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EA D 6 Entre a História e a Escatologia: A Esperança 1. OBJETIVOS • Identificar a esperança esperante como uma atitude his- tórico-escatológica. • Analisar a história como lugar e empenho do cristão dian- te das questões escatológicas. • Compreender o porquê, apesar de tudo, de sabermos tão pouco sobre o futuro. • Interpretar a Escatologia como um processo de esperança entre a história e a eternidade. 2. CONTEÚDOS • O desígnio divino da salvação, pressuposto da Escatolo- gia. • A esperança escatológica que molda a história. • A história em que acontece a esperança escatológica. © Escatologia128 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO • A imanência e a transcendência como Escatologia reali- zada. • "A douta ignorância do futuro". 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Faça anotações de todas as suas dúvidas e tente solucio- ná-las por meio do nosso sistema de interatividade ou diretamente com o seu tutor. 2) Recomendamos a leitura por várias vezes dos textos deste material para fixar seus conteúdos. Para isso, re- comendamos realizar pequenos apontamos com a finali- dade de comparar e aprofundar pontos de destaque uti- lizando-se das fontes aqui elencadas e que já indicamos como indispensáveis para o estudo deste tema. 3) Escreva um texto sobre como você compreende a espe- rança cristã, para, ao final desta unidade, você compará- -lo com as novas ideias apresentadas. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE O ser humano é alguém sempre aberto à esperança. Nin- guém pode negar esse princípio, mesmo que não o atribua como dom de Deus. Na verdade, porém, o ser humano é movido sempre pela esperança, e, inclusive, a grande esperança que transcende a história. Os cristãos creem que Deus move o coração humano para si, como um ímã que atrai e que lhes dá sentido de vida. A es- perança fundamental, na verdade, transcende a história, mas não existe senão nela. Aqui se abrem três realidades importantes para a Escatologia: 1) a história em que acontece a esperança; 2) a esperança que molda a história; 129© Entre a História e a Escatologia: A Esperança 3) a esperança histórica consumada como definitividade escatológica. Porque crê em Deus e em sua promessa, o ser humano é um ser de esperança. Ele espera o cumprimento radical da promes- sa divina, que é a salvação. O processo da revelação (distinto do projeto da salvação) foi objeto de seu estudo no início do curso de Teologia. Lá se discursou sobre como Deus foi salvando o povo bíblico. 5. O DESÍGNIO DIVINO DA SALVAÇÃO, PRESSUPOS- TO DA ESCATOLOGIA Em vista do aspecto escatológico, você deverá aprofundar, inicialmente, nesta unidade, algumas questões sobre o próprio projeto de salvação divino, para enquadrar de modo correto a Es- catologia. 1) A Santíssima Trindade é feliz em si mesma, sem precisar de nada nem de ninguém. O Filho eterno glorifica o Pai e por ele é glorificado pela intermediação do Espírito de quem procede. Contudo, Deus, por pura gratuidade e a fim de repartir seus benefícios, estabeleceu um plano: tudo quanto haveria de ser criado deveria participar da glória divina. Assim, o Universo cósmico e, em especial, o ser humano, existiriam para participar da glória de Deus. 2) Por meio de suas duas mãos, o Filho e o Espírito, Deus acompanharia o criado em vista de seu fim último (fim Escatológico). Todavia, Deus criou todas as coisas como realidades visíveis e invisíveis. Os seres visíveis (o Uni- verso e os seres humanos), no plano de Deus, têm uma história em dois estágios ou tempos: a vida a caminho e a vida na pátria definitiva. O objetivo, no primeiro es- tágio, consiste em um progressivo acostumar-se a viver com Deus convivendo com os irmãos. O segundo e de- finitivo momento consiste na vida salva em plenitude, com os irmãos, em Deus. © Escatologia130 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 3) O projeto do Pai foi entregue ao Filho antes da criação. Ele é, desde o início, o único salvador. Assim, é o que cuidará da realização do plano paterno e o apresentará consumado ao Pai no fim da história. A missão, contribui- ção do Espírito, é fazer crescer, progressivamente, esse projeto, desde a história até a plenitude. Aí o Universo estará consumado, redimido e salvo (cf. Rm 8,18-21) e o ser humano estará capacitado para viver em Deus com sua glória. 