Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Antropologia, identidade e diversidade E-book 3 César Niemietz Neste E-book: Introdução ���������������������������������������������������� 3 Sobre as construções das identidades e das diversidades ����������������������������������������������������������� 3 Povo, Estado, nação e identidade�������������������������� 4 A invasão da América e o choque entre “outros” � 8 A identidade nacional e o Estado visto como objeto de análise antropológica ���������������������������������������������16 O Estado como um mito ��������������������������������������16 O Estado e a nação como comunidades “imaginadas” ��������������������������������������������������������18 Sobre a formação das estruturas racistas ��������� 21 O etnocídio como efeito perverso do etnocentrismo e do racismo ��������������������������������24 A identidade negra ontem e hoje �������������������������32 Considerações finais�������������������������������38 Síntese ���������������������������������������������������������39 2 E-book 1 E-book 3 INTRODUÇÃO As identidades contemporâneas são marcadas por elementos diversos� Neste capítulo, estudaremos um desses marcadores, a saber, a nação� Desse modo, refletiremos sobre como a ideia de nação é formada pelos grupos humanos, e como ela, por sua vez, acaba definindo uma certa identidade nacional, resultando em um sentimento muito particular: o nacionalismo� De saída, uma constatação: não é possível afirmar que a nação e seus componentes básicos (língua, sentimento étnico e território) são naturais� Desse modo, a própria ideia de pertencimento a uma deter- minada nação precisa ser colocada sob análise� Para tanto, recorreremos aos estudos de antropólogos e historiadores que se debruçam exaustivamente sobre essas questões� 3 POVO, ESTADO, NAÇÃO E IDENTIDADE Em linhas gerais, podemos compreender povo como um agrupamento de pessoas que compartilham de- terminadas afinidades entre si. Esse tipo de organi- zação, no entanto, não é formalizado, de maneira que essas afinidades podem ser pensadas de maneira mais ou menos rigorosas� De outro lado, nação in- dica um agrupamento de pessoas que ocupa um determinado território de maneira soberana, com- partilhando relativo consenso sobre a identidade que se pretende projetar internamente – sobre o próprio grupo – e externamente – sobre os demais� Dessa forma, outros elementos podem entrar na de- finição de nação, tais como a existência de um sen- timento que delimita uma origem comum entre as pessoas do grupo, bem como os costumes, língua, tradições, valores e ideias que estão circunscritas a essa identidade� Esse agrupamento característico pode vir a se tornar um Estado e um país, mas isso não é uma regra� Se compreendermos o Estado como uma unidade administrativa que delimita o alcance governamen- tal internamente, através das leis, e externamente, através da política externa, veremos que se trata de 4 uma concepção também muito recente na história dos grupos humanos� O Estado moderno, da forma como o pensamos nos dias de hoje, tem suas origens nos séculos 16 e 17, embