingleses oriundos da Revolução Industrial. Criou-se, dessa forma, uma interdependência entre as economias latino-americana e europeia, que integrou a América Latina plenamente à economia internacional (CERVO, 2007a). Nas décadas de 1850, o liberalismo econômico e comercial foi imposto aos imensos mercados da China e do Japão. O passo seguinte foi a integração da maior parte dos continentes africano e asiático ao capitalismo dos países centrais pelo instrumento do imperialismo. Na segunda metade do século XIX, ocorreu uma nova expansão colonialista europeia, após a expansão mercantilista do século XVI. Nessa segunda fase, a Europa empregou o discurso civilizatório para justificar o colonialismo promovido em direção à Ásia e à África. O “fardo do homem branco” era o compromisso ideológico de levar o desenvolvimento da sociedade industrial aos demais povos designados como menos avançados. Inicialmente, o colonialismo europeu do século XIX foi feito sem um plano específico, com base apenas na expansão das forças do capitalismo industrial, na busca por matérias-primas e novos mercados. A colonização da Argélia pela França, por exemplo, iniciou-se pelas necessidades do livre comércio, que resultou na instalação de administração local pela conquista. Dessa forma, os europeus conquistaram os territórios da Ásia, África e Oceania, estabelecendo impérios coloniais em todo o mundo (CERVO, 2007a). A estrada de ferro, o vapor e o telégrafo, frutos da segunda fase da Revolução Industrial, foram os meios empregados para expandir o espaço da moderna economia capitalista. Assim, a colonização foi um desdobramento do imperialismo industrial que marcou a expansão da sociedade internacional europeia na segunda metade do século XIX (HOBSBAWM, 1974). O empreendimento colonial europeu chegou ao seu ápice na Conferência de Berlim, em 1884, quando as potências imperialistas dividiram entre si o continente africano, estabelecendo fronteiras artificiais conforme os interesses dos colonizadores. A corrida para a África teve início em 1876, quando a França empreendeu a colonização do interior da África ocidental a partir da costa de Senegal. A atitude francesa despertou oposição por parte de outras potências europeias, especialmente a Alemanha, que chegou tardiamente na corrida colonial. Na Conferência de Berlim, em que participaram todas as potências europeias e os Estados Unidos, foi decidida a manutenção do livre comércio no espírito consensual do Concerto Europeu. Além disso, os participantes acordaram que as aquisições coloniais seriam reconhecidas por todos, desde que se procedesse a ocupação efetiva, aumentando a disputa colonial na África (DÖPCKE, 2007). 37 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 8 – A África em 1890 A expansão europeia, baseada no liberalismo econômico, também difundiu os valores da sociedade europeia: parâmetros econômicos e de produtividade, mentalidade e ciência, práticas políticas e padrões de organizações sociais. Esse conjunto de valores alcançou todos os continentes, seja pela dominação ou 38 Unidade I por meio de parcerias. Desse modo, a partir da Europa, formou-se um sistema internacional de alcance global (CERVO, 2007b). 3 O APOGEU DO SISTEMA INTERNACIONAL EUROPEU (1871-1914) O Concerto Europeu foi o mecanismo regulador das relações internacionais predominante durante o século XIX. Com raízes na tradição anti-hegemônica e no equilíbrio de poder, baseava-se em normas e no consenso entre amigos. Sob a guarda desse sistema, a sociedade internacional europeia atingiu o seu ápice. Após as manifestações de inspiração na Revolução Francesa que se encerraram em 1848, o mundo burguês europeu empregou as forças da Revolução Industrial para expandir seus valores e padrões para todos os cantos do globo. Foram décadas de prosperidade, de inovações técnico-científicas, de desenvolvimento das artes, de crescimento demográfico, de formação dos grandes impérios coloniais, de efervescência de novas ideias e ideologias. Do navio a vapor ao motor à combustão, do comunismo de Marx ao positivismo de Comte, dateoria do crescimento populacional em progressão geométrica de Malthus à teoria evolucionista de Darwin, do telégrafo ao telefone, do absolutismo ao constitucionalismo, da independência dos países americanos ao imperialismo europeu, do mercantilismo à moderna sociedade industrial, enfim, o longo século XIX, como se referiu o historiador Eric Hobsbawm, marcou a humanidade com rápidas transformações políticas, econômicas e sociais. Entretanto, no limiar do século XX, toda essa pujança terminaria em um dos maiores conflitos de grande potencial destrutivo da humanidade: a Primeira Guerra Mundial, em 1914. Quem viveu a segunda metade do século XIX não perceberia facilmente que as raízes dos quatro anos de guerra que abalaram a Europa e o mundo foram lançadas a partir de 1871, após a unificação italiana e alemã. Difícil entender como o apogeu da sociedade internacional europeia coincide com o início de seu colapso, e, mesmo décadas após o término da Primeira Guerra Mundial, a investigação sobre suas causas levantou grandes debates entre os estudiosos (HOBSBAWM, 1974). De todos os modos, o período de 1871 a 1914 é caracterizado pelo apogeu da hegemonia global do sistema europeu no mundo, embasada na vantagem da industrialização. Contudo, ainda que as potências do Concerto Europeu fossem as mesmas depois de 1871, a balança de poder entre elas alterou-se significativamente após a unificação alemã comandada pela Prússia. Esse Estado era o mais fraco entre as cinco grandes potências, porém, com a formação do Império Alemão, elevou-se para uma posição de potencial hegemonia no continente (DÖPCKE, 2007). Além dos ganhos territoriais, a Alemanha unificada investiu pesadamente na industrialização e na corrida colonial. E era a dinâmica da industrialização, diferenciada em cada Estado europeu, que determinava a sua posição relativa de poder no sistema de Estados. Assim, rapidamente, a Alemanha tornou-se uma grande potência na Europa central, atemorizando as demais potências do Concerto Europeu. Analisaremos a dinâmica do equilíbrio europeu após 1871, considerando as transformações que resultaram no colapso da Ordem de Viena com a deflagração da Primeira Guerra Mundial em 1914. 39 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Inicialmente, analisaremos o quadro geopolítico que emergiu na Europa após a conclusão das unificações italiana e alemã. Em seguida, vamos compreender o quadro econômico a partir do qual se processou o imperialismo e a hegemonia europeia no mundo. Depois, abordaremos os movimentos da política externa alemã no período estudado: o primeiro se estende até 1871 a 1890, quando a geopolítica e diplomacia europeia foram determinadas pela política de alianças difundida pelo chanceler alemão Otto von Bismarck; o segundo período abrange desde a saída de Bismarck em 1890, que marcou o início de uma política externa alemã mais agressiva, até a deflagração geral da guerra no continente europeu em 1914 (DÖPCKE, 2007). 3.1 Tendências na geopolítica europeia após 1871 O contexto político europeu na segunda metade do século XIX foi delineado pelo resultado das guerras de unificação alemã. A Prússia, reino mais avançado no processo de industrialização no espaço germânico, liderou a centralização da Alemanha, dando origem ao Império Alemão. Durante o processo de unificação, a Prússia derrotou a Dinamarca na Guerra dos Dois Ducados e incorporou os ducados de Holstein e Schleswig ao norte. Em seguida, derrotou a Áustria na Guerra Austro-prussiana e anexou Estados germânicos ao sul. Por fim, após um desentendimento com a França sobre a sucessão ao trono espanhol, a Prússia foi à guerra contra os franceses, derrotando-os em 1871. No tratado de paz, a Alemanha-Prússia impôs duras condições à França, pois queria enfraquecê-la. Além da anexação da região da Alsácia e da Lorena pela Prússia, a França foi obrigada a arcar com indenização de guerra e ainda foi humilhada com uma marcha triunfal alemã ao longo dos Campos Elíseos (VIDIGAL, 2011). À fundação do Império Alemão após as guerras de unificação seguiu-se um processo de industrialização acelerada, que transformou a Alemanha em uma potência continental com potencial de hegemonia sobre a Europa (DÖPCKE, 2007). Seus atributos militares, econômicos e demográficos superavam em número e condições a França, maior potência continental até então. A meta da Alemanha unificada era igualar-se à Grã-Bretanha, uma grande potência marítima que construíra um Império além-mar a partir do equilíbrio europeu. O ano de 1871, portanto, deu início ao colapso da ordem de Viena. Conforme argumenta Vidigal (2011, p. 314): A completa derrota da França, que culminou com o fim do Segundo Império Francês, criou novo equilíbrio de poder na Europa, com a Alemanha substituindo a França como potência hegemônica no continente europeu. É verdade que o equilíbrio era apenas aparente, já que o poder da Alemanha representava, definitivamente, o fim do sistema criado com o Congresso de Viena. Entretanto, a Alemanha, sob orientação de uma política externa de equilíbrio comandada por Bismarck, não chegou a transformar esse potencial em uma prática política consistente. A política externa alemã, enquanto Bismarck foi chanceler, era guiada mais pela ideia de vulnerabilidade do Império Alemão frente às coalizões inimigas do que por uma lógica de exercício de poder como principal potência 40 Unidade I do continente europeu. Dessa forma, ainda que as condições econômicas e militares permitissem que a Alemanha exercesse maior predominância na Europa, a política externa cautelosa conduzida por Bismarck fez com que o equilíbrio do Concerto Europeu perdurasse até 1890. Porém, a partir dessa data, o Império Alemão passou a agir como uma potência mundial não satisfeita, atemorizando os demais países europeus (DÖPCKE, 2007). Enquanto a Alemanha crescia em status e poder na Europa, a França, por sua vez, após a derrota na Guerra Franco-prussiana, perdeu seu potencial hegemônico. Mergulhada em problemas internos, a França não conseguiu acompanhar o rápido desenvolvimento industrial e militar dos alemães, o que tornou obsoleta sua estratégia geopolítica e seu exercício do equilíbrio de poder no Concerto Europeu. Da mesma forma, a Áustria, dividida em uma monarquia dual congregando também a Hungria, via-se em vertiginoso declínio na segunda metade do século XIX. Tal fato acontecia devido à grande heterogeneidade étnica que compunha o Império Austro-húngaro que constantemente gerava instabilidades e conflitos internos. Além disso, a Áustria foi a única potência que ficou de fora da corrida colonialista e ainda se viu em atraso econômico frente à Alemanha. A Rússia, após sua rápida expansão para leste até o Alaska, possuía uma