4) A vida feliz (eterna) é a plenitude realizada desse plano de vida em Deus. Entretanto, a Escatologia é construí- da, na história, com a colaboração do Filho e do Espírito pela participação humana. O ser humano antecipa, na história, as possibilidades escatológicas. É por isso que os cristãos rezam, ensinados por Jesus: "venha a nós o vosso Reino" e "seja feita a vossa vontade assim na Terra como é feito no Céu" ou suplicam "Maranthá" ("vem, Senhor Jesus"). Desse modo, os dois estágios ou tempos são inseparáveis e não podem senão viver unidos (Histó- ria e Escatologia), apesar das suas distinções. 5) Ainda é necessário recordar: foi Deus quem veio a nós e se revelou a si próprio e ao seu plano de salvação. A culminância da revelação aconteceu, escatologicamen- te, com Jesus ressuscitado, assistido pelo Espírito Santo. Ao mesmo tempo, a revelação do projeto divino foi-se desdobrando em significados e realidades crescentes. Em significados porque Deus, que outrora falará pelos profetas, nos últimos tempos, revelou, por seu próprio Filho, sua vontade salvífica, e a realidade passou da re- velação do plano divino à história do povo hebreu, cuja realização máxima é a encarnação do próprio Filho. 6) Ele é a fonte máxima da aliança de Deus conosco. O Filho feito um de nós é um puro ato da bondade salvadora a qual Deus não estava obrigado. Jesus é um dom (escato- lógico) do Pai que nos ama. O plano salvífico passa por Jesus, pois nele, e por ele, é que todos seremos salvos. Ele é dom divino desde toda a eternidade. Assim, desde antes da criação, antes das religiões, antes das culturas 131© Entre a História e a Escatologia: A Esperança etc., são estas que se condicionam àquela; não o con- trário. • As "institucionalizações salvíficas" (igreja, sacramentos, religiões etc.) são decorrências humanas para facilitar os caminhos humanos, pois só Deus salva, e o faz por meio de seu Filho. A vontade salvífica estende-se a todos. • Se Deus criou-nos sem nossa participação, não nos salva- rá sem nossa contribuição. Nossa necessária colaboração só acontece na história, e sobre essa nossa história, incide a salvação de Deus. 6. A HISTÓRIA ONDE ACONTECE A ESPERANÇA ESCA- TOLÓGICA A renovação teológica do século 20, o avanço e a fundamen- tação das ciências bíblicas, a redescoberta da patrística, o Vaticano II, além de outras contribuições, devolveram à Escatologia acenos importantes para a retomada dos compromissos cristãos diante do futuro, partindo do presente. A ênfase dada pela Lumen Gentium e, especialmente, pela Gaudium et Spes, propôs nova orientação (sem ignorar a tradição contínua) e recoloca os fundamentos da questão escatológica no significado do Plano de Deus, da centrali- dade de Cristo no processo salvífico, não mais, exclusivamente, no indivíduo a ser salvo ou condenado. Desse modo, o Reino de Deus deve ser acolhido e expandido agora, desde a história e passando pela valorização do mundo, do trabalho e da peregrinação humana até a pátria celeste. Assim, valoriza-se a esperança cristã, redesenha-se a linguagem apocalíp- tica da Bíblia e tudo passa a ser centrado em Cristo, salvador e juiz, a fim de a criação ser restaurada, consumada e plenificada. Afirma a LG: Portanto, até que o Senhor venha em majestade e com ele os anjos (cf. Mt. 25,31) e, destruída a morte todas as coisas lhe são submeti- das (cf. 1Cor 15,26-27). Alguns dentre os discípulos peregrinam na © Escatologia132 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO terra.Outros, terminada esta vida, estão em processo de purifica- ção. Enquanto outros são glorificados e contemplam claramente o próprio Deus Trino e uno, assim como é (LG 49). A GS apresenta dimensões novas, incluindo o valor escatoló- gico da atividade humana no mundo, a transitoriedade do mundo com seu valor, a diferenciação entre o processo humano e o Reino de Deus e a centralidade de Jesus Cristo. Ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade e desconhecemos a maneira da transformação do Universo. Passa certamente a figura deste mundo deformado pelo pecado, mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova Terra. Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então, ven- cida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção. Permanecerão o amor e sua obra será libertada da servidão da vai- dade toda aquela criação que Deus fez para o homem. Somos advertidos, com efeito, de que não adianta ao homem ga- nhar o mundo inteiro se vier a perder a si mesmo. Contudo a espe- rança de uma nova Terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra. Nela cresce o Corpo da nova família humana que já pode apresentar algum esboço do novo século. Por isso, ainda que o progresso terreno deva ser cui- dadosamente distinguido do aumento do Reino de Cristo, contudo é de grande interesse para o Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para organizar a sociedade humana. Depois que propagarmos na Terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, os valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos estes bons frutos da natureza e do nosso tra- balho, nós os encontraremos novamente, limpos, contudo de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino e justiça, de amor e de paz. O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se consumará (GS 39). Do valor escatológico dessas realidades terrenas, porém, não se pode concluir que o progresso técnico-científico se iden- tifica com a construção da plenitude escatológica. Os critérios de Deus (kairológicos) não se confundem com os da história e os dos homens (cronologia). A evolução e o aperfeiçoamento da nature- za, incluindo o homem em sua dimensão biológica e social e o pro- 133© Entre a História e a Escatologia: A Esperança gresso, não coincidem, naturalmente, com as questões do Reino. É inegável a importância do processo humano, mas ele não é o constitutivo do Reino de Deus. Assim, os cristãos sabem que as conquistas escatológicas (desenvolvimento) são ações do Filho e do Espírito que, trabalhando conjuntamente no projeto de salva- ção do Pai, preparam os homens e o Universo para ver a Deus e viver nele. É certo que a história e o contexto histórico de cada um não são ignoradas na vida em Deus. Nenhum ser humano perderá sua identidade na vida eterna. Antes, ele estará pervadido por tudo quanto Deus preparou para os que amam (cf. 1 Cor 2,9). Portanto, pode-se dizer que toda a história humana é per- passada pela história cósmica também e manterá sua peculiarida- de. Ela será elevada, plenificada junto a Deus, no final dos tempos, sem perder sua identidade mais profunda, que só será conhecida em Deus mesmo. A história é, então, o lugar privilegiado das relações de Deus com os homens. É na construção da história que os homens res- pondem à salvação que vem de Deus. A história do povo hebreu, no AT, de Jesus e dos primeiros cristãos, no NT, são paradigmáticas para nós. Olhamos para elas e para o futuro e caminhamos cons- truindo nosso cotidiano, aperfeiçoando nossos modos de viver, de sentir, de amar e de cultivar o Universo e amando a Deus e aos irmãos. A história é o único espaço que a humanidade tem como re- alidade e como preparação para o futuro escatológico. Como ima- gem de Deus, os seres humanos ensaiam a construção do mundo terreno para ser pátria de irmãos, mesmo sem mais necessidade de justificar que a pátria terrena é sempre provisória. Eles sabem que só a cidade de Deus é definitiva. A cidade terrena, porém, não é nem autossuficiente nem é autônoma (apesar de parecer). Todavia, ela também não se con- funde com a pátria futura, o que não significa distanciamento ra- © Escatologia134 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO dical entre as duas. Jesus, usando a linguagem de Reino de Deus, mostrou-a já em processo entre nós. Ensinou aos homens a espe- rá-la e a desejá-la. Indicou critérios para isso, mesmo apontando sua decisiva realização para todos no futuro definitivo enquanto, individualmente, cada um a vai atingindo à medida que termina seus dias na história terrena. Os cristãos, ao unirem as realidades da pátria terrestre e da pátria celeste, criam inúmeras situações que os fazem refletir e aprofundar a própria fé por meio da teolo- gia, mais diretamente das questões escatológicas. Na unidade anterior, já antecipamos algumas reflexões par- tindo do Reinado de Deus, ainda não totalmente presente do Aquém, mas de sua definitividade no Além, não de sua concretude histórica, mas de completude escatológica, não de uma realidade política, mas de uma transcendência divina, de promessa, mas não ainda de cumprimento etc. A esperança escatológica, porém, prevê um final? Quando será o fim da história? Estas e outras perguntas sempre preocupa- ram os que creem, e as respostas são bem diversificadas. Elenque- mos, especialmente, as de cunho teológico mais consistente. 