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M1CHAEL E. TIGAR MADELEINE R. LEVY O DIREITO E A ASCENSAO DO CAPITALISMO Tradução de RllY JUN^MANN Z A H A R E D I T O R E S RIO l)E J A N E I R O T í t u l o o r t g t n a l Law and lha teixo «>/ Crtpifa2ls»i T r B d « ' t í o da p r i m e i r a «}<1l<;ôo, p u b l i c a d a e m 1077 p e l a M O N T I I I . Y REV1EVV P R E S S , de N o v a Y o r k , E**udo« U n i d o s d a A m é r i c a Copyright © 1977 bij Mtrhael E. Tigar Pro ib ida a r e p r o d u ç ã o lotai o u p a r d a l d e s t e livro, a a lvo a s c i t a ç õ e s no» v e í c u l o s d e c o m u n l c a ç & o . <iap/i dê J A N R 1 0 7 » Di ro i tuy p a r a a l í n g u a p o r t u g u e s a ü d q u i i k l o s p o r ZAHA. l t E D I T O R E S C a i x a P.-.fttnl 207. ZC-M, R i o i|«ie ae r e f e r v a m a p r o p r i e d a d e dwsta v e r s ã o I m p r t t i m n o Brasil índice P R E F A C I O P O R T H O M A S I. E M E R S O N 7 A G R A D E C I M E N T O S 11 I N T R O D U Ç Ã O 13 P R I M E I R A P A R T E O Direito e a Ascensão do Capitalismo ao Poder: V ma Visão Geral 1. O M e r c a d o r c o m o R e b e l d e 19 2 . O s A n t e c e d e n t e s d a s N o v a s I n s t i t u i ç õ e s J u r í d i c a s 23 S E G U N D A P A R T E Os Mercadores rt Procura de um Lugar na Ordem, Feudal (ÍOOO-ISOO) 3. I n t r o d u ç ã o 87 4. A s C r u z a d a s : A C a p t u r a d a s R o t a s de C o m é r c i o e a D i s s e m i n a ç ã o d a I d e o l o g i a B u r g u e s a 70 5. V e n e z a e A m a l f i : E n t r e o O r i e n t o e o O c i d e n t e 87 6 . A l g u m a s O r i g e n s d a C u l t u r a U r b a n a 91 7 . T r a n s p o r t e p o r T e r r a e M a r 106 8 . P a p a s e M e r c a d o r e s 111 0 . A B u r g u e s i a n o S é c u l o X I I I 119 6 Í N D I C E T E R C E I R A P A R T E Os Advogados Burgueses: O Poder Real e o Desenvolvimento Urbano (iSOO-UOO) 1 0 . I n t r o d u ç ã o 125 1 1 . B e a u m a n o i r e O u t r o s : O s T e ó r i c o s d e u m a N o v a O r d e m 128 12 . A C a p i t a l C o m e r c i a l d e G r a s s e 167 13 . A R e b e l i ã o C a m p o n e s a c o D i r e i t o à T e r r a 178 Q U A R T A P A R T E A Ascendência da Burguesia (1$00~1600) 14 . I n t r o d u ç ã o 185 1 5 . T h o m a s M o r e e a D e s t r u i ç ã o d a V i s ã o M e d i e v a l 189 1 6 . A R e f o r m u l a ç ã o d a L e i d e P r o p r i e d a d e I m o b i l i á r i a 197 17 . C o n t r a t o — U m E s t u d o d o D i r e i t o e d a R e a l i d a d e S o c i a l 211 Q U I N T A P A R T E A Vitória Burguesa (leoo-iMiJ 1 8 . F r a n ç a : O T r i u n f o d o T e r c e i r o E s t a d o 229 1 9 . I n g l a t e r r a : A T é c n i c a d o D i r e i t o C o s t u m e i r o 251 S E X T A P A R T E Insurreição e Jurisprudência 2 0 . O D e s e n v o l v i m e n t o d a I d e o l o g i a J u r í d i c a 269 2 1 . P r i n c i p a i s E s c o l a s d e P e n s a m e n t o J u r í d i c o 280 2 2 . A J u r i s p r u d ê n c i a d a I n s u r r e i ç ã o 298 B I B L I O G R A F I A S E L E C I O N A D A 317 Prefácio T H O M A S I . E M E R S O N N e s t e livro, Michae l T i g a r e Made le ine Levy pro- põem-se remontar às origens e ao desenvolv imento de nossa atua] ordem jurídica em termos da luta havida entre uma so- c iedade capitalista em ascensão e uma estrutura feudal em de- clínio. A história se inicia em época remota, o século X I , com os primórdios da vida mercantil nas c idades , prosseguindo até o triunfo da jurisprudência burguesa, no século X V I I I . A ênfase é co locada no modo como o direito e as instituições jurídicas ref letem os interesses da c lasse dominante e como eles são mo- di f icados à medida que uma nova classe social gradualmente substitui a anterior. C o m o história, trata-se de uma descrição absorvente. Ampliará os horizontes de todos os a d v o g a d o s e es- tudantes de direito, e e les farão muito bem em se familiarizar com o assunto. O livro, porém, reveste-se também de implicações mais amplas. Aque le s entre nós que se interessam pela mudança social nos Es tados Unidos , e a maioria dos membros da classe dos cultores do direito, têm ignorado, de um modo geral, al- g u m a s ques tões fundamentais . Indubitavelmente, os Es tados U n i d o s , como aliás a maior parte do M u n d o Ocidental indus- trializado. encontram-se num período de transição. O s proble- mas se agravam dia a dia e so luções não parecem possíveis den- tro da estrutura das instituições capitalistas tradicionais. Seja ou não a n o v a ordem socialista marxista, como acreditam Tigar e Levy, ela será sem dúvida mais coletiva, repousará em uma nova consciência e, temos esperança, incluirá um sistema de li- berdade individual. Esse processo de mudança social e a mode- 8 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O lação de nosso dest ino final estão na raiz dos problemas cruciais de nossos dias. Q u e papel podem os preceitos d o direito e as instituições jurídicas desempenhar no período de transição e que lugar lhes caberá n o novo esquema de coisas? N ã o há dúvida de que nossa ordem jurídica constitui um dos aspectos mais notáveis da so - c iedade ocidental. E, conforme observam T i g a r e Levy, a ideo- logia jurídica não é propriedade exclusiva dos grupos dominan- tes da sociedade. M u i t o ao contrário, grupos que aspiram a assumir o poder no E s t a d o formulam seu ataque em termos de conjuntos de regras e princípios jurídicos. N ã o é provável que mude essa situação. A nova ordem não pode representar um rompimento total com o passado. Forçosamente se desen- volverá a partir das formas existentes e, no fim, muitas velhas idéias, atitudes e inst ituições se aglut inarão na futura ordem. Podemos , por conseguinte , esperar que a nova ordem seja ini- ludivelmente ocidental e não, d igamos, chinesa, na sua depen- dência do direito c o m o meio vital de controle social. Como, então, pode ser o direito uti l izado no atual s istema a fim de promover a mudança social? T i g a r e L e v y não deixam dúvida de que nossa ordem jurídica presta-se a esse uso. O s direitos assegurados sob a ordem prevalecente , tanto com res- peito à propriedade e aos direitos contratuais como n o tocante aos direitos individuais, são formulados em termos universais, e podem ser reivindicados por todos o s e lementos da sociedade. Necessar iamente , há hiatos e incertezas no s istema que indi- cam certa flexibil idade. À medida que muda a fase factual original d o direito, este s e descontrola e gera contradições que ex igem solução pela mudança. A s regras jurídicas são inter- pretadas por uma classe especialmente treinada de juristas, que tendem a desenvolver seu próprio momentum. U m grupo em ascensão pode aproveitar e s ses aspectos da ordem jurídica e formular o que T i g a r e Levy chamam de "jurisprudência da insurreição". M a s . exatamente , de que maneira p o d e isso ser feito? O que promoverá o processo de mudança social e o que s implesmente reforçará as instituições existentes e superadas? Q u a l a s i tuação do a d v o g a d o isolado que participa de tal processo? É certamente ambígua. Por um lado, ele deve forço- samente atuar dentro d o s istema existente ou perderá toda a inf luência que possa porventura exercer e. talvez, o próprio status de advogado. Por outro lado, ele assume um so lene com- promisso com uma séria mudança social. N u m e r o s o s a d v o g a - P R E F Á C I O 9 dos têm quebrado a cabeça c o m es se problema que, apesar de tudo, continua a constituir um sério dilema. D e que modo um grupo que contesta a velha ordem começa a formular sua própria jurisprudência? É claro que deve fazê-lo, dado o papel fundamental do direito na soc iedade ocidental. E, mais uma vez, conforme observam T i g a r e Levy . a ideolo- gia de um movimento diss idente em a s c e n s ã o influenciará profundamente a ordemjurídica que será posta em vigor quando conquistar o poder estatal. Por que meios, então, pode começar a introduzir n o s istema vigente suas idéias sobre o m o d o como devem ser ordenadas as forças produt ivas da sociedade, de que modo um sistema de direitos individuais pode ser man- tido numa soc iedade coletivísta e de que maneira pode ser desenvolv ido o senso de comunidade? Q u e dizer da conveniência de pressionar os tribunais, pedindo uma diferenciação no papel d o judiciário entre direi- tos de propriedade e contratuais, por um lado, e direitos in- dividuais. por outro? A ideologia jurídica da c lasse capitalista em ascensão deu ê n f a s e à manutenção dos interesses burgue- ses em ambas as esferas; na primeira, a f im de assegurar- lhe a supremacia material; na segunda, como essencial à obtenção d o poder n o Estado . Atualmente , é o s is tema capitalista que procura restringir o sistema de direitos individuais, e os grupos diss identes os que têm interesse em mantê- los e expandi- los . Será isso fundamental para se interpretar o papel dos tribunais neste periodo como interessado primordialmente n o sistema de direitos individuais? Serão o s tribunais impotentes para introduzir mudanças n o s s istemas de propriedade e direitos con- tratuais? O u poderão eles reagir a reivindicações, extrapoladas da ideologia burguesa, à igualdade material e a uma participa- ção na riqueza nacional? Finalmente, será suficiente pedir aos tribunais que prote- jam os c idadãos nos seus direitos tradicionais contra a inter- ferência dos órgãos públicos em sua l iberdade de expressão e religião, contra a injustiça em seus contactos com o governo e contra o tratamento desigual perante a lei? O u deverá a ordem jurídica ser acionada para adotar uma ação positiva, caso se deseje que se transformem em realidade os ideais do sistema de direitos individuais? O Direito e a Ascensão do Capitalismo não responde a todas essas questões . N o es tudo d o papel desempenhado peio 1 0 