imensa população, porém era um país economicamente agrário e atrasado no quesito industrialização. Sua política externa permanecia orientada para a expansão territorial, tanto a leste em territórios hoje chineses, quanto a oeste na região dos Bálcãs e partes do Império Otomano. Este, à medida que o século avançava, via-se cada vez mais enfraquecido e sofria lentamente um processo de desintegração, que criava pretexto para disputas territoriais entre a Rússia e Áustria. A Itália unificada não chegou a gozar o status de grande potência no quadro geopolítico europeu devido ao seu atraso econômico e à insuficiência militar. Nas poucas vezes em que foi convidada a participar do processo decisório entre as grandes potências, era apenas por uma questão de cortesia (DÖPCKE, 2007). Dessa forma, olhando para o contexto geopolítico europeu após 1871, a Alemanha se sobressai de modo incontestável como grande potência continental, uma vez que o conceito de grande potência ainda estava atrelado à capacidade de fazer a guerra, que, naquele período, correspondia à força industrial de cada Estado. Ainda no círculo europeu, porém fora do âmbito continental, a Grã-Bretanha vivia o auge de seu desenvolvimento econômico e industrial,possuía força militar, especialmente naval, de grande prestígio e havia formado um Império Colonial de grande extensão, no qual “o sol jamais se punha”. A Grã-Bretanha era a maior potência marítima da época, com presença naval em todos os mares do globo. Porém, sua política externa correspondia a uma orientação de não intervenção nos assuntos do continente, ao passo que se esforçava pela manutenção de seu grande Império ultramarino. Sem dúvida, a Grã-Bretanha era a única grande potência europeia capaz de fazer frente ao crescente poderio alemão, mas optava por manter seu “isolamento esplêndido” e direcionar sua política para fora do continente europeu. Em escala mundial, embora o poderio europeu sobre o mundo fosse incontestável, já era notável a ascensão de outras potências fora do âmbito europeu. No continente americano, os Estados Unidos, após a Guerra de Secessão, atingiram a condição de primeira potência industrial do mundo, suplantando a Grã-Bretanha. Na Ásia, também o Japão praticava, em âmbito interno, uma política de 41 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS transformação de uma economia agrária para um país industrializado e forte militarmente. Em âmbito externo, o Japão desafiou a hegemonia europeia e derrotou a Rússia na disputa pela Manchúria em 1905, demonstrando sua pretensão ao status de grande potência (DÖPCKE, 2007). A ascensão de novas grandes potências alheias ao Concerto Europeu tornava gradualmente esse mecanismo obsoleto no gerenciamento do sistema internacional. Da mesma forma, é ainda importante considerar outros elementos que influenciaram nas questões geopolíticas após 1871, isto é, as forças profundas que contribuíram para o esmorecimento do Concerto Europeu. A mais importante, no período que estamos estudando, foi o nacionalismo, habilmente manejado por instituições, partidos políticos e a mídia. Na primeira metade do século XIX, o nacionalismo associava-se à autodeterminação dos povos, à democracia e à soberania popular. Porém, já na segunda metade do século, o nacionalismo ganhou apelo à identidade e ao interesse nacional, ao patriotismo de massas, radical e integrista. Por conseguinte, essa nova onda de nacionalismo no continente europeu resultou no militarismo, ou seja, em uma crescente busca por meios bélicos que influenciou diretamente no processo decisório em política externa. Nos Bálcãs, esses nacionalismos foram responsáveis pelo aumento das tensões entre as potências da Europa oriental, isto é, a Áustria e a Rússia (DÖPCKE, 2007). Todos esses fatores apontam uma imensa instabilidade no quadro geopolítico europeu na segunda metade do século XIX, e não foi possível encontrar soluções diplomáticas permanentes apenas em âmbito do Concerto Europeu. As crises que surgiam, uma após outra, foram solapando a ordem de Viena e empurrando as nações para a Primeira Guerra Mundial. 3.2 Economia e relações internacionais No período entre 1871 e 1914, a economia capitalista industrial alcançou seu auge nos países desenvolvidos. O imperialismo do capital, ao qual Lenin chamou de “fase superior do capitalismo”, chegou a todos os recantos do planeta, transformando a economia internacional em uma única economia global. O liberalismo foi o slogan dessa fase, o que resultou em menos impedimentos para a movimentação de capital e ativos produtivos. As grandes potências econômicas, França, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos, realizaram investimentos de grande volume no exterior (DÖPCKE, 2007). Como consequência direta da mundialização da economia internacional, circunscreveu-se uma visível divisão internacional do trabalho, em que ficou patente a crescente diferença entre as economias industrializadas e exportadoras de capital, hoje, os chamados países desenvolvidos, e aquelas exportadoras de matérias-primas, os países em desenvolvimento. Nesse período, a expansão dos grandes impérios coloniais modelou o mundo econômico não só à época, como também deixou reflexos na atualidade. Hobsbawm (1988, p. 56), ao analisar a formação dos imensos impérios coloniais no final do século XIX, associa-os ao dinamismo da expansão da economia capitalista no mundo pós-Revolução Industrial: Era muito provável que uma economia mundial cujo ritmo era determinado por seu núcleo capitalista desenvolvido ou em desenvolvimento se transformasse num mundo onde os “avançados” dominariam os “atrasados”; em suma, num mundo de império. [...] A supremacia econômica e militar dos 42 Unidade I países capitalistas há muito não era seriamente ameaçada, mas não houvera nenhuma tentativa sistemática de traduzi-la em conquista formal, anexação e administração entre o final do século XVIII e o último quartel do século XIX. Isto se deu entre 1880 e 1914, e a maior parte do mundo, à exceção da Europa e das Américas, foi formalmente dividida em territórios sob governo direto ou sob dominação política indireta de um ou outro Estado de um pequeno grupo: principalmente Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica, EUA e Japão. Como observado por Hobsbawm (1988), Estados Unidos e Japão figuravam entre as grandes potências imperialistas, apesar da supremacia europeia. A Europa dominava a exportação de produtos industriais e capitais, bem como o comércio internacional. Cerca de dois terços de tudo que era exportado correspondia à produção europeia. Entre os Estados europeus, a Grã-Bretanha era o maior exportador de produtos industrializados, o maior exportador de capitais, de serviços financeiros e comerciais e de serviços de transportes. Londres tornou-se o centro financeiro mundial, por onde passavam todas as transações financeiras internacionais, e ditou o ritmo econômico do capitalismo industrial. A Grã-Bretanha se convertera na “oficina do mundo”, patrocinando a maior parte das inovações tecnológicas do período estudado. Ainda que o domínio econômico europeu fosse incontestável, na virada do século, já era perceptível o surgimento de um novo polo industrial fora da Europa: os Estados Unidos. No início do século XX, os norte-americanos, após uma rápida industrialização, tornaram-se o líder industrial do mundo, suplantando a Grã-Bretanha. O crescimento econômico dos Estados Unidos, contudo, até 1913, era orientado para o mercado interno, sendo que sua participação no comércio internacional era de apenas 10% do total mundial. O peso da participação norte-americana nas relações internacionais do período, por conseguinte, ainda era pouco expressivo (DÖPCKE, 2007). Também no continente europeu, na virada do século, ocorreu uma redistribuição do poder econômico entre as potências, isto é, o relativo declínio da Grã-Bretanha no período de acentuada depressão na década de 1870 e o avanço determinado da Alemanha. Entre 1880 e 1913, a produção e exportação industriais alemãs passaram de menos da metade da inglesa para um nível ainda superior às da Grã-Bretanha. No mesmo período, países menores em torno do núcleo central da industrialização europeia avançavam no desenvolvimento industrial, como Rússia, Holanda, Bélgica e Hungria. Entretanto, a depressão, seguida de um rápido processo de industrialização, conduziu as economias europeias para um abismo protecionista, cujo resultado foi o aumento de rivalidades em que os ganhos de umas pareciam ameaçar as outras (HOBSBAWM, 1988). Conforme explica Döpcke (2007, p. 88), esse quadro de rivalidades econômicas foi um dos fatores que resultaram na Primeira Guerra Mundial: A partir da década de 1870, ganhou espaço a ideia de se tratar toda a economia nacional como conjunto produtivo digno de proteção e de incentivo pelo Estado. A competição econômica entre empresas, no mercado mundial, articulou-se crescentemente como competição entre interesses nacionais 43 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS dos Estados-nação. Do ponto de vista da política exterior, isso causou a volta ao protecionismo, à guerra alfandegária, e ao emprego do poder político-estatal na defesa e na manutençãode esferas de influências externas. Os antagonismos econômicos repercutiram nos interesses geopolíticos, o que contribuiu para o clima de tensão que resultaria no grande conflito de 1914. Hobsbawm (1988) ainda lembra que o protecionismo industrial, por outro lado, ajudou a ampliar a base industrial do mundo, uma vez que incentivou as indústrias nacionais a produzirem visando os mercados internos de seus países. O mercado interno crescia substancialmente, com cada vez mais compradores de bens e serviços e cada vez menos dependentes das economias rurais. Tal cenário se deve, em grande medida, ao aumento da proporção da população que vivia em cidades, saltando de uma média de 19% em 1850 para 41% em 1910, nas regiões da Europa e dos Estados Unidos (HOBSBAWM, 1988). O crescimento de centros urbanos ampliava a demanda por bens de consumo manufaturados. De forma geral, as características importantes da economia internacional no período estudado, que contribuem para a compreensão das forças profundas à época, foram resumidas por Hobsbawm (1988) em sete tópicos: • Ampliação da base geográfica do capitalismo, que ganhou dimensão global. • Por conseguinte, a economia mundial tornou-se mais pluralistas do que antes, ou seja, a Grã-Bretanha deixava de ser o único polo industrial, na medida em que outros países europeus e também além da Europa, como os Estados Unidos, tornavam-se economias industriais. Esse processo ampliou a rivalidade entre os Estados, que competiam por mercados e matérias-primas. • No final do século XIX, ocorreu uma segunda Revolução Industrial, isto é, um novo avanço tecnológico que inaugurou a era do automóvel, do telefone, da energia elétrica, do avião. • Ocorreu uma transformação na estrutura da empresa capitalista, com a formação de grandes conglomerados industriais e grandes empresas que aplicavam um método mais racional e científico no processo de produção, adotando uma rígida divisão de tarefas. • Houve uma mudança significativa no mercado consumidor, que aumentou não só em número, devido ao crescimento populacional, como também em qualidade, uma vez que a demanda, antes centrada em bens de consumo de necessidade básica, alimentos e vestuário, ampliou-se para outros bens que promoviam maior comodidade à vida cotidiana, como o fogão a gás. • Ampliação acentuada do setor de serviços, tanto público quanto privado, tais como bancos e comércio. • Crescente convergência entre política e economia, cujo fortalecimento dos nacionalismos teve consequência direta nas questões geopolíticas da época. 