Buscar

TIGAR_ LEVY O direito e a ascensão do capitalismo - revisado

Prévia do material em texto

M1CHAEL E. TIGAR 
MADELEINE R. LEVY 
O DIREITO 
E A ASCENSAO 
DO 
CAPITALISMO 
Tradução de 
RllY JUN^MANN 
Z A H A R E D I T O R E S 
RIO l)E J A N E I R O 
T í t u l o o r t g t n a l 
Law and lha teixo «>/ Crtpifa2ls»i 
T r B d « ' t í o da p r i m e i r a «}<1l<;ôo, p u b l i c a d a e m 1077 
p e l a M O N T I I I . Y REV1EVV P R E S S , 
de N o v a Y o r k , E**udo« U n i d o s d a A m é r i c a 
Copyright © 1977 bij Mtrhael E. Tigar 
Pro ib ida a r e p r o d u ç ã o lotai o u p a r d a l d e s t e livro, 
a a lvo a s c i t a ç õ e s no» v e í c u l o s d e c o m u n l c a ç & o . 
<iap/i dê 
J A N R 
1 0 7 » 
Di ro i tuy p a r a a l í n g u a p o r t u g u e s a ü d q u i i k l o s p o r 
ZAHA. l t E D I T O R E S 
C a i x a P.-.fttnl 207. ZC-M, R i o 
i|«ie ae r e f e r v a m a p r o p r i e d a d e dwsta v e r s ã o 
I m p r t t i m n o Brasil 
índice 
P R E F A C I O P O R T H O M A S I. E M E R S O N 7 
A G R A D E C I M E N T O S 11 
I N T R O D U Ç Ã O 13 
P R I M E I R A P A R T E 
O Direito e a Ascensão 
do Capitalismo ao Poder: 
V ma Visão Geral 
1. O M e r c a d o r c o m o R e b e l d e 19 
2 . O s A n t e c e d e n t e s d a s N o v a s I n s t i t u i ç õ e s J u r í d i c a s 23 
S E G U N D A P A R T E 
Os Mercadores 
rt Procura de um Lugar 
na Ordem, Feudal 
(ÍOOO-ISOO) 
3. I n t r o d u ç ã o 87 
4. A s C r u z a d a s : 
A C a p t u r a d a s R o t a s de C o m é r c i o 
e a D i s s e m i n a ç ã o d a I d e o l o g i a B u r g u e s a 70 
5. V e n e z a e A m a l f i : 
E n t r e o O r i e n t o e o O c i d e n t e 87 
6 . A l g u m a s O r i g e n s d a C u l t u r a U r b a n a 91 
7 . T r a n s p o r t e p o r T e r r a e M a r 106 
8 . P a p a s e M e r c a d o r e s 111 
0 . A B u r g u e s i a n o S é c u l o X I I I 119 
6 Í N D I C E 
T E R C E I R A P A R T E 
Os Advogados Burgueses: 
O Poder Real e o 
Desenvolvimento Urbano 
(iSOO-UOO) 
1 0 . I n t r o d u ç ã o 125 
1 1 . B e a u m a n o i r e O u t r o s : 
O s T e ó r i c o s d e u m a N o v a O r d e m 128 
12 . A C a p i t a l C o m e r c i a l d e G r a s s e 167 
13 . A R e b e l i ã o C a m p o n e s a c o D i r e i t o à T e r r a 178 
Q U A R T A P A R T E 
A Ascendência 
da Burguesia 
(1$00~1600) 
14 . I n t r o d u ç ã o 185 
1 5 . T h o m a s M o r e e a D e s t r u i ç ã o d a V i s ã o M e d i e v a l 189 
1 6 . A R e f o r m u l a ç ã o d a L e i d e P r o p r i e d a d e I m o b i l i á r i a 197 
17 . C o n t r a t o — U m E s t u d o 
d o D i r e i t o e d a R e a l i d a d e S o c i a l 211 
Q U I N T A P A R T E 
A Vitória Burguesa 
(leoo-iMiJ 
1 8 . F r a n ç a : O T r i u n f o d o T e r c e i r o E s t a d o 229 
1 9 . I n g l a t e r r a : A T é c n i c a d o D i r e i t o C o s t u m e i r o 251 
S E X T A P A R T E 
Insurreição e 
Jurisprudência 
2 0 . O D e s e n v o l v i m e n t o d a I d e o l o g i a J u r í d i c a 269 
2 1 . P r i n c i p a i s E s c o l a s d e P e n s a m e n t o J u r í d i c o 280 
2 2 . A J u r i s p r u d ê n c i a d a I n s u r r e i ç ã o 298 
B I B L I O G R A F I A S E L E C I O N A D A 317 
Prefácio 
T H O M A S I . E M E R S O N 
N e s t e livro, Michae l T i g a r e Made le ine Levy pro-
põem-se remontar às origens e ao desenvolv imento de nossa 
atua] ordem jurídica em termos da luta havida entre uma so-
c iedade capitalista em ascensão e uma estrutura feudal em de-
clínio. A história se inicia em época remota, o século X I , com os 
primórdios da vida mercantil nas c idades , prosseguindo até o 
triunfo da jurisprudência burguesa, no século X V I I I . A ênfase 
é co locada no modo como o direito e as instituições jurídicas 
ref letem os interesses da c lasse dominante e como eles são mo-
di f icados à medida que uma nova classe social gradualmente 
substitui a anterior. C o m o história, trata-se de uma descrição 
absorvente. Ampliará os horizontes de todos os a d v o g a d o s e es-
tudantes de direito, e e les farão muito bem em se familiarizar 
com o assunto. 
O livro, porém, reveste-se também de implicações mais 
amplas. Aque le s entre nós que se interessam pela mudança 
social nos Es tados Unidos , e a maioria dos membros da classe 
dos cultores do direito, têm ignorado, de um modo geral, al-
g u m a s ques tões fundamentais . Indubitavelmente, os Es tados 
U n i d o s , como aliás a maior parte do M u n d o Ocidental indus-
trializado. encontram-se num período de transição. O s proble-
mas se agravam dia a dia e so luções não parecem possíveis den-
tro da estrutura das instituições capitalistas tradicionais. Seja 
ou não a n o v a ordem socialista marxista, como acreditam Tigar 
e Levy, ela será sem dúvida mais coletiva, repousará em uma 
nova consciência e, temos esperança, incluirá um sistema de li-
berdade individual. Esse processo de mudança social e a mode-
8 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O 
lação de nosso dest ino final estão na raiz dos problemas cruciais 
de nossos dias. 
Q u e papel podem os preceitos d o direito e as instituições 
jurídicas desempenhar no período de transição e que lugar lhes 
caberá n o novo esquema de coisas? N ã o há dúvida de que nossa 
ordem jurídica constitui um dos aspectos mais notáveis da so -
c iedade ocidental. E, conforme observam T i g a r e Levy, a ideo-
logia jurídica não é propriedade exclusiva dos grupos dominan-
tes da sociedade. M u i t o ao contrário, grupos que aspiram a 
assumir o poder no E s t a d o formulam seu ataque em termos 
de conjuntos de regras e princípios jurídicos. N ã o é provável 
que mude essa situação. A nova ordem não pode representar 
um rompimento total com o passado. Forçosamente se desen-
volverá a partir das formas existentes e, no fim, muitas velhas 
idéias, atitudes e inst ituições se aglut inarão na futura ordem. 
Podemos , por conseguinte , esperar que a nova ordem seja ini-
ludivelmente ocidental e não, d igamos, chinesa, na sua depen-
dência do direito c o m o meio vital de controle social. 
Como, então, pode ser o direito uti l izado no atual s istema 
a fim de promover a mudança social? T i g a r e L e v y não deixam 
dúvida de que nossa ordem jurídica presta-se a esse uso. O s 
direitos assegurados sob a ordem prevalecente , tanto com res-
peito à propriedade e aos direitos contratuais como n o tocante 
aos direitos individuais, são formulados em termos universais, 
e podem ser reivindicados por todos o s e lementos da sociedade. 
Necessar iamente , há hiatos e incertezas no s istema que indi-
cam certa flexibil idade. À medida que muda a fase factual 
original d o direito, este s e descontrola e gera contradições que 
ex igem solução pela mudança. A s regras jurídicas são inter-
pretadas por uma classe especialmente treinada de juristas, 
que tendem a desenvolver seu próprio momentum. U m grupo 
em ascensão pode aproveitar e s ses aspectos da ordem jurídica 
e formular o que T i g a r e Levy chamam de "jurisprudência da 
insurreição". M a s . exatamente , de que maneira p o d e isso ser 
feito? O que promoverá o processo de mudança social e o que 
s implesmente reforçará as instituições existentes e superadas? 
Q u a l a s i tuação do a d v o g a d o isolado que participa de tal 
processo? É certamente ambígua. Por um lado, ele deve forço-
samente atuar dentro d o s istema existente ou perderá toda a 
inf luência que possa porventura exercer e. talvez, o próprio 
status de advogado. Por outro lado, ele assume um so lene com-
promisso com uma séria mudança social. N u m e r o s o s a d v o g a -
P R E F Á C I O 9 
dos têm quebrado a cabeça c o m es se problema que, apesar de 
tudo, continua a constituir um sério dilema. 
D e que modo um grupo que contesta a velha ordem começa 
a formular sua própria jurisprudência? É claro que deve fazê-lo, 
dado o papel fundamental do direito na soc iedade ocidental. 
E, mais uma vez, conforme observam T i g a r e Levy . a ideolo-
gia de um movimento diss idente em a s c e n s ã o influenciará 
profundamente a ordemjurídica que será posta em vigor quando 
conquistar o poder estatal. Por que meios, então, pode começar 
a introduzir n o s istema vigente suas idéias sobre o m o d o como 
devem ser ordenadas as forças produt ivas da sociedade, de 
que modo um sistema de direitos individuais pode ser man-
tido numa soc iedade coletivísta e de que maneira pode ser 
desenvolv ido o senso de comunidade? 
Q u e dizer da conveniência de pressionar os tribunais, 
pedindo uma diferenciação no papel d o judiciário entre direi-
tos de propriedade e contratuais, por um lado, e direitos in-
dividuais. por outro? A ideologia jurídica da c lasse capitalista 
em ascensão deu ê n f a s e à manutenção dos interesses burgue-
ses em ambas as esferas; na primeira, a f im de assegurar- lhe a 
supremacia material; na segunda, como essencial à obtenção 
d o poder n o Estado . Atualmente , é o s is tema capitalista que 
procura restringir o sistema de direitos individuais, e os grupos 
diss identes os que têm interesse em mantê- los e expandi- los . 
