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OFICINA 3 - POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL E ARTICULAÇÃO DA RAPS COM ENFOQUE NA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO 1. ESTUDAR AS RAPS (ORGANIZAÇÃO, PONTOS DE ATENÇÃO, PRINCÍPIOS, PROGRAMAS OFERECIDOS). A Rede de Atenção Psicossocial é destinada às pessoas em sofrimento psíquico ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde. A Rede de Atenção Psicossocial foi disposta anteriormente pelo Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei nº 8.080 a fim de reorganizar o Sistema Único de Saúde, visto o seu planejamento em saúde, assistência à saúde e à articulação interfederativa. A finalidade da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. A RAPS tem como objetivos gerais: A ampliação do acesso à atenção psicossocial da população em geral. A promoção do acesso das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção. A garantia da articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências. Segundo a Portaria de Consolidação nº 3/2017, são objetivos específicos da RAPS (BRASIL, 2017): Promover cuidados em saúde especialmente para grupos mais vulneráveis (crianças, adolescentes, jovens, pessoas em situação de rua e populações indígenas). Prevenir o consumo e a dependência de crack, álcool e outras drogas. Reduzir danos provocados pelo consumo de crack, álcool e outras drogas. Promover a reabilitação e a reinserção das pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas na sociedade, por meio do acesso ao trabalho, renda e moradia solidária. Promover mecanismos de formação permanente aos profissionais de saúde. Desenvolver ações intersetoriais de prevenção e redução de danos em parceria com organizações governamentais e da sociedade civil. Produzir e ofertar informações sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e cuidado e os serviços disponíveis na rede. Regular e organizar as demandas e os fluxos assistenciais da Rede de Atenção Psicossocial. Monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção. Além disso, a RAPS constitui-se de algumas diretrizes para o seu funcionamento, são elas: Respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade das pessoas. Promoção da equidade, reconhecendo os determinantes sociais da saúde. Combate a estigmas e preconceitos. Garantia do acesso e da qualidade dos serviços, ofertando cuidado integral e assistência multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar. Atenção humanizada e centrada nas necessidades das pessoas. Desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania. Diversificação das estratégias de cuidado. Organização dos serviços em rede de atenção à saúde regionalizada, com estabelecimento de ações intersetoriais para garantir a integralidade do cuidado. Desenvolvimento de estratégias de Redução de Danos. Ênfase em serviços de base territorial e comunitária, com participação e controle social dos usuários e de seus familiares. Promoção de estratégias de educação permanente. Desenvolvimento da lógica do cuidado para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e usuários de crack, álcool e outras drogas, tendo como eixo central a construção do projeto terapêutico singular. A RAPS é dividida por diferentes componentes. Veja no quadro 1 os componentes e pontos de atenção da RAPS: Para melhorar sua compreensão sobre cada um dos componentes da RAPS, vamos apresentar cada um detalhadamente: Atenção Básica em Saúde Atenção Psicossocial Atenção de Urgência e Emergência Atenção Residencial de Caráter Transitório Atenção hospitalar Atenção Básica em Saúde Existem referenciais em Saúde Mental que vão se construindo ao longo da história e se concretizam na prática cotidiana. Entre estes referenciais, estão alguns fundamentos da Psiquiatria Preventiva que veremos a seguir. Segundo Amarante (2007), a Psiquiatria Preventiva proposta por Gerald Caplan foi transposta da medicina preventiva para a psiquiatria e considerava-se poder ser realizada em três níveis: Prevenção Primária: intervenção nas condições possíveis de formação da doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e/ou do meio. Prevenção Secundária: intervenção em busca da realização do diagnóstico e tratamento precoces da doença mental. Prevenção Terciária: definida pela busca da readaptação do paciente à vida social, após a sua melhoria. Para o melhor manejo da saúde mental na Atenção Básica, propõe-se um trabalho compartilhado de suporte às equipes de Saúde da Família (SF) por meio do desenvolvimento do apoio matricial em saúde mental pelos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O apoio matricial é um arranjo técnico-assistencial que visa à ampliação da clínica das equipes de Saúde da Família, superando a lógica de encaminhamentos indiscriminados para uma lógica de corresponsabilização entre as equipes de SF e Saúde Mental, com a construção de vínculos entre profissionais e usuários. Dito isso, é possível afirmar que as práticas de saúde mental na Atenção Básica devem se configurar como práticas substitutivas ao modelo hegemônico e medicalizante, assim como às práticas produtoras da psiquiatrização e psicologização do sujeito e de