44 Unidade I 3.3 A diplomacia de Bismarck Após a unificação da Alemanha, ocorrida em 1871, a política internacional europeia foi habilmente manipulada pela diplomacia de Otto von Bismarck. Conhecido como “o chanceler de ferro”, Bismarck, nascido na Prússia em 1815, foi um diplomata e político alemão de grande destaque entre os estadistas do século XIX. Conservador e monarquista, Bismarck ocupou o cargo de primeiro-ministro do Reino da Prússia a partir de 1862 e empregou seu prestígio e habilidade junto ao rei da Prússia para conduzir o processo de unificação da Alemanha desde a Prússia, isolando a influência austríaca. A unidade alemã foi forjada a partir de uma aliança entre junkers, isto é, nobres grandes proprietários de terras e a nascente burguesia industrial, cuja identidade pautou-se na retórica do nacionalismo alimentado pelas guerras externas. Na pintura a óleo de Anton von Werner, de 1885 (figura a seguir), é possível ver Bismarck ao centro, de roupas claras, na sagração de Guilherme I, rei da Prússia, como imperador da Alemanha, no Palácio de Versalhes em 18 de janeiro de 1871, data da fundação do Império Alemão. A posição de destaque de Bismarck na pintura é uma alegoria de seu poder e influência tanto na política interna quanto externa na corte alemã. Figura 9 – Proclamação do Império Alemão Uma vez formado o Império Alemão, Bismarck foi nomeado primeiro-ministro e ministro das relações exteriores da Alemanha. Como chanceler, seu objetivo principal era garantir a integridade do Império contra os vizinhos, temerosos da hegemonia alemã no continente e especialmente contra uma possível revanche francesa após a derrota e perda da Alsácia-Lorena para a Alemanha em 1871 (DÖPCKE, 2007). Nesse sentido, a política exterior praticada por Bismarck tinha como principal característica a manutenção do status quo, isto é, da condição alcançada pela Alemanha no momento de formação do Império Alemão. Tal política conduzida pelo chanceler alemão implicava os seguintes tópicos: evitar o aumento do poderio alemão, de modo a não causar suspeitas ou medo demasiado entre as demais potências europeias; manter a paz na Europa Central; isolar a França, que poderia ameaçar a posição alemã caso esta se aliasse a outras potências; evitar participar da corrida colonial, para não se envolver em conflitos diretos com a França ou a Grã-Bretanha. 45 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Considerando a primeira estratégia da diplomacia de Bismarck, o chanceler alemão deixou de lado o potencial de investimento em uma política de poder com o objetivo de convencer a Europa de que o Império Alemão era uma potência satisfeita com sua condição militar e territorial no centro do continente europeu. Bismarck entendia que o desinteresse por qualquer tipo de aumento de poder, naquele momento entendido como expansão territorial, evitaria a constituição de coligações ou alianças contra a Alemanha. Com vistas a alcançar as duas próximas metas, Bismarck investiu em um sistema de alianças formais de caráter permanente, conhecido como “sistemas de Bismarck”, que, no início do século XX, colocaria um ponto final ao esquema de coordenação mútua entre as potências do Concerto Europeu, resultando em bipolaridade (DÖPCKE, 2007). Para manter a paz no centro da Europa, Bismarck articulou o Tratado dos Três Imperadores em 1872, reunindo a Rússia e a Áustria-Hungria, além da Alemanha. Em comum, todos esses Estados caracterizavam-se pela adoção de um sistema político de monarquias conservadoras, pouco adeptas ao liberalismo britânico. Porém, a tarefa de conciliar os interesses russos e austríacos na região do Bálcãs necessitou de um grande esforço por parte do habilidoso chanceler alemão. A Rússia tinha interesse em expandir sua influência pelo território europeu do Império Otomano em regiões onde predominava a etnia eslava, atual Sérvia. Esses grupos haviam se revoltado contra o imperador turco, acirrando as tensões nacionalistas que ameaçavam desintegrar o Império Otomano, especialmente em sua porção europeia. Partes desse território eram também pretendidas pela Áustria-Hungria, colocando as monarquias austríaca e russa em rota de colisão. Diante desse dilema, Bismarck optou pela neutralidade, atitude que indignou a Rússia, pois esta exigiu uma incontestável posição da Alemanha a seu favor. Nesse contexto de acirramento de tensões, a Aliança dos Três Imperadores acabou sendo deixada de lado; contudo, Bismarck insistia em evitar uma guerra entre as principais potências da Europa Central. Uma vez fracassada a iniciativa de agrupá-las em uma única aliança, Bismarck optou por fechar acordos individuais e secretos de forma a neutralizar as tensões. Em 1879, celebrou o Tratado da Dupla Aliança com a Áustria-Hungria, que, posteriormente, em 1882, incluiria a Itália, dando origem à Tríplice Aliança. Tal acordo, de caráter defensivo, previa ajuda mútua em caso de guerra. A Rússia, em 1881, demonstrou interesse em retornar ao Tratado dos Três Imperadores, recebendo, por conseguinte, apoio da Alemanha, que mediou as áreas de influência nos Bálcãs entre Rússia e Áustria-Hungria. Entretanto, uma crise iniciada na Bulgária em 1885, devido à sucessão dinástica, opôs novamente russos e austríacos, levando a crer que uma guerra entre os dois Estados seria inevitável. Bismarck, contudo, para dissuadir a Rússia e manter a paz na Europa Central, colocou-se a favorda Áustria-Hungria, expondo o acordo da Tríplice Aliança. A Rússia, frustrada, afastou-se do Tratado dos Três Imperadores, que foi encerrado definitivamente. Na tentativa de manter a Rússia sobre o radar alemão, Bismarck firmou com o Império Russo um acordo secreto chamado de Tratado de Resseguro, em 1887, que previa neutralidade recíproca em caso de uma guerra. Por outro lado, no mesmo ano, o chanceler alemão procurou fechar acordos no Mediterrâneo, incluindo a Grã-Bretanha, a Áustria-Hungria e a Itália, com o objetivo de conter o 46 Unidade I expansionismo russo nos Bálcãs. Conforme observa Döpcke (2007), esse sistema de alianças de Bismarck tornou-se muito complicado e contraditório, insustentável em longo prazo. O jogo diplomático realizado por Bismarck obteve sucesso quanto ao objetivo de manter a paz na Europa Central até sua saída da chancelaria alemã, em 1890. O sistema de alianças também foi um instrumento útil para atingir o terceiro objetivo listado: isolar a França. Ocupada em sua expansão colonial, a França estava em constante atrito diplomático com a Grã-Bretanha e a Rússia, devido à corrida colonialista, e se viu completamente cercada pelas alianças alemãs, que também alcançaram a Espanha, a Romênia e a Turquia. O isolamento francês só seria superado pela aproximação com a Rússia, após esta romper com a Alemanha devido ao impasse com a Áustria-Hungria. Por fim, o quarto objetivo, não participar da corrida colonial empreendida pelas demais potências europeias, estava estritamente relacionado com o processo de consolidação interna do Império Alemão. Na visão de Bismarck, a afirmação da Alemanha como potência absoluta da Europa Central era o centro de sua política externa, de forma a concretizar objetivos internos de manter a estabilidade entre proprietários rurais e a nascente burguesia. Nesse contexto, a aventura de uma corrida colonial, além de incorrer no risco de atrair a formação de uma coligação de Estados liberais contra a Alemanha conservadora, poderia também incorrer em desentendimentos internos. Importa concluir que Bismarck, enquanto grande estadista alemão, foi um homem de seu tempo, influenciado pela sua origem, junker, e pelas condições sociopolíticas e econômicas da Alemanha no século XIX. Seu gênio apurado para as negociações diplomáticas conseguiu manter a paz e o consenso construídos no Congresso de Viena. A política do chanceler alemão em longo prazo, contudo, não foi suficiente para amenizar as consequências da posição hegemônica que o Império Alemão ocupava na Europa, nem foi capaz de superar o remorso francês gerado ao fim da Guerra Franco-prussiana. À medida que o século XX caminhava para a segunda década, o sistema de alianças de Bismarck mergulhava as potências europeias em um dilema de segurança que resultou na Primeira Guerra Mundial. 3.4 O despertar da bipolaridade na Europa Após 1890, uma série de fatores modificou a intricada geopolítica europeia construída por Bismarck, aproximando, a cada momento, o conflito mundial de 1914. Um dos fatos de maior destaque foi a saída do Bismarck do ministério das relações exteriores alemão. No processo de sucessão imperial, Guilherme I foi sucedido por seu filho, Frederico III, em março de 1888. Porém, Frederico sofria de câncer e ficou no trono por apenas três meses e morreu, deixando o caminho livre para ascensão de seu filho, Guilherme II. O novo imperador ficou conhecido por seu gênio impetuoso, militarista e nacionalista e, sobretudo, pela dificuldade de lidar com a política externa. Sob seu reinado, teve início um novo processo de inserção internacional do Império Alemão, que passava de potência continental europeia para uma potência com aspirações mundiais. Essa nova fase da diplomacia alemã subestimou o jogo político de alianças antes tão bem desenvolvido com toda a cautela por Bismarck. Para os dirigentes da nova política externa do Império Alemão, não era possível a formação de uma aliança entre Rússia e França devido às marcantes diferenças de regime político e ideologias (Império absolutista russo em contraponto à democracia liberal francesa). Por isso, o 47 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS imperador Guilherme II priorizou a parceria estratégica com a Áustria-Hungria, cuja aliança possibilitaria a construção de uma linha férrea que ligaria Berlim à Bagdá, no Oriente Médio, desgostando os russos por causa da disputa territorial nos Bálcãs com a Áustria-Hungria. Para