Será isso fundamental para se interpretar o papel dos tribunais 
neste periodo como interessado primordialmente n o sistema 
de direitos individuais? Serão o s tribunais impotentes para 
introduzir mudanças n o s s istemas de propriedade e direitos con-
tratuais? O u poderão eles reagir a reivindicações, extrapoladas 
da ideologia burguesa, à igualdade material e a uma participa-
ção na riqueza nacional? 
Finalmente, será suficiente pedir aos tribunais que prote-
jam os c idadãos nos seus direitos tradicionais contra a inter-
ferência dos órgãos públicos em sua l iberdade de expressão 
e religião, contra a injustiça em seus contactos com o governo e 
contra o tratamento desigual perante a lei? O u deverá a ordem 
jurídica ser acionada para adotar uma ação positiva, caso se 
deseje que se transformem em realidade os ideais do sistema 
de direitos individuais? 
O Direito e a Ascensão do Capitalismo não responde a 
todas essas questões . N o es tudo d o papel desempenhado peio 
1 0 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O 
direito e pelos a d v o g a d o s na transição d o feudal ismo para o 
capitalismo, contudo, o livro, na verdade, lança muita luz sobre 
o papel de ambos. T o d a s as pes soas seriamente interessadas 
na mudança social , sejam elas estudantes , praticantes do di-
reito ou c idadãos comuns, acharão nestas pág inas matéria esti-
mulante e sugest iva . 
N e w Haven, Connect icut 
Janeiro de 1977 
I 
I 
Agradecimentos 
i 
N o s s a gratidão é tão grande quanto nossa dívida 
para com T h e Louís Rabinowitz Foundat ion , Carol U . Berns-
tein e S tan ley Sheinbaum por doações que nos possibilitaram 
iniciar esse trabalho. A assistência que nos forneceram per-
mitiu que real izássemos pesquisas em O x f o r d , Bolonha, Grasse. 
N ice . A ix -en-Provence , Genebra, Londres, Paris, V e n e z a , 
Cannes , Dubl in, Berkeley, Los A n g e l e s e outras cidades. 
O manuscrito foi dati lografado, corrigido e as provas ti-
pográf icas revistas (disso resultando numerosas sugestões e 
comentários va l iosos ) por Pamela Av i s , em Le T ignet , França, 
e Carol W i t k o w s k i , Maura J. Flaherty , Ruth W a l i c k i e Leo-
nore M a n n e s , em W a s h i n g t o n , D . C . H a r r y Braverman acre-
ditava neste livro e proporcionou-nos sábio e paciente acon-
selhamento. S u s a n Lowes merece agradec imentos especiais pela 
assistência editorial. 
Mencionar todas as pessoas e instituições que nos auxi-
liaram exigiria dezenas de pág inas e não queremos correr o 
risco de menosprezar nenhuma delas por omissão involuntária. 
N o s s o s agradecimentos a todas. 
Introdução 
Escrevendo sobre revolução e direito, procuramos 
evitar fatos específ icos e concentrar-nos em princípios e ten-
dências gerais. Sabemos que "tal é a unidade da história que 
todo aquele que se dispõe a relatar parte dela deve , forçosa-
mente. sentir que sua primeira sentença rompe uma teia incon. 
sútil." À s cautelosas palavras de Pol lock e Mai t land não só nos 
orientaram, como nos serviram de advertência. E s t e livro des-
creve a ascensão da burguesia européia a o poder e estuda as 
origens de sua luta contra ordens jurídicas hostis. Em termos 
mais gerais, argumentamos que a mudança jurídica constitui 
produto d o confl i to entte c lasses sociais que procuram adequar 
as instituições de controle social aos seus f ins e impor e manter 
um sistema específ ico de relações sociais. 
Para nós, a tarefa mais importante n o estudo da história 
— ou, mais exatamente, da jurisprudência na história *— consis-
tiu em compreender o conteúdo de ideologias jurídicas con-
fl itantes e o s interesses onde elas têm suas origens, identificar 
os grupos cujo confl ito com a ideologia pref igura a mudança 
revolucionária e descrever o desenvolv imento , na vida diária 
de homens e mulheres, de tal confl i to. 
A r g u m e n t a m o s que a missão apropriada da jurisprudência 
consiste em explicar o mecanismo de mudança fundamental nas 
normas jurídicas que, apoiadas pelo poder do Estado, gover-
nam nossa vida. Se t ivermos sucesso nes sa tarefa, compreen-
deremos a atual ordem jurídica e de que m o d o a mesma deve ser, 
e será, mudada pelos desaf ios revolucionários que hoje enfrenta. 
Parte de tal compreensão d e v e constituir o reconhecimento de 
que as normas ora v igentes tiveram origem nas lutas sociais re-
volucionárias de uma classe a cujos interesses elas servem. 
1 4 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O 
A s origens deste livro podem ser faci lmente traçadas. U m 
de nós escreveu há a lguns anos uma resenha sobre certo livro, 
onde discutiu os desaf ios revolucionários lançados à atual e s -
trutura de poder estatal, e na qual foi cunhada a frase "juris-
prudência da insurreição". E s s a resenha transformou-se na base 
de uma anál ise mais ex tensa d o atual movimento em prol da 
mudança social, apresentada sob o título "Jurisprudência da In-
surreição" n o Center for the S t u d y of Democrat ic Institutions, 
em Santa Barbara, Califórnia. A anál ise foi seguida por um 
ensaio intitulado "Direito Social ista e Instituições Jurídicas", 
o n d e s e discutiam usos muito di ferentes da ideologia jurídica 
por revolucionários na U n i ã o Soviét ica, China e Cuba. 
A l g u m a experiência n o ensino d o direito, no entanto, levou-
nos a compreender que es ses trabalhos e pensamentos haviam 
ignorado a lgumas questões fundamentais sobre a ordem jurídica. 
U m de nós, num ensaio escrito em 1965, havia e s tudado breve-
mente sublevações ocorridas na Europa Oc identa l e suas con-
tribuições para as mudanças introduzidas 110 direito. D e s e j á v a -
mos, n o entanto, submeter a teste nossa teoria de jurisprudência 
da insurreição com o es tudo das revoluções burguesas na E u -
ropa Ocidental e demonstrar que as regras sob as quais hoje 
v ivemos podem ter suas origens atribuídas a lutas sociais e spe-
cí f icas na ascensão da burgues ia ao poder. N e n h u m a história 
jurídica de tal t ipo fora escrita em inglês e, com a ajuda das 
pessoas e instituições mencionadas nos Agradec imentos , dispo» 
m o - n o s a escrevê-la. 
Inicialmente, pensávamos que os principais e lementos da 
ideologia jurídica burguesa houvessem emergido nas revoluções 
ing lesa e francesa e que nossa principal ên fase devia ser colo-
cada nos séculos X V I I e X V I I I . Descobr imos , no entanto, à 
medida que passamos a consultar fontes primárias e secundárias 
na Europa e Es tados U n i d o s , que a luta da burguesia até a vitória 
f inal de fato começara séculos antes, nos levantes urbanos do 
século XI . A história des ses levantes não só constitui um emo-
cionante capítulo na luta pela l iberdade humana, mas modif icou 
nossos pontos de vista sobre a relação entre direito e revolução. 
E m trabalhos mais antigos, havíamos atribuído importância 
primordial à fase abertamente revolucionária dos desa f ios à 
ordem jurídica vigente. N o estudo das origens da luta,ve lha 
de séculos, da burguesia, começamos a compreender melhor o 
papel de iniciativas essencialmente reformistas para, tempora-
riamente, melhorar a s i tuação de um grupo dissidente, identi-
I N T R O D U Ç Ã O 1 5 
ficar o s confl i tos fundamentais e dist ingui- los daqueles menos 
importantes e, f inalmente, delinear melhor a arena da luta entre 
o ex is tente detentor do poder estatal e o grupo que o derrubaria. 
N ã o pretendemos, contudo, provar que a mudança jurídica, 
ou mudanças na ideologia jurídica, ocasionou a transição do 
feudal i smo para o capitalismo. T o d o s os s istemas sociais se 
preservam e se mantêm contra seus inimigos, e regulamentam 
seus assuntos internos, mediante o u s o d o poder e, assim, em 
última análise, mediante o u s o da força e da ameaça da foiça. 
S u a s normas formais repousam sobre a premissa de que se o 
indivíduo não obedecer às injunções do E s t a d o •— a instituição 
dotada de uma força pública especialmente criada para aplicar 
le is e injunções — mais c e d o ou mais tarde será ou obrigado 
pela força a obedecer, ou cast igado por não fa2ê-lo. T o d o s os 
grupos que desejam introduzir uma mudança radical numa so-
c iedade — e os primeiros empresários desejavam exatamente 
i s so — inicialmente submetem a teste as instituições v igentes 
de poder a fim de verificar até que ponto elas se curvam e, em 
seguida, atacam diretamente 05 órgãos d o poder estatal, criando 
seu próprio aparato de força pública, com novas le is e injun-
ções dest inadas a garantir s eus próprios interesses. 
U m a das maneiras de compreender a história, por conse-
guinte, consiste em estudar as origens da ascensão, manutenção 
e mudança das ordens jurídicas e sua posterior derrubada, 
juntamente com seus instrumentos de violência. Prec isamos ter 
cuidado, n o entanto, para n ã o tirar conclusões apressadas de 
um es tudo dessa natureza. N o século XIII , parecia à alta no-
breza detentora do poder político, à Igreja e à realeza que o 
mundo se encontrava num estado de rebelião geral e contínua. 
F r a d e s eremitas, descalços e pobremente vest idos , abandonavam 
igrejas e mosteiros ricamente dotados para agitar o laicato e o 
clero contra a Igreja Romana. Cavaleiros desempregados dedi-
cavam-se a e legantes assaltos e servos fug idos a eles se reuniam 
para formar b a n d o s de salteadores. C a m p o n e s e s saqueavam as 
casas de seus senhores. E mercadores, residentes citadinos, ou 
burgueses —• o que quer que se queira chamá-los —• progrediam 
mediante o emprego de revolução declarada, subversão e chi-
cana econômica, mal compreendidas por seus "superiores". 
T o d o s e s s e s grupos estavam fora da lei ou contra ela. 
D e n t r o de uma perspectiva de oito séculos, al imentamos a 
esperança de identificar as forças e acontecimentos que conde-
1 6 O D I R E I T O E A A S C E N S Ã O DO C A P I T A L I S M O 
natam ao fracasso o movimento dos frades , que rotularam o s 
salteadores de nada mais que meros bandidos e que levaram 
os revolucionários burgueses à vitória final. 
Acredi tamos que o e s tudo da revolta burguesa contra as 
instituições feudais seja essencial para compreendermos o di-
reito de hoje, e não apenas para a d v o g a d o s , juizes e es tudantes 
de direito. Acredi tamos igualmente, e a S e x t a Parte des te livro 
ref lete essa convicção, que as lutas de nossos dias são igual-
mente de caráter revolucionário e que s ó podem ser compreen-
didas pela apl icação dos mesmos princípios e métodos de análise 
que adotamos n o es tudo da revolução burguesa. 