suas necessidades. Assim, a Política Nacional de Saúde Mental propõe uma mudança do modelo de Atenção à Saúde Mental dentro do SUS e está direcionada para a ampliação e qualificação do cuidado nos serviços comunitários, com base no território. O trabalho articulado dos profissionais da Saúde Mental com a equipe da Estratégia Saúde da Família revela-se fundamental para o estabelecimento e fortalecimento de vínculos entre a Atenção Estratégica (CAPS) e a Atenção Básica, possibilitando a corresponsabilidade dos casos, ampliando a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local e favorecendo a atenção territorializada. A operacionalização das ações de Saúde Mental na Atenção Básica necessita que os princípios fundamentais da Atenção Psicossocial sejam assimilados na prática cotidiana dos profissionais. Entre estes principais fundamentos estão: a promoção da saúde, a noção de território, acolhimento, vínculo e responsabilização, integralidade, intersetorialidade, multiprofissionalidade, organização da atenção à saúde em rede, desinstitucionalização, reabilitação psicossocial, participação da comunidade e promoção da cidadania dos usuários. Veja no quadro 2 as diretrizes gerais para a atuação das equipes na Saúde Mental: Portanto, nesse contexto são considerados pontos de atenção do componente da Atenção Básica em Saúde na RAPS as unidades básicas de saúde, as equipes de Atenção Básica para populações em situações específicas, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família e os Centros de Convivência e Cultura. Unidade Básica de Saúde: A unidade básica de saúde é um serviço constituído por equipe multiprofissional responsável por um conjunto de ações, de âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico,o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver a atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. Equipes de Atenção Básica para populações em situações específicas: Entres as equipes de Atenção Básica para populações em situações específicas que apresentam atuação na RAPS, destacam-se as equipes de consultório na Rua e as equipes de Apoio aos Serviços do Componente Atenção Residencial de Caráter Transitório. Essas equipes devem atuar de maneira integrada com as equipes de Saúde da Família e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, ampliando, desta forma, a abrangência e o escopo das ações da Atenção Básica. ↳ Equipe de Consultório na Rua: A equipe de Consultório de Rua é constituída por profissionais que atuam de forma itinerante, ofertando ações e cuidados de saúde para a população em situação de rua, considerando suas diferentes necessidades de saúde, sendo responsabilidade dessa equipe, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, ofertar cuidados em saúde mental para pessoas em situação de rua em geral. Pessoas com transtornos mentais. Usuários de crack, álcool e outras drogas. Entre as ações dessas equipes, incluem-se ações de redução de danos, em parceria com equipes de outros pontos de atenção da rede de saúde, como unidades básicas de saúde, centros de Atenção Psicossocial, prontos-socorros, entre outros. A implantação dos Consultórios na Rua destinados à atenção à saúde da população em situação de rua traz impactante e positiva perspectiva colaborativa entre as áreas de Atenção Básica e Saúde Mental, com vistas a uma cogestão e acompanhamento da transição de modelos e os complexos desdobramentos desse processo. De acordo com o Ministério da Saúde, o Consultório na Rua é parte de uma estratégia maior denominada “Programa Crack, é possível vencer”, criada pelos ministérios da Saúde, Justiça, Educação e Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Secretaria de Direitos Humanos, e que tem as ações desenvolvidas em três eixos (prevenção, cuidado e autoridade), sendo o eixo cuidado desenvolvido por alguns pontos da Rede de Atenção Psicossocial, entre as quais estão: o CAPS AD III, as unidades de acolhimento, os leitos de saúde mental, o Consultório na Rua e a formação técnica para profissionais de nível médio e superior. Centro de Convivência e Cultura: O Centro de Convivência e Cultura é uma unidade pública, articulada às Redes de Atenção à Saúde, em especial à RAPS, onde são oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção e intervenção na cultura e na cidade. Esses centros são estratégicos para a inclusão social das pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, por meio da construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade e em variados espaço da cidade. Atenção Psicossocial ENTENDER O FUNCIONAMENTO DO CAPS O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e suas modalidades compõem a Atenção Psicossocial Estratégica. O CAPS é um serviço de referência para casos graves, que necessitem de cuidados mais intensivos, e/ou de reinserção psicossocial, e ultrapassem as possibilidades de intervenção conjunta das equipes de NASF e SF. Pessoas que buscam o CAPS por demanda espontânea devem ser acolhidas e avaliadas pela equipe, e os casos que não tiverem necessidade de acompanhamento nesse serviço devem ser redirecionados para as equipes de Saúde da Família de referência, preferencialmente por meio de contato