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O direito e pelos a d v o g a d o s na transição d o feudal ismo para o capitalismo, contudo, o livro, na verdade, lança muita luz sobre o papel de ambos. T o d a s as pes soas seriamente interessadas na mudança social , sejam elas estudantes , praticantes do di- reito ou c idadãos comuns, acharão nestas pág inas matéria esti- mulante e sugest iva . N e w Haven, Connect icut Janeiro de 1977 I I Agradecimentos i N o s s a gratidão é tão grande quanto nossa dívida para com T h e Louís Rabinowitz Foundat ion , Carol U . Berns- tein e S tan ley Sheinbaum por doações que nos possibilitaram iniciar esse trabalho. A assistência que nos forneceram per- mitiu que real izássemos pesquisas em O x f o r d , Bolonha, Grasse. N ice . A ix -en-Provence , Genebra, Londres, Paris, V e n e z a , Cannes , Dubl in, Berkeley, Los A n g e l e s e outras cidades. O manuscrito foi dati lografado, corrigido e as provas ti- pográf icas revistas (disso resultando numerosas sugestões e comentários va l iosos ) por Pamela Av i s , em Le T ignet , França, e Carol W i t k o w s k i , Maura J. Flaherty , Ruth W a l i c k i e Leo- nore M a n n e s , em W a s h i n g t o n , D . C . H a r r y Braverman acre- ditava neste livro e proporcionou-nos sábio e paciente acon- selhamento. S u s a n Lowes merece agradec imentos especiais pela assistência editorial. Mencionar todas as pessoas e instituições que nos auxi- liaram exigiria dezenas de pág inas e não queremos correr o risco de menosprezar nenhuma delas por omissão involuntária. N o s s o s agradecimentos a todas. Introdução Escrevendo sobre revolução e direito, procuramos evitar fatos específ icos e concentrar-nos em princípios e ten- dências gerais. Sabemos que "tal é a unidade da história que todo aquele que se dispõe a relatar parte dela deve , forçosa- mente. sentir que sua primeira sentença rompe uma teia incon. sútil." À s cautelosas palavras de Pol lock e Mai t land não só nos orientaram, como nos serviram de advertência. E s t e livro des- creve a ascensão da burguesia européia a o poder e estuda as origens de sua luta contra ordens jurídicas hostis. Em termos mais gerais, argumentamos que a mudança jurídica constitui produto d o confl i to entte c lasses sociais que procuram adequar as instituições de controle social aos seus f ins e impor e manter um sistema específ ico de relações sociais. Para nós, a tarefa mais importante n o estudo da história — ou, mais exatamente, da jurisprudência na história *— consis- tiu em compreender o conteúdo de ideologias jurídicas con- fl itantes e o s interesses onde elas têm suas origens, identificar os grupos cujo confl ito com a ideologia pref igura a mudança revolucionária e descrever o desenvolv imento , na vida diária de homens e mulheres, de tal confl i to. A r g u m e n t a m o s que a missão apropriada da jurisprudência consiste em explicar o mecanismo de mudança fundamental nas normas jurídicas que, apoiadas pelo poder do Estado, gover- nam nossa vida. Se t ivermos sucesso nes sa tarefa, compreen- deremos a atual ordem jurídica e de que m o d o a mesma deve ser, e será, mudada pelos desaf ios revolucionários que hoje enfrenta. Parte de tal compreensão d e v e constituir o reconhecimento de que as normas ora v igentes tiveram origem nas lutas sociais re- volucionárias de uma classe a cujos interesses elas servem. 1 4 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O A s origens deste livro podem ser faci lmente traçadas. U m de nós escreveu há a lguns anos uma resenha sobre certo livro, onde discutiu os desaf ios revolucionários lançados à atual e s - trutura de poder estatal, e na qual foi cunhada a frase "juris- prudência da insurreição". E s s a resenha transformou-se na base de uma anál ise mais ex tensa d o atual movimento em prol da mudança social, apresentada sob o título "Jurisprudência da In- surreição" n o Center for the S t u d y of Democrat ic Institutions, em Santa Barbara, Califórnia. A anál ise foi seguida por um ensaio intitulado "Direito Social ista e Instituições Jurídicas", o n d e s e discutiam usos muito di ferentes da ideologia jurídica por revolucionários na U n i ã o Soviét ica, China e Cuba. A l g u m a experiência n o ensino d o direito, no entanto, levou- nos a compreender que es ses trabalhos e pensamentos haviam ignorado a lgumas questões fundamentais sobre a ordem jurídica. U m de nós, num ensaio escrito em 1965, havia e s tudado breve- mente sublevações ocorridas na Europa Oc identa l e suas con- tribuições para as mudanças introduzidas 110 direito. D e s e j á v a - mos, n o entanto, submeter a teste nossa teoria de jurisprudência da insurreição com o es tudo das revoluções burguesas na E u - ropa Ocidental e demonstrar que as regras sob as quais hoje v ivemos podem ter suas origens atribuídas a lutas sociais e spe- cí f icas na ascensão da burgues ia ao poder. N e n h u m a história jurídica de tal t ipo fora escrita em inglês e, com a ajuda das pessoas e instituições mencionadas nos Agradec imentos , dispo» m o - n o s a escrevê-la. Inicialmente, pensávamos que os principais e lementos da ideologia jurídica burguesa houvessem emergido nas revoluções ing lesa e francesa e que nossa principal ên fase devia ser colo- cada nos séculos X V I I e X V I I I . Descobr imos , no entanto, à medida que passamos a consultar fontes primárias e secundárias na Europa e Es tados U n i d o s , que a luta da burguesia até a vitória f inal de fato começara séculos antes, nos levantes urbanos do século XI . A história des ses levantes não só constitui um emo- cionante capítulo na luta pela l iberdade humana, mas modif icou nossos pontos de vista sobre a relação entre direito e revolução. E m trabalhos mais antigos, havíamos atribuído importância primordial à fase abertamente revolucionária dos desa f ios à ordem jurídica vigente. N o estudo das origens da luta,ve lha de séculos, da burguesia, começamos a compreender melhor o papel de iniciativas essencialmente reformistas para, tempora- riamente, melhorar a s i tuação de um grupo dissidente, identi- I N T R O D U Ç Ã O 1 5 ficar o s confl i tos fundamentais e dist ingui- los daqueles menos importantes e, f inalmente, delinear melhor a arena da luta entre o ex is tente detentor do poder estatal e o grupo que o derrubaria. N ã o pretendemos, contudo, provar que a mudança jurídica, ou mudanças na ideologia jurídica, ocasionou a transição do feudal i smo para o capitalismo. T o d o s os s istemas sociais se preservam e se mantêm contra seus inimigos, e regulamentam seus assuntos internos, mediante o u s o d o poder e, assim, em última análise, mediante o u s o da força e da ameaça da foiça. S u a s normas formais repousam sobre a premissa de que se o indivíduo não obedecer às injunções do E s t a d o •— a instituição dotada de uma força pública especialmente criada para aplicar le is e injunções — mais c e d o ou mais tarde será ou obrigado pela força a obedecer, ou cast igado por não fa2ê-lo. T o d o s os grupos que desejam introduzir uma mudança radical numa so- c iedade — e os primeiros empresários desejavam exatamente i s so — inicialmente submetem a teste as instituições v igentes de poder a fim de verificar até que ponto elas se curvam e, em seguida, atacam diretamente 05 órgãos d o poder estatal, criando seu próprio aparato de força pública, com novas le is e injun- ções dest inadas a garantir s eus próprios interesses. U m a das maneiras de compreender a história, por conse- guinte, consiste em estudar as origens da ascensão, manutenção e mudança das ordens jurídicas e sua posterior derrubada, juntamente com seus instrumentos de violência. Prec isamos ter cuidado, n o entanto, para n ã o tirar conclusões apressadas de um es tudo dessa natureza. N o século XIII , parecia à alta no- breza detentora do poder político, à Igreja e à realeza que o mundo se encontrava num estado de rebelião geral e contínua. F r a d e s eremitas, descalços e pobremente vest idos , abandonavam igrejas e mosteiros ricamente dotados para agitar o laicato e o clero contra a Igreja Romana. Cavaleiros desempregados dedi- cavam-se a e legantes assaltos e servos fug idos a eles se reuniam para formar b a n d o s de salteadores. C a m p o n e s e s saqueavam as casas de seus senhores. E mercadores, residentes citadinos, ou burgueses —• o que quer que se queira chamá-los —• progrediam mediante o emprego de revolução declarada, subversão e chi- cana econômica, mal compreendidas por seus "superiores". T o d o s e s s e s grupos estavam fora da lei ou contra ela. D e n t r o de uma perspectiva de oito séculos, al imentamos a esperança de identificar as forças e acontecimentos que conde- 1 6 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O natam ao fracasso o movimento dos frades , que rotularam o s salteadores de nada mais que meros bandidos e que levaram os revolucionários burgueses à vitória final. Acredi tamos que o e s tudo da revolta burguesa contra as instituições feudais seja essencial para compreendermos o di- reito de hoje, e não apenas para a d v o g a d o s , juizes e es tudantes de direito. Acredi tamos igualmente, e a S e x t a Parte des te livro ref lete essa convicção, que as lutas de nossos dias são igual- mente de caráter revolucionário e que s ó podem ser compreen- didas pela apl icação dos mesmos princípios e métodos de análise que adotamos n o es tudo da revolução burguesa. Começamos , na Primeira Parte, com uma v i são geral da ascensão burguesa ao poder e dos principais aspectos do direito burguês. N a S e g u n d a Parte, e até a Quinta, e s tudamos as ori- gens da luta entre as ideologias jurídicas feudal e burguesa, começando com o s levantes de moradores de c idades no sé- culo X I , o s quais continuaram até as revoluções francesa e in- glesa. N a S e x t a Parte, argumentamos que o reflexo da Juta