Começamos , na Primeira Parte, com uma v i são geral da 
ascensão burguesa ao poder e dos principais aspectos do direito 
burguês. N a S e g u n d a Parte, e até a Quinta, e s tudamos as ori-
gens da luta entre as ideologias jurídicas feudal e burguesa, 
começando com o s levantes de moradores de c idades no sé-
culo X I , o s quais continuaram até as revoluções francesa e in-
glesa. N a S e x t a Parte, argumentamos que o reflexo da Juta 
social nas normas jurídicas só p o d e ser expl icado e anal isado 
pela "jurisprudência da insurreição . 
PRIMEIRA PARTE 
O Direito e a Ascensão 
do Capitalismo ao Poder : 
Uma Visão Geral 
1 
O Mercador 
como Rebelde 
E m 1184 d . C . , na cidade francesa de Châteauneuf , 
revolucionários assumiram o controle dos principais edifícios, 
anunciando que protestavam contra impostos, extorsões e res-
trições à sua liberdade de trabalhar e comerciar. Instados a 
renunciar à "comuna ou conjura. . . que construíram", recusa-
ram-se. P a s s o u - s e um ano antes que a ordem fosse inteira-
mente restabelecida e, mesmo assim, persistiram os boatos sobre 
conspirações, tramas e soc iedades secretas. O s revolucionários 
eram, nas palavras d o Papa, "os chamados burgueses", ou. nas 
palavras do arcebispo, " potentiore bucgenses", ou poderosos bur-
gueses . 
E s s a história circulou amplamente nos séculos X I e XII 
na Europa, à s veres com a queixa adicional de que o s rebel-
des haviam invadido a casa do senhor ou do bispo, bebido 
todo o vinho, molestado membros da família e roubado carnei-
ros e vacas. P o u c o espanta que Phil ippe de Beaumanoir, um 
culto e mesmo suave historiador jurídico d o século XII , ao re-
ferir-se a tais levantes, escrevesse que "entre os mais graves 
crimes, que devem ser punidos e v ingados , destaca-se o de se 
formarem associações contra o bem comum". 
Para nós, atualmente, pode ser surpreendente essa imagem 
do burguês medieval como revolucionário. N o que interessa ao 
leitor moderno do Ocidente, é axiomática a respeitabilidade 
da c lasse mercantil. A palavra tornou-se comum e usamo-la 
automaticamente, sem levar em conta a ordem jurídica que, 
n o correr dos séculos, colocou esses indivíduos 110 centro da 
atividade econômica. 
2 0 U M A VISÃO G E R A I , 
M a s , ao surgir na Europa Ocidental , por volta de 1000 
d . C . , o mercador apresentava uma imagem algo diferente. 
Pies poudreitx, "pés sujos", ass im era chamado porquanto le-
vava suas mercadorias de c idade em cidade, de íeira em feira, 
de mercado em mercado, a pé ou a cavalo, v e n d e n d o à medida 
que viajava. N a s grandes mansões dos senhores feudais, o 
mercador era objeto de ridículo, desprezo e mesmo ódio. C a n -
ções líricas celebravam os assa l tos perpetrados pelos c a v a -
leiros contra tropas de mercadores, bem como o valor dos cava-
leiros na batalha e em aventuras extraconjugais . O lucro, ou 
a diferença entre o preço ao qual o mercador comprava e o 
p r e ç o a o qual vendia, era cons iderado desonroso numa socie-
dade que exaltava as nobres v irtudes do assass inato e reve-
renciava aqueles que viviam "graças ao cansaço e à labuta" 
~ nas palavras de uma carta constitucional da época •— dos 
camponeses . O auferimento de lucro era considerado uma forma 
de usura e julgava-se que corria sério risco a alma d o mercador. 
O ódio surgiu mais tarde quando a nobreza, precisando de di-
nheiro para financiar suas guerras e o estilo de v ida a que 
es tava acostumada, descobriu que os mercadores o possuíam 
mais d o que ela. 
D e um m o d o geral, no entanto, o aumento da fortuna e 
d o poder dos mercadores foi feito através de confl i to armado 
e pe lo que parecia às c lasses tradicionais quase uma revolução, 
punível •— conforme sugeriu Beaumanoir — com longas penas 
de prisão e mesmo a morte. À fim de se protegerem, e a s eus 
bens . das arbitrárias p i lhagens da nobreza, os mercadores foram 
obrigados a criar condições que lhes permitissem negociar. U m 
único homem, ou vários, bem equipado e hábil n o manejo de 
armas, podia cruzar a Europa, v e n d e n d o pequenos artigos •— 
tais como especiarias e sedas — que eram simultaneamente va-
l iosos e fáceis de transportar e vender. I sso seria a venda. M a s , 
n o que interessava a um comérc/o organizado e contínuo, teria 
que haver um sistema que garantisse a segurança física e tor-
nas se possível o crédito, o seguro e a transferência de fundos. 
A manufatura,ao contrário d o comércio de bens importados, 
ex ig ia um sistema ainda mais socialmente protegido, bem como 
um nível mais e l evado de tecnologia. 
Foram três o s aspectos da relação entre a burguesia nas -
cente e o direito. E m primeiro lugar, na extensão em que se 
pode faJar em direito' na se lva da vida feudal, e le ou si lenciava 
sobre o comércio ou lhe era hostil, N e s s e s termos, por conse-
O M E R C A D O R C O M O R E B E L D E 2 1 
guinte, o mercador era um pária, que considerava a ordem 
jurídica — o sistema que baixava ordens, apoiado pela força 
institucional •— como inimiga, estranha. O mercador, o comer-
ciante, o bufarinheiro, no entanto, procuraram chegar a bons 
termos com o sistema, de modo a poderem auferir lucro. A 
medida que aumentava o número, e o poder, dos comerciantes, 
o s ideó logos jurídicos desta classe f izeram um es forço para jus-
tificar o lugar d o comércio na simetria da v ida feudal, Busca-
ram também uma acomodação com o direito feudal e procuraram 
explorar-lhe o s pontos fracos. 
Em s e g u n d o lugar, à medida que o comerciante ampliava 
seu campo de at ividades e criava as instituições de comércio — 
cidades , portos, ancoradouros, armazéns, bancos , fábricas, e 
assim por diante —• entrava em choque direto com os interesses 
econômicos e políticos dos senhores feudais de uma ou outra 
parte d o território. A classe mercantil v ivia em um estado de 
irritação contínua contra leis e costumes mant idos com a f ina-
l idade de proteger os detentores do poder feudal . D e regras 
proibindo a venda de terras fora da família .— o que ef icazmente 
impedia que elas se transformassem em objeto de comércio — 
até a proibição da maioria das formas de associação burguesa, 
tanto politicas como econômicas, o conf l i to intensif icou-se e 
ampliou-se até que o s burgueses gradualmente descobriram os 
pontos nos quais a ordem jurídica não mais podia ser dobrada 
à sua vontade , conciliada a um preço tolerável, o u evitada. 
Por último, havia as leis que os próprios mercadores elabo-
raram, a ordem jurídica que conceberam para servir a seus 
próprios interesses. Em primeiro lugar, criaram tribunais para 
julgar litígios entre si, em seguida arrancaram pela força ou 
pela lisonja concessões dos príncipes temporais e espirituais para 
criar zonas francas e, f inalmente •— ao longo de um período 
de séculos •— assumiram o poder nas nações. O processo le-
gis lat ivo burguês foi o responsável pela criação e aplicação 
de normas legais específ icas referentes a contratos, propriedade 
e rito processual . O s homens e mulheres que lutavam pela ins-
tituição de preceitos jurídicos compatíveis com o comércio mais 
livre não a legavam haver inventado o s princípios que procura-
v a m aplicar. O respeito pela tradição ve tava tal alegação. 
Beaumanoir , escrevendo a serviço de Fel ipe III, advertia que 
eram proibidas novidades não autorizadas pe lo soberano. Em 
vez disso, os burgueses valeram-se de ve lhas formas e princípios 
2 - l ; 
2 2 U M A VISÃO G E R A L 
jurídicos, sobretudo romanos, invest indo-os de um novo con-
teúdo comercial. 
Hsses e lementos da relação burguesa com o direito, n o en-
tanto, não correspondem a períodos históricos bem def inidos . 
E r a m encontrados em todos os pa íses da Europa Ocidental 
desde o século X I até a conquista d o poder pela burguesia, entre 
o s séculos X V I I e X I X . A queda do sistema feudal foi um 
processo gradual, ass ina lado por inesperadas e v io lentas suble-
vações . Ou, tomando de emprést imo a metáfora de Diderot : 
A n o r m a d a N a t u r e z a e d e m i n h a T r i n d a d e , c o n t r a a q u a l n ã o 
p r e v a l e c e r ã o o s p o r t õ e s d o I n f e r n o . . . e s t a b e l e c e - s e d e m o d o 
s u m a m e n t e t r a n q ü i l o . O d e u s e s t r a n h o i n s t a l a - s e h u m i l d e m e n t e 
n o a l t a r , a o l a d o d o d e u s d o p a í s . P o u c o a p o u c o , c o n s o l i d a s u a 
p o s i ç ã o . E n t ã o , n u m a b e l a m a n h ã , d á u m a c o t o v e l a d a n o v i z i n h o 
e — b a h ! — o Í d o l o t o m b a a o c h ã o . 
U m detalhe, n o entanto, precisa ser notado aqui. N e s t e 
estudo, como o leitor alerta já d e v e ter percebido, "direito" não 
tem um único s igni f icado. D a forma usada pe los protagonistas 
da luta que es tamos descrevendo, s ignif icou, em diferentes 
ocas iões: a) o s preceitos e laborados pelos poderosos para g o -
vernar seus súditos, apoiados em violência organizada; b ) os 
preceitos que a lguns grupos o u c lasses pensavam que, por im-
perat ivo moral, deviam ser concebidos numa soc iedade 
devota , ou, pelo menos , melhor; c ) o s costumes e hábitos de 
um povo, observados desde tempos imemoriais; d ) o mani-
fes to de um grupo revolucionário; e e ) as regras formuladas por 
a lgum grupo para seu governo interno. N o l inguajar diário, 
porém, direito s ignif icava tudo isso, e só p o d e m o s esperar 
tornar claro pelo contexto o que temos em mente. N a parte 
f inal, tentaremos discorrer mais longamente sobre o s ignif i -
cado d o direito em uma época como a nossa , em que as rela-
ções de poder passam por transformações revolucionárias. 