telefônico do profissional do CAPS com o profissional da UBS ou do NASF. O CAPS é constituído por equipe multiprofissional que atua sob a ótica interdisciplinar e realiza atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial. Os usuários egressos de internação psiquiátrica também podem ser atendidos diretamente pelo CAPS, visando reinserção psicossocial e organização do retorno da pessoa para tratamento no plano comunitário. Os casos de usuários acompanhados pelo CAPS que, após estabilização, receberem alta do serviço também podem ser discutidos entre CAPS, ESF e NASF, em vez de serem encaminhados diretamente para as ESF. Segundo o Ministério da Saúde, os Centros de Atenção Psicossocial estão organizados nas seguintes modalidades: CAPS I: Atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam prioritariamente intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. É indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 15 mil habitantes. CAPS II: Atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes. CAPS III: Atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Proporciona serviços de atenção contínua, com funcionamento 24 horas, incluindo feriados e fins de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de saúde mental, inclusive CAPS AD. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 150 mil habitantes. CAPS AD: Atende pessoas de todas as faixas etárias, que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes. CAPS AD III: Atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas. Proporciona serviços de atenção contínua, com funcionamento 24 horas, incluindo feriados e fins de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 150 mil habitantes. CAPSi: Atende crianças e adolescentes que apresentam prioritariamente intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões com população acima de 70 mil habitantes. As atividades nos CAPS são realizadas prioritariamente em espaços coletivos (grupos, assembleias de usuários, reunião diária de equipe), de forma articulada com os outros pontos de atenção da rede de saúde e das demais redes. Sendo o cuidado desenvolvido por intermédio de Projeto Terapêutico Singular, envolvendo em sua construção a equipe, o usuário e sua família. Atenção de Urgência e Emergência Os pontos de atenção de urgência e emergência são responsáveis, em seu âmbito de atuação, pelo acolhimento, classificação de risco e cuidado nas situações de urgência e emergência das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.Entre eles destacam-se o Samu, a sala de estabilização, as portas hospitalares de atenção à urgência/pronto-socorro, a UPA e as unidades básicas de saúde. Além disso, os pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial na Atenção de Urgência e Emergência deverão se articular com os CAPS, devendo, nas situações que necessitem de internação ou de serviços residenciais de caráter transitório, articular e coordenar o cuidado. Atenção Residencial de Caráter Transitório As Unidades de Acolhimento e o Serviço de Atenção em Regime Residencial são pontos de atenção do componente de Atenção Residencial de Caráter Transitório. As Unidades de Acolhimento oferecem cuidados contínuos de saúde, com funcionamento 24 horas, em ambiente residencial, para pessoas com necessidade decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, de ambos os sexos, que apresentem acentuada vulnerabilidade social e/ou familiar e demandem acompanhamento terapêutico e protetivo de caráter transitório cujo tempo de permanência é de até seis meses. Essas unidades estão organizadas em duas modalidades, são elas: Já os serviços de Atenção em Regime Residencial, entre eles as comunidades terapêuticas, destinam-se a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial transitório por até nove meses para adultos com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Atenção hospitalar Entre os pontos de atenção do componente atenção hospitalar destacam-se os leitos de saúde mental em hospital geral e o serviço hospitalar de referência para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no hospital geral. Os leitos de saúde mental em hospital geral oferecem tratamento hospitalar para casos graves relacionados aos transtornos mentais e ao uso de álcool, crack e outras drogas, em especial de abstinências e intoxicações severas. Já o serviço hospitalar de referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas oferece suporte hospitalar, por meio de internações de curta duração, com equipe multiprofissional e sempre acolhendo os pacientes em articulação com os CAPS e outros serviços da Rede de Atenção Psicossocial para construção do Projeto Terapêutico Singular. Esse serviço deve funcionar em regime integral, durante 24 horas diárias, nos sete dias da semana, sem interrupção da continuidade entre os turnos. 