social nas normas jurídicas só p o d e ser expl icado e anal isado pela "jurisprudência da insurreição . PRIMEIRA PARTE O Direito e a Ascensão do Capitalismo ao Poder : Uma Visão Geral 1 O Mercador como Rebelde E m 1184 d . C . , na cidade francesa de Châteauneuf , revolucionários assumiram o controle dos principais edifícios, anunciando que protestavam contra impostos, extorsões e res- trições à sua liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a renunciar à "comuna ou conjura. . . que construíram", recusa- ram-se. P a s s o u - s e um ano antes que a ordem fosse inteira- mente restabelecida e, mesmo assim, persistiram os boatos sobre conspirações, tramas e soc iedades secretas. O s revolucionários eram, nas palavras d o Papa, "os chamados burgueses", ou. nas palavras do arcebispo, " potentiore bucgenses", ou poderosos bur- gueses . E s s a história circulou amplamente nos séculos X I e XII na Europa, à s veres com a queixa adicional de que o s rebel- des haviam invadido a casa do senhor ou do bispo, bebido todo o vinho, molestado membros da família e roubado carnei- ros e vacas. P o u c o espanta que Phil ippe de Beaumanoir, um culto e mesmo suave historiador jurídico d o século XII , ao re- ferir-se a tais levantes, escrevesse que "entre os mais graves crimes, que devem ser punidos e v ingados , destaca-se o de se formarem associações contra o bem comum". Para nós, atualmente, pode ser surpreendente essa imagem do burguês medieval como revolucionário. N o que interessa ao leitor moderno do Ocidente, é axiomática a respeitabilidade da c lasse mercantil. A palavra tornou-se comum e usamo-la automaticamente, sem levar em conta a ordem jurídica que, n o correr dos séculos, colocou esses indivíduos 110 centro da atividade econômica. 2 0 U M A VISÃO G E R A I , M a s , ao surgir na Europa Ocidental , por volta de 1000 d . C . , o mercador apresentava uma imagem algo diferente. Pies poudreitx, "pés sujos", ass im era chamado porquanto le- vava suas mercadorias de c idade em cidade, de íeira em feira, de mercado em mercado, a pé ou a cavalo, v e n d e n d o à medida que viajava. N a s grandes mansões dos senhores feudais, o mercador era objeto de ridículo, desprezo e mesmo ódio. C a n - ções líricas celebravam os assa l tos perpetrados pelos c a v a - leiros contra tropas de mercadores, bem como o valor dos cava- leiros na batalha e em aventuras extraconjugais . O lucro, ou a diferença entre o preço ao qual o mercador comprava e o p r e ç o a o qual vendia, era cons iderado desonroso numa socie- dade que exaltava as nobres v irtudes do assass inato e reve- renciava aqueles que viviam "graças ao cansaço e à labuta" ~ nas palavras de uma carta constitucional da época •— dos camponeses . O auferimento de lucro era considerado uma forma de usura e julgava-se que corria sério risco a alma d o mercador. O ódio surgiu mais tarde quando a nobreza, precisando de di- nheiro para financiar suas guerras e o estilo de v ida a que es tava acostumada, descobriu que os mercadores o possuíam mais d o que ela. D e um m o d o geral, no entanto, o aumento da fortuna e d o poder dos mercadores foi feito através de confl i to armado e pe lo que parecia às c lasses tradicionais quase uma revolução, punível •— conforme sugeriu Beaumanoir — com longas penas de prisão e mesmo a morte. À fim de se protegerem, e a s eus bens . das arbitrárias p i lhagens da nobreza, os mercadores foram obrigados a criar condições que lhes permitissem negociar. U m único homem, ou vários, bem equipado e hábil n o manejo de armas, podia cruzar a Europa, v e n d e n d o pequenos artigos •— tais como especiarias e sedas — que eram simultaneamente va- l iosos e fáceis de transportar e vender. I sso seria a venda. M a s , n o que interessava a um comérc/o organizado e contínuo, teria que haver um sistema que garantisse a segurança física e tor- nas se possível o crédito, o seguro e a transferência de fundos. A manufatura,ao contrário d o comércio de bens importados, ex ig ia um sistema ainda mais socialmente protegido, bem como um nível mais e l evado de tecnologia. Foram três o s aspectos da relação entre a burguesia nas - cente e o direito. E m primeiro lugar, na extensão em que se pode faJar em direito' na se lva da vida feudal, e le ou si lenciava sobre o comércio ou lhe era hostil, N e s s e s termos, por conse- O M E R C A D O R C O M O R E B E L D E 2 1 guinte, o mercador era um pária, que considerava a ordem jurídica — o sistema que baixava ordens, apoiado pela força institucional •— como inimiga, estranha. O mercador, o comer- ciante, o bufarinheiro, no entanto, procuraram chegar a bons termos com o sistema, de modo a poderem auferir lucro. A medida que aumentava o número, e o poder, dos comerciantes, o s ideó logos jurídicos desta classe f izeram um es forço para jus- tificar o lugar d o comércio na simetria da v ida feudal, Busca- ram também uma acomodação com o direito feudal e procuraram explorar-lhe o s pontos fracos. Em s e g u n d o lugar, à medida que o comerciante ampliava seu campo de at ividades e criava as instituições de comércio — cidades , portos, ancoradouros, armazéns, bancos , fábricas, e assim por diante —• entrava em choque direto com os interesses econômicos e políticos dos senhores feudais de uma ou outra parte d o território. A classe mercantil v ivia em um estado de irritação contínua contra leis e costumes mant idos com a f ina- l idade de proteger os detentores do poder feudal . D e regras proibindo a venda de terras fora da família .— o que ef icazmente impedia que elas se transformassem em objeto de comércio — até a proibição da maioria das formas de associação burguesa, tanto politicas como econômicas, o conf l i to intensif icou-se e ampliou-se até que o s burgueses gradualmente descobriram os pontos nos quais a ordem jurídica não mais podia ser dobrada à sua vontade , conciliada a um preço tolerável, o u evitada. Por último, havia as leis que os próprios mercadores elabo- raram, a ordem jurídica que conceberam para servir a seus próprios interesses. Em primeiro lugar, criaram tribunais para julgar litígios entre si, em seguida arrancaram pela força ou pela lisonja concessões dos príncipes temporais e espirituais para criar zonas francas e, f inalmente •— ao longo de um período de séculos •— assumiram o poder nas nações. O processo le- gis lat ivo burguês foi o responsável pela criação e aplicação de normas legais específ icas referentes a contratos, propriedade e rito processual . O s homens e mulheres que lutavam pela ins- tituição de preceitos jurídicos compatíveis com o comércio mais livre não a legavam haver inventado o s princípios que procura- v a m aplicar. O respeito pela tradição ve tava tal alegação. Beaumanoir , escrevendo a serviço de Fel ipe III, advertia que eram proibidas novidades não autorizadas pe lo soberano. Em vez disso, os burgueses valeram-se de ve lhas formas e princípios 2 - l ; 2 2 U M A VISÃO G E R A L jurídicos, sobretudo romanos, invest indo-os de um novo con- teúdo comercial. Hsses e lementos da relação burguesa com o direito, n o en- tanto, não correspondem a períodos históricos bem def inidos . E r a m encontrados em todos os pa íses da Europa Ocidental desde o século X I até a conquista d o poder pela burguesia, entre o s séculos X V I I e X I X . A queda do sistema feudal foi um processo gradual, ass ina lado por inesperadas e v io lentas suble- vações . Ou, tomando de emprést imo a metáfora de Diderot : A n o r m a d a N a t u r e z a e d e m i n h a T r i n d a d e , c o n t r a a q u a l n ã o p r e v a l e c e r ã o o s p o r t õ e s d o I n f e r n o . . . e s t a b e l e c e - s e d e m o d o s u m a m e n t e t r a n q ü i l o . O d e u s e s t r a n h o i n s t a l a - s e h u m i l d e m e n t e n o a l t a r , a o l a d o d o d e u s d o p a í s . P o u c o a p o u c o , c o n s o l i d a s u a p o s i ç ã o . E n t ã o , n u m a b e l a m a n h ã , d á u m a c o t o v e l a d a n o v i z i n h o e — b a h ! — o Í d o l o t o m b a a o c h ã o . U m detalhe, n o entanto, precisa ser notado aqui. N e s t e estudo, como o leitor alerta já d e v e ter percebido, "direito" não tem um único s igni f icado. D a forma usada pe los protagonistas da luta que es tamos descrevendo, s ignif icou, em diferentes ocas iões: a) o s preceitos e laborados pelos poderosos para g o - vernar seus súditos, apoiados em violência organizada; b ) os preceitos que a lguns grupos o u c lasses pensavam que, por im- perat ivo moral, deviam ser concebidos numa soc iedade devota , ou, pelo menos , melhor; c ) o s costumes e hábitos de um povo, observados desde tempos imemoriais; d ) o mani- fes to de um grupo revolucionário; e e ) as regras formuladas por a lgum grupo para seu governo interno. N o l inguajar diário, porém, direito s ignif icava tudo isso, e só p o d e m o s esperar tornar claro pelo contexto o que temos em mente. N a parte f inal, tentaremos discorrer mais longamente sobre o s ignif i - cado d o direito em uma época como a nossa , em que as rela- ções de poder passam por transformações revolucionárias. 2 Os Antecedentes das Novas Instituições Jurídicas A s ordens jurídicas do século X V I I I , elaboradas pela burguesia e para a burguesia, foram buscar e lementos e auto- ridade em seis diferentes corpos de pensamento legal: 1 . O Direito Romano, restaurado sob várias formas e invest ido da autoridade de uma civil ização cuja expansão mi- litar imperial deixara marcas em todo o M u n d o Ocidental . O pensamento jurídico romano criou formas de relações legais des t inadas a conciliar e promover o comércio com todos os re- cantos do império. 2 . O Direito Feudal, ou Senhorial, ou normas que def i - niam as relações de respeito, dominação, exploração e proteção que caracterizavam o nexo pessoal entre senhor e vassalos. 