2 
Os Antecedentes 
das Novas Instituições Jurídicas 
A s ordens jurídicas do século X V I I I , elaboradas pela 
burguesia e para a burguesia, foram buscar e lementos e auto-
ridade em seis diferentes corpos de pensamento legal: 
1 . O Direito Romano, restaurado sob várias formas e 
invest ido da autoridade de uma civil ização cuja expansão mi-
litar imperial deixara marcas em todo o M u n d o Ocidental . O 
pensamento jurídico romano criou formas de relações legais 
des t inadas a conciliar e promover o comércio com todos os re-
cantos do império. 
2 . O Direito Feudal, ou Senhorial, ou normas que def i -
niam as relações de respeito, dominação, exploração e proteção 
que caracterizavam o nexo pessoal entre senhor e vassalos. 
3 . O Direito Canónico, o u regras jurídicas da Igreja 
Catól ica Romana do Ocidente, que reivindicava variável, mas 
sempre grande, controle sobre os negóc ios bem seculares do 
comércio. 
4 . O Direito Real. ou o s preceitos que traduziam a in-
f luência consolidadora daqueles que, pela força, criaram os 
primeiros Es tados modernos e dos quais os burgueses foram 
os primeiros, ainda que volúveis , al iados. 
5 . O Direito Comercial, ou normas derivadas do direito 
romano, mas adaptadas ao longo dos séculos à s necess idades 
daqueles cujo negócio era o negócio . A idéia de um conjunto 
2 4 U M A VISÃO G E R A L 
especial de preceitos para aqueles que possuíam certo status 
era menos inquietante para a era feudal do que para a nossa . 
O fato é que os mercadores lutaram por leis concebidas por 
eles e a eles especia lmente aplicáveis em c idades grandes e 
pequenas e nas feiras anuais ou sazonais real izadas em vários 
lugares durante a Idade Méd ia . 
6 . O Direito Natural, ou a a legação burguesa, desen-
volvida plenamente no século X V I I , embora anteriormente 
prefigurada, de que a combinação das regras que melhor ser-
viam ao comércio livre era eternamente verdadeira, es tava de 
acordo com o p lano divino e era axiomaticamente sábia. 
E s s a s seis categorias ref letem padrões reais de poder. A s 
relações de poder feudais eram fragmentadas , careciam de 
unidade e numerosos senhores, temporais e espirituais, se aco-
tovelavam e lutavam pelo direito de explorar cada pedaço de 
terra arável ou habitável — e aqueles que nela residiam. A 
contenda era especialmente acirrada no tocante a quem tinha 
o direito de proferir decisões judiciais e criar cortes de justiça, 
porquanto as multas e custas da aplicação da lei figuravam 
entre as mais lucrativas fontes de renda. P o r isso mesmo, 
quando um mercador do período medieval firmava um contrato, 
levava em conta vários tipos de direito e se mostrava ans ioso 
para saber que corte d ispunha de poder suf ic iente para fazer 
com que a parte adversária pagasse , ou entregasse, os b e n s 
adquiridos. 
E m 1448, um certo H u g u e t Augier , um bufarinheiro de 
Grasse (no que é hoje Sul da F r a n ç a ) , profundamente inte-
ressado em comprar certa quantidade de mercadorias de um 
homem de negóc ios de N ice , concordou, na eventual idade de 
uma querela judicial sobre o contrato, em submeter-se à ju-
risdição dos seguintes órgãos: a Câmara de C o n t a s de A i x 
(uma corte rea l ) ; o tribunal real d o Chátelet , de Paris: 
uma corte municipal de Grasse; a corte comercial de Marselha; 
o tribunal d o Papa e a Câmara Apostól ica; e o tribunal da 
cidade ducal de N ice . E m todos esses tribunais, a transação 
poderia ser julgada segundo leis diferentes. O advogado que 
redigiu o contrato de Augier teria que providenciar para que a 
transação fo s se legal, isto é. protegida por todas essas leis. 
D a mesma forma que o mercador H u g u e t Augier não podia 
realizar negócios importantes sem compreender a lgo desses 
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 5 
corpos de jurisprudência, iniciaremos nosso estudo com uma 
breve discussão de cada um deles. 
O D i r e i t o R o m a n o 
N o ano 1000 d . C . , o Império Romano do Ocidente já 
deixara de existir há seiscentos anos. muito embora na Europa 
Ocidental o homem ainda palmilhasse estradas que datavam 
da época de Augus to — o primeiro século da era cristã. Ruínas 
de cidades, portos e igrejas romanas pontilhavam a paisagem. 
O mercador educado •— e seu advogado —• sabiam que as con-
quistas haviam sido acompanhadas pela lei e pelo comércio 
romano, incluindo a liberdade de comprar e vender mediante 
contratos executórios. Até mesmo senhores feudais que ale-
gavam aplicar antigos costumes locais no governo de seus sú-
ditos utilizavam, às vezes sem saber, princípios derivados dos 
trabalhos de jurisconsultos romanos. N o que interessava à 
Igreja e aos senhores temporais que aspiravam também ao do-
mínio total, o Império Romano proporcionava um conhecido 
modelo de organização. A fim de compreender o mercador 
medieval, precisamos estudar em detalhes algumas instituições 
romanas. 
N ã o queremos dizer que a sociedade romana tenha sido 
a primeira a ser regulada por lei, n o sentido de um sistema de 
preceitos apoiados pelo poder do Estado. O s advogados medie-
vais sabiam que tal não era o caso e tinham acesso a descrições 
escritas de sociedades mais antigas, incluindo a ateniense. Roma, 
porém, ao contrário de sociedades mais velhas, deixara uma 
rica e diversificada herança de literatura jurídica. O comércio 
romano deu origem a leis que negociantes medievais e seus 
advogados consideravam relevantes. E o direito romano, con-
forme veremos adiante, veio a ser investido do poder temporal 
e espiritual do Papado. 
A ordem jurídica romana foi criada entre o século V a . C . 
e o século II d . C . Com a finalidade de envolver em mistério as 
origens do direito e dotá-lo da sanção da tradição, sustentavam 
os jurisconsultos romanos que o mesmo derivava das D o z e 
Tábuas todos os seus princípios jurídicos importantes. Essa con-
cisa coletânea de leis. difícil de reconstituir, mas de autentici-
dade inegável, foi elaborada por volta do ano 450 a . C . , durante 
a vigência da República, apocrificamente com base em princí-
pios axiomáticos, mas na realidade após o estudo das Consti-
2 6 U M A VISÃO G E R A L 
tuições de certo número de c idades gregas . A s T á b u a s esboçam 
apenas os princípios jurídicos mais s imples concernentes à pro-
priedade, ao direito de família e à c idadania e se caracterizam 
pela dependência sobre a magia e o ritual como partes integrais 
do processo e como meio para criação de obrigações. E s s a 
"lei pré-clássica" garantia certos direitos aos romanos — em 
especial aos membros dos clãs que haviam f u n d a d o a Repú-
blica. 
N a s D o z e T á b u a s vemos, pela primeira vez , a emergência 
de idéias jurídicas sobre dividas, contratos e danos civis. E s s a s 
noções ressurgiram mais tarde em inumeráveis cartas constitu-
cionais e compilações jurisprudenciais ( co le tâneas de costumes 
reduzidos à forma escr i ta) . O s ant igos romanos, como outros 
indivíduos que faziam parte de soc iedades organizadas na base 
de clãs, reagiam a o assass inato ou ferimento de um parente 
com vingança sobre um parente do assass ino ou agressor. Ura 
antigo desvio des sa so lução violenta foi a denominada "com-
pensação", ou p a g a m e n t o em dinheiro ou bens aos parentes da 
vitima, a c o m p a n h a d o de uma cerimônia solene, onde se reco-
nhecia a obrigação de reparar o dano. Parece provável que as 
mais antigas compensações romanas tenham assumido a forma 
descrita como nexum nas D o z e T á b u a s . O nexutn era a obri-
gação criada entre devedor e credor pela promessa d o primeiro 
de servir a o s e g u n d o até que a dívida fosse saldada. N a época 
em que foram ba ixadas as D o z e T á b u a s , o expediente era usado 
para criar uma obrigação entre credor e qualquer devedor, não 
importando qual a origem da dívida. 
A s obrigações persistiram com todo o seu vigor inicial muito 
tempo depois de terem o s devedores — nexi — esquecido as 
origens da lei que o s sujeitava a seus credores. O s costumes 
caracteristicamente romanos do Sul da França foram respon-
sáve is por contratos como Um de 1362, n o qual Jaciel de Grasse , 
um agiota, exigiu que seu devedor, na eventual idade de falta 
de pagamento, se mudasse de N i c e (s i tuada a c inqüenta quilô-
metros de distância) e v iesse residir e trabalhar em Grasse sob 
suas ordens até que a dívida fosse saldada. Regis tros munici-
pais atestam que Jaciel na verdade fez cumprir essa cláusula de 
hostagium e que obteve um mandado judicial determinando que 
o devedor residisse na prisão de Grasse . 
A v e n d a ou permuta vál ida de propriedades exigia, se -
gundo as D o z e T á b u a s , estrito cumprimento de uma fórmula 
precisa de palavras e conduta, conhecida como mancipatio: 
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 7 
N a p r e s e n ç a d e n á o m e n o s d e c i n c o c i d a d ã o s r o m a n o s d e m a i o r 
I d a d e , e t a m b é m d e u m a s e x t a p e s s o a c o m a s m e s m a s q u a l i -
f i c a ç õ e s , c o n h e c i d a s c o m o libripens, e c o m o e m p r e g o d e u m a 
b a l a n ç a d e b r o n z e , a p a r t e q u e e s t a v a r e c e b e n d o o manoipatio, 
t e n d o n a m ã o u m l i n g o t e d e b r o n z e , d i z i a : " D e c l a r o q u e e s t e 
e s c r a v o é m e u ex jure ( J t i i r i í t w m e q u e e l e é p o r m i m c o m p r a d o 
c o m e s t e l i n g o t e e e s t a b a l a n ç a d e b r o n z e " . E m s e g u i d a , e l e 
t o c a v a n a b a l a n ç a c o m o l i n g o t e e o e n t r e g a v a , c o m o p r e ç o 
s i m b ó l i c o , à q u e l e d e q u e m e s t a v a r e c e b e n d o o mancipatio.. . 
O lingote e a balança eram usados, como explicou um juriscon-
sulto d o século I d . C . , porque, ant igamente , usavam-se apenas 
moedas de bronze e o valor delas era calculado por pesagem. 