1) Milenarismo ou quiliasmo: por influências bíblicas, muitos cristãos querem ver sinais apocalípticos, como a destruição e a aniquilação de tudo como a aproximação do fim dos tempos. Para eles, a base bíblica maior é o capítulo 20 do Apocalipse, no qual aparecem, também, os mártires ressuscitados que reinaram por mil anos. Daqui, surge, na Teologia, a ideia de milenarismo ou quiliasmo, palavras, de origem latina e grega, que têm o mesmo significado. Assim, alguns, em um sentido es- trito, afirmam o reino de Cristo e dos Santos durante mil anos, quando após a vitória derradeira de Cristo contra o mal se manifestará a salvação definitiva. Outros, em sen- tido mais amplo, entendem o milenarismo ou quiliasmo como a expectativa de uma história terrena culminando em salvação antes da destruição do mundo. 135© Entre a História e a Escatologia: A Esperança • Na história da Igreja, esses movimentos messiânicos ou quiliásticos foram frequentes até a virada constan- tiniana, especialmente por causa das opressões e fal- tas de liberdade da Igreja. • Tais ideias tomam forma histórica em muitos movi- mentos sociais, cujos exemplos podemos encontrar no Contestado (no início do século 20, em que foram mortos mais de 20.000 agricultores em Santa Cata- rina); em Juazeiro, Ceará, com Padre Cícero; em Ca- nudos, Bahia, com Antônio Conselheiro etc. Ainda tipificam essa questão o Sebastianismo, a "Terra sem males" dos índios guaranis, as Cruzadas etc. Sobre esses movimentos nacionais, você pode ver: FAUSTO, B. O Brasil republicano e sociedades e instituições (1889-1930). Vol. 2. São Paulo: Difel, 1985; MONTEIRO, D. Os errantes do novo sécu- lo: um estudo sobre o surto milenarista do contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974; QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. 2) As duas cidades: Santo Agostinho preferiu compreen- der a questão escatológica não ligada ao tempo, mas à questão das "duas cidades". O mal (Satanás) começou a ser vencido por Cristo, cuja luta continua no presente, mas será vitoriosa de modo radical pela implantação do Reino de Cristo, por meio da conversão pessoal. O novo milênio (de Cristo) é vivido na história.Especialmente, no Livro XX, da Cidade de Deus, Agostinho insiste que a Cidade de Deus já está sendo experimentada por aque- les que aderem a Cristo, como uma espécie de trigo no meio do joio. 3) Os diferentes Reinos de Deus: séculos mais tarde, Joa- quim de Fiores (1202) desenvolve a ideia dos três Rei- nos: o do Pai (AT), o de Cristo (NT) e o do Espírito (nosso tempo de Igreja). Nesse último, uma Igreja espiritual, constituída de homens espirituais (guiados pelo Espíri- to), a chegada do Reino de Deus definitivamente. © Escatologia136 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 4) Os bons tempos da vida da Igreja: vários teólogos e clé- rigos, com certa frequência, intentam indicar a chegada do Reino de Deus na Terra nas experiências de saídas de períodos de opressão eclesiástica para melhorias sociais. 5) O progressivo crescimento em Cristo: o Concílio Vati- cano II, inclusive influenciado por ideias de Teilhard de Chardin (+1958), tem apontado para o grande cresci- mento humano rumo a Cristo. A Igreja, como já se afir- mou anteriormente, não confunde o progresso e o de- senvolvimento técnico-científico como apresamento do Reino escatológico, mas não se recusa a crer que a hu- manidade caminha, progressivamente, para o encontro com Cristo, que a purifica por seu mistério pascal. 