3 . O Direito Canónico, o u regras jurídicas da Igreja Catól ica Romana do Ocidente, que reivindicava variável, mas sempre grande, controle sobre os negóc ios bem seculares do comércio. 4 . O Direito Real. ou o s preceitos que traduziam a in- f luência consolidadora daqueles que, pela força, criaram os primeiros Es tados modernos e dos quais os burgueses foram os primeiros, ainda que volúveis , al iados. 5 . O Direito Comercial, ou normas derivadas do direito romano, mas adaptadas ao longo dos séculos à s necess idades daqueles cujo negócio era o negócio . A idéia de um conjunto 2 4 U M A VISÃO G E R A L especial de preceitos para aqueles que possuíam certo status era menos inquietante para a era feudal do que para a nossa . O fato é que os mercadores lutaram por leis concebidas por eles e a eles especia lmente aplicáveis em c idades grandes e pequenas e nas feiras anuais ou sazonais real izadas em vários lugares durante a Idade Méd ia . 6 . O Direito Natural, ou a a legação burguesa, desen- volvida plenamente no século X V I I , embora anteriormente prefigurada, de que a combinação das regras que melhor ser- viam ao comércio livre era eternamente verdadeira, es tava de acordo com o p lano divino e era axiomaticamente sábia. E s s a s seis categorias ref letem padrões reais de poder. A s relações de poder feudais eram fragmentadas , careciam de unidade e numerosos senhores, temporais e espirituais, se aco- tovelavam e lutavam pelo direito de explorar cada pedaço de terra arável ou habitável — e aqueles que nela residiam. A contenda era especialmente acirrada no tocante a quem tinha o direito de proferir decisões judiciais e criar cortes de justiça, porquanto as multas e custas da aplicação da lei figuravam entre as mais lucrativas fontes de renda. P o r isso mesmo, quando um mercador do período medieval firmava um contrato, levava em conta vários tipos de direito e se mostrava ans ioso para saber que corte d ispunha de poder suf ic iente para fazer com que a parte adversária pagasse , ou entregasse, os b e n s adquiridos. E m 1448, um certo H u g u e t Augier , um bufarinheiro de Grasse (no que é hoje Sul da F r a n ç a ) , profundamente inte- ressado em comprar certa quantidade de mercadorias de um homem de negóc ios de N ice , concordou, na eventual idade de uma querela judicial sobre o contrato, em submeter-se à ju- risdição dos seguintes órgãos: a Câmara de C o n t a s de A i x (uma corte rea l ) ; o tribunal real d o Chátelet , de Paris: uma corte municipal de Grasse; a corte comercial de Marselha; o tribunal d o Papa e a Câmara Apostól ica; e o tribunal da cidade ducal de N ice . E m todos esses tribunais, a transação poderia ser julgada segundo leis diferentes. O advogado que redigiu o contrato de Augier teria que providenciar para que a transação fo s se legal, isto é. protegida por todas essas leis. D a mesma forma que o mercador H u g u e t Augier não podia realizar negócios importantes sem compreender a lgo desses A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 5 corpos de jurisprudência, iniciaremos nosso estudo com uma breve discussão de cada um deles. O D i r e i t o R o m a n o N o ano 1000 d . C . , o Império Romano do Ocidente já deixara de existir há seiscentos anos. muito embora na Europa Ocidental o homem ainda palmilhasse estradas que datavam da época de Augus to — o primeiro século da era cristã. Ruínas de cidades, portos e igrejas romanas pontilhavam a paisagem. O mercador educado •— e seu advogado —• sabiam que as con- quistas haviam sido acompanhadas pela lei e pelo comércio romano, incluindo a liberdade de comprar e vender mediante contratos executórios. Até mesmo senhores feudais que ale- gavam aplicar antigos costumes locais no governo de seus sú- ditos utilizavam, às vezes sem saber, princípios derivados dos trabalhos de jurisconsultos romanos. N o que interessava à Igreja e aos senhores temporais que aspiravam também ao do- mínio total, o Império Romano proporcionava um conhecido modelo de organização. A fim de compreender o mercador medieval, precisamos estudar em detalhes algumas instituições romanas. N ã o queremos dizer que a sociedade romana tenha sido a primeira a ser regulada por lei, n o sentido de um sistema de preceitos apoiados pelo poder do Estado. O s advogados medie- vais sabiam que tal não era o caso e tinham acesso a descrições escritas de sociedades mais antigas, incluindo a ateniense. Roma, porém, ao contrário de sociedades mais velhas, deixara uma rica e diversificada herança de literatura jurídica. O comércio romano deu origem a leis que negociantes medievais e seus advogados consideravam relevantes. E o direito romano, con- forme veremos adiante, veio a ser investido do poder temporal e espiritual do Papado. A ordem jurídica romana foi criada entre o século V a . C . e o século II d . C . Com a finalidade de envolver em mistério as origens do direito e dotá-lo da sanção da tradição, sustentavam os jurisconsultos romanos que o mesmo derivava das D o z e Tábuas todos os seus princípios jurídicos importantes. Essa con- cisa coletânea de leis. difícil de reconstituir, mas de autentici- dade inegável, foi elaborada por volta do ano 450 a . C . , durante a vigência da República, apocrificamente com base em princí- pios axiomáticos, mas na realidade após o estudo das Consti- 2 6 U M A VISÃO G E R A L tuições de certo número de c idades gregas . A s T á b u a s esboçam apenas os princípios jurídicos mais s imples concernentes à pro- priedade, ao direito de família e à c idadania e se caracterizam pela dependência sobre a magia e o ritual como partes integrais do processo e como meio para criação de obrigações. E s s a "lei pré-clássica" garantia certos direitos aos romanos — em especial aos membros dos clãs que haviam f u n d a d o a Repú- blica. N a s D o z e T á b u a s vemos, pela primeira vez , a emergência de idéias jurídicas sobre dividas, contratos e danos civis. E s s a s noções ressurgiram mais tarde em inumeráveis cartas constitu- cionais e compilações jurisprudenciais ( co le tâneas de costumes reduzidos à forma escr i ta) . O s ant igos romanos, como outros indivíduos que faziam parte de soc iedades organizadas na base de clãs, reagiam a o assass inato ou ferimento de um parente com vingança sobre um parente do assass ino ou agressor. Ura antigo desvio des sa so lução violenta foi a denominada "com- pensação", ou p a g a m e n t o em dinheiro ou bens aos parentes da vitima, a c o m p a n h a d o de uma cerimônia solene, onde se reco- nhecia a obrigação de reparar o dano. Parece provável que as mais antigas compensações romanas tenham assumido a forma descrita como nexum nas D o z e T á b u a s . O nexutn era a obri- gação criada entre devedor e credor pela promessa d o primeiro de servir a o s e g u n d o até que a dívida fosse saldada. N a época em que foram ba ixadas as D o z e T á b u a s , o expediente era usado para criar uma obrigação entre credor e qualquer devedor, não importando qual a origem da dívida. A s obrigações persistiram com todo o seu vigor inicial muito tempo depois de terem o s devedores — nexi — esquecido as origens da lei que o s sujeitava a seus credores. O s costumes caracteristicamente romanos do Sul da França foram respon- sáve is por contratos como Um de 1362, n o qual Jaciel de Grasse , um agiota, exigiu que seu devedor, na eventual idade de falta de pagamento, se mudasse de N i c e (s i tuada a c inqüenta quilô- metros de distância) e v iesse residir e trabalhar em Grasse sob suas ordens até que a dívida fosse saldada. Regis tros munici- pais atestam que Jaciel na verdade fez cumprir essa cláusula de hostagium e que obteve um mandado judicial determinando que o devedor residisse na prisão de Grasse . A v e n d a ou permuta vál ida de propriedades exigia, se - gundo as D o z e T á b u a s , estrito cumprimento de uma fórmula precisa de palavras e conduta, conhecida como mancipatio: A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 7 N a p r e s e n ç a d e n á o m e n o s d e c i n c o c i d a d ã o s r o m a n o s d e m a i o r I d a d e , e t a m b é m d e u m a s e x t a p e s s o a c o m a s m e s m a s q u a l i - f i c a ç õ e s , c o n h e c i d a s c o m o libripens, e c o m o e m p r e g o d e u m a b a l a n ç a d e b r o n z e , a p a r t e q u e e s t a v a r e c e b e n d o o manoipatio, t e n d o n a m ã o u m l i n g o t e d e b r o n z e , d i z i a : " D e c l a r o q u e e s t e e s c r a v o é m e u ex jure ( J t i i r i í t w m e q u e e l e é p o r m i m c o m p r a d o c o m e s t e l i n g o t e e e s t a b a l a n ç a d e b r o n z e " . E m s e g u i d a , e l e t o c a v a n a b a l a n ç a c o m o l i n g o t e e o e n t r e g a v a , c o m o p r e ç o s i m b ó l i c o , à q u e l e d e q u e m e s t a v a r e c e b e n d o o mancipatio.. . O lingote e a balança eram usados, como explicou um juriscon- sulto d o século I d . C . , porque, ant igamente , usavam-se apenas moedas de bronze e o valor delas era calculado por pesagem. Era igualmente revestido de formal ismo o ant igo processo romano para cumprimento de obrigações . O que ixoso devia vazar sua reclamação em forma precisa e dizer exatamente ao magistrado as palavras obrigatórias. Se a queixa, por exemplo, dizia respeito a dinheiro, e o magistrado se sat isfazia com a forma ritual de apresentação da queixa, transferia ele a questão a um juiz auxiliar, ou índex, para proferir a decisão. O julga- mento pelo index dependia também da invocação pe lo queixoso e acusado de fórmulas de a legação e defesa . M u i t o tempo depois de o s clãs terem perdido toda importância, o queixoso num processo ainda devia jurar que a ex igênc ia que fazia de di- nheiro ou propriedades fundamentava-se ex jure Quiritium, ba- seada em seu direito como membro de um clã romano. D e acordo com as D o z e Tábuas , os não romanos n ã o tinham di- reitos ou capacidadepara firmar