Era igualmente revestido de formal ismo o ant igo processo 
romano para cumprimento de obrigações . O que ixoso devia 
vazar sua reclamação em forma precisa e dizer exatamente ao 
magistrado as palavras obrigatórias. Se a queixa, por exemplo, 
dizia respeito a dinheiro, e o magistrado se sat isfazia com a 
forma ritual de apresentação da queixa, transferia ele a questão 
a um juiz auxiliar, ou índex, para proferir a decisão. O julga-
mento pelo index dependia também da invocação pe lo queixoso 
e acusado de fórmulas de a legação e defesa . M u i t o tempo depois 
de o s clãs terem perdido toda importância, o queixoso num 
processo ainda devia jurar que a ex igênc ia que fazia de di-
nheiro ou propriedades fundamentava-se ex jure Quiritium, ba-
seada em seu direito como membro de um clã romano. D e 
acordo com as D o z e Tábuas , os não romanos n ã o tinham di-
reitos ou capacidadepara firmar contratos, possuir propriedades 
ou mesmo iniciar ações para exigir o pagamento de dívidas ou 
o cumprimento de obrigações. 
O s rituais do processo e da permuta de propriedades con-
servaram ao l o n g o do tempo o mito de uma sociedade de clãs 
e dos primeiros dias da República. A s instituições republicanas 
entraram em declínio durante as guerras de conquista e ex-
pansão dos séculos III e II a.C. e deixaram de vigir oficial-
mente quando A u g u s t o organizou o Império, de 44 a . C . a 
15 d . C . 
Com a colonização das praias do Mediterrâneo nos sé-
culos III e II a . C . , ocorreu uma grande expansão do comércio 
e. com ela. a necess idade de uma ordem jurídica mais abran-
gente. U m sistema que só assegurasse direitos aos cidadãos 
romanos, todavia, não podia atender a um comércio com 
não romanos. E, mesmo em transações locais, preceitos elabo-
2 8 U M A VISÃO G E R A L 
rados para uma economia agrícola não podiam levar em conta 
os interesses dos grandes mercadores, cuja riqueza crescia às 
e x p e n s a s de pequenos camponeses e artesãos. 
U m a nova magistratura, a pretoria, foi criada para os mer-
cadores em 367 a . C . , com o poder de emitir um ed i to anual, 
enunc iando a s a legações que o s tribunais acolheriam em pro-
cessos entre romanos. M a i s ou menos na mesma época, trata-
dos concederam direitos comerciais a não romanos e foram 
introduzidas alterações n o ritual d o s processos . Permit iu-se 
que n ã o romanos, ao submeterem seus casos ao praetor, ale-
g a s s e m que eram romanos. S e u s adversários não podiam con-
testar tal a legação. ( Q u i n z e séculos mais tarde, cortes inglesas 
usavam d o mesmo expediente para obter jurisdição sobre que-
relas fora da Inglaterra, permitindo que uma parte a legasse , 
mais uma vez sem direito à contestação, ainda que ficticiamente, 
que local idades no exterior s i tuavam-se na Inglaterra.) 
E m 243 a . C . , foi nomeado um praetor peregrinus paro 
supervisionar o julgamento de casos envo lvendo não romanos. 
Graças a essa medida, o direito romano deu um passo que é 
repetida e romanticamente menc ionado na ideologia d o s mer-
cadores nos dois mil anos seguintes . O antigo praetor assumiu 
o título de praetor urbanus, e seus editos fundamentavam-se 
na lei vigente, a jus civile. S e g u n d o Gaius , o maior juriscon-
sulto romano d o século I d . C . , a jus civile era "a lei que o povo 
estabelece para si mesmo [ c o m o ] peculiar a si m e s m o . . . como 
s e n d o a lei peculiar da civitas". O praetor peregrinus, por outro 
lado, aplicava a jus gentium — ou, nas palavras de Gaius , "a lei 
que a razão natural estabelece entre toda a humanidade [a 
qual ] é seguida da mesma forma por todos os povos . 
Considerar os concei tos jurídicos romanos aplicáveis a 
"todos o s povos" não era vima pretensão tão absurda assim. 
Entre 2 8 0 a . C . e a destruição de Cartago na Terceira Guerra 
Púnica, em 146 a . C . , R o m a conquistara pela força a maior 
parte das terras que circundavam o Mediterrâneo. U m a econo-
mia agrícola baseada na aldeia estava sendo rapidamente subs-
tituída pela estrutura de c lasse do Império, no qual as f iguras 
dominantes eram os negociantes , banqueiros, mercadores, lati-
fundiários e o poder militar, qtie lhes defendia os interesses. A 
força de trabalho que alimentava o sistema era escrava ou se-
milivre, recrutada principalmente entre o s povos conquistados 
ou colonizados. O poder da classe dominante podia obrigar o 
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 2 9 
E s t a d o romano a aplicar uma lei que faci l i tasse o comércio. A s 
práticas que haviam desenvolv ido na conduta do comércio me-
diterrâneo constituíam os fundamentos lóg icos da lei. A adoção 
da expressão jus gentium refletia a vitória da nova classe ro-
mana dominante sobre seus inimigos, externos e internos. 
E s s a "lei de todos os povos" não foi. contudo, uma criação 
exclus iva d o s jurisconsultos romanos , imposta pelo poder ro-
mano. Conservava traços de civi l izações d o Oc idente com as 
quais o s romanos inicialmente negociaram e que foram as pri-
meiras a colonizar. A jus gentium, por exemplo, reconhecia um 
contrato n o qual a barganha era conf irmada pela "moeda de 
penhor", uma pequena moeda ou outro objeto que mudava 
de mãos c o m o evidência do acordo. A palavra latina referente a 
essa moeda era aerhoe, ou arroe, derivada d o grego arrfiafcon. 
Já a expressão "razão natural", usada por Gaius. é mais 
difícil de entender. Autores da Idade M é d i a e de épocas pos-
teriores aproveitaram-na. Encontraram-na na f i losofia do di-
reito natural do capitalismo de mercado e democracia constitu-
cional. Ident i f icando "razão natural" com "direito natural", ou 
"direito de inspiração divina", os ideó logos jurídicos dos sé-
culos X V I e X V I I alegaram a universal idade das idéias roma-
nas sobre o livre contrato. O s autores d o C ó d i g o de N a p o l e ã o 
diziam haver redescoberto na jus gentium o s autênticos prin-
cípios d o direito natural à l iberdade. U m famoso ministro da 
Suprema Corte dos Es tados U n i d o s n o século X I X , Joseph 
Storey, sustentava que os tribunais d o país podiam aplicá-la 
para formular um direito "natural" interestadual e internacional. 
Gaius, com toda probabilidade, n ã o al imentava idéias tão 
exageradas assim. Para ele, razão natural s ignif icava, provavel-
mente, costumes praticados por numerosos p o v o s ao longo d o 
tempo e que haviam sido ju lgados razoáveis às c lasses de le-
gis ladores e mercadores. 
A s modif icações introduzidas pe lo praetor peregrinus rati-
ficaram e permitiram a expansão da emergente hegemonia co-
mercia] romana, ao mesmo tempo que a coexistência da jus 
civile e da jus gentium dava origem a sutis e gerais mudanças 
na primeira no tocante às leis que regiam contratos, vendas, 
propriedades e rito processual. 
A época em que já es tava bem consol idada a função do 
praetor peregrinus, o direito romano já reconhecia compro-
missos unilaterais obrigatórios: X podia prometer ( s t i p u l a t i o ) 
3 0 U M A V I S Ã O G E R A L 
entregar a Y certos bens em certo dia e, por quebra dessa 
promessa, a lei proporcionaria o necessário remédio. U m con-
trato para praticar certa ação no futuro era denominado exe -
cutório, e serviu de base a todas as modernas transações co-
merciais. Anteriormente, o direito romano, como o ant igo 
direito anglo-saxônico e outras ordens jurídicas mais antigas, 
havia reconhecido apenas o s contratos executados , isto é, os 
que envolviam transações face a face com a mudança da pro-
priedade em causa no momento em que a transação era con-
cluída, de acordo com uma forma prescrita. (Isso, no direito 
romano, era o ritual do mancipatio.) N ã o havia necess idade 
de tal direito levar em conta promessas incumpridas. A s únicas 
regras necessárias eram as que diziam respeito a bens furtados 
c, talvez, as referentes à qual idade das mercadorias vendidas . 
O reconhecimento de promessas unilaterais, obrigatórias, exe -
cutórias, constituía um passo em direção à l iberdade de co-
mércio, porquanto dava aos mercadores maior f lexibi l idade em 
suas transações. 
O passo seguinte tomou a forma do reconhecimento dc 
contratos executórios bilaterais, incluindo o s que abrangiam 
associações complexas , de longo prazo. A jus gentium ratif icou 
e ref inou os contratos bilaterais no tocante à venda, contrata-
ção, depósitos e soc iedades , bem como os conceitos comerciais 
de relações fiduciárias — ou de conf iança e fé especiais. É da 
mais alta importância a dist inção entre promessa unilateral de 
cumprimento obrigatório e contrato bilateral com obrigações 
de ambas as partes. A primeira era criada pela pessoa que 
assumia a obrigação — entregar bens, fazer pagamentos em 
dinheiro, e assim por diante — mediante recitação de um dis-
curso imutável, que era considerado essencial para a val idade 
e cumprimento da promessa. S e o indivíduo que faziaa pro-
messa deixava de cumpri-la, o beneficiário da mesma podia 
processá- lo para que a cumprisse ou para receber uma inde-
nização por inadimplência. U m contrato dessa natureza rara-
mente reflete a realidade até mesmo da transação comercial 
mais simples, pois, em geral, uma parte promete entregar mer-
cadorias e a outra pagá- las . com a condição de que os bens 
sejam entregues e estejam em condição satisfatória. Se urna 
ordem jurídica admite apenas promessas unilaterais, es tas duas 
obrigações devem forçosamente ser assumidas em separado e 
são necessários processos distintos para cumprimento de cada 
A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 1 
promessa. D a n d o prosseguimento ao exemplo, se A u l u s A u -
gerius ( o John D o e romano) não entrega a prometida peça 
de tecido e, por conseguinte , Numer ius N e g i d i u s {o Richard 
R o e romano) não paga, têm ambos o direito de propor uma 
ação vál ida um contra o outro, porquanto a ordem jurídica 
interessa-se apenas em saber se uma obrigação foi cumprida 
ou não. Para compradores e vendedores , no entanto, a "razão 
natural" d o comércio aparentemente exigiria um sistema de 
promessas mútuas, de modo que, na eventual idade de inadim-
plência, o E s t a d o interviria através de seus tribunais e orde-
naria a cada parte que entregasse à outra o que fosse devido, 
comparando, se necessário, as queixas de ambas. E s s e con-
ceito f igurou entre as grandes reformas executadas pelo 
praetor peregrinus. 
A l é m disso, os praetors ampliaram enormemente o alcance 
de sua autoridade, e levando o número de transações pelo des-
cumprimento das quais propiciariam o remédio, adaptando as 
formas de contrato às necess idades do comércio e adotando 
métodos racionais de a legações (arrazoados) e prova. 