a Alemanha, a ferrovia inauguraria uma nova rota para a expansão dos mercados externos e matérias-primas, entendidos como essenciais ao desenvolvimento econômico alemão. Além disso, a Alemanha não deu continuidade ao Tratado do Resseguro com a Rússia e empenhou-se ainda em uma disputa comercial com Moscou. Tal circunstância criou a brecha perfeita muito esperada pela França para superar seu isolamento diplomático imposto por Bismarck desde 1871. Após várias negociações realizadas entre 1891 e 1894, a França finalmente concluiu uma aliança com a Rússia, de caráter defensivo, que previa ajuda militar mútua em caso de um dos parceiros ser atacado pela Áustria-Hungria ou pela Alemanha. A aproximação entre França e Rússia conseguiu quebrar a hegemonia alemã, restabelecendo temporariamente o equilíbrio no continente europeu (DÖPCKE, 2007). O entendimento formal franco-russo, contudo, atemorizou o Império Alemão, pois criava um quadro estratégico complicado, com possibilidade de guerra em duas frentes. A Alemanha, diante desse intricado jogo geopolítico, tentou retomar a aproximação com a Rússia, porém não obteve êxito, voltando-se então para a Grã-Bretanha. Os britânicos, por sua vez, desde a Guerra da Crimeia, haviam se afastado da política continental europeia para se dedicarem exclusivamente à formação de seu Império além-mar, o que resultou em conflitos de interesse com franceses e russos. Com isso em mente, os dirigentes da política externa alemã acreditaram que seria fácil construir um entendimento com a Grã-Bretanha, aproveitando o antagonismo britânico em relação à França e à Rússia na corrida colonial. A princípio, a aproximação com a Grã-Bretanha obteve bons resultados, uma vez que a Alemanha obteve o apoio britânico no continente europeu em troca de concessões coloniais. Entretanto, houve desentendimentos quanto a interesses no Oriente Médio e na África, esfriando a relação entre as duas potências. Ademais, a chamada Weltpolitik, isto é, a política mundial alemã, criou pânico entre os britânicos, pois previa a formação de uma grande Marinha de Guerra que deveria igualar-se em poderio à Marinha Britânica. A Grã-Bretanha considerou o programa de construção naval alemão uma ameaça aos seus interesses e a sua segurança territorial e respondeu com novos e pesados investimentos em armamento, aproximando-se diplomaticamente da Rússia e da França. Observação O termo alemão Weltpolitik refere-se à política externa de alcance global praticada pela Alemanha após a ascensão de Guilherme II ao trono do Império. Conforme explica Döpcke (2007), por meio dessa nova política externa, a Alemanha passou a reivindicar igualdade em escala mundial, tais como outras grandes potências à época. A ideia central dessa política era que nenhuma outra potência poderia decidir qualquer assunto em termos de política mundial, em qualquer lugar do mundo, sem antes consultar a Alemanha. Porém, além do discurso de ambição global, a nova política externa alemã não tinha nenhum objetivo ou meta concreta de realização da Weltpolitik. 48 Unidade I A Weltpolitik da Alemanha resultou no fim da política externa britânica de distanciamento do continente europeu. Com a França, a Grã-Bretanha concluiu um acordo, a Entente Cordiale, em 1904, para acertarem desentendimentos coloniais na África e na Ásia; e com a Rússia, foi acertado um acordo, em 1907, também com a intenção de resolver problemas de disputas coloniais. A Alemanha, contudo, entendeu esses pactos como dirigidoscontra si, aumentando as tensões no continente europeu. O clima de desconfiança associado à mobilização militar, às crises coloniais na África e às disputas territoriais nos Bálcãs resultou na formalização dos entendimentos entre Grã-Bretanha e França e Grã-Bretanha e Rússia, formando uma única aliança, a Tríplice Entente. Desde então, o sistema multipolar e consensual do Concerto Europeu de 1815 foi substituído por duas alianças antagônicas que agregavam as maiores potências europeias, dando origem a um sistema bipolar, isto é, à formação de dois polos de poder rivais. Portanto, a partir de 1907, os futuros adversários da Primeira Guerra Mundial estavam em dois blocos opostos: a Tríplice Aliança, que reunia, desde 1882, Alemanha, Itália e Áustria-Hungria; e a Tríplice Entente, formada por Rússia, Grã-Bretanha e França (DÖPCKE, 2007). As duas alianças antagônicas formavam dois eixos no continente europeu, conforme pode ser observado na figura a seguir. Figura 10 – Alianças militares em 1914: Tríplice Entente x Tríplice Aliança 49 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Essas crises e tensões entre as grandes potências, polarizadas em duas alianças, se agravaram dramaticamente depois de 1911 e, apesar das tentativas de entendimentos pontuais, levaram o continente europeu em uma espiral dramática de conflitos que culminou na Primeira Guerra Mundial. 4 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Na manhã do dia 28 de junho de 1914, em Sarajevo, capital da província da Bósnia, o estudante bósnio Gavrilo Princip assassinou a tiros o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, e também sua esposa, Sofia. O incidente inflamaria os ânimos já acirrados em toda a Europa, resultando em um dos mais longos e mortais conflitos da humanidade, que marcou o início do “breve século XX”, nas palavras de Hobsbawm (1995). Desde 1815, não havia acontecido uma grande guerra, ou seja, uma guerra que envolvesse todas as grandes potências, ou ao menos a maioria delas. Houve apenas uma breve guerra, a Guerra da Crimeia, entre 1855-1856, em que combateram três potências: Rússia de um lado e França e Grã-Bretanha de outro. Não havia guerras mundiais antes de 1914, tanto que, inicialmente, esse conflito bélico ficou conhecido como “a Grande Guerra”, e foi nessa guerra que se envolveram todas as potências europeias, além de tropas com soldados das colônias de ultramar. Canadenses, australianos, neozelandeses, indianos, chineses, entre outros lutaram ao lado de suas metrópoles (HOBSBAWM, 1995). Na mentalidade dos líderes políticos e generais, e também da população em geral, até 1914, as guerras duravam poucos meses, ou mesmo semanas. Ninguém esperava que o conflito que ficou conhecido como Primeira Guerra Mundial duraria quatro longos anos. Em 1914, os europeus partiram alegremente para o front, soldados eram aplaudidos nas ruas, seguros de que, em breve, dentro de poucos meses, retornariam para comemorar a vitória da causa de sua pátria (ARARIPE, 2011). A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra total. Não apenas soldados foram para o front, mas toda a sociedade foi mobilizada. Por meio de propagandas patrióticas, indústrias, hospitais, mulheres, desenvolvimentos tecnológicos, toda a economia foi voltada para o esforço de guerra. Foi também a primeira guerra em que foram empregados aeronaves e submarinos, dando às operações bélicas uma nova dimensão estratégica em longo alcance, nas profundidas oceânicas e no espaço aéreo. O gás venenoso também foi empregado em campos de batalha, onde se revelou cruel, barbado e ineficaz, resultando em repulsa geral como arma de guerra, prescrito na Convenção de Genebra de 1925. De fato, não mais viria a ser empregado na Segunda Guerra Mundial. As consequências da Primeira Guerra Mundial repercutiram durante todo o século XX. O mapa mundial foi alterado radicalmente. Os grandes Impérios desapareceram – Alemão, Austro-húngaro, Russo, Turco –, uma revolução socialista aconteceu na Rússia, o nazifascismo chegou ao poder na Alemanha e na Itália, os Estados Unidos tornaram-se a maior potência global, genocídios e holocausto horrorizaram a humanidade, seguidos pelos termos da guerra nuclear e pela destruição total na Guerra Fria. Esta foi a última guerra dos nacionalismos do século XIX e inaugurou a era das guerras e dos conflitos mundiais e ideológicos do século XX. Conforme conclui Luiz de Alencar Araripe (2011, p. 319), “a Grande Guerra foi a mãe das guerras do século XX”. E o mais importante: a Primeira Guerra Mundial 50 Unidade I colapsou completamente o sistema europeu de Estados lançado no Congresso de Viena em 1815 e deu origem a um sistema global, regulamentado por instituições multilaterais mundiais. 4.1 O estopim da Primeira Guerra Mundial A Península Balcânica era o barril de pólvora europeu desde que o Império Otomano entrou em franca decadência, em meados do século XIX. Composta por diversas etnias, a região era fragmentada em diversas identidades nacionais e, além disso, no início do século XX, disputada entre duas grandes potências, Rússia e Áustria-Hungria, e uma potência regional, a Sérvia. Esta tinha como propósito político reunir todos os povos de origem eslava na Península Balcânica em um único Estado, a Grande Sérvia ou a Iugoslávia, que significa “Eslavos do Sul”. Observação A Península Balcânica é uma região no sudeste do continente europeu em que predomina uma cadeia montanhosa chamada de Bálcãs. Localizada entre o mar Mediterrâneo, a Europa e a Ásia, a região é habitada por povos de diversas origens, sendo, portanto, etnicamente muito fragmentada. Atualmente a Península Balcânica compreende os seguintes países: Croácia, Sérvia, Eslovênia, Albânia, Bulgária, Montenegro, Bósnia-Herzegovina, Grécia e a parte europeia da Turquia. O Império Austro-húngaro, contudo, frustrou os planos da Sérvia ao anexar, em 1908, a Bósnia e Herzegovina, província do Império Otomano composta por eslavos, croatas e bósnios, ao seu território. A anexação atiçou o nacionalismo sérvio, muito embora não tivesse capacidade bélica para se opor a uma grande potência como a Áustria-Hungria. No entanto, a Sérvia tinha apoio da Rússia, que neutralizava e acuava o avanço austro-húngaro na região. A iniciativa do Império Austro-húngaro de absorver parte da Península Balcânica contrariava as disposições do Tratado de Berlim, de 1878, que reconhecia a posse da região pelo Império Otomano, e serviu para acirrar o nacionalismo sérvio dentro e fora das fronteiras da Bósnia, estimulado pelo apoio do Império Russo e de seu czar, Nicolau II (NETTO et al., 2014). Além disso, Francisco Ferdinando, futuro sucessor do imperador austríaco Francisco José, tinha um perfil mais liberal, cujos planos de governo incluíam o objetivo de conceder maior autonomia às províncias eslavas do Império. Isso desagradava a Sérvia, que ainda almejava incorporar a Bósnia em seu território, formando a Grande Sérvia. Foi nesse contexto de exaltação nacionalista que surgiram movimentos como a Mão Negra, considerada uma organização terrorista, da qual participava Gavrilo Princip, um jovem estudante de 19 anos. Desde a anexação da Bósnia, houve diversas tentativas de assassinato de autoridades austro-húngaras na Croácia e na Bósnia, realizadas por sérvios súditos do Império Austro-húngaro, porém sem sucesso. A Mão Negra vinha planejando um novo atentado desde o final de 1913 e, a partir de março de 1914, decidiu que o alvo seria o arquiduque Francisco Ferdinando. 