contratos, possuir propriedades ou mesmo iniciar ações para exigir o pagamento de dívidas ou o cumprimento de obrigações. O s rituais do processo e da permuta de propriedades con- servaram ao l o n g o do tempo o mito de uma sociedade de clãs e dos primeiros dias da República. A s instituições republicanas entraram em declínio durante as guerras de conquista e ex- pansão dos séculos III e II a.C. e deixaram de vigir oficial- mente quando A u g u s t o organizou o Império, de 44 a . C . a 15 d . C . Com a colonização das praias do Mediterrâneo nos sé- culos III e II a . C . , ocorreu uma grande expansão do comércio e. com ela. a necess idade de uma ordem jurídica mais abran- gente. U m sistema que só assegurasse direitos aos cidadãos romanos, todavia, não podia atender a um comércio com não romanos. E, mesmo em transações locais, preceitos elabo- 2 8 U M A VISÃO G E R A L rados para uma economia agrícola não podiam levar em conta os interesses dos grandes mercadores, cuja riqueza crescia às e x p e n s a s de pequenos camponeses e artesãos. U m a nova magistratura, a pretoria, foi criada para os mer- cadores em 367 a . C . , com o poder de emitir um ed i to anual, enunc iando a s a legações que o s tribunais acolheriam em pro- cessos entre romanos. M a i s ou menos na mesma época, trata- dos concederam direitos comerciais a não romanos e foram introduzidas alterações n o ritual d o s processos . Permit iu-se que n ã o romanos, ao submeterem seus casos ao praetor, ale- g a s s e m que eram romanos. S e u s adversários não podiam con- testar tal a legação. ( Q u i n z e séculos mais tarde, cortes inglesas usavam d o mesmo expediente para obter jurisdição sobre que- relas fora da Inglaterra, permitindo que uma parte a legasse , mais uma vez sem direito à contestação, ainda que ficticiamente, que local idades no exterior s i tuavam-se na Inglaterra.) E m 243 a . C . , foi nomeado um praetor peregrinus paro supervisionar o julgamento de casos envo lvendo não romanos. Graças a essa medida, o direito romano deu um passo que é repetida e romanticamente menc ionado na ideologia d o s mer- cadores nos dois mil anos seguintes . O antigo praetor assumiu o título de praetor urbanus, e seus editos fundamentavam-se na lei vigente, a jus civile. S e g u n d o Gaius , o maior juriscon- sulto romano d o século I d . C . , a jus civile era "a lei que o povo estabelece para si mesmo [ c o m o ] peculiar a si m e s m o . . . como s e n d o a lei peculiar da civitas". O praetor peregrinus, por outro lado, aplicava a jus gentium — ou, nas palavras de Gaius , "a lei que a razão natural estabelece entre toda a humanidade [a qual ] é seguida da mesma forma por todos os povos . Considerar os concei tos jurídicos romanos aplicáveis a "todos o s povos" não era vima pretensão tão absurda assim. Entre 2 8 0 a . C . e a destruição de Cartago na Terceira Guerra Púnica, em 146 a . C . , R o m a conquistara pela força a maior parte das terras que circundavam o Mediterrâneo. U m a econo- mia agrícola baseada na aldeia estava sendo rapidamente subs- tituída pela estrutura de c lasse do Império, no qual as f iguras dominantes eram os negociantes , banqueiros, mercadores, lati- fundiários e o poder militar, qtie lhes defendia os interesses. A força de trabalho que alimentava o sistema era escrava ou se- milivre, recrutada principalmente entre o s povos conquistados ou colonizados. O poder da classe dominante podia obrigar o A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 9 E s t a d o romano a aplicar uma lei que faci l i tasse o comércio. A s práticas que haviam desenvolv ido na conduta do comércio me- diterrâneo constituíam os fundamentos lóg icos da lei. A adoção da expressão jus gentium refletia a vitória da nova classe ro- mana dominante sobre seus inimigos, externos e internos. E s s a "lei de todos os povos" não foi. contudo, uma criação exclus iva d o s jurisconsultos romanos , imposta pelo poder ro- mano. Conservava traços de civi l izações d o Oc idente com as quais o s romanos inicialmente negociaram e que foram as pri- meiras a colonizar. A jus gentium, por exemplo, reconhecia um contrato n o qual a barganha era conf irmada pela "moeda de penhor", uma pequena moeda ou outro objeto que mudava de mãos c o m o evidência do acordo. A palavra latina referente a essa moeda era aerhoe, ou arroe, derivada d o grego arrfiafcon. Já a expressão "razão natural", usada por Gaius. é mais difícil de entender. Autores da Idade M é d i a e de épocas pos- teriores aproveitaram-na. Encontraram-na na f i losofia do di- reito natural do capitalismo de mercado e democracia constitu- cional. Ident i f icando "razão natural" com "direito natural", ou "direito de inspiração divina", os ideó logos jurídicos dos sé- culos X V I e X V I I alegaram a universal idade das idéias roma- nas sobre o livre contrato. O s autores d o C ó d i g o de N a p o l e ã o diziam haver redescoberto na jus gentium o s autênticos prin- cípios d o direito natural à l iberdade. U m famoso ministro da Suprema Corte dos Es tados U n i d o s n o século X I X , Joseph Storey, sustentava que os tribunais d o país podiam aplicá-la para formular um direito "natural" interestadual e internacional. Gaius, com toda probabilidade, n ã o al imentava idéias tão exageradas assim. Para ele, razão natural s ignif icava, provavel- mente, costumes praticados por numerosos p o v o s ao longo d o tempo e que haviam sido ju lgados razoáveis às c lasses de le- gis ladores e mercadores. A s modif icações introduzidas pe lo praetor peregrinus rati- ficaram e permitiram a expansão da emergente hegemonia co- mercia] romana, ao mesmo tempo que a coexistência da jus civile e da jus gentium dava origem a sutis e gerais mudanças na primeira no tocante às leis que regiam contratos, vendas, propriedades e rito processual. A época em que já es tava bem consol idada a função do praetor peregrinus, o direito romano já reconhecia compro- missos unilaterais obrigatórios: X podia prometer ( s t i p u l a t i o ) 3 0 U M A V I S Ã O G E R A L entregar a Y certos bens em certo dia e, por quebra dessa promessa, a lei proporcionaria o necessário remédio. U m con- trato para praticar certa ação no futuro era denominado exe - cutório, e serviu de base a todas as modernas transações co- merciais. Anteriormente, o direito romano, como o ant igo direito anglo-saxônico e outras ordens jurídicas mais antigas, havia reconhecido apenas o s contratos executados , isto é, os que envolviam transações face a face com a mudança da pro- priedade em causa no momento em que a transação era con- cluída, de acordo com uma forma prescrita. (Isso, no direito romano, era o ritual do mancipatio.) N ã o havia necess idade de tal direito levar em conta promessas incumpridas. A s únicas regras necessárias eram as que diziam respeito a bens furtados c, talvez, as referentes à qual idade das mercadorias vendidas . O reconhecimento de promessas unilaterais, obrigatórias, exe - cutórias, constituía um passo em direção à l iberdade de co- mércio, porquanto dava aos mercadores maior f lexibi l idade em suas transações. O passo seguinte tomou a forma do reconhecimento dc contratos executórios bilaterais, incluindo o s que abrangiam associações complexas , de longo prazo. A jus gentium ratif icou e ref inou os contratos bilaterais no tocante à venda, contrata- ção, depósitos e soc iedades , bem como os conceitos comerciais de relações fiduciárias — ou de conf iança e fé especiais. É da mais alta importância a dist inção entre promessa unilateral de cumprimento obrigatório e contrato bilateral com obrigações de ambas as partes. A primeira era criada pela pessoa que assumia a obrigação — entregar bens, fazer pagamentos em dinheiro, e assim por diante — mediante recitação de um dis- curso imutável, que era considerado essencial para a val idade e cumprimento da promessa. S e o indivíduo que faziaa pro- messa deixava de cumpri-la, o beneficiário da mesma podia processá- lo para que a cumprisse ou para receber uma inde- nização por inadimplência. U m contrato dessa natureza rara- mente reflete a realidade até mesmo da transação comercial mais simples, pois, em geral, uma parte promete entregar mer- cadorias e a outra pagá- las . com a condição de que os bens sejam entregues e estejam em condição satisfatória. Se urna ordem jurídica admite apenas promessas unilaterais, es tas duas obrigações devem forçosamente ser assumidas em separado e são necessários processos distintos para cumprimento de cada A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 1 promessa. D a n d o prosseguimento ao exemplo, se A u l u s A u - gerius ( o John D o e romano) não entrega a prometida peça de tecido e, por conseguinte , Numer ius N e g i d i u s {o Richard R o e romano) não paga, têm ambos o direito de propor uma ação vál ida um contra o outro, porquanto a ordem jurídica interessa-se apenas em saber se uma obrigação foi cumprida ou não. Para compradores e vendedores , no entanto, a "razão natural" d o comércio aparentemente exigiria um sistema de promessas mútuas, de modo que, na eventual idade de inadim- plência, o E s t a d o interviria através de seus tribunais e orde- naria a cada parte que entregasse à outra o que fosse devido, comparando, se necessário, as queixas de ambas. E s s e con- ceito f igurou entre as grandes reformas executadas pelo praetor peregrinus. A l é m disso, os praetors ampliaram enormemente o alcance de sua autoridade, e levando o número de transações pelo des- cumprimento das quais propiciariam o remédio, adaptando as formas de contrato às necess idades do comércio e adotando métodos racionais de a legações (arrazoados) e prova. E s s e s aspectos processuais, na medida em que diziam respeito a contratos e trocas, foram estendidos ao cumprimento de contratos bonae fidei, ou, l iteralmente, de "boa fé". O con- trato bonae fidei era a categoria contratual mais elástica do direito romano, e l imitava-se inicialmente a a lgumas relações baseadas em boa fé e conf iança, tais como as de tutor e tute- lado, envo lvendo acordos bilaterais com a aceitação mútua de obrigações. O s praetors, n o entanto, passaram a reconhecer sob o título bonae fidei grande variedade de arranjos comer- ciais a legadamente baseados também em boa fé, tais como so- c iedades ou parcerias, permitindo a combinação de recursos para um fim comum e a disseminação do risco. A s relações f idu- ciárias podiam ser incluídas também num contrato bonae fidei. C o m o exemplo, Aulus Augerius , d i spondo de certa quanti- dade de dinheiro, uias não tendo aces so ao mercado, entre- gava-o a Numerius N e g i d i u s para empregá- lo em seu nome. Se uma das partes no contrato bonae fidei não o cumpria, ou se A u l u s desejava uma prestação de contas, a forma proces- sual ante o praetor peregrinus admitia o cumprimento da obri- gação, a avaliação dos danos, ou um mandado oficial para l iquidação de contas. E s s e s remédios baseavam-se na formula, que era um sistema de arrazoar extraordinariamente parecido com o que hoje vigora nas cortes de justiça do Ocidente. 