2. DISCUTIR A LEI 10.216 (PRINCIPIOS, DIRETRIZES, OBJETIVOS). A lei 10.216, chamada de lei Paulo delgado ou lei da reforma psiquiátrica, iniciou como um projeto do então deputado, paulo delgado. Só que esse projeto fiou por muito tempo sendo debatido, ficando por 12 anos em tramitação no Congresso sendo debatido, revisto e modificando, chegando à lei 10.216, sancionada em 2001 pelo então presidente FHC Essa lei redireciona a assistência em saúde mental, tirando os paciente dos manicômios e trazendo eles de volta para a comunidade, fala também sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Mas, apesar disso, ela funcionou como um novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. E assim, a partir dessa lei, legal, a internação só pode ser justificada quando as técnicas e os recursos terapêuticos não se mostrarem adequados ao tratamento do doente mental e, quando necessário, deve se dar em leitos de hospitais gerais, entre os leitos de pacientes com doenças orgânicas, para que não se prive o doente mental do convívio social. Além disso, é indispensável a fiscalização do Ministério Público nos casos de internação compulsória, inclusive do doente mental em conflito com a lei penal. Com isso, houve redução de hospitais psiquiátricos privados em favor do tratamento territorial e o Ministério da Saúde passou a articular ações no âmbito de saúde mental, como a redução de leitos nos hospitais psiquiátricos e a implantação e reformulação de vários projetos governamentais. As articulações tinham por objetivo evitar o internamento, já que havia uma política de eliminação social do doente mental por meio da internação indiscriminada. Projetos para trazer de volta os pacientes para a comunidade: programa “de volta para casa”; residências terapêuticas; centros de atenção psicossocial e hospital-dia. Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I. Ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II. Ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III. Ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV. Ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V. Ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI. Ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII. Receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII. Ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX. Ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. A lei 10.216 foi um projeto do então deputado federal pelo estado de Minas Gerais em 2001, Paulo Delgado, a respeito dos direitos das pessoas com transtornos mentais, que acabaria ficando conhecida popularmente como lei da reforma psiquiátrica ou lei antimanicomial. A lei foi sancionada pelo então Presidente na época, Fernando Henrique Cardoso, em 6 de abril de 2001, após 12 anos de tramitação e debates dentro do Congresso Nacional. Ela representa um grande avanço jurídico no que concerne aos direitos dos usuários e de seus familiares em saúde mental. Tem como foco a saúde mental de base comunitária e dispõe, fundamentalmente, sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. A lei prevê três modalidades de internação: Internação Voluntária: Em relação à internação voluntária, a lei 10.216 de 2001 dispõe que somente será voluntária se o paciente declarar por escrito que a aceita. Para isso, ele deve ser maior, não ser civilmente interditado e deve estar psiquicamente orientado. Nos serviços de saúde mental também se exige a presença de um responsável, contudo, é importante advertir que legalmente não há a exigência de um responsável quando se trata de internação voluntária de pessoa com transtorno mental não civilmente interditada. Quanto à capacidade psíquica, “o critério legal para definir capacidade tem como foco o entendimento do paciente sobre sua doença e suas consequências, os vários tratamentos disponíveis e seus riscos e benefícios, e a credibilidade das informações para que seja tomada uma decisão por parte do indivíduo afetado pela doença que, obviamente, requer alguma habilidade intelectual”. Portanto, na internação voluntária, a pessoa com transtorno mental não tem sua capacidade de tomar decisões afetadaspelo transtorno mental, não necessitando de um responsável. Em contraposição, se ele não estiver apto para decidir sobre sua saúde, a internação será involuntária, havendo a exigência do responsável que tomará “em suas mãos as deliberações sobre a vida dele, analogamente ao caso das pessoas interditadas”. Internação Involuntária: Essa modalidade de internação, prevista na Lei 10.216, ocorre sem o consentimento do usuário e em situações de emergência ou a pedido de familiar ou responsável legal, pois as condições clínicas do paciente não permitem seu consentimento. Vale ressaltar que o pedido do familiar ou responsável não é suficiente para que ocorra a internação, sendo necessário que um médico, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina do estado onde se localiza o estabelecimento, a autorize. A internação involuntária poderá ocorrer em situações ordinárias ou de emergência. No primeiro caso, deve ser solicitada uma autorização judicial prévia. Nas internações de emergência, deve- se, no prazo de 72 horas, comunicar o caso ao Ministério Público Estadual. O responsável pela comunicação ao Ministério Público é o Diretor Clínico. A Portaria GM n. 2.391/02 elaborou um modelo de formulário próprio, o Termo de Comunicação de Internação Involuntária. Das informações que devem estar contidas neste documento, destacam-se: o tipo de internação (voluntária ou involuntária), o motivo e justificativa da internação