E s s e s aspectos processuais, na medida em que diziam 
respeito a contratos e trocas, foram estendidos ao cumprimento 
de contratos bonae fidei, ou, l iteralmente, de "boa fé". O con-
trato bonae fidei era a categoria contratual mais elástica do 
direito romano, e l imitava-se inicialmente a a lgumas relações 
baseadas em boa fé e conf iança, tais como as de tutor e tute-
lado, envo lvendo acordos bilaterais com a aceitação mútua de 
obrigações. O s praetors, n o entanto, passaram a reconhecer 
sob o título bonae fidei grande variedade de arranjos comer-
ciais a legadamente baseados também em boa fé, tais como so-
c iedades ou parcerias, permitindo a combinação de recursos 
para um fim comum e a disseminação do risco. A s relações f idu-
ciárias podiam ser incluídas também num contrato bonae fidei. 
C o m o exemplo, Aulus Augerius , d i spondo de certa quanti-
dade de dinheiro, uias não tendo aces so ao mercado, entre-
gava-o a Numerius N e g i d i u s para empregá- lo em seu nome. 
Se uma das partes no contrato bonae fidei não o cumpria, ou 
se A u l u s desejava uma prestação de contas, a forma proces-
sual ante o praetor peregrinus admitia o cumprimento da obri-
gação, a avaliação dos danos, ou um mandado oficial para 
l iquidação de contas. E s s e s remédios baseavam-se na formula, 
que era um sistema de arrazoar extraordinariamente parecido 
com o que hoje vigora nas cortes de justiça do Ocidente. 
3 2 XIMA VISÃO G E R A L 
A formula era uma descrição do caso feita pe lo praetor. 
baseada nas a legações das partes, numa forma que, embora 
rígida e revestida de ritual, adaptava-se muito mais à inves-
t igação dos fatos do que tudo que a precedera. E s s e sumário 
constituía também a forma mediante a qual o praetor submetia 
o caso a o juiz, ou index, que iria julgar a querela. O processo 
iniciava-se com a nomeação do index e era seguido por um 
sumário da controvérsia (demonstratio). uma declaração de 
intenções ( in t en t io ) e uma instrução a o index para que d e -
cidisse após conhecer a prova (condemnatio), o u então uma 
ordem para conciliar as a legações confl i tantes , ver i f icando a 
justeza de cada uma delas e profer indo uma sentença ( a d j i t d i -
crafío). Entre a intentio e a ordem de proferir julgamento ( c o n -
demnatio ou adjudicatio), o praetor sumariava as a legações pró 
e contra •— a exceptio, replicatio, duplicatio. e ass im por diante. 
Gaius proporciona-nos um exemplo s imples da formula em um 
caso envolvendo a venda de um escravo, f igurando como que-
relantes Aulus Auger ius e N u m e r i u s N e g i d i u s . E s s e processo 
implicava um contrato de venda, o emptio venditio, o mais im-
portante e fundamental dos contratos bonac fidei. 
3T é n o m e a d o index. Demonstratio: c o n s i d e r a n d o q u e A u l u s 
A u g e r i u s v e n d e u o e s c r a v o a N u m e r i u s N e g i d i u s . Intentio: s e 
p a r e c e q u e N . N . d e v e p a g a r 10.0CK) s e s t é r c i o s a A . A . Condemna-
tio: Index, s e f o r o c a s o , c o n d e n a N . N . a p a g a r 1 0 . 0 0 0 s e s t é r c i o s 
a A . A . S e a e v i d ê n c i a n ã o o j u s t i f i c a r , a b s o l v e - o . 
O s advogados medievais deviam aos romanos o conceito 
— que persiste até hoje — de pessoa jurídica como pessoa ar-
tificial, fictícia, com direito a comprar, vender e pleitear direi-
tos nos tribunais. A organização sob essa forma permitia uma 
combinação de interesses e, por conseguinte , uma acumulação 
muito maior de capitais d o que na empresa ou soc iedade indivi-
duais. N o caso, faz ia-se a seguinte distinção: uma sociedade, 
formada mediante acordo de seus membros, era considerada aos 
o lhos da lei um amálgama de direitos e deveres individuais. 
Para processar uma sociedade e conseguir um julgamento exe -
cutório contra o patrimônio de seus membros, o autor era obri-
g a d o a levar todos os sócios perante o tribunal. S e a própria 
soc iedade era julgada, teria em geral que ser processada em 
nome de todos os seus membros. A pessoa jurídica, contudo, apa-
gava a identidade de seus acionistas-proprietários na sua per-
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 3 
sonal idade comum, artificial, e era processada e processava, 
t inha direitos e obrigações por conta "própria". 
Outro aspecto notável da pessoa jurídica, na forma que 
começou a assumir no período medieval , era que o s acionistas 
ou membros não tinham obrigações além d o vo lume que haviam 
p a g o por suas ações — ou seja, a n o ç ã o de "responsabilidade 
limitada". U m individuo rico podia investir parte de sua riqueza 
na pessoa jurídica sem pôr em risco — caso ela fosse à fa-
lência — o restante de sua fortuna pessoal para pagar as dívi-
das da empresa insolvente. É duv idoso que a pessoa jurídica 
t ivesse exis t ido dessa forma em Roma, e muitos séculos depois 
era grande a resistência na Europa Oc identa l a o princípio de 
responsabi l idade limitada. O s ideó logos burgueses medievais, 
n o entanto, podiam louvar-se nas palavras de um eminente ju-
risconsulto romano do século III, Ulpiano, e esquecer que ele, 
com toda probabilidade, referira-se apenas a uma classe peculiar 
de soc iedades anônimas, criadas pelo E s t a d o romano para servir 
a f ins peculiares. Escreveu U l p i a n o : "Si quid univecsitati de-
betur, singalis non debetur; nec quod debeí universitatis singali 
debet" •— ou, aproximadamente, a propriedade e as dívidas 
de uma pessoa jurídica não const i tuem propriedade e dividas de 
cada ura de seus membros individuais. U l p i a n o enfat izou ainda 
mais o argumento dizendo que, mesmo que a pessoa jurídica 
consist isse em um único membro, era uma ent idade legal dis-
tinta dele. 
O caráter corporativo de soc iedades tão diferentes entre si 
como uma companhia de mercadores, uma c idade medieval e 
toda a Igreja Catól ica Romana fez com que as palavras de 
U lp iano se tornassem talvez a s mais comentadas de toda a 
jurisprudência romana. 
A jus gentium dava também aos tribunais romanos e, espe-
cif icamente, ao praetor peregrinus autoridade para resolver con-
tendas de modo racional, ordenando o julgamento de alegaçõesem contrário na mesma ação. Ass im, se A . A . e N . N . manti-
nham uma série de transações a crédito, com compras e vendas 
reciprocas, e A . A . queixava-se da falta de pagamento de de-
terminada compra, N . N . podia incluir na mesma ação um 
pedido de pagamento de importâncias que lhe eram devidas 
por outras transações na mesma série de negócios . Ou , se 
N . N . não havia pago a lgumas mercadorias, a legando que 
eram de qualidade inferior, e A . A . o processasse reclamando 
3 4 U M A V I S Ã O G E R A L 
pagamento, o praetor podia determinar que a importância da 
dívida e a qual idade dos bens fo s sem apuradas na mesma ação 
e uma sentença ser proferida contra N . N . apenas pelo que 
devia justamente pagar. Isso se af igura elementar bom senso , 
pois seria difícil conceber uma ordem jurídica racional que 
exigisse dois processos em qualquer d o s casos mencionados 
acima. A i n d a assim, os tribunais de direito costumeiro ing leses 
até o século X V I I I , e a maioria das cortes de justiça seculares 
francesas talvez até o século X V I I , não admitiam o julgamento 
de a legações contrárias. S ó com a restauração do direito ro-
mano, proc lamado em alto e bom som como a "eqüidade natu-
ral" e a "consciência", reviveu-se o direito d o acusado de fazer 
a legações em contrário. 
A nomeação d o praetor peregrinus constitui uma dessas 
maneiras mediante as quais uma classe em ascendência , mas 
destituída de poder para derrubar ve lhas instituições, pode 
criar novos organismos ao lado dos ant igos a f im de servir-lhe 
os interesses. A ve lha forma, criada para servir a um anterior 
e diferente conjunto de relações sociais, é ass im esvaziada com 
maior rapidez da substância que outrora continha. A s regras 
que ministra s ã o infi ltradas por emprést imos do n o v o instituto, 
retendo, s imultaneamente, o respeito popular confer ido por sua 
antiguidade. A jus civile romana, assim, conservou a f icção de 
manter os princípios das D o z e T á b u a s e da leg is lação da R e -
pública, enquanto era gradualmente superada pela jus gerttium. 
o instrumento dos novos , ricos e poderosos mercadores. Por 
volta do ano 150 a . C . , o rito processual ante o praetor utbantis 
s e havia tornado idêntico ao observado na corte do praetor 
peregrinas. 
Por volta d o ano 150 d . C . , iniciou-se uma abundante 
produção de obras jurídicas, que forneceriam a base ao conhe-
cimento medieval do direito romano. E s s e s trabalhos, de auto-
ria de imperadores e jurisconsultos, tornaram-se progress iva-
mente mais áridos e decadentes à medida que o Império 
Romano do Oc idente s e aproximava do fim. Periodicamente, 
e s sa grande produção era codif icada, extratada e organizada 
por assunto. O Imperador Gregório fez uma dessas codif ica-
ções n o ano 2 9 4 d . C . , abrangendo desde o período de Adr iano 
( 1 1 7 - 1 3 8 d. C . ) até seu próprio reinado. O s Imperadores C o n s -
tantino e T e o d ó s i o II ordenaram igualmente que se f izessem 
as codif icações que levam seus nomes. 
A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 5 
A mais conhecida, mais completa c, para a burguesia me-
dieval, a mais influente foi o Corpus furis Civilis, compilado 
sob a or ientação d o Imperador Romano Oriental Justiniano, 
no século V I d. C. Consist ia em três partes: o C ó d i g o em si, 
uma coletânea de editos imperiais desde o tempo de Adriano 
em 5 3 3 d . C . ; o Digesto , uma obra semelhante , mas consis-
t indo em pareceres dos principais juristas e jurisconsultos ro-
manos, todos os quais viveram do primeiro ao terceiro século 
depois de Cristo; e os Institutos, uma s inopse do C ó d i g o e do 
D i g e s t o para estudantes de direito. Embora nenhum dos editos 
e pareceres extraídos do C ó d i g o e d o D i g e s t o seja anterior 
ao século I d . C . , muitos deles retroagiam a conceitos jurídicos 
romanos c láss icos ainda mais antigos, com a f inal idade de citar 
a velhice de determinada norma ou costume legal . I sso acon-
tecia especia lmente no caso de jurisconsultos mais antigos, 
como Gaius, cujos trabalhos são citados no Diges to . 