3 2 XIMA VISÃO G E R A L A formula era uma descrição do caso feita pe lo praetor. baseada nas a legações das partes, numa forma que, embora rígida e revestida de ritual, adaptava-se muito mais à inves- t igação dos fatos do que tudo que a precedera. E s s e sumário constituía também a forma mediante a qual o praetor submetia o caso a o juiz, ou index, que iria julgar a querela. O processo iniciava-se com a nomeação do index e era seguido por um sumário da controvérsia (demonstratio). uma declaração de intenções ( in t en t io ) e uma instrução a o index para que d e - cidisse após conhecer a prova (condemnatio), o u então uma ordem para conciliar as a legações confl i tantes , ver i f icando a justeza de cada uma delas e profer indo uma sentença ( a d j i t d i - crafío). Entre a intentio e a ordem de proferir julgamento ( c o n - demnatio ou adjudicatio), o praetor sumariava as a legações pró e contra •— a exceptio, replicatio, duplicatio. e ass im por diante. Gaius proporciona-nos um exemplo s imples da formula em um caso envolvendo a venda de um escravo, f igurando como que- relantes Aulus Auger ius e N u m e r i u s N e g i d i u s . E s s e processo implicava um contrato de venda, o emptio venditio, o mais im- portante e fundamental dos contratos bonac fidei. 3T é n o m e a d o index. Demonstratio: c o n s i d e r a n d o q u e A u l u s A u g e r i u s v e n d e u o e s c r a v o a N u m e r i u s N e g i d i u s . Intentio: s e p a r e c e q u e N . N . d e v e p a g a r 10.0CK) s e s t é r c i o s a A . A . Condemna- tio: Index, s e f o r o c a s o , c o n d e n a N . N . a p a g a r 1 0 . 0 0 0 s e s t é r c i o s a A . A . S e a e v i d ê n c i a n ã o o j u s t i f i c a r , a b s o l v e - o . O s advogados medievais deviam aos romanos o conceito — que persiste até hoje — de pessoa jurídica como pessoa ar- tificial, fictícia, com direito a comprar, vender e pleitear direi- tos nos tribunais. A organização sob essa forma permitia uma combinação de interesses e, por conseguinte , uma acumulação muito maior de capitais d o que na empresa ou soc iedade indivi- duais. N o caso, faz ia-se a seguinte distinção: uma sociedade, formada mediante acordo de seus membros, era considerada aos o lhos da lei um amálgama de direitos e deveres individuais. Para processar uma sociedade e conseguir um julgamento exe - cutório contra o patrimônio de seus membros, o autor era obri- g a d o a levar todos os sócios perante o tribunal. S e a própria soc iedade era julgada, teria em geral que ser processada em nome de todos os seus membros. A pessoa jurídica, contudo, apa- gava a identidade de seus acionistas-proprietários na sua per- A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 3 sonal idade comum, artificial, e era processada e processava, t inha direitos e obrigações por conta "própria". Outro aspecto notável da pessoa jurídica, na forma que começou a assumir no período medieval , era que o s acionistas ou membros não tinham obrigações além d o vo lume que haviam p a g o por suas ações — ou seja, a n o ç ã o de "responsabilidade limitada". U m individuo rico podia investir parte de sua riqueza na pessoa jurídica sem pôr em risco — caso ela fosse à fa- lência — o restante de sua fortuna pessoal para pagar as dívi- das da empresa insolvente. É duv idoso que a pessoa jurídica t ivesse exis t ido dessa forma em Roma, e muitos séculos depois era grande a resistência na Europa Oc identa l a o princípio de responsabi l idade limitada. O s ideó logos burgueses medievais, n o entanto, podiam louvar-se nas palavras de um eminente ju- risconsulto romano do século III, Ulpiano, e esquecer que ele, com toda probabilidade, referira-se apenas a uma classe peculiar de soc iedades anônimas, criadas pelo E s t a d o romano para servir a f ins peculiares. Escreveu U l p i a n o : "Si quid univecsitati de- betur, singalis non debetur; nec quod debeí universitatis singali debet" •— ou, aproximadamente, a propriedade e as dívidas de uma pessoa jurídica não const i tuem propriedade e dividas de cada ura de seus membros individuais. U l p i a n o enfat izou ainda mais o argumento dizendo que, mesmo que a pessoa jurídica consist isse em um único membro, era uma ent idade legal dis- tinta dele. O caráter corporativo de soc iedades tão diferentes entre si como uma companhia de mercadores, uma c idade medieval e toda a Igreja Catól ica Romana fez com que as palavras de U lp iano se tornassem talvez a s mais comentadas de toda a jurisprudência romana. A jus gentium dava também aos tribunais romanos e, espe- cif icamente, ao praetor peregrinus autoridade para resolver con- tendas de modo racional, ordenando o julgamento de alegaçõesem contrário na mesma ação. Ass im, se A . A . e N . N . manti- nham uma série de transações a crédito, com compras e vendas reciprocas, e A . A . queixava-se da falta de pagamento de de- terminada compra, N . N . podia incluir na mesma ação um pedido de pagamento de importâncias que lhe eram devidas por outras transações na mesma série de negócios . Ou , se N . N . não havia pago a lgumas mercadorias, a legando que eram de qualidade inferior, e A . A . o processasse reclamando 3 4 U M A V I S Ã O G E R A L pagamento, o praetor podia determinar que a importância da dívida e a qual idade dos bens fo s sem apuradas na mesma ação e uma sentença ser proferida contra N . N . apenas pelo que devia justamente pagar. Isso se af igura elementar bom senso , pois seria difícil conceber uma ordem jurídica racional que exigisse dois processos em qualquer d o s casos mencionados acima. A i n d a assim, os tribunais de direito costumeiro ing leses até o século X V I I I , e a maioria das cortes de justiça seculares francesas talvez até o século X V I I , não admitiam o julgamento de a legações contrárias. S ó com a restauração do direito ro- mano, proc lamado em alto e bom som como a "eqüidade natu- ral" e a "consciência", reviveu-se o direito d o acusado de fazer a legações em contrário. A nomeação d o praetor peregrinus constitui uma dessas maneiras mediante as quais uma classe em ascendência , mas destituída de poder para derrubar ve lhas instituições, pode criar novos organismos ao lado dos ant igos a f im de servir-lhe os interesses. A ve lha forma, criada para servir a um anterior e diferente conjunto de relações sociais, é ass im esvaziada com maior rapidez da substância que outrora continha. A s regras que ministra s ã o infi ltradas por emprést imos do n o v o instituto, retendo, s imultaneamente, o respeito popular confer ido por sua antiguidade. A jus civile romana, assim, conservou a f icção de manter os princípios das D o z e T á b u a s e da leg is lação da R e - pública, enquanto era gradualmente superada pela jus gerttium. o instrumento dos novos , ricos e poderosos mercadores. Por volta do ano 150 a . C . , o rito processual ante o praetor utbantis s e havia tornado idêntico ao observado na corte do praetor peregrinas. Por volta d o ano 150 d . C . , iniciou-se uma abundante produção de obras jurídicas, que forneceriam a base ao conhe- cimento medieval do direito romano. E s s e s trabalhos, de auto- ria de imperadores e jurisconsultos, tornaram-se progress iva- mente mais áridos e decadentes à medida que o Império Romano do Oc idente s e aproximava do fim. Periodicamente, e s sa grande produção era codif icada, extratada e organizada por assunto. O Imperador Gregório fez uma dessas codif ica- ções n o ano 2 9 4 d . C . , abrangendo desde o período de Adr iano ( 1 1 7 - 1 3 8 d. C . ) até seu próprio reinado. O s Imperadores C o n s - tantino e T e o d ó s i o II ordenaram igualmente que se f izessem as codif icações que levam seus nomes. A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 5 A mais conhecida, mais completa c, para a burguesia me- dieval, a mais influente foi o Corpus furis Civilis, compilado sob a or ientação d o Imperador Romano Oriental Justiniano, no século V I d. C. Consist ia em três partes: o C ó d i g o em si, uma coletânea de editos imperiais desde o tempo de Adriano em 5 3 3 d . C . ; o Digesto , uma obra semelhante , mas consis- t indo em pareceres dos principais juristas e jurisconsultos ro- manos, todos os quais viveram do primeiro ao terceiro século depois de Cristo; e os Institutos, uma s inopse do C ó d i g o e do D i g e s t o para estudantes de direito. Embora nenhum dos editos e pareceres extraídos do C ó d i g o e d o D i g e s t o seja anterior ao século I d . C . , muitos deles retroagiam a conceitos jurídicos romanos c láss icos ainda mais antigos, com a f inal idade de citar a velhice de determinada norma ou costume legal . I sso acon- tecia especia lmente