e a descrição dos motivos de discordância do usuário que está sendo internado. Internação Compulsória: A Lei 10.216/2001 define a internação compulsória como“aquela determinada pela justiça”. E que nesse tipo de internação, os juízes devem levar “em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”. Um dos tipos de internação compulsória é a medida de segurança, que representa a forma legal encontrada pela justiça para tratar de pessoas com transtornos mentais que transgrediram as leis penais, ou seja, cometeram crimes. Essas pessoas não podem ser consideradas criminosas legalmente, pois devido ao transtorno mental eram, ao tempo da ação criminosa, incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Como consequência, a elas é aplicada, em detrimento da pena, a medida de segurança que pode ser: internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, quando da ausência desse, em outro estabelecimento adequado; ou sujeição a tratamento ambulatorial. A lei antimanicomial O maior legado do Movimento de Luta Antimanicomial brasileiro foi a Lei 10.216/2001, a qual deu alicerce ao sistema antimanicomial, direcionando a política nacional de saúde mental às normativas do direito sanitário. Entretanto, assim como o movimento antimanicomial arrostou o interesse mercantil de hospitais privados, mantidos pelos recursos do Estado, essa lei também enfrentou o mesmo obstáculo para sua completa efetividade, embora atualmente assevere sinais de superação. A partir desse diploma legal, a internação só pode ser justificada quando as técnicas e os recursos terapêuticos não se mostrarem adequados ao tratamento do doente mental. Além disso, é indispensável a fiscalização do Ministério Público nos casos de internação compulsória, inclusive do doente mental em conflito com a lei penal. Há, portanto, uma excepcionalidade no que se refere ao internamento, que, quando necessário, deve se dar em leitos de hospitais gerais, entre os leitos de pacientes com doenças orgânicas, para que não se prive o doente mental do convívio social. Com isso, houve redução de hospitais psiquiátricos privados em favor do tratamento territorial e o Ministério da Saúde passou a articular ações no âmbito de saúde mental, como a redução de leitos nos hospitais psiquiátricos e a implantação e reformulação de vários projetos governamentais. As articulações tinham por objetivo evitar o internamento, já que havia uma política de eliminação social do doente mental por meio da internação indiscriminada. Tais ações relevaram-se pelos programas: “de volta para casa”; residências terapêuticas; centros de atenção psicossocial e hospital-dia. Essas mudanças devem, por consequência, ser extensivas à medida de segurança, e podem ser alcançadas a partir da retirada do rótulo social de “louco” ou “louco infrator” atribuído àquele que, simplesmente, tem características que o diferem do padrão social. Dessa forma será possível excluir o eugenismo e higienismo sociais que representam um freio ao avanço na concessão da cidadania ao nominado “louco” e, assim, adjudicar sua responsabilidade. Insta afirmar, contudo, que parte dos reformistas não descarta a medicalização contínua da loucura, em virtude da forte influência da indústria farmacêutica. Sua bandeira não é pela exclusão da medicamentalização, é pela abertura dos ambientes manicomiais e pelo consequente tratamento psiquiátrico da loucura em outros espaços, também, estigmatizados. Ora, a meta da psiquiatria não deve ser pela “loucura aberta”, mas sim pela “desloucura”. Em suma, o êxito da reforma manicomial depende ainda de uma mudança social e legislativa. A primeira revelada pela necessidade de eliminar o preconceito em relação às pessoas com comportamentos diversos do padrão social; e a segunda, pelo urgente mister de técnica legislativa capaz de dispor uma adequada terminologia a essas pessoas, que não lhes impulsione à exclusão social, pois as terminologias adotadas atualmente – tais como deficientes, usuários, pessoas acometidas de transtornos mentais e loucos – não corroboram o processo de aceitação social. No entanto, o fato é que essa atitude não é simples, principalmente em um país economicamente subdesenvolvido como o Brasil, com fortes traços eugenistas que obstam a independência da psiquiatria. 3. OS REFLEXOS DA LEI 10.216/2001 EM MEDIDAS DE SEGURANÇA Em matéria penal, sob o ângulo dos três critérios de solução das antinomias, a Lei 10.216/2001 revogou tacitamente o Título VI do Código Penal, que disciplina as medidas de segurança, bem como o Título VI da Lei 7.210/1984, que dispõe sobre a execução das medidas de segurança. Por consequência, a Lei 10.216/2001 passa a reger a matéria. Sob esta ótica, a primeira alteração a ser registrada, promovida pela Lei 10.216/2001, foi a substituição do termo medida de segurança por internação compulsória, conforme art. 6º, inciso III, quando determinada pela justiça penal ou cível, pois tal lei não faz referência à distinção entre a internação civil e a penal. Assim, o nomen juris “medida de segurança” passa a ser substituído por “internação compulsória”, que deve, portanto, ser empregado pelos juízes das varas de execuções penais. Embora a Lei 10.216/2001 não proíba