6) Da libertação histórica à definitividade escatológica: diversos teólogos da segunda metade do século 20 reto- maram essas questões. Foi daí que surgiram importantes teologias, como a da esperança (J. Moltmam), da políti- ca (J. B. Metz), e, especialmente, a Teologia da Liberta- ção, que visou à questão da presença do Reino de Deus partindo da ideia bíblica sobre a libertação dos pobres e a ênfase na recuperação da dignidade deles. Todas essas teologias descentralizam a Escatologia fechada e indivi- dualizante de teologias anteriores e, ao mesmo tempo, repropõem ideias bíblicas que, passando pelo pão nosso de cada dia, indicam a direção de Deus na eternidade. A crítica que eles fazem a uma Escatologia pré-moderna e individualizante aponta as raízes veterotestamentárias; é a indissociável realidade do Reino de Deus (cf. unidade anterior). Enquanto o Magistério (papas e Vaticano II) enfatiza as di- mensões escatológicas da Igreja e seus sacramentos, muitos teólo- gos põem a ênfase na tradição bíblica do começo escatológico nas realidades cotidianas dos homens e mulheres da história. As duas perspectivas que não se opõe formam o grande mo- saico de esperança perante os olhos que nem viram e que ouvido nenhum ouviu, mas é certo que Deus preparou para os seus (cf. 1Cor 2,9). 137© Entre a História e a Escatologia: A Esperança 7. A ESPERANÇA ESCATOLÓGICA, A QUE MOLDA A HISTÓRIA Você deve ter sempre presente que os primeiros cristãos, em seu cotidiano e seu trabalho, esperaram a volta de Jesus (segunda vinda, em poder e glória – Parúsia) para logo depois da morte dele. Assim, São Paulo, em suas primeiras cartas, lembra que "o tempo tornou-se breve" (1 Cor 7, 29), que "a aparência deste mundo é passageira" (1Cor 7, 31), que o quanto antes chegará ao final do mundo com o retorno de Cristo. A Primeira Carta aos Coríntios é perpassada pela espera da iminente Parúsia (veja-se 15, 51-53): se Cristo voltará em breve, "ao som da última trombeta", de que serve se casar e colocar filhos no mundo? Em uma etapa posterior, São Paulo instou aos cristãos a vive- rem vigilantes, pois não se sabe quando virá o Senhor. Ele, com a linguagem própria, estimula os cristãos não só a viverem na expec- tativa da Parúsia, mas a agir com esperança e vigilância ocupados nas questões éticas, políticas e religiosas de seu próprio tempo. Em um terceiro momento, vendo a falha do retorno de Cristo ao som da última trombeta, São Paulo foi moderando seu discurso nas cartas deuteropaulinas, particularmente a Carta aos Efésios, dis- tanciando a questão do fim e propondo o compromisso com a história. A esperança e a vigilância são as virtudes escatológicas intra- -históricas próprias dos cristãos, que esperam, atentamente, esses tempos de realização definitiva, só conhecida por Deus. É certo que alguns grupos cristãos (principalmente adventistas) se mobi- lizam, frequentemente, para a chegada imediata desse fim. Os ca- tólicos, por princípio, deveriam ter consciência dessa completude dos tempos. Mas, ao mesmo tempo, devem viver sem se preocu- parem com datas, apesar de que alguns vivem como se toda a vida se resumisse na história fechada sobre si mesmo, fazendo de seu ventre o próprio Deus, como denuncia São Paulo (cf. Fil 3,19). © Escatologia138 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO A esperança cristã, longe de indicar uma situação passiva, quer afirmar que, ativamente, o ser humano é um buscador de suas esperanças. Ele busca suas realizações. Quer dizer, ao buscá- -las, eles constroem também. A esperança tem, como ponto espe- cífico, algo de futuro, mas como esperança que se espera, que se constrói, é necessário fazer alguma distinção. É natural a esperança escatológica reduzida: • ao espaço da vida terrena; • mesmo que essa também tenha aspectos Escatológico- -Messiânicos; • outra é a esperança escatológica cristã que, sem se des- ligar da história, refere-se ao futuro absoluto. Todas elas olham para futuros autênticos; porém, com níveis dife- rentes. A esperança imanente visa ao cumprimento ou à realização dos projetos humanos, e muitas pessoas se limitam a eles, apenas. Essa esperança pode ser chamada de futuro intra-histórico, intramundano ou intraterreno, mesmo que tenha aparência reli- giosa, como, por exemplo: messianismo ou milenarismo ou ques- tões populares de "fim do mundo". Pode-se dizer que tal esperança é uma questão de Escato- logia só em sentido