no caso de jurisconsultos mais antigos, como Gaius, cujos trabalhos são citados no Diges to . A codif icação de Justiniano não foi, por conseguinte, ino- vadora , mas prestou o relevante serviço de selecionar a ma- téria entre milhares de editos imperiais e tratados jurídicos, e l iminando contradições mediante a escolha da prática ou regra corrente em 533 e s istematizando o todo sob títulos corres- pondentes às es feras do direito: propriedade, família, direito processual, crimes, e assim por diante. Perdeu-se a maioria das fontes de onde foi extraído o Corpus Júris. T o m a m o s conhe- cimento delas apenas através de suas páginas . Justiniano, contudo, era um imperador oriental, com seu trono em Constantinopla. N ã o parece que seu trabalho tenha inf luenciado os costumes comerciais da Europa Ocidental até o século XI . N ã o implica i s so dizer que os conceitos jurídicos romanos não sobrevivessem, embora houvesse muito pouca vida comercial na maior parte da Europa Ocidental que lhes justi- f i casse o emprego; subsistiram em costumes locais, na prá- tica canónica e em trabalhos como a codif icação parcial, a Lex Romana Visigothorum. de cerca de 5 0 6 d . C . , atribuída ao rei v i s igodo Alarico U . que tinha na E s p a n h a sua base de poder. O s mosteiros continuaram a ser centros de direito ro- mano e cultura latina. A o mesmo tempo, não padece dúvida que. com a ext inção da vida comercial que se seguiu à queda do Império d o Ocidente em 476 d . C . , o s preceitos técnicos, habilmente formulados, do direito romano clássico e a estru- tura para aplicá-los caíram em desuso. 3 6 U M A V I S Ã O G E R A L O Dire i to Feuda l N o dia 11 de agos to de 1789, a Assemblé ia Nac iona l Francesa , no primeiro ardor da vitória revolucionária, decre- tou que "abolia totalmente o regime feudal". Quatorze anos depois, os redatores do C ó d i g o de N a p o l e ã o fa lavam dos "nu- merosos vest íg ios d o regime feudal que ainda cobrem a super- fície da França", e que o C ó d i g o expungia . N ã o obstante, por cerca de oitocentos anos, um bom número de comerciantes havia vivido e mesmo prosperado no seio do regime feudal. Por que, subitamente, foi ju lgado necessário revogá- lo a todo custo? É importante analisar a lguns aspectos da soc iedade feudal a fim de compreendermos a hesitação, ve lha de séculos , dos comerciantes entre acomodação e rebelião. M e s m o n o seu auge, nos três primeiros séculos depois de Cristo, lavravam no império comercial e militar romano as con- tradições que f inalmente o derrubariam. O trabalho escravo so lapava o trabalho livre, l ançando n o desemprego artesãos e pequenos agricultores, que passavam a vaguear pelas c idades e a criar focos de inquietação. A s doutrinas revolucionárias da jovem igreja cristã disseminavam o descontentamento entre as c lasses inferiores e est imulavam as autoridades a uma re- pressão brutal de seus fiéis. N a s fronteiras do Império, grupos expul sos da Europa Central pelos hunos em marcha agrava- ram os problemas administrativos de uma burocracia cada v e z mais sobrecarregada e dispendiosa. A s comunicações, a capa- c idade de defender os ricos e a segurança do comércio come- çaram a diminuir n o século III d . C . e, com elas, desapareceu a prosperidade do Império. N o caso dos grandes lat i fúndios s i tuados na área mais próxima a Roma, uma das so luções d o problema trabalhista consistiu em arrendar parte das grandes propriedades a c idadãos ou escravos, cobrando-se aluguel em espécie sob a forma da obrigação de cultivar a parte da terra reservada ao uso e lucro pessoal do latifundiário. N a s fronteiras d o Império, com a f ina- l idade de manter ao largo o s invasores, c idadãos romanos re- ceberam terras e o status de coloni. sob a supervisão de um senhorio investido de prerrogativas legais. O s colonos pagavam o aluguel em espécie e trabalho e eram obrigados a participar da de fe sa dasfronteiras. Em todos os casos possíveis, os inva- sores eram comprados pe lo convite de entrarem em federação com o Império. O s federati recebiam terras para cultivar, pres- A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 7 tavam o juramento de defender o Império e adaptavam sua orga- nização social ao s istema praticado pelos lat i fundiários e coloni, embora t ivessem permissão para conservar suas próprias leis era contendas dentro d o grupo. A "queda" do Império d o Ocidente , em 476, constituiu apenas o ultimo p a s s o no processo de des integração. ( A essa altura, o s imperadores romanos haviam abraçado o catolicismo. Constant ino fora o primeiro a converter-se, em 3 1 3 d . C . ) S o - breviveram as c idades episcopais e arcebispais. Grandes regiões ocupadas por latifundiários, coloni e federati, n o entanto, tor- naram-se autônomas, professando apenas uma lealdade nomi- nal ao distante imperador oriental, que governava de Constan- tinopla. A necess idade de sobrevivência e de fe sa militar e a ausência d o governo e das leg iões romanas tornaram possível e necessária a instituição de um sistema senhorial, n o qual en- contramos as origens do que mais tarde ve io a ser chamado de feudalismo. Em locais não submetidos a o governo romano, tais como a Escócia , a Irlanda, a Escandinávia e a A lemanha , registros ainda ex i s tentes indicam que formas feudais também se desen- volviam, adaptando a s necess idades de a l imentação e de fe sa à organização social local. N e s s e período, em toda a Europa, em especial na A l e - manha e Sul da França, havia agricultores e camponeses que n e m eram romanos n e m coíoni o u fedtrati, mas que no passado haviam considerado os funcionários romanos como seus gover- nadores. Proprietários de g lebas de tamanho variado, chamadas de allods, foram absorvidos no sistema feudal pela necess idade de proteção, o u pela força. A Europa era um campo de batalha, o cenário de sucess ivas invasões — dos húngaros no Leste, dos mouros no Sul e dos escandinavos n o N o r t e . N a parte da Europa outrora governada por Roma. por con- seguinte , o feudal ismo representou a retirada, para a casa senho- rial e a aldeia, de uma classe governante privada da proteção de um decadente e moribundo governo imperial. E m outras regiões, constituiu a mudança de uma exis tência pastoril, nômade e vo l tada para a guerra, para uma vida agrícola mais estável (embora ainda bastante guerreira) . A s terras de superfície variável constituíam um dos testemunhos d o principal interesse econômico da casa senhorial, pois o padrão, fosse o mansío da 3 8 U M A VISÃO G E R A L Gál ia ou o hide da Inglaterra, era aquele que podia sustentar uma família, variando seu tamanho s e g u n d o a região e a fer- tilidade d o solo. N a raiz da relação feudal havia o ato de vassa lagem, su- plementado desde a época de Carlos M a g n o ( sécu lo I X ) pelo juramento de lealdade. D o i s indivíduos, o mais forte ( o senhor) e o mais fraco (o v a s s a l o ) , co locavam-se frente a frente. S e - gundo a descrição d o historiador francês M a r e Bloch, este último j u n t a a s m ã o s e c o l o c a - a s . j u n t a s a s s i m , e n t r e a s m ã o s d o o u t r o h o m e m — u m g e s t o s i m p l e s d e s u b m i s s ã o , c u j a s i g n i f i c a ç ã o e r a à s v e z e s e n f a t i z a d a p o n d o - s e e l e d e j o e l h o s . S i m u l t a n e a m e n t e , a p e s s o a q u e o f e r e c i a a s m ã o s p r o f e r i a u m a s p o u c a s p a l a v r a s — u m a d e c l a r a ç ã o m u l t o c u r t a — r e c o n h e c e n d o s e r o " h o m e m " d a p e s s o a q u e s e e n c o n t r a v a à s u a f r e n t e , E m s e g u i d a , c h e f e e s u b o r d i n a d o b e i j a v a m - s e n a b o c a , s i m b o l i z a n d o i s s o a c o r d o e a m i z a d e . T a i s e r a m o s g e s t o s , m u i t o s i m p l e s — e m i n e n t e m e n t e a p r o p r i a d o s p a r a c a u s a r u m a f o r t e i m p r e s s ã o e m m e n t e s t ã o s e n s í v e i s a c o i s a s v i s í v e i s — q u e s e r v i a m p a r a c i m e n t a r u m d o s m a i s f o r t e s l a ç o s s o c i a i s d a e r a f e u d a l . A essência da relação feudal era esse nexo pessoal , inicial- mente com duração apenas da vida do vassa lo e, mais tarde, estendido aos seus herdeiros masculinos. Isso porque o vassa lo detinha a posse da terra que cult ivava e virtualmente de todos os semoventes "do" seu senhor. A relação consagrada pelo ju- ramento de dominação e subordinação, d o agricultor com seu senhor, e através" da promessa de vassa lagem deste último a a lgum seigneur mais poderoso, constituía um sistema muitas v e z e s descrito por seus ideólogos como piramidal, ou simétrico. Mortes e l esões corporais dolosas eram muito comuns na sociedade feudal, havendo desforra rápida e vingativa. A vio- lência praticada contra o senhor, no entanto, era um tipo ne- fando de crime. V e j a m - s e as palavras abaixo, extraídas de The Murder of Charles the Good: " A q u e m m a t a s t e , e p o r q u e , e q u a n d o , e o n d e , e c o m o , p e r v e r s o B o r s i a r d ? " , p e r g u n t a W a l t e r d e T h e r o u a n n e a o h o m e m , j á m o r t o , c u j a e s p a d a a s s a s s i n a r a o C o n d e C h a r l e s n o m o m e n t o e m q u e e le , a j o e l h a d o , r e z a v a n o d i a 2 d e m a r ç o d e 1127. S e g u e - s e a p r ó p r i a c u r t a r e s p o s t a d e T h e r o u a n n e : " S e n h o r , d e v i d o à p r e o c u p a ç ã o d e l e c o m a j u s t i ç a , a Q u a r e s m a e a I g r e j a , e p e l a v i o l a ç ã o d a r e v e r ê n c i a q u e l h e e r a d e v i d a , t e u c r i m e f o i m a i s g r a v e d o q u e o c o m e t i d o p e l o s j u d e u s ! " A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 9 P o u c a s pessoas viviam à margeei do sistema. A Igreja dele participava como senhor