o internamento de pessoas acometidas por transtorno mental, a interpretação que se extrai de seu art. 4º, caput, é que o internamento deve ser realizado em casos excepcionais. A regra, nos termos da lei, é que a “internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”. Isso significa, no escólio do art. 2º, incisos VIII e IX, que o doente mental deve ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental ligados à administração pública e, por consequência, ao direito sanitário. No entanto, nos termos do citado dispositivo, constata-se que ele não defendeu a eliminação do internamento, mas sim, o inseriu numa terapêutica acessória, pois será adotado quando não houver outro recurso médico-psiquiátrico para conter o transtorno mental. Isso implica considerar que a lutaantimanicomial não defende a eliminação do internamento, mas dos ambientes manicomiais, razão pela qual os internamentos seriam realizados por hospitais gerais. Observa-se, assim, que o art. 97, caput, do Código Penal, no qual se determina a espécie de medida de segurança aplicável ao doente mental de acordo com a gravidade, em abstrato, do delito (internamento para quem comete crime apenado com reclusão e tratamento ambulatorial para quem comete crime apenado com detenção), não foi recepcionado pelo art. 4º, da Lei 10.216/2001. Isso porque a escolha de tratamento, pela nova normativa, não fica adstrita à vontade da lei penal, mas sim aos critérios de profissionais que cuidam de pessoas com doenças da mente. Apenas quando os recursos extra- hospitalares forem insuficientes ao tratamento é que poderá, pela lei, haver internação compulsória. Igualmente abalada pela Lei 10.216/2001 é a regra de que a internação do louco infrator seja feita em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, isto é, em manicômios judiciais, como rezam os arts. 96, inciso I e IX, ambos do Código Penal, os quais também foram revogados por essa lei. O art. 4º, § 3º, da Lei 10.216/2001, indica a obrigatoriedade do tratamento em unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais, porém em ambientes que não tenham características asilares. Pelo regramento, os locais que receberão o doente mental em conflito com a lei penal, em regime de internamento, são os hospitais gerais e as residências terapêuticas, todos sob o ostensório do Sistema Único de Saúde, com a promoção de serviços médicos, psicológicos, ocupacionais e de assistência social. Entretanto, não se pode olvidar que o acompanhamento do tratamento será realizado sob a supervisão do juízo da execução penal, com rigorosa intervenção do Ministério Público, pois trata-se de resposta penal face violação de bem jurídico-penal. Uma das aspirações da lei foi evitar os internamentos nos antigos ambientes manicomiais, inclusive penais, como os hospitais de custódia e complexos médicos penais dirigidos por profissionais lotados nos departamentos penitenciários dos Estados. Também se buscou conter os internamentos em ambientes regidos por agentes penitenciários, os quais, pela diretriz antimanicomial, não têm qualquer formação ligada à área de saúde mental para acompanhar o tratamento dos internos. O § 1º do art. 97 do Código Penal, não impede a perpetuidade da medida de segurança, mas, igualmente, não foi recepcionado pela Lei 10.216/2001. Consta em seu art. 5º: “O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.” De fato, seu intuito foi evitar a perpetuação da internação e a dependência institucional, como ocorre nos hospitais de custódia dos Estados, os quais são semelhantes aos antigos ambientes onde eram lançados leprosos, prostitutas, pobres, alcoólatras e loucos, enfim, aqueles que não eram recepcionados no âmbito social em virtude de forte preconceito e discriminação. A Lei 10.216/2001, em seu art. 5º, passou a compelir a criação de mecanismos de políticas de reabilitação psicossocial assistida e individuada, especialmente com intuito de promover a desinternação. Em razão dessa lei, o tratamento perpétuo fundamentado na periculosidade social não é permitido, visto que a disposição do art. 5º tem extensão aos loucos infratores, olvidados nos manicômios, de forma a lhes proporcionar um programa de alta planejada. Consequentemente, a Lei 10.216/2001 se coaduna ao art. 5º, inciso XLVII, da Carta da República, que veda a pena perpétua. Para essa missão deve ser criado, por meio de equipe multidisciplinar, um programa personalizado de alta planejada aos doentes mentais em conflito com a lei penal, cabendo ao Ministério Público o ônus de verificar a legalidade das internações em cumprimento há longo tempo e de velar para que se adequem às novas diretrizes apontadas pela Lei 10.216/2001. Da mesma forma, a redação do art. 97, §2º, na qual se assevera que “a perícia médica realizar-se-á ao termo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução”, não foi acolhida pela Lei 10.216/2001. Com efeito, a proposta desse diploma legal é desburocratizar o tratamento ofertado ao doente mental, razão pela qual não há prazo mínimo de internamento imposto por lei, já que o tratamento de qualquer doença depende da reação do paciente face técnicas empregadas. Contudo, não há permissão, em hipótese alguma, para a