analógico, limitado e impróprio. Na história das ideias, muitos pensadores tentaram desmistificar verdadei- ras questões escatológicas, especialmente de vida eterna, para transformá-las em questões históricas. Feuerbach, por exemplo, considerava a vida eterna como: "projeção de um desejo"; Marx a qualificava de "consolo para os oprimidos"; Nietzche a identifica- va como "negação do eterno retorno do idêntico"; e, para Freud, tudo não passa de "uma irrealista regressão da pessoa psiquica- mente imatura". Apesar disso, a esperança tem suas raízes profundas no co- ração humano. Interroga-se sobre o futuro (imediato e remoto) e 139© Entre a História e a Escatologia: A Esperança alimenta-se de esperanças (circunstanciais e/ou escatológicas). Há uma realidade antropológica que impulsiona o ser humano, esse "animal" utópico, a interrogar-se e a manter a esperança; é algo existencial da pessoa. É um princípio da realidade humana objeti- va que impulsiona à superação do quietismo (autossuficiência) e do niilismo (desespero total, sem sentido). Esperar (o que se carac- teriza por uma tensão dialética diferente e não por uma alienação) indica, a todo ser humano, sua provisoriedade (ainda não é o que deve ser), sua não perfeição (sempre se almeja a felicidade), sua incompletude (história não terminada) e sua busca de libertação (superação de frustrações e inseguranças). O mundo que nos rodeia é sempre um laboratório vivo de novas possibilidades, pois ele é, também, dinâmico e aberto, como o é qualquer pessoa. O fato do ser humano estar sempre inaca- bado, incompleto e aberto ao outro, implica viver no mundo em processo. Esse processo indica a possibilidade de transformar o mundo e aperfeiçoar a própria pessoa. É certo que toda pessoa é impulsionada a transcender a si mesma. Se, por um lado, pertence à natureza humana esse fato (que empurra permanentemente a algo maior), por outro lado, é preciso reafirmar que o próprio ser humano é, também, sujeito da esperança. "Ninguém é uma ilha", já dizia Tomás Merton. Ninguém vive só, e tão pouco só, para si. Todo eu é um desafio que o faz mover- -se para o futuro. Todo eu é um desafio ao outro. Desse modo,surgem as oportunidades sempre novas. Nesse sentido, a esperan- ça é sempre um ato que se torna comunitário tanto pelo desafio recebido quanto pelo produzido. É assim que cada um se descobre construtor do outro e, especialmente, construtor das possibilida- des de amadurecimento, de realização e de modificação da his- tória. A perfeição humana é buscada na construção da história; é sempre sonhada (esperada) e está sempre em mudança (em vir a ser). © Escatologia140 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Assim, podemos compreender a afirmação de Ernest Bloch: "Ser homem quer dizer ter uma utopia" (1971, p. 188). Alguém também afirmou que a utopia move o ser humano (e as comunida- des) antes mesmo das mudanças. Ela dá suporte às mudanças pelo desejo, pela esperança e pela luta, pois tanto as pessoas quanto as sociedades e a natureza são grávidas do futuro. É por ser sonhador e esperançoso que o ser humano desentranha delas o futuro cada vez que antecipa a história. As utopias sociais movem, de modo especial, as transformações pessoais e sociais. Tanto quanto a es- perança, a utopia é, também, princípio constitutivo da identidade humana. Sem dúvida, a esperança e a utopia podem ser destruídas, massacradas, anuladas e desencaminhadas (o que sempre leva a frustrações humanas). A esperança e a utopia também podem ser destruidoras e massacrantes. Ambas podem ser pequenas e mesquinhas. Podem ser desprezadas e desprezíveis. Podem ser construções de loucos e/ou visionários, bem como de santos ou ditadores. No entanto, isto não invalida o princípio antropológico da esperança e da utopia próprio da pessoa e/ou da comunidade humanas. Como você pode notar, até aqui fizemos apenas afirmações gerais que tanto podem servir às questões infra-históricas quanto às transcendentais ou meta-históricas. Todavia, é importante res- saltar que as utopias e as esperanças transcendentais, na verdade, não são produções humanas e tampouco podem ser captadas fora das "fé", em especial, da fé religiosa. Aqui poderia-se estabelecer, ainda, que é provisória uma