feudal. Sacerdotes locais eram vin- culados à aldeia ou à mansão senhorial. Eram poucos o s que não viviam em vassa lagem de mão e boca —• contando-se entre eles apenas o s peregrinos, os frades ambulantes, o s mercadores itinerantes, os trovadores e alguns párias sociais . S e examinarmos o mapa da Europa Ocidenta l n o ano 800, veri f icaremos que predominava a soc i edade senhorial. O co- mércio reduzia-se a um mero fio de mercadorias de luxo. A s mansões feudais eram entidades auto-suf ic ientes e o comércio era principalmente local. N a s mansões , a qual idade da vida era regulada pelos administradores a serviço d o senhor e pela corte senhorial. O poder do senhor e de sua corte incluía tudo que dizia respeito aos vassalos. A lei aplicada nos tribunais feudais repousava, na maior parte, sobre dois princípios, n ã o raro incoerentes: as leis de apl icação pessoal e o direito costumeiro v igente sobre um dado território. O primeiro principio surgiu porque ant igos súditos romanos e grupos que haviam, nos últimos dias d o Império Ro- mano d o Ocidente , adotado o direito romano es tavam acostu- mados a ser governados por princípios jurídicos romanos, muito embora cada grupo conservasse também seu direito costumeiro. O sistema de conquista n ã o raro dava ao grupo vitorioso, com uma ordem jurídica própria, controle de terras ocupadas por agricultores que viviam sob outro s istema. O s últimos impera- dores estabeleceram o princípio jurídico de "lei de aplicação pessoal". N o s tribunais, e em transações entre si, o membro de cada grupo tinha, em teoria, direito à sua própria "lei", isto é, à apl icação da lei de seu grupo: romano, borgonhês , visigodo, e ass im por diante. Conforme observou o Arcebispo de Lyons, não era raro que entre cinco pessoas reunidas ao acaso cada uma delas reivindicasse o direito de ser julgada segundo lei diferente. N ã o sobreviveu, porém, o princípio de leis de aplicaçãopessoal , exceto em casos isolados, c edendo lugar à aplicação uni- forme da mesma lei a todas as pessoas residentes numa dada área, lei esta baixada pelo seigneuc e calcada, na maior parte, em usos e costumes imemoriais. A relação feudal era conside- rada como justif icando o cumprimento das mesmas normas por todos o s vassa los de um dado senhor em um d a d o território. O tribunal com autoridade para decidir e proferir sentença, dizia 4 0 U M A VISÃO G E R A L Phil ippe de Beaumanoir em 1283, é "aquele existente no local o n d e dorme e acorda" o acusado. Havia , além disso, impedimentos práticos às leis de apli- cação pessoal: casamentos entre grupos étnicos e rel igiosos di ferentes tornavam dif íceis as invest igações sobre origens: eram incompletas as ordens jurídicas de di ferentes grupos e a maio- ria n ã o incluía referência a relações feudais; a maior parte d o s juízes desconhecia, ou conhecia mal, as leis que deviam aplicar, quando não eram analfabetos . A noção de lei "pessoal" sobreviveu apenas n o caso da- queles —• como o s mercadores — que possuíam um status es- pecial e que lutavam para tê- lo reconhecido. A substituição de leis de cunho pessoal , que ocorreu por volta d o século X I , de ixou a Europa Ocidenta l sob o império de um sistema fragmentado de costumes locais, inf luenciados em graus variáveis pe lo direito romano. N a Alemanha, nos Pa í ses -Ba ixos e nos dois terços setentrionais d o que hoje é a França, ve lhos costumes forneciam base à lei, embora a lguns decretos legis lat ivos de senhores territoriais possam ter s ido reconhecidos. A Inglaterra, a despei to da ocupação, jamais entrou na órbita jurídica romana. Es tava em vigor um sistema feudal de posse da terra à época da Conquis ta Normanda , muito embora o direito inglês, após 1066, tenha sido profunda- mente infiltrado pelo direito costumeiro do Nor te da França, ou, mais precisamente, pe lo direito normando, O Sul da França, a Itália e a Península Ibérica não ocupa- da pelos mouros mantinham f idel idade nominal ao direito ro- mano. A compilação v is igoda determinada por Alarico, a Liber Judiciovum de 654, e uns poucos trabalhos locais eram copiados e estudados, muito embora os contratos e outros documentos escritos desse período revelem desconhec imento dos princípios jurídicos romanos. E a relação feudal não era, naturalmente, regulada pelo direito romano. E m todas e s sas regiões, o rito processual nas cortes feudais seculares era uniformemente lento, arbitrário e injusto para com as camadas mais baixas da sociedade. Caracterizava-se pela dependência da tradição oral do costume, mantida pe lo senhor e por seus servidores e juízes. U m inquérito poderia ser realizado com a f inal idade de determinar o conteúdo d o direito costumeiro, nomeando-sc uma espécie de júri, cujos membros eram chamados de "investigadores", coutumiers ou (por postura A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 4 1 francesa de 1270) turbiers. A presença de tais pessoas pode ter proporcionado a lguma proteção, mas multiplicava também as oportunidades de fraude e suborno. A p e l a ç õ e s por recusa de ju lgamento o u fa l so julgamento eram possíveis , em teoria, em- bora a hierarquia da apelação fosse indistinta até o estabeleci- mento. muito tempo depois, de fortes monarquias. A observân- c ia cu idadosa dos costumes, ademais , não constituía garantia de justiça. O P a p a U r b a n o II, por exemplo , escreveu a o Conde de F landres em 1092: "Alegas ter feito até agora apenas o que s e conforma com o antigo costume da terra? D e v e s saber, não obstante , que o Criador disse: ' M e u n o m e é Verdade . ' E le n ã o d isse : ' M e u nome é Costume. '" Beaumanoir lamentava os incidentes que havia presenciado, nos quais pes soas dignas, mas d e poucos meios, haviam perdido, devido à demora, tudo o que poderiam ter g a n h o se houvessem venc ido a ques tão nas cortes d e justiça. N e s s e ambiente, a vida d o agricultor era regulada pelo con- junto de obrigações feudais. A família trabalhava n o s domínios d o senhor, cult ivava sua própria gleba, obtinha o s artigos ne- cessários na m a n s ã o senhorial e t inha o direito de usar terra comum devoluta. ( E s t e último direito assumiria grande impor- tância nos séculos seguintes . ) E r a obr igada a fornecer soldados o u provisões a o séquito armado d o senhor. V i v i a presa à terra e n ã o podia vendê~la, nem a maioria dos semoventes , o u dá- la em herança à futura geração, casar ou comerciar sem o consen- t imento do senhor e, à s vezes , o p a g a m e n t o de um imposto. O s senhores tinham igualmente obr igações e n o s anos de más co- lheitas seus armazéns deviam ser abertos para que s eus vassa - los não passassem fome. A ordem jurídica era um mundo à parte, dirigido por homens que fa lavam "Moult belle: le Latin" e que conheciam palavras, como diz um cronista francês antigo, que o homem comum desconhecia, embora fo s sem pronunciadas em francês. U m sistema social dessa natureza não necess i tava de um direito comercial. A s "grandes c idades" pouco mais eram do que grandes aldeias fortif icadas, grandes no Sul da Europa apenas porque um senhor mais importante que os demais na região nela residia, e grandes n o N o r t e — onde os senhores viviam n o campo — porque nelas um bispo o u arcebispo tinha sua sé. O comércio entre os anos 500 e 1000 consistia em artigos des t inados à c lasse dominante: sedas , especiarias, jóias e outras 3 - D . A . C . 4 2 U M A V I S Ã O G E R A L mercadorias de p o u c o peso, de modo que pequenas caravanas pudessem trazer por terra, d o Oriente, peças de grande valor. Sob pressão de artesãos e pequenos negoc iantes incluídos na hierarquia feudal , e de mercadores ambulantes que nenhuma obrigação feudal direta reconheciam, o s senhores foram força- d o s a iniciar, n o século XII , a codi f icação e regulamentação do caót ico e v a g o corpo de cos tumes que administravam. N a Pro- vença, n o Sul d o que hoje é a França , e que na ocas ião era um campo de batalha pe lo domínio d o Mediterrâneo, foi publ icado um livro de preceitos legais des t inado a magistrados. E m 1150, um jurisconsulto, provave lmente de Aries , d ivulgou traba- lho semelhante , notável por sua qual idade prática, no dialeto provençal . E m 1283. um servidor real de espantosa sagac idade escreveu o Coutumes de Beauvaisis, a primeira de numerosas compilações de dezenas de s is temas de direito costumeiro então v igentes na co lcha de retalhos de soberanias feudais francesas. O autor, Phi l ippe de Beaumanoir , advertia que fundamentava a autoridade de s eus escritos, em primeiro lugar, nos costumes de sua região e, depois , se tudo mais fa lhasse , n o costume que prevalecia no p a y s du dcoit coutumier, ou N o r t e da França. Beaumanoir jamais abraçou abertamente o direito romano, muito embora em suas d i scussões de contratos, d a n o s civis e poder real encontremos eco de textos romanos. Simultaneamente, a nobreza começou, de forma relutante, a aceitar a lgumas práticas observadas pelos mercadores, pelo menos se o senhor podia lucrar com a cobrança de impostos e tributos. E m numerosas compilações de costumes locais são en- contradas c láusulas regulamentando a s transações entre comer- ciantes, e s tabe lecendo áreas de mercado e instituindo uma oca - sional feira, na qual as transações podiam ocorrer regularmente, sob f iscal ização d o s servidores d o senhor. E m 1283, em Beau- vais, cobrava-se uma multa de c inco sous pelo espancamento de um cidadão por outro, multa essa que subia a sessenta sous se a vitima se encontrava n o mercado o u a caminho dele. A codi f i cação dos coutumes, inicialmente autorizada por uma ordonnance de S ã o Luís no século XIII , mas só muito mais tarde empreendida sistematicamente, constituía um sinal da con- sol idação d o regime feudal e da emergência de um
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