perenidade do internamento. Afastar o tratamento manicomial penal é um desejo dos antimanicomialistas pensado no âmbito da ideologia, porém alcançá-lo indica uma travessia que importa, inicialmente, conceber a loucura como uma construção social que exige da psiquiatria sua legitimação. Essa conquista depende, destarte, de uma união de esforços que leve a romper os laços preconceituosos e discriminatórios em relação ao indivíduo com competências socialmente atípicas. Sem desprezar o conteúdo normativo da Lei 10.216/2001, é preciso alinhá-la a uma política criminal, cuja resposta penal ao louco infrator seja híbrida. Em outras palavras, é necessário considerar os preceitos dessa lei aliados à concepção humanística da loucura, voltada ao reconhecimento da capacidade de muitos grupos de pessoas, que são atualmente classificados, pela psiquiatria, como doentes mentais. O desafio do Movimento de Luta Antimanicomial – cuja política se concentrou nas últimas décadas, exclusivamente, na busca de meios antiasilares de tratamento do louco (infrator ou não) – reside, agora, em migrar sua atenção às formas de diagnóstico da loucura, pela psiquiatria. Isso se faz necessário dada a influência marcante exercida pela indústria farmacêutica nessa subárea da medicina, que fomenta a inflação de doenças mentais com impactos penais, na medida em que qualquer comportamento em desalinho ao social é taxado, por ela, como doença mental, submetendo o indivíduo à invasiva medicalização com danosos efeitos colaterais. Dessa forma, a atuação desse movimento sob a vertente da contestação do “diagnóstico” promoverá, inevitavelmente, a migração de muitos indivíduos considerados pacientes psiquiátricos ao campo da normalidade, devolvendo a eles a imputabilidade penal. QUE SE PASSOU, NO PLANO DA POLÍTICA PÚBLICA, NESSES 10 ANOS DE VIGÊNCIA DA LEI 10.216? QUAL O IMPACTO DA LEI? QUE APRENDEMOS COM ESSA EXPERIÊNCIA? Tentando ser breve, farei uma rápida referência a alguns fatos que me parecem relevantes, começando pela ampliação da rede pública de atenção em saúde mental. Logo após a aprovação da lei, em abril de 2001, seguiu-se, em dezembro do mesmo ano, a III Conferência Nacional de Saúde Mental, e, meses depois, uma medida da gestão pública do SUS que determinou recursos financeiros específicos para a rede territorial com base na sustentação legal da lei recém-aprovada. Refiro-me à portaria 336, de fevereiro de 2002, que criou as diversas modalidades de CAPS (de acordo com o porte: I, II e III, este último funcionando 24 horas, ou com a finalidade: álcool e outras drogas – CAPS-AD, e crianças e adolescentes – CAPS-i). Instituiu o CAPS infanto-juvenil, pois não havia uma política para crianças e adolescentes, que foi criada com amparo na lei e nas deliberações da III Conferência. A Organização Mundialde Saúde (OMS), nas suas avaliações quinquenais dos países em relação à saúde mental, toma como primeiro elemento para analisar o avanço do acesso da saúde mental nos países, a existência de uma lei nacional. Em 2001, ano da aprovação da lei, a Assembleia Mundial da OMS teve como tema central a saúde mental. Isso ajudou muito para que a lei brasileira fosse aprovada e sancionada naquele ano pelo Governo Federal. Semanas depois da sua aprovação, o Brasil levou à Organização Mundial da Saúde, como contribuição do país para o ano internacional da saúde mental, a sanção governamental da lei, o que foi extremamente relevante e reconhecido por todos os países como um fato positivo. Desde então, a OMS vem acompanhando o processo brasileiro, com todas as suas dificuldades e problemas. Esse é um dos processos nacionais que a entidade cita como exemplo de enfrentamento da iniquidade em saúde mental. Enfrentamento, não solução ou milagre e, sim, compromisso concreto do estado nacional com a questão da saúde mental. No mundo inteiro, são 10 os países mencionados como exemplo, dos 190 países do sistema das Nações Unidas, entre os quais o Brasil. Um segundo ponto que desejo mencionar, além da ampliação do acesso ao tratamento, é o fato de que houve uma mudança qualitativa do debate sobre a questão da cidadania. A lei foi criada com toda a efervescência dos anos 90, com a legitimidade construída pelo longo debate e pelos avanços obtidos na mudança do modelo de atenção. A partir de sua aprovação, ela passa a ser um polo orientador do próprio debate. Grupos que consideram que o Brasil tem uma Política de Saúde Mental equivocada, como os segmentos vinculados a hospitais psiquiátricos ou a algumas associações profissionais, todos defendem a lei 10.216. O que dizem é que ela poderia estar sendo mal aplicada, mas não há uma contestação explícita da própria lei. Claro, não sejamos ingênuos, nesses 10 anos, várias vezes por ano, propostas de mudança da lei foram apresentadas no Congresso brasileiro. O governo é sempre parte nessa questão, convocado através do Ministério da Saúde, e sempre se manifestou contrário às mudanças da Lei 10.216. Em sua maioria, as propostas de mudança manifestavam, explicitamente, a intenção de aperfeiçoar a lei, às vezes esclarecendo um termo, às vezes acrescentando alguma medida, às vezes atendendo à reivindicações legítimas que vinham de segmentos, por exemplo, pais de autistas, que desejavam incorporar também a referência a algum tema especifico. A posição do Ministério da Saúde, que representei como gestor nessas sessões no Congresso, sempre foi a seguinte: toda a regulamentação é possível e desejável, no nível infra- legal, sem mudança do texto da Lei, pois a revisão do texto legal representa, de fato, a revisão dos preceitos fundamentais que a constituem e que continuam válidos para nós. Em algumas outras situações, apresentaram-se claramente propostas de revogação da lei. Portanto, 10 anos depois, se a lei se consolidou e se legitimou, através da implantação real de boa parte dos seus mandamentos, o embate ideológico e de modelos de atenção persiste e a agenda política de defesa dos princípios da lei permanece atual. 