51 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O arquiduque havia conseguido permissão do imperador Francisco José para acompanhar manobras militares do Exército Imperial em Sarajevo. Francisco Ferdinando era casado com a Condessa Sofia, de origem tcheca, considerada uma cidadã comum na corte dos Habsburgos. O casamento aconteceu a contragosto do velho imperador, e Sofia não podia acompanhar o marido em qualquer evento público, exceto em função militar. Assim, visitar Sarajevo com o objetivode assistir às manobras anuais do Exército era uma das raras ocasiões em que Sofia se apresentava em público com Francisco Ferdinando (STEVENSON, 2016). Apesar da alta probabilidade de que ocorresse um atentado contra o herdeiro do Império, pouco foi feito para garantir a segurança da comitiva em visita oficial de Estado. No dia 28 de junho, pela manhã, Francisco Ferdinando e sua comitiva partiram para Sarajevo e foram recebidos pelo governador da Bósnia, Oskar Potiorek. A agenda oficial do dia previa o compromisso de inspeção das tropas em um quartel. De lá, a comitiva seguiu para a câmara municipal da cidade, porém, no trajeto, os integrantes da Mão Negra tentaram um ataque à bomba, que passou pelo carro onde estava o arquiduque e, por pouco, não o atingiu. Após a recepção na câmara municipal, a comitiva alterou a agenda oficial e seguiu para o Hospital de Sarajevo em atenção aos feridos no atentado. No caminho para o hospital, Gavrilo Princip aproveitou a oportunidade para disparar os tiros que mataram o arquiduque e sua esposa, próximo da Ponte Latina. Todos os envolvidos no atentado foram detidos e julgados. Porém, as autoridades austro-húngaras levantaram a suspeita de que o movimento Mão Negra teria tido o apoio secreto do governo sérvio. Uma vez iniciada a investigação, a Áustria-Hungria conseguiu junto ao Império Alemão apoio incondicional em caso de retaliação à Sérvia, que deveria ser rápida e eficaz, para confrontar as demais potências (DÖPCKE, 2007). Em 23 de julho, a Áustria-Hungria apresentou um ultimato de 48 horas à Sérvia, alegando que o atentado fora engendrado em Belgrado, capital sérvia, com o apoio de funcionários e oficiais do governo sérvio. O documento também exigia que a Sérvia denunciasse todos os movimentos separatistas e banisse todas as propagandas hostis ao Império Austro-húngaro e ainda cooperasse no inquérito judicial do atentado. Incrivelmente, a Sérvia aceitou todas as exigências, mas recuou quanto à exigência de participação austro-húngara no inquérito em território sérvio, pois feria a constituição e as leis vigentes no país. Em consequência dessa resposta, a Áustria-Hungria aproveitou o ensejo para declarar guerra à Sérvia em 28 de julho de 1914 (STEVENSON, 2016). Estava começando a Primeira Guerra Mundial. Nos dias que se seguiram, o sistema de alianças foi acionado, resultando em uma avalanche de declarações de guerra. A Rússia e a Áustria-Hungria decretaram estado de mobilização geral em 30 de julho. Preocupado com a dimensão que a guerra regional austro-sérvio tomaria, o imperador alemão Guilherme II enviou um ultimato à Rússia para que voltasse atrás, e outro à França para que declarasse neutralidade em caso de envolvimento russo. Ignorando o ultimato, a Rússia mobilizou-se em apoio à Sérvia. No dia seguinte, 1º de agosto, a Alemanha declarou guerra à Rússia. A França, aliada da Rússia na Tríplice Entente, aprontou-se para o conflito, também ignorando o ultimato alemão (ARARIPE, 2011). 52 Unidade I Por conseguinte, a Alemanha declarou guerra à França em 3 de agosto e deu um ultimato à Bélgica para conceder livre passagem ao Exército Alemão em direção à fronteira francesa. O governo belga, contudo, negou o pedido, alegando neutralidade, e a Bélgica acabou sendo invadida pelos alemães no dia 4 de agosto. A violação da neutralidade belga fez com que os britânicos declarassem guerra à Alemanha. Em uma semana, à exceção da Itália, todas as potências que compunham a Tríplice Entente e a Tríplice Aliança estavam oficialmente em guerra (NETTO et al., 2014). Saiba mais Assista ao documentário: PRIMEIRA Guerra Mundial: o fim de uma era. Direção: Don Horan. Estados Unidos: History Channel, 1997. 93 min. Para além da intricada situação na Península Balcânica, que envolvia diretamente interesses austro-húngaros e sérvios na região, diversos outros motivos impulsionaram as demais grandes potências a se engajarem tão rápida e prontamente na guerra. A França, em 1914, ansiava pela revanche e pela restituição da Alsácia-Lorena, perdida na humilhante derrota de 1871 (ARARIPE, 2011). Lembrete A região da Alsácia-Lorena era um território francês localizado na fronteira com a Alemanha e havia sido anexada pelos alemães ao final das guerras de unificação do Império Alemão, em 1871. Para a Grã-Bretanha, o equilíbrio de poder no continente europeu era o mecanismo que permitia aos britânicos centrarem esforços na construção de seu Império Colonial, sendo igualmente importante a neutralidade da Holanda e da Bélgica para a segurança territorial britânica. A ascensão da Alemanha unificada, e ainda com pretensão de se tornar uma grande potência industrial e naval, rompia com a política do equilíbrio de poder, causando preocupação à Grã-Bretanha. A invasão da Bélgica pelos alemães foi a gota d’água para os britânicos, que, pela lógica da segurança, viram-se obrigados a se engajarem na guerra. A Rússia, desde a derrota na Guerra Russo-japonesa de 1904-1905, havia perdido prestígio internacional de grande potência e ainda sofrido com uma tentativa de levante revolucionário internamente. Dessa forma, o engajamento do czar Nicolau II na causa externa de apoio aos eslavos e a demonstração da capacidade de defender interesses russos eram uma forma de conseguir consenso e apoio em sua política interna. 53 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Quanto à Alemanha imperial, além da aliança com a Áustria-Hungria, outros dois fatores são igualmente importantes para compreensão de suas motivações para o engajamento na guerra: a personalidade de seu imperador Guilherme II e a crise das alianças em torno no Império Alemão. Guilherme II conduzia uma política de potência não satisfeita, almejando um lugar ao sol para a Alemanha e, para tanto, influenciado pelas teorias do poder naval como fonte do poderio das grandes potências, engajou-se na construção de uma grande Marinha de Guerra. Além disso, a formação da Tríplice Entente fez com que a Alemanha se sentisse cercada como em elo de ferro, empurrada para a defensiva. Há ainda que se considerar, em termos de política interna, as forças sociais em oposição ao Império que incentivaram Guilherme II a se engajar no conflito bélico como forma de desviar o foco da população dos problemas internos (DÖPCKE, 2007). A Itália, apesar de integrar a Tríplice Aliança, inicialmente, optou pela neutralidade, alegando que a aliança era defensiva, e a Alemanha e a Áustria-Hungria eram agressoras. Contudo, em 1915, com a promessa britânica e francesa de conseguir territórios austríacos ao norte, a Itália entra na guerra ao lado da Tríplice Entente. Além da Itália, ao lado da Entente, juntaram-se Japão, Portugal e Romênia; e, ao lado das potências aliadas, somaram-se o Império Otomano e a Bulgária. 4.2 O desenrolar do conflito A Primeira Guerra Mundial alastrou-se por 28 países, entre eles, o Brasil, e desenrolou-se em seis frentes terrestres, além de operações navais e aéreas. As duas principais frentes terrestres foram a frente ocidental, que se estendeu ao longo da fronteira francesa e abarcou a Bélgica, a Suíça e o Mar do Norte; e a fronteira oriental, que abrangia os territórios alemães a leste, a Polônia e a Rússia. Outras frentes de batalha se estenderam nos Bálcãs, Oriente Médio e Império Otomano (ARARIPE, 2011). De forma geral, a guerra pode ser dividida em duas fases: a primeira fase ocorreu entre agosto e novembro de 1914 e caracterizou-se pela chamada guerra de movimento, isto é, rápida mobilização das forças militares para tomada de posição no cenário de guerra; já a segunda fase compreende todo o período entre 1915 e 1918, abarcando a chamada guerra de posição e as batalhas finais. Nesta fase, os Exércitos dos países beligerantes permaneceram grande parte do conflito em trincheiras, isto é, valas abertas no chão, sem avançar no terreno, esperando movimento do inimigo. Este, porém, via-se igualmente impossibilitado de avançar. Na perspectiva do Império Alemão,a aliança entre a França e a Rússia criava uma condição muito complicada de guerra em duas frentes. Para lidar com tal situação, os generais alemães elaboraram o chamado Plano de Schlieffen, considerado como a única forma de alcançar a vitória em caso de guerra contra russos e franceses ao mesmo tempo. Pelo plano, a Rússia demoraria para mobilizar suas tropas e, por isso, a Alemanha deveria inicialmente concentrar suas forças em uma rápida e eficaz batalha contra a França por meio do território belga. Uma vez imposta a derrota à França, os alemães partiriam para a batalha na frente oriental. 54 Unidade I Figura 11 – O Plano Schlieffen A ofensiva alemã encontrou uma acirrada resistência por parte da Bélgica e foi paralisada na Batalha do Marne, ocorrida às margens do rio Marne, na França, em setembro de 1914. Nessa batalha, a França impôs uma estrondosa derrota à Alemanha com o auxílio de tropas britânicas, obrigando as forças alemães a estancarem, e, dessa forma, a linha de batalha da frente ocidental foi solidificada do Canal da Mancha, até a Suíça, em finais de 1914. Nenhum dos lados conseguia romper a linha de frente, estabelecendo um impasse. Iniciou-se, a partir desse momento, a guerra de posição. A Primeira Guerra Mundial também foi a primeira guerra de trincheiras. A guerra de posição foi travada nas trincheiras, isto é, grandes valas abertas no terreno, com várias passagens para movimento das tropas. Nessas valas, havia local para descanso e para recuperação dos feridos, posto de vigia avançado e arame farpado na vala que terminava o front em direção à “terra de ninguém”. Do outro lado, localizavam-se as trincheiras inimigas. Não bastasse os horrores da guerra que pesavam sobre as mentes de todos, os soldados ainda conviviam com a dura realidade das trincheiras: chuva, lama, neve e frio glacial, excrementos, ratos e infestações de insetos, que provocavam epidemias, como disenteria, tifo, doenças de pele e infecções das mais variadas. Aos sofrimentos físicos, somava-se o estresse psicológico infringido pelo longo tempo que os soldados se viam obrigados a permanecer na guerra de posição (NETTO et al., 2014). 