A codif icação de Justiniano não foi, por conseguinte, ino-
vadora , mas prestou o relevante serviço de selecionar a ma-
téria entre milhares de editos imperiais e tratados jurídicos, 
e l iminando contradições mediante a escolha da prática ou regra 
corrente em 533 e s istematizando o todo sob títulos corres-
pondentes às es feras do direito: propriedade, família, direito 
processual, crimes, e assim por diante. Perdeu-se a maioria das 
fontes de onde foi extraído o Corpus Júris. T o m a m o s conhe-
cimento delas apenas através de suas páginas . 
Justiniano, contudo, era um imperador oriental, com seu 
trono em Constantinopla. N ã o parece que seu trabalho tenha 
inf luenciado os costumes comerciais da Europa Ocidental até 
o século XI . N ã o implica i s so dizer que os conceitos jurídicos 
romanos não sobrevivessem, embora houvesse muito pouca vida 
comercial na maior parte da Europa Ocidental que lhes justi-
f i casse o emprego; subsistiram em costumes locais, na prá-
tica canónica e em trabalhos como a codif icação parcial, a 
Lex Romana Visigothorum. de cerca de 5 0 6 d . C . , atribuída 
ao rei v i s igodo Alarico U . que tinha na E s p a n h a sua base de 
poder. O s mosteiros continuaram a ser centros de direito ro-
mano e cultura latina. A o mesmo tempo, não padece dúvida 
que. com a ext inção da vida comercial que se seguiu à queda 
do Império d o Ocidente em 476 d . C . , o s preceitos técnicos, 
habilmente formulados, do direito romano clássico e a estru-
tura para aplicá-los caíram em desuso. 
3 6 U M A V I S Ã O G E R A L 
O Dire i to Feuda l 
N o dia 11 de agos to de 1789, a Assemblé ia Nac iona l 
Francesa , no primeiro ardor da vitória revolucionária, decre-
tou que "abolia totalmente o regime feudal". Quatorze anos 
depois, os redatores do C ó d i g o de N a p o l e ã o fa lavam dos "nu-
merosos vest íg ios d o regime feudal que ainda cobrem a super-
fície da França", e que o C ó d i g o expungia . N ã o obstante, por 
cerca de oitocentos anos, um bom número de comerciantes havia 
vivido e mesmo prosperado no seio do regime feudal. Por que, 
subitamente, foi ju lgado necessário revogá- lo a todo custo? É 
importante analisar a lguns aspectos da soc iedade feudal a 
fim de compreendermos a hesitação, ve lha de séculos , dos 
comerciantes entre acomodação e rebelião. 
M e s m o n o seu auge, nos três primeiros séculos depois de 
Cristo, lavravam no império comercial e militar romano as con-
tradições que f inalmente o derrubariam. O trabalho escravo 
so lapava o trabalho livre, l ançando n o desemprego artesãos 
e pequenos agricultores, que passavam a vaguear pelas c idades e 
a criar focos de inquietação. A s doutrinas revolucionárias 
da jovem igreja cristã disseminavam o descontentamento entre 
as c lasses inferiores e est imulavam as autoridades a uma re-
pressão brutal de seus fiéis. N a s fronteiras do Império, grupos 
expul sos da Europa Central pelos hunos em marcha agrava-
ram os problemas administrativos de uma burocracia cada v e z 
mais sobrecarregada e dispendiosa. A s comunicações, a capa-
c idade de defender os ricos e a segurança do comércio come-
çaram a diminuir n o século III d . C . e, com elas, desapareceu 
a prosperidade do Império. 
N o caso dos grandes lat i fúndios s i tuados na área mais 
próxima a Roma, uma das so luções d o problema trabalhista 
consistiu em arrendar parte das grandes propriedades a c idadãos 
ou escravos, cobrando-se aluguel em espécie sob a forma da 
obrigação de cultivar a parte da terra reservada ao uso e lucro 
pessoal do latifundiário. N a s fronteiras d o Império, com a f ina-
l idade de manter ao largo o s invasores, c idadãos romanos re-
ceberam terras e o status de coloni. sob a supervisão de um 
senhorio investido de prerrogativas legais. O s colonos pagavam 
o aluguel em espécie e trabalho e eram obrigados a participar 
da de fe sa dasfronteiras. Em todos os casos possíveis, os inva-
sores eram comprados pe lo convite de entrarem em federação 
com o Império. O s federati recebiam terras para cultivar, pres-
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 7 
tavam o juramento de defender o Império e adaptavam sua orga-
nização social ao s istema praticado pelos lat i fundiários e coloni, 
embora t ivessem permissão para conservar suas próprias leis era 
contendas dentro d o grupo. 
A "queda" do Império d o Ocidente , em 476, constituiu 
apenas o ultimo p a s s o no processo de des integração. ( A essa 
altura, o s imperadores romanos haviam abraçado o catolicismo. 
Constant ino fora o primeiro a converter-se, em 3 1 3 d . C . ) S o -
breviveram as c idades episcopais e arcebispais. Grandes regiões 
ocupadas por latifundiários, coloni e federati, n o entanto, tor-
naram-se autônomas, professando apenas uma lealdade nomi-
nal ao distante imperador oriental, que governava de Constan-
tinopla. A necess idade de sobrevivência e de fe sa militar e a 
ausência d o governo e das leg iões romanas tornaram possível 
e necessária a instituição de um sistema senhorial, n o qual en-
contramos as origens do que mais tarde ve io a ser chamado de 
feudalismo. 
Em locais não submetidos a o governo romano, tais como a 
Escócia , a Irlanda, a Escandinávia e a A lemanha , registros 
ainda ex i s tentes indicam que formas feudais também se desen-
volviam, adaptando a s necess idades de a l imentação e de fe sa à 
organização social local. 
N e s s e período, em toda a Europa, em especial na A l e -
manha e Sul da França, havia agricultores e camponeses que 
n e m eram romanos n e m coíoni o u fedtrati, mas que no passado 
haviam considerado os funcionários romanos como seus gover-
nadores. Proprietários de g lebas de tamanho variado, chamadas 
de allods, foram absorvidos no sistema feudal pela necess idade de 
proteção, o u pela força. A Europa era um campo de batalha, 
o cenário de sucess ivas invasões — dos húngaros no Leste, dos 
mouros no Sul e dos escandinavos n o N o r t e . 
N a parte da Europa outrora governada por Roma. por con-
seguinte , o feudal ismo representou a retirada, para a casa senho-
rial e a aldeia, de uma classe governante privada da proteção 
de um decadente e moribundo governo imperial. E m outras 
regiões, constituiu a mudança de uma exis tência pastoril, nômade 
e vo l tada para a guerra, para uma vida agrícola mais estável 
(embora ainda bastante guerreira) . A s terras de superfície 
variável constituíam um dos testemunhos d o principal interesse 
econômico da casa senhorial, pois o padrão, fosse o mansío da 
3 8 U M A VISÃO G E R A L 
Gál ia ou o hide da Inglaterra, era aquele que podia sustentar 
uma família, variando seu tamanho s e g u n d o a região e a fer-
tilidade d o solo. 
N a raiz da relação feudal havia o ato de vassa lagem, su-
plementado desde a época de Carlos M a g n o ( sécu lo I X ) pelo 
juramento de lealdade. D o i s indivíduos, o mais forte ( o senhor) 
e o mais fraco (o v a s s a l o ) , co locavam-se frente a frente. S e -
gundo a descrição d o historiador francês M a r e Bloch, este 
último 
j u n t a a s m ã o s e c o l o c a - a s . j u n t a s a s s i m , e n t r e a s m ã o s d o o u t r o 
h o m e m — u m g e s t o s i m p l e s d e s u b m i s s ã o , c u j a s i g n i f i c a ç ã o 
e r a à s v e z e s e n f a t i z a d a p o n d o - s e e l e d e j o e l h o s . S i m u l t a n e a m e n t e , 
a p e s s o a q u e o f e r e c i a a s m ã o s p r o f e r i a u m a s p o u c a s p a l a v r a s 
— u m a d e c l a r a ç ã o m u l t o c u r t a — r e c o n h e c e n d o s e r o " h o m e m " 
d a p e s s o a q u e s e e n c o n t r a v a à s u a f r e n t e , E m s e g u i d a , c h e f e 
e s u b o r d i n a d o b e i j a v a m - s e n a b o c a , s i m b o l i z a n d o i s s o a c o r d o 
e a m i z a d e . T a i s e r a m o s g e s t o s , m u i t o s i m p l e s — e m i n e n t e m e n t e 
a p r o p r i a d o s p a r a c a u s a r u m a f o r t e i m p r e s s ã o e m m e n t e s t ã o 
s e n s í v e i s a c o i s a s v i s í v e i s — q u e s e r v i a m p a r a c i m e n t a r u m 
d o s m a i s f o r t e s l a ç o s s o c i a i s d a e r a f e u d a l . 
A essência da relação feudal era esse nexo pessoal , inicial-
mente com duração apenas da vida do vassa lo e, mais tarde, 
estendido aos seus herdeiros masculinos. Isso porque o vassa lo 
detinha a posse da terra que cult ivava e virtualmente de todos 
os semoventes "do" seu senhor. A relação consagrada pelo ju-
ramento de dominação e subordinação, d o agricultor com seu 
senhor, e através" da promessa de vassa lagem deste último a 
a lgum seigneur mais poderoso, constituía um sistema muitas 
v e z e s descrito por seus ideólogos como piramidal, ou simétrico. 
Mortes e l esões corporais dolosas eram muito comuns na 
sociedade feudal, havendo desforra rápida e vingativa. A vio-
lência praticada contra o senhor, no entanto, era um tipo ne-
fando de crime. V e j a m - s e as palavras abaixo, extraídas de The 
Murder of Charles the Good: 
" A q u e m m a t a s t e , e p o r q u e , e q u a n d o , e o n d e , e c o m o , p e r v e r s o 
B o r s i a r d ? " , p e r g u n t a W a l t e r d e T h e r o u a n n e a o h o m e m , j á 
m o r t o , c u j a e s p a d a a s s a s s i n a r a o C o n d e C h a r l e s n o m o m e n t o 
e m q u e e le , a j o e l h a d o , r e z a v a n o d i a 2 d e m a r ç o d e 1127. 
S e g u e - s e a p r ó p r i a c u r t a r e s p o s t a d e T h e r o u a n n e : " S e n h o r , 
d e v i d o à p r e o c u p a ç ã o d e l e c o m a j u s t i ç a , a Q u a r e s m a e a 
I g r e j a , e p e l a v i o l a ç ã o d a r e v e r ê n c i a q u e l h e e r a d e v i d a , t e u 
c r i m e f o i m a i s g r a v e d o q u e o c o m e t i d o p e l o s j u d e u s ! " 
A N T E C E D E N T E S DAS N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 3 9 
P o u c a s pessoas viviam à margeei do sistema. A Igreja dele 
participava como senhor feudal. Sacerdotes locais eram vin-
culados à aldeia ou à mansão senhorial. Eram poucos o s que 
não viviam em vassa lagem de mão e boca —• contando-se entre 
eles apenas o s peregrinos, os frades ambulantes, o s mercadores 
itinerantes, os trovadores e alguns párias sociais . 