4. ELUCIDAR A NOTA TÉCNICA 11/2019 (A NOVA SAÚDE MENTAL) E SEUS RETROCESSOS E CONSEQUÊNCIAS No período de dezembro de 2016 a maio de 2019, foram editados cerca de quinze documentos normativos, dentre portarias, resoluções, decretos e editais, que formam o que a nota técnica 11/2019- CGMAD/DAPES/SAS/MS veio a chamar de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. Essa ‘nova política’ se caracteriza pelo incentivo à internação psiquiátrica e por sua separação da política sobre álcool e outras drogas, que passou a ser denominada “política nacional sobre drogas”, tendo esta grande ênfase no financiamento de comunidades terapêuticas e numa abordagem proibicionista e punitivista das questões advindas do uso de álcool e outras drogas. Conforme apontado pela Defensoria Pública da União (Brasil, 2019d), a ‘nova’ política nacional de saúde mental - PNSM contraria as leis 8.080/90, 8.142/90 e 10.216/2001, a Constituição Federal e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (promulgado no Brasil pelo Decreto n. 592/1992), além de recomendações específicas do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que indicam a revogação desta nova orientação governamental. No dia 4 de fevereiro de 2019, foi publicada a Nota Técnica n. 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, que imediatamente gerou grande repercussão, com notas de repúdio e posicionamentos em contrário, divulgados em todo o país, inclusive com cobertura da mídia, pois ela deixava clara a intenção de transformar o modelo assistencial vigente, apresentando-se como uma “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. A nota técnica 11 marca, então, a mudança de discurso, na qual o governo recém-empossado assume, de fato, que se trata de outro modelo, no qual “o Ministério da Saúde não considera mais serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza” (Nota Técnica 11). O texto questiona frontalmente a efetividade do modelo em vigor até 2017 e a direção de uma política pautada no cuidado comunitário, afirma a necessidade de aumento do número de leitos psiquiátricos e repudia a ideia de fechar hospitais. Também afirma ser democrática ao se apoiar em discussões realizadas com mais de 70 entidades “conhecedoras da realidade da saúde mental no país” – o que é facilmente contestável, pois não cita quais seriam estas entidades e nem com qual critério foram escolhidas para participar da construção das mudanças, sendo que as instâncias oficiais do controle social, como o CNS e o CNDH, além dos conselhos profissionais (de psicologia, enfermagem, serviço social etc.), entidades como a Abrasco e a Abrasme e pesquisadores do campo foram completamente alijados de participar das discussões e tiveram seus posicionamentos (amplamente divulgados e/ou registrados em meios oficiais) ignorados. Um aspecto da nota que não havia sido estabelecido em normativas anteriores foi a apresentação da eletroconvulsoterapia como se fosse um exemplo de “disponibilização do melhor aparato terapêutico”, ignorando os registros históricos de que esta fora empregada corriqueiramente enquanto instrumento de tortura e punição nas instituições manicomiais anteriormente à Reforma Psiquiátrica. Ainda que existam indicações técnicas para o uso da eletroconvulsoterapia, estas se aplicam a uma parcela extremamente pequena dos casos de transtorno mental grave e estão longe de ser uma solução em larga escala, conforme a nota proclama. Também chama atenção o modo como é mencionada a atenção a crianças e adolescentes, com ênfase descabida na internação psiquiátrica. A Nota Técnica cita que “não há qualquer impedimento legal para a internação de pacientes menores de idade (sic) em Enfermarias Psiquiátricas de Hospitais Gerais ou de Hospitais Psiquiátricos. A melhor prática indica a necessidade de que tais internações ocorram em Enfermarias Especializadas em Infância e Adolescência”. A nota “vai na direção contrária das recomendações de entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS)”. Além disso, oficializa a separação da, agora, “Política Nacional Sobre Drogas” da Política Nacional de Saúde Mental. “Esta separação entre as duas políticas tem também a clara intenção de impedir que os princípios que regem a atenção psicossocial, especialmente o cuidado realizado em liberdade (...) sejam igualmente aplicados aos usuários de álcool e outras drogas”.
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