55 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 12 – Soldados em trincheiras O relato mais frequente entre os soldados era a sensação de perda da condição humana. A seguir, o relato do soldado francês Henri Fauconnier em carta à sua noiva em 17 de fevereiro de 1917 nos dá uma ideia da condição psicológica na guerra (NETTO et al., 2014): “É assustador depender tanto do meio em que estamos. Mady, não é com um ser humano que você se casará [...]. Às vezes eu sou um monstro, às vezes uma planta, às vezes um mineral. Nunca um ser humano”. A estratégia da guerra de posição tinha como objetivo levar o inimigo à exaustão e à derrota, porém o resultado foi a paralisia do conflito. Dessa forma, a alternativa a partir de 1915 foi a intensificação do desenvolvimento de novas tecnologias bélicas para impor baixas em massa nos campos inimigos como forma de romper o impasse. Assim, os bombardeios foram intensificados, tanques foram desenvolvidos e armas químicas, especialmente o gás letal, foram amplamente empregadas, tornando a Primeira Guerra Mundial o conflito bélico interestatal mais mortal, até então, com a soma de 17 milhões de mortos (NETTO et al., 2014). Na frente oriental, predominou a guerra de movimento, sendo que a Rússia surpreendeu pela rapidez com que mobilizou suas forças, impondo algumas derrotas aos alemães e austro-húngaros. Porém, as dificuldades internas russas, somadas às derrotas que se sucederam nas batalhas seguintes, resultaram na deflagração da Revolução Russa, em outubro de 1917. O principal objetivo do governo revolucionário russo que se instalou em Moscou era tirar a Rússia da guerra. Para tanto, em 15 de dezembro daquele mesmo ano, russos e alemães concluíram um cessar-fogo por meio do pacto de paz, o Tratado de Brest-Litovsk (DÖPCKE, 2007). No mar, os alemães, em fevereiro de 1917, decretaram guerra submarina irrestrita, atingindo propositadamente navios mercantes norte-americanos carregados de suprimentos com destino à Grã-Bretanha e à França. O fato provocou a entrada dos Estados Unidos no conflito em abril daquele ano ao lado da Tríplice Entente, rompendo o impasse a favor de seus aliados. A partir de setembro de 1918, países aliados alemães renderam-se e pediram um cessar-fogo. Após uma revolução em Berlim, 56 Unidade I Guilherme II abdicou, e a república foi proclamada na Alemanha. Finalmente, em 11 de novembro, a Alemanha aceita as condições, e um armistício é assinado (DÖPCKE, 2011; ARARIPE, 2011). 4.3 A Paz de Versalhes A participação dos Estados Unidos na guerra acelerou o seu fim e impôs novos rumos para a paz que começou a ser negociada entre Rússia e Alemanha em 1917. Uma vez no conflito, o visionário presidente norte-americano à época, Thomas Woodrow Wilson, rascunhou uma proposta de paz idealista, diferente da cultura europeia de relações internacionais, a chamada Paz dos Catorze Pontos. Enquanto os europeus entendiam a guerra como uma prática do exercício da política em que a paz é a imposição da vontade do vencedor ao vencido, os norte-americanos, a partir de uma concepção moralista do mundo, viam a guerra como um mal a ser extirpado por meio de mecanismos multilaterais de propagação da democracia. Dessa forma, a proposta de Wilson para a paz estaria presente nas negociações, porém raramente os “catorze pontos” seriam observados (ARARIPE, 2012). Em síntese, a Paz dos Catorze Pontos (ARARIPE, 2012, p. 2014-2015) propunha os seguintes tópicos para as negociações de paz: 1. Fim das negociações e acordos secretos; 2. Liberdade absoluta de navegação dos mares; 3. Supressão de barreiras econômicas no comércio internacional; 4. Redução de armamentos nacionais a níveis apenas para defesa; 5. Redefinição das questões coloniais, considerando os interesses das populações em jogo; 6. Evacuação do território russo; 7. Evacuação e restauração da Bélgica; 8. Devolução da Alsácia-Lorena à França; 9. Estabelecimento das fronteiras italianas a partir do princípio da nacionalidade; 10. Autodeterminação dos povos da Áustria-Hungria; 11. Livre acesso ao mar à Sérvia; 12. Autodeterminação aos povos do antigo Império Otomano; 57 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 13. Formação da Polônia; 14. Formação de uma organização geral das nações para garantia da paz (Liga ou Sociedade das Nações). Em linhas gerais, observa-se que a proposta do presidente norte-americano tinha como cerne: uma “paz sem vencedores”, na qual se reconstituía a condição geopolítica anterior à guerra; impunha-se a liberdade de comércio como uma estratégia para minimizar conflitos; proclamava-se a liberdade dos mares e a autodeterminação dos povos conforme o princípio das nacionalidades; e, por fim, substituía o mecanismo de equilíbrio de poder por uma instituição multilateral de segurança coletiva como instrumento de regulamentação das relações internacionais. Entretanto, os aliados europeus receberam a proposta de paz dos norte-americanos sem muito entusiasmo. A Grã-Bretanha entendia que, apesar de falho, o equilíbrio de poder ainda era a melhor maneira de administrar o sistema de Estados. Além disso, a questão colonial tinha um grande peso sobre sua política externa para dar brecha a qualquer ação nacionalista. Já a França esperava ansiosamente pelo momento de impor revanche sobre a Alemanha após a humilhação sofrida em 1871. Esse sentimento só aumentava ao longo dos quatro longos anos de ferrenha luta nas trincheiras contra a invasão alemã. Os franceses jamais aceitariam qualquer tratado de paz que não fosse humilhante para a Alemanha (ARARIPE, 2012). Foi nesse contexto de hostilidades que se iniciaram os trabalhos da Conferência de Paris, no Palácio de Versalhes, em Paris, em 18 de janeiro de 1919, com a presença de delegados de 25 países. Durante as negociações, contudo, predominou a opiniãodos chamados “Quatro Grandes”, isto é, França, Grã-Bretanha, Itália e Estados Unidos. Por isso, no processo de paz da Primeira Guerra Mundial, diferentemente do que aconteceu no Congresso de Viena em 1815, os perdedores não tiveram vez. Além disso, vários pontos, como a divisão dos territórios do Império Otomano, já haviam sido deliberados anteriormente e partilhados entre França e Grã-Bretanha. Ainda assim, as negociações se arrastaram por seis meses, e somente em 28 de junho de 1919 o acordo de paz foi finalmente assinado pela Alemanha vencida e indignada com as condições do tratado. Na prática, o acordo de paz não foi um acordo acertado entre as partes antes em guerra, mas sim uma imposição de paz à Alemanha por meio da continuidade dos termos do armistício de novembro de 1918. Pelo acordo, que entrou para o histórico com o título de Tratado de Versalhes, a Alemanha foi declarada culpada pela guerra e, por conseguinte, encarregada de arcar com todos os ônus do conflito. Várias outras questões foram impostas pelo Tratado, que podem ser divididas em questões territoriais, militares e financeiras. No que concerne ao primeiro tópico, todas as possessões coloniais da Alemanha passaram para franceses e ingleses, e as fronteiras alemãs foram redefinidas: Alsácia-Lorena voltaram para a França, os cantões de Eupen e Malmedy passaram para a Bélgica e, a leste, parte do território alemão deu origem à Polônia. O Império Austro-húngaro também foi desintegrado, porém qualquer tentativa de união entre Alemanha e Áustria foi proibida (ARARIPE, 2012). 58 Unidade I Figura 13 – Mapa da Europa antes e depois do Tratado de Versalhes Sobre as questões militares, o Tratado impunha que a Alemanha limitasse seu Exército a cem mil homens, e a Marinha a apenas 15 mil homens. Canhões de longo alcance, aviões e tanques foram proibidos. Além disso, a região da margem oriental do rio Reno deveria permanecer desmilitarizada por um período de 15 anos. Em termos econômicos, além das indenizações de guerra pagas em parcelas anuais, as minas de carvão da região do Sarre seriam exploradas pela França por um período de 15 anos. Em suma, conforme argumenta Hobsbawm (1995, p. 33), “impôs-se à Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estado era o único responsável pela guerra e todas as suas consequências (a cláusula da ‘culpa de guerra’), para mantê-la permanentemente enfraquecida”. Dos Catorze Pontos do presidente Wilson, o único ponto que realmente foi implementado foi a criação da Liga ou Sociedade das Nações, por insistência do mandatário norte-americano. A Liga das Nações foi de fato estabelecida pelo Tratado de Versalhes nos anos seguintes, porém seu potencial de eficácia foi diminuído pela ausência dos Estados Unidos, cujo senado não deu o aval necessário para participação da potência norte-americana. Enquanto mecanismo para prevenir novas guerras de alcance mundial, a Liga das Nações mostrou-se falha diante da Segunda Guerra Mundial. O Tratado de Versalhes, de forma geral, é considerado por alguns analistas como o embrião da Segunda Guerra Mundial. Hobsbawm (1995, p. 34), por exemplo, afirma que o acordo firmado em Paris “estava condenado desde o início e, portanto, outra guerra era praticamente certa”. De acordo com o historiador, a certeza de um novo conflito bélico em pouco tempo se dava pelo fato de que “qualquer pequena chance que tivesse a paz foi torpedeada pela recusa das potências vitoriosas a reintegrar as vencidas” na reconstrução da paz. 59 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4.4 Discutindo as forças profundas que levaram à Primeira Guerra Mundial Discutir as forças profundas que levaram à Primeira Guerra Mundial é tarefa complexa, que já muitos renomados historiadores têm tentado realizar desde 1918. Como já foi analisado, o Tratado de Versalhes colocou toda a culpa da responsabilidade da guerra no Império Alemão. Essa versão, baseada de forma geral na historiografia francesa, entende que a Alemanha poderia ter evitado a guerra se não tivesse dado o aval à Áustria-Hungria para castigar a Sérvia. A literatura alemã, contudo, procurou contestar essa versão e, desde então, ocorreu uma verdadeira batalha historiográfica para encontrar o “culpado” pela catástrofe de 1914 (DÖPCKE, 2007). Eric Hobsbawn (1988), contudo, propõe uma interpretação diferente, retomando a argumentação de Renouvin. Para ele, nenhuma das grandes potências à época queria uma guerra, fosse ela restrita ou generalizada. Todas as crises antes de 1914 foram habilmente contornadas por meio da negociação. Por que, então, todas as nações anularam a paz em julho de 1914? Sigamos o argumento de Hobsbawm (1988, p. 272): Descobrir as origens da Primeira Guerra Mundial não equivale a descobrir “o agressor”. Ele repousa na natureza de uma situação internacional em processo de deterioração progressiva, que escapava cada vez mais ao controle dos governos. Gradualmente a Europa foi se dividindo em dois blocos opostos de grandes nações. Tais blocos, fora de uma