S e examinarmos o mapa da Europa Ocidenta l n o ano 800, 
veri f icaremos que predominava a soc i edade senhorial. O co-
mércio reduzia-se a um mero fio de mercadorias de luxo. A s 
mansões feudais eram entidades auto-suf ic ientes e o comércio 
era principalmente local. N a s mansões , a qual idade da vida era 
regulada pelos administradores a serviço d o senhor e pela corte 
senhorial. O poder do senhor e de sua corte incluía tudo que 
dizia respeito aos vassalos. 
A lei aplicada nos tribunais feudais repousava, na maior 
parte, sobre dois princípios, n ã o raro incoerentes: as leis de 
apl icação pessoal e o direito costumeiro v igente sobre um dado 
território. O primeiro principio surgiu porque ant igos súditos 
romanos e grupos que haviam, nos últimos dias d o Império Ro-
mano d o Ocidente , adotado o direito romano es tavam acostu-
mados a ser governados por princípios jurídicos romanos, muito 
embora cada grupo conservasse também seu direito costumeiro. 
O sistema de conquista n ã o raro dava ao grupo vitorioso, com 
uma ordem jurídica própria, controle de terras ocupadas por 
agricultores que viviam sob outro s istema. O s últimos impera-
dores estabeleceram o princípio jurídico de "lei de aplicação 
pessoal". N o s tribunais, e em transações entre si, o membro de 
cada grupo tinha, em teoria, direito à sua própria "lei", isto é, 
à apl icação da lei de seu grupo: romano, borgonhês , visigodo, 
e ass im por diante. Conforme observou o Arcebispo de Lyons, 
não era raro que entre cinco pessoas reunidas ao acaso cada 
uma delas reivindicasse o direito de ser julgada segundo lei 
diferente. 
N ã o sobreviveu, porém, o princípio de leis de aplicaçãopessoal , exceto em casos isolados, c edendo lugar à aplicação uni-
forme da mesma lei a todas as pessoas residentes numa dada 
área, lei esta baixada pelo seigneuc e calcada, na maior parte, 
em usos e costumes imemoriais. A relação feudal era conside-
rada como justif icando o cumprimento das mesmas normas por 
todos o s vassa los de um dado senhor em um d a d o território. O 
tribunal com autoridade para decidir e proferir sentença, dizia 
4 0 U M A VISÃO G E R A L 
Phil ippe de Beaumanoir em 1283, é "aquele existente no local 
o n d e dorme e acorda" o acusado. 
Havia , além disso, impedimentos práticos às leis de apli-
cação pessoal: casamentos entre grupos étnicos e rel igiosos 
di ferentes tornavam dif íceis as invest igações sobre origens: eram 
incompletas as ordens jurídicas de di ferentes grupos e a maio-
ria n ã o incluía referência a relações feudais; a maior parte d o s 
juízes desconhecia, ou conhecia mal, as leis que deviam aplicar, 
quando não eram analfabetos . 
A noção de lei "pessoal" sobreviveu apenas n o caso da-
queles —• como o s mercadores — que possuíam um status es-
pecial e que lutavam para tê- lo reconhecido. 
A substituição de leis de cunho pessoal , que ocorreu por 
volta d o século X I , de ixou a Europa Ocidenta l sob o império 
de um sistema fragmentado de costumes locais, inf luenciados 
em graus variáveis pe lo direito romano. N a Alemanha, nos 
Pa í ses -Ba ixos e nos dois terços setentrionais d o que hoje é a 
França, ve lhos costumes forneciam base à lei, embora a lguns 
decretos legis lat ivos de senhores territoriais possam ter s ido 
reconhecidos. A Inglaterra, a despei to da ocupação, jamais 
entrou na órbita jurídica romana. Es tava em vigor um sistema 
feudal de posse da terra à época da Conquis ta Normanda , 
muito embora o direito inglês, após 1066, tenha sido profunda-
mente infiltrado pelo direito costumeiro do Nor te da França, ou, 
mais precisamente, pe lo direito normando, 
O Sul da França, a Itália e a Península Ibérica não ocupa-
da pelos mouros mantinham f idel idade nominal ao direito ro-
mano. A compilação v is igoda determinada por Alarico, a Liber 
Judiciovum de 654, e uns poucos trabalhos locais eram copiados 
e estudados, muito embora os contratos e outros documentos 
escritos desse período revelem desconhec imento dos princípios 
jurídicos romanos. E a relação feudal não era, naturalmente, 
regulada pelo direito romano. 
E m todas e s sas regiões, o rito processual nas cortes feudais 
seculares era uniformemente lento, arbitrário e injusto para 
com as camadas mais baixas da sociedade. Caracterizava-se 
pela dependência da tradição oral do costume, mantida pe lo 
senhor e por seus servidores e juízes. U m inquérito poderia ser 
realizado com a f inal idade de determinar o conteúdo d o direito 
costumeiro, nomeando-sc uma espécie de júri, cujos membros 
eram chamados de "investigadores", coutumiers ou (por postura 
A N T E C E D E N T E S D A S N O V A S I N S T I T U I Ç Õ E S J U R Í D I C A S 4 1 
francesa de 1270) turbiers. A presença de tais pessoas pode ter 
proporcionado a lguma proteção, mas multiplicava também as 
oportunidades de fraude e suborno. A p e l a ç õ e s por recusa de 
ju lgamento o u fa l so julgamento eram possíveis , em teoria, em-
bora a hierarquia da apelação fosse indistinta até o estabeleci-
mento. muito tempo depois, de fortes monarquias. A observân-
c ia cu idadosa dos costumes, ademais , não constituía garantia de 
justiça. O P a p a U r b a n o II, por exemplo , escreveu a o Conde 
de F landres em 1092: "Alegas ter feito até agora apenas o que 
s e conforma com o antigo costume da terra? D e v e s saber, não 
obstante , que o Criador disse: ' M e u n o m e é Verdade . ' E le 
n ã o d isse : ' M e u nome é Costume. '" Beaumanoir lamentava os 
incidentes que havia presenciado, nos quais pes soas dignas, mas 
d e poucos meios, haviam perdido, devido à demora, tudo o que 
poderiam ter g a n h o se houvessem venc ido a ques tão nas cortes 
d e justiça. 
N e s s e ambiente, a vida d o agricultor era regulada pelo con-
junto de obrigações feudais. A família trabalhava n o s domínios 
d o senhor, cult ivava sua própria gleba, obtinha o s artigos ne-
cessários na m a n s ã o senhorial e t inha o direito de usar terra 
comum devoluta. ( E s t e último direito assumiria grande impor-
tância nos séculos seguintes . ) E r a obr igada a fornecer soldados 
o u provisões a o séquito armado d o senhor. V i v i a presa à terra 
e n ã o podia vendê~la, nem a maioria dos semoventes , o u dá- la 
em herança à futura geração, casar ou comerciar sem o consen-
t imento do senhor e, à s vezes , o p a g a m e n t o de um imposto. O s 
senhores tinham igualmente obr igações e n o s anos de más co-
lheitas seus armazéns deviam ser abertos para que s eus vassa -
los não passassem fome. A ordem jurídica era um mundo à 
parte, dirigido por homens que fa lavam "Moult belle: le Latin" 
e que conheciam palavras, como diz um cronista francês antigo, 
que o homem comum desconhecia, embora fo s sem pronunciadas 
em francês. 
U m sistema social dessa natureza não necess i tava de um 
direito comercial. A s "grandes c idades" pouco mais eram do 
que grandes aldeias fortif icadas, grandes no Sul da Europa 
apenas porque um senhor mais importante que os demais na 
região nela residia, e grandes n o N o r t e — onde os senhores 
viviam n o campo — porque nelas um bispo o u arcebispo tinha 
sua sé. O comércio entre os anos 500 e 1000 consistia em artigos 
des t inados à c lasse dominante: sedas , especiarias, jóias e outras 
3 - D . A . C . 
4 2 U M A V I S Ã O G E R A L 
mercadorias de p o u c o peso, de modo que pequenas caravanas 
pudessem trazer por terra, d o Oriente, peças de grande valor. 
Sob pressão de artesãos e pequenos negoc iantes incluídos 
na hierarquia feudal , e de mercadores ambulantes que nenhuma 
obrigação feudal direta reconheciam, o s senhores foram força-
d o s a iniciar, n o século XII , a codi f icação e regulamentação do 
caót ico e v a g o corpo de cos tumes que administravam. N a Pro-
vença, n o Sul d o que hoje é a França , e que na ocas ião era um 
campo de batalha pe lo domínio d o Mediterrâneo, foi publ icado 
um livro de preceitos legais des t inado a magistrados. E m 
1150, um jurisconsulto, provave lmente de Aries , d ivulgou traba-
lho semelhante , notável por sua qual idade prática, no dialeto 
provençal . E m 1283. um servidor real de espantosa sagac idade 
escreveu o Coutumes de Beauvaisis, a primeira de numerosas 
compilações de dezenas de s is temas de direito costumeiro então 
v igentes na co lcha de retalhos de soberanias feudais francesas. 
O autor, Phi l ippe de Beaumanoir , advertia que fundamentava 
a autoridade de s eus escritos, em primeiro lugar, nos costumes 
de sua região e, depois , se tudo mais fa lhasse , n o costume que 
prevalecia no p a y s du dcoit coutumier, ou N o r t e da França. 
Beaumanoir jamais abraçou abertamente o direito romano, muito 
embora em suas d i scussões de contratos, d a n o s civis e poder 
real encontremos eco de textos romanos. 
Simultaneamente, a nobreza começou, de forma relutante, a 
aceitar a lgumas práticas observadas pelos mercadores, pelo 
menos se o senhor podia lucrar com a cobrança de impostos e 
tributos. E m numerosas compilações de costumes locais são en-
contradas c láusulas regulamentando a s transações entre comer-
ciantes, e s tabe lecendo áreas de mercado e instituindo uma oca -
sional feira, na qual as transações podiam ocorrer regularmente, 
sob f iscal ização d o s servidores d o senhor. E m 1283, em Beau-
vais, cobrava-se uma multa de c inco sous pelo espancamento 
de um cidadão por outro, multa essa que subia a sessenta sous 
se a vitima se encontrava n o mercado o u a caminho dele. 
A codi f i cação dos coutumes, inicialmente autorizada por 
uma ordonnance de S ã o Luís no século XIII , mas só muito mais 
tarde empreendida sistematicamente, constituía um sinal da con-
sol idação d o regime feudal e da emergência de um

Continue navegando