dis- tinção entre Escatologia secular e Escatologia cristã. A primeira é profundamente antropológica, em seus acertos e erros; a segunda, sem deixar de ser humana, está fundada em Deus (especialmente no Verbo encarnado, ressuscitado), cuja missão é salvar todos os homens. Na Escatologia secular, surgem perguntas antropológicas que vão desde as questões de saúde, emprego, ascensão social, 141© Entre a História e a Escatologia: A Esperança matrimônio, paternidade, convivência social, liberdade, direitos humanos, regimes políticos até as questões mais profundas, como o significado da vida, da existência do mal e da morte, a felicidade plena etc. Na Escatologia cristã, o empenho está fundado no projeto salvífico de Deus, que passa pela história cotidiana dos homens e das mulheres de todos os tempos e lugares, com perguntas sobre o ser, o existir do próprio Deus e o seu compromisso com a huma- nidade e com o Cosmo; ao mesmo tempo, com o empenho dos cristãos na corresponsabilidade deste mundo com seus habitan- tes, embasados na esperança e na grande utopia do reino de Deus. 8. A IMANÊNCIA E A TRANSCENDÊNCIA COMO ESCA- TOLOGIA REALIZADA Há, no ser humano, uma natural abertura para o outro e para o mundo que desemboca em desejos humanos capazes de, até mesmo, transcender a realidade humana e social. Todavia, isto não cria e não torna real a plenitude meta-histórica da transcen- dência. Pode até haver uma meta transcendente intra-histórica no Universo antropológico. Entretanto, há algo maior que independe do ser humano, pois vem de fora: é a meta final transcendente que é posta por Deus ou que é ele próprio. O ser humano, à medida que responde à fé em Deus, perce- be que o próprio Deus cria nele (inclusive na comunidade humana) esperanças e utopias transcendentais que implodem essas espe- ranças infra-históricas. Tais esperanças transcendem as sucessivas realidades antropológicas, pois estas, por si só, se mantêm em ní- vel real imanente. Só Deus é capaz de atrair o ser humano para o transcenden- tal último. Por sua vez, o ser humano é capaz de responder pela fé e de transcender a si para chegar a Deus, por quem é atraído. © Escatologia142 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO A Escatologia, em seu sentido próprio, preocupa-se com essa dimensão transcendente da transcendência. Entretanto, ela não está descomprometida com as esperanças e as utopias antro- pológicas, como caminhos para Deus e para o outro humano. São essas preocupações teológicas da Escatologia que se jus- tificam na transcendência absoluta. No entanto, não se pode esque- cer que "um da Trindade" fez-se um de nós. Entre nós, viveu como um igual a nós. Passou pelo mundo fazendo o bem. Pregou o amor e a compaixão, a esperança e a utopia do Reino de Deus. Foi morto e Deus o ressuscitou, antecipando, escatologicamente, o futuro. Con- sequentemente, por melhores que sejam as esperanças e as utopias humanas, elas só têm guarida à medida que, por obra e graça de Deus, são transcendidas e dadas por Aquele que é a fonte e a ori- gem, a sustentação e o destino do ser humano e do cosmo. 9. A "DOUTA IGNORÂNCIA SOBRE O FUTURO" A esperança cristã no futuro escatológico não pode senão vir ao encontro da consciência do ser humano, levando em conta sua radical ligação com Deus, em oposição a quaisquer fundamentalis- mos ou totalitarismos. Por isso, alguns teólogos querem entender a Escatologia como um complemento da Antropologia Teológica ou da Cristolo- gia. Na verdade, a questão escatológica perpassa e dá um sentido especial a todos os outros enfoques teológicos. Deve-se recordar, diante das questões escatológicas (e da Escatologia como disciplina acadêmica), a expressão já clássica de K. Rahner: "docta ignorantia futuri" (a douta ignorância sobre o futuro). Na realidade: 1) há um conhecimento autêntico (docta) das questões escatológicas que partem das experiências bíblicas e da vida cotidiana dos homens como processos de salvação, 143© Entre a História e a Escatologia: A Esperança de libertação ou de condenação que, projetando nosso futuro, nos ajudam a compreender nosso presente; 2) as questões escatológicas (futuri) nos são reveladas ape- nas pelo mínimo necessário à fé, mas plenamente su- ficientes para abrir-nos aos mistérios de Deus e à sua fidelidade (ignorantia); 3) a Igreja insiste na virtude de prudência e de compreen- são da revelação acima de qualquer pietismo, secularis- mo ou "imaginação fértil" sobre essas realidades ultra- terrenas. As afirmações são bem mais alusivas que as realidades objetivadas; 4) por fim, a docta ignorantia consiste no ato de ignorar- mos o futuro (futuri) dos segredos que Deus prepara para seus filhos e para o Universo, ainda envolto em mistério. 