guerra, eram novos em si mesmos e derivavam, essencialmente, do surgimento no cenário europeu de um Império Alemão unificado, constituído entre 1864 e 1871 por meio da diplomacia e da guerra, à custa dos outros, e procurava se proteger contra seu principal perdedor, a França, através de alianças em tempos de paz, que geraram contra-alianças. As alianças, em si, embora implicassem a possibilidade da guerra, não a tornavam nem certa nem mesmo provável. Assim, o chanceler alemão Bismarck, que foi o campeão do jogo de xadrez diplomático multilateral por quase trinta anos após 1871, dedicou-se com exclusividade e com sucesso à manutenção da paz entre as nações. Um sistema de blocos de nações só se tornou um perigo para a paz quando as alianças opostas se consolidaram como permanentes, mas especialmente quando as disputas entre eles se transformaram em confrontos inadministráveis. Como pode ser observado no trecho, a situação das relações internacionais começou a se desestabilizar muito antes de 1914, isto é, desde 1871. Com o processo da unificação da Alemanha fundamentada na guerra e rivalidade com a França, iniciou-se um dilema de segurança que só se agravou com a formação das alianças. O dilema da segurança descreve um estado de relações interestatais em que predominam a tensão e o medo de forma generalizada, em que qualquer mudança, ação ou mesmo somente uma pretensão na condição e posicionamento de um (ganhos militares ou alianças militares, melhoria econômica, expansão territorial etc.) é compreendida como uma ameaça pelo outro. Foi nesse dilema que as potências europeias caíram, a começar pela própria Alemanha. 60 Unidade I Contudo, Hobsbawm lembra que o jogo das alianças, por si só, não poderia desencadear a guerra de tão amplas dimensões. Porém, ele destaca três fatores que tornaram essa situação uma bomba- relógio: a situação do fluxo internacional, desestabilizado por novos problemas e ambições mútuas entre as nações; a lógica do planejamento militar conjunto, que congelou os blocos que se confrontavam, tornando-os permanentes; e a integração de uma quinta grande nação, a Grã-Bretanha, a um dos blocos, a Tríplice Entente. Com o surgimento de uma economia industrial capitalista de amplitude mundial, a arena de embate dos interesses das grandes potências tornou-se maior e muito mais complexa. Isso não significa que a expansão colonial e imperialista tenha sido responsável pela guerra, porém o desenvolvimento do capitalismo em concorrência global, associado ao sentimento nacionalista, facilitou o surgimento de um clima de rivalidade entre as nações. Além disso, novos países industrializados almejavam a condição de potência econômica global, como o Japão e a Alemanha, criando uma situação na qual o poder político representado pelos governos associava-se às forças econômicas. Do ponto de vista dos capitalistas, o apoio político tornou-se importante para impedir que a concorrênciaestrangeira atrapalhasse os negócios nacionais e era igualmente importante em regiões do mundo onde empresas de diversas nacionalidades competiam umas com as outras (HOBSBAWM, 1988). A associação entre capital e política projetou a ambição das potências para níveis explosivos no início do século XX. Da mesma forma que o poder político apoiava o poder econômico nas conquistas por recursos e mercados internacionais, o Estado aproveitava o crescimento econômico para ampliar seus recursos militares. O planejamento militar proposto pela Alemanha, em conjunto com sua ambição de tornar-se uma potência global, levou seus dirigentes a investirem em uma Marinha de Guerra de amplas dimensões com base no Mar do Norte, praticamente de frente à Marinha da Grã-Bretanha, a maior potência naval à época. Tal medida gerou assombro entre os britânicos, que, rapidamente, associaram-se à França e à Rússia na Tríplice Entente, tornando fixas as alianças que antes eram flexíveis. Por fim, ainda é importante mencionar a influência da política interna na política externa. Desde 1905, quando uma agitação de cunho socialista desafiou a integridade da monarquia russa, porém sem sucesso, a força da opinião pública, seja favorável ou não, foi um fator decisivo na formulação da política externa. O avanço dos trabalhadores e a mobilização dos partidários da social-democracia fizeram com que as elites dirigentes procurassem desviar a atenção da opinião pública para causas externas, que provocavam o sentimento nacional e, assim, contribuíam para a unidade da nação e, consequentemente, desmotivavam ações de grupos. Em resumo, crises internas e internacionais fundiram-se nos últimos anos antes de 1914 (HOBSBAWM, 1988). Todos esses fatores mencionados convergiram para a catástrofe da guerra, como grandes tonéis de combustíveis altamente inflamáveis estocados em um armazém com pólvora. Qualquer faísca provocaria uma explosão incontrolável. Assim Hobsbawm (1988, p. 282) conclui os eventos que atearam fogo na Europa naquele verão de 1914: “Em 1914, qualquer incidente, por mais aleatório que fosse – até a ação de um terrorista estudantil ineficaz num canto perdido do continente – podia levar a esse confronto, se alguma nação isolada, presa ao sistema de bloco e contrabloco, escolhesse levá-lo a sério”. A Áustria-Hungria resolveu 61 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS levar a sério a ação de Gavrilo Princip, e a Alemanha a apoiou, acionando o sistema de alianças. Assim a guerra começou, mesmo que ninguém realmente desejasse que ela acontecesse. Exemplo de aplicação Exemplo 1 Acerca da Paz de Vestfália, analise as afirmativas: I – A Paz de Vestfália engloba um conjunto de tratados firmados entre os Estados europeus ao fim das Guerras Napoleônicas. II – A partir da Paz de Vestfália, o Sacro Império Romano-Germânico deixou de existir. III – A Paz de Vestfália é um marco nos estudos de história das relações internacionais, pois instituiu os princípios do moderno sistema de Estados, isto é, soberania e não intervenção. IV – Em Vestfália, a hierarquia medieval é substituída pela anarquia do equilíbrio de poder e a razão de Estado. Está correto o que se afirma em: A) I e II, somente. B) III e IV, somente. C) II e III, somente. D) II e IV, somente. E) I e III, somente. Resposta correta: alternativa B. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: a Paz de Vestfália designa um conjunto de tratados firmados entre os Estados europeus após a Guerra dos Trinta Anos, não após as Guerras Napoleônicas. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: o Sacro Império Romano-Germânico continuou a existir após a Guerra dos Trinta Anos, porém não mais com a mesma autoridade sobre os principados alemães. Sua extinção ocorreu apenas em 1806. 62 Unidade I III – Afirmativa correta. Justificativa: pelos tratados que estabeleceram a Paz de Vestfália, instituíram-se os princípios básicos que formaram a sociedade internacional europeia: soberania, isto é, autodeterminação governamental com exclusividade do monopólio da violência sobre determinado território e população; e não intervenção em assuntos internos de outros Estados. IV – Afirmativa correta. Justificativa: na organização da sociedade medieval, existia uma rígida hierarquia de lealdades, sendo o papa e depois o imperador as figuras mais altas da hierarquia. Com a Paz de Vestfália, os Estados, antes regiões sob o controle de reis e príncipes obedientes ao imperador e ao papa, determinam-se independentes, soberanos e iguais entre si, substituindo a hierarquia medieval pela anarquia, que predomina no sistema de Estados Moderno. Exemplo 2 Leia com atenção os trechos a seguir: “O Dilema da Segurança – A maioria dos estudantes de Relações Internacionais já ouviu falar do ‘Dilema de Segurança’, elaborado pelo acadêmico germano-americano John Herz nos anos 1950 e que é usado por alguns teóricos – principalmente de vertente realista – para explicar corridas armamentistas como a que ocorreu entre Estados Unidos e União Soviética na Guerra Fria. A ideia por trás do conceito é relativamente simples: Estados são responsáveis por sua própria segurança e, em um sistema anárquico como o das relações internacionais, onde sempre se corre risco iminente de ataque, eles procuram mais e mais poder bélico. O problema é que, ao fazer isso, eles fazem com que os outros Estados se sintam inseguros e, consequentemente, procurem se armar. Com todos sempre se preparando para o pior, o sistema entra em um círculo vicioso, onde as perspectivas de uma guerra só crescem. Ou seja, ao buscar segurança, os Estados acabam por aumentar sua insegurança” (QUERO, [s.d.]). “Da paz à guerra – Nenhuma das grandes nações teria dado o golpe de misericórdia na paz, nem mesmo em 1914, se não estivesse convencida de que seus ferimentos já eram mortais. Portanto, descobrir as origens da Primeira Guerra Mundial não equivale a descobrir ‘o agressor’. Ele repousa na natureza de uma situação internacional em processo de deterioração progressiva, que escapava cada vez mais ao controle dos governos. Gradualmente a Europa foi se dividindo em dois blocos opostos de grandes nações. Tais blocos, fora de uma guerra, eram novos em si mesmos e derivavam, essencialmente, do surgimento no cenário europeu de um Império Alemão unificado, constituído entre 1864 e 1871 por meio da diplomacia e da guerra, às custas dos outros (cf. A Era do Capital, cap. 4), e procurava se proteger contra seu principal perdedor, a França, através de alianças em tempos de paz, que geraram contra-alianças. As alianças, em si, embora implicassem a possibilidade da guerra, não a 63 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS tornavam nem certa nem mesmo provável. Assim, o chanceler alemão Bismarck, que foi o campeão do jogo de xadrez diplomático multilateral por quase trinta anos após 1871, dedicou-se com exclusividade e sucesso à manutenção da paz entre as nações. Um sistema de blocos de nações só se tornou um perigo para a paz quando as alianças opostas se consolidaram como permanentes, mas especialmente quando as disputas entre eles se transformaram em confrontos inadministráveis. Isto aconteceria no novo século. A pergunta crucial é: por quê?” (HOBSBAWM, 1988, p. 272-273). Sobre a associação entre o conceito “dilema da segurança” e a Primeira Guerra Mundial, assinale a alternativa correta: A) Não é possível associar o conceito “dilema da segurança” com a Primeira Guerra Mundial porque não houve guerras, nem tampouco alianças militares permanentes na Europa entre 1815 e 1914. B) As causas da Primeira Guerra Mundial devem ser atribuídas à disputa colonial capitalista, e, portanto, o conceito de “dilema de segurança” não se aplica para compreensão desse conflito. C) O conceito “dilema da segurança” é um conceito adequado para análise da Primeira Guerra Mundial porque descreve o contexto de desconfiança geral em que mergulharam todas as grandes potências da época, incluindoEstados Unidos e Japão. D) O conceito “dilema da segurança” associa-se satisfatoriamente à situação vivenciada pelas potências europeias gradualmente estabelecida após a unificação do Império Alemão ocorrida em 1871, que deu origem ao jogo das alianças e desembocou, em 1914, na Primeira Guerra Mundial. E) O conceito “dilema da segurança” descreve a situação da Europa nas décadas anteriores a 1914 porque se observa desconfiança generalizada e corrida armamentista entre as potências europeias, à exceção apenas da Grã-Bretanha. Resposta correta: alternativa D. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta. Justificativa: aconteceram guerras na Europa durante o período de 1815 e 1914, tais como a Guerra da Crimeia, e ainda se formaram diversas alianças: Aliança dos Três Imperadores, Dupla Aliança, Tríplice Aliança, Entente Cordiale. Todas essas situações foram gradualmente contribuindo para o dilema da segurança que se generalizou na Europa após 1871. B) Alternativa incorreta. Justificativa: as disputas coloniais imperialistas acirraram as tensões entre os europeus, porém estas se davam especialmente entre França, Grã-Bretanha e Rússia, que se aliaram na Tríplice Entente. Portanto, as disputas coloniais não são suficientes para compreensão das causas da Primeira Guerra Mundial. 64 Unidade I C) Alternativa incorreta. Justificativa: o dilema da segurança instalou-se na Europa entre as potências europeias, não incluindo Estados Unidos e Japão, muito embora tais Estados viessem a participar da Primeira Guerra Mundial. D) Alternativa correta. Justificativa: a unificação da Alemanha em 1871, à custa de guerras externas e da anexação da Alsácia-Lorena da França, gerou desequilíbrio de poder na Europa em favor da hegemonia do Império Alemão. Tal situação gerou desconfianças e sentimento de revanche na França e, posteriormente, deu início à formação de alianças e corrida armamentista, que, ao fim, ocasionou a Primeira Guerra Mundial. E) Alternativa incorreta. Justificativa: a Grã-Bretanha sentiu-se ameaçada pelo investimento alemão em uma grande Marinha de Guerra em mesmo nível que a Marinha Britânica, fazendo com que a Grã-Bretanha se juntasse à França e à Rússia na Tríplice Entente. Resumo Analisamos a formação do sistema internacional de Estados nas circunstâncias vivenciadas pela Europa ao fim da Guerra dos Trinta Anos, bem como a expansão da sociedade internacional europeia para todo o globo, em seu apogeu, até o momento histórico do início de seu desmoronamento na Primeira Guerra Mundial. Foram também objeto de análise as principais escolas com tradição nos estudos de história das relações internacionais, isto é, a europeia e a americana. Nesse sentido, inicialmente foi feita uma breve abordagem das tradições historiográficas na área, apontando os principais métodos de análise tanto nas escolas europeias quanto nas americanas. Vimos que, mesmo na tradição europeia, há significativa diferença entre as abordagens francesa e britânica: o foco da escola francesa se dá nos aspectos das forças e demandas sociais, ao passo que a britânica opta pelo estudo da sociedade de Estados. Vimos também que nos Estados Unidos não se formou uma escola de história das relações internacionais, porém, nas Américas, destacam-se os esforços de intelectuais do Brasil e da Argentina na área. Tratamos dos fatores históricos que possibilitaram a formação do sistema de Estados, sob os fundamentos da Paz de Vestfália, que colocou fim à Guerra dos Trinta Anos. Nesse contexto, firmaram-se alguns princípios básicos para regulamentação da sociedade internacional 65 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS europeia após o banimento da intervenção do papa: soberania e não intervenção. A organização do Estado moderno fundamentou-se no monopólio da força em determinado território e na não intervenção em assuntos alheios. A razão de Estado guiou a lógica dessa sociedade até as Guerras Napoleônicas, quando foi substituída pela hegemonia coletiva do Concerto Europeu estabelecido em 1815 no Congresso de Viena. Foi abordado o auge da expansão da sociedade internacional europeia, seguido das principais mudanças econômicas, sociais e geopolíticas que ocorreram ao longo do século XIX. Vimos que a formação do Império Alemão Unificado alterou o equilíbrio de poder na Europa, resultando em uma hábil diplomacia de alianças formulada pelo chanceler alemão, Otto von Bismarck, para manter o sistema. Tal política, porém, não foi duradoura, pois a busca da Alemanha por uma condição de potência global introduziu o dilema de segurança entra as potências, levando a crises no sistema de alianças e na emergência da bipolaridade. Por fim, vimos que a bipolaridade das alianças acabou desencadeando a Primeira Guerra Mundial em 1914, que estourou após o assassinato do herdeiro do trono da Áustria-Hungria por um estudante nacionalista bósnio em Sarajevo. O longo conflito bélico, inicialmente restrito às potências europeias, ganhou dimensão mundial com a participação de outras nações, sobretudo os Estados Unidos, que decidiu a vitória pela Grã-Bretanha e França. Vimos ainda que diversos fatores tornaram a ocorrência da guerra muito provável, porém não inevitável, muito embora nenhuma das potências envolvidas desejasse a guerra. Exercícios Questão 1. Observe a ilustração: Figura 14 Disponível em: http://www.polyp.org.uk/cartoons/weath/polyp_cartoon_Africa.jpg. Acesso em: 8 out. 2010. 66 Unidade I Com base na figura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas: I – A imagem ilustra a exploração das riquezas do continente africano pelos países europeus e pelos Estados Unidos. II – O continente africano foi dividido entre as potências europeias imperialistas na Conferência de Berlim. III – A formação dos impérios coloniais no final do século XIX é associada ao dinamismo da expansão da economia capitalista no mundo após a Revolução Industrial. É correto o que se afirma em: A) I, II e III. B) II e III, apenas. C) I e II, apenas. D) I e III, apenas. E) I, apenas. Resposta correta: alternativa A. Análise da questão Justificativa: na ilustração, as riquezas naturais da África foram transferidas para a Europa e para os Estados Unidos. O continente foi alvo de partilha na corrida imperialista do final do século XIX. As potências europeias, na lógica do capitalismo industrial, buscavam matérias-primas e riquezas nas colônias. Questão 2. Leia o trecho do romance Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque, e a charge. O livro narra as vivências de um soldado alemão nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. “Recebemos ordens de avançar e fazer trincheiras na linha de frente. Quando chegam os caminhões, subimos neles. É uma noite morna, e o crepúsculo parece um toldo, sob cuja proteção nos sentimos bem. Ele nos une; até o avarento Tjaden me dá um cigarro e o acende. Estamos de pé, lado a lado, ninguém pode sentar-se. Também não estamos acostumados a nos sentar. Até que enfim vemos Müller de bom humor! Está com as botas novas. Os motores dão a partida, os caminhões rolam ruidosamente. As estradas estão gastas e cheias de buracos. É proibido acender as luzes, e os solavancos quase nos derrubam do caminhão. Mas isso não 67 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS nos inquieta. Que pode acontecer? Um braço quebrado é sempre melhor do que uma bala na barriga, e muitos desejam justamente uma oportunidade como essa para ir para casa. Ao nosso lado, em fila comprida, desdobram-se as colunas de munição. Têm pressa, e ultrapassam- nos sempre. Atiramos-lhes piadas, às quais respondem. Surge um muro, pertencente a uma casa que fica fora da estrada. [...] Os caminhões estão camuflados com ramos de árvores, para não serem vistos pelos aviões; é como se fosse uma festa de primavera. Estes caramanchões pareceriam alegres e tranquilos, se não fossem habitados por canhões. O ar está saturado com a fumaça dos canhões e com o nevoeiro. Sente-se o gosto amargo depólvora na língua. Os tiros estouram, fazendo estremecer nosso caminhão; o eco rola fragorosamente. Tudo estremece. Nossas feições alteram-se, insensivelmente. Não vamos, na verdade, até a primeira linha, somente até as trincheiras, mas em cada rosto pode-se ler: “Aqui fica o front, estamos nos seus domínios”. Isto não é ainda o medo. Quem já esteve tantas vezes na linha de frente, como nós, não se deixa abalar. Só os jovens recrutas estão impressionados. Kat ensina-lhes: – Aquele foi um 30,5. Vocês podem distingui-lo pela detonação: ouviram o disparo, daqui a pouco escutarão o seu impacto. Mas o som abafado da explosão não chega até aqui. Perde-se no burburinho da frente. Kat apura o ouvido e declara: – Esta noite vai haver barulho. Ficamos todos escutando. O front está agitado. Kropp diz: – Os Tommies já estão atirando. Ouvem-se nitidamente as detonações. São as baterias inglesas, à direita do nosso setor. Estão começando uma hora antes do normal. Do nosso lado, sempre se começa pontualmente às dez horas. – Que estão pensando! – exclama Müller. – Seus relógios estarão adiantados? – Vai haver barulho, estou dizendo a vocês; sinto-o nos ossos ― declara Kat, enterrando a cabeça entre os ombros. Bem perto de nós, soam três detonações” (REMARQUE, 2005, p. 31). 68 Unidade I Figura 15 Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/721068590314406615/. Acesso em: 1 abr. 2020. Com base na leitura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas: I – O objetivo da charge é mostrar que os soldados da linha de frente sofrem os danos físicos da guerra enquanto os superiores recebem as glórias. Os riscos a que se submetem os soldados nas trincheiras também aparecem no trecho do relato do romance de Remarque. II – O grau de destruição humano e material da Primeira Guerra Mundial foi inédito à época, e o conflito foi um marco no pensamento das relações entre os povos. III – Os conflitos entre os Exércitos da Primeira Guerra aconteciam nas trincheiras, que eram grandes valas abertas no terreno, com várias passagens para movimento das tropas. Nelas, havia local para descanso e para recuperação dos feridos, posto de vigia avançado e arame farpado, que demarcava o front. É correto o que se afirma em: A) I e II, apenas. B) II e III, apenas. C) I e III, apenas. 69 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS D) I, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa E. Análise da questão Justificativa: o trecho do romance descreve a ida dos soldados para abrir trincheiras. A charge mostra os soldados voltando feridos ou mortos enquanto os superiores ganham medalhas. A Primeira Guerra foi essencialmente disputada em trincheiras e teve proporções nunca vistas antes. O conflito alterou as relações internacionais.