5) A escatologia cristã reflete sobre o futuro metaterreno não precisamente para tornar-se uma agência de informações sobre o Além, mas para capacitar o fiel a tomar consciên- cia do imenso desafio do presente, para poder distinguir nele o que é irrenunciável (o reino de Deus) do que é so- mente importante (todo o resto) (GOZZALINO, s/d). O discurso teológico sobre a Escatologia mantém sua valida- de enquanto se pronuncia sobre o futuro, tendo, unicamente, o objetivo de permitir uma convivência construtiva do presente. Os enunciados de Escatologia (docta futuri) interpretam o presente à luz do próprio futuro. Isto quer dizer que o tempo presente (a história) só se explica pelo futuro de Deus. Portanto, transcende a história dos homens que se explica, também, partindo do passado. O significado da pró- pria história da salvação, que Deus quer conceder a todos, será con- sumado, realizado no fim dos tempos, quando Cristo apresentar ao Pai toda sua obra acabada. Aí está a definitividade escatológica em sua completude, mas nós cremos que tudo começana criação por libérrima e gratuita vontade do Pai, que se manifesta em sua pleni- tude histórica terrena da encarnação do Verbo subseguida de sua ressurreição. Só em Deus ela se cumprirá em plenitude. © Escatologia144 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Contudo, sem um certo conhecimento do futuro (docta ig- norantia futuri), o ser humano não consegue dar significado ao seu presente, pois o significado está no futuro último. Assim, a Escatologia torna-se uma hermenêutica (não para curiosos) mas de fundamentação do presente alicerçada na esperança do futuro absoluto e transcendente, que é Deus. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar seu de- sempenho no estudo desta unidade: 1) A partir do que você estudou, procure comentar o quadro de conceitos a seguir: Quadro 1 Entre a História e a Escatologia. 145© Entre a História e a Escatologia: A Esperança 2) Você gostaria de modificar o esquema, acrescentando ou refazendo-o? Ex- perimente! 11. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, fundamentalmente, você se deparou com a questão das esperanças em suas implicações entre a Escatologia e a história. A histórica esperança esperante de nosso futuro está funda- da no Plano salvífico de Deus, revelado, vivido e experimentado entre altos e baixos pelos povos bíblicos. Jesus, o constituído nosso salvador, desde antes da criação, por sua encarnação, revelou-nos esse mistério e o chamou Reinado ou Senhorio de Deus. Por sua presença entre a humanidade, foi antecipando-o em curas e em milagres, ensinamentos e testemunhos. Por sua ressurreição, tor- nou-se, de modo definitivo, a fidelidade do Pai às suas promessas salvíficas, e, ao mesmo tempo, foi antecipado, nele, nosso futuro. Deus quer salvar a todos e quer transformar o mundo e o Cosmo todo em novo Céu e nova Terra a fim de que possamos alcançar a plenitude de nossa realização como verdadeiros seres humanos; assim, viver em Deus e podê-lo ver "face a face", eter- namente como sua glória e para sua glória. Todos os homens e as mulheres são criados e convocados para isso. Todos chegarão lá?! Deus espera-os em sua bondade de Deus e não de homem. Você concluiu os estudos desta disciplina, mas terá percebi- do o quanto inúmeros temas ficarão abertos como que sem con- clusões certas. Há um imenso caminho a ser percorrido. Você pode ajudar-se a aprofundar. 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, A. Escatologia I. Madrid: UPCO, 1989. AGOSTINHO, S. A Cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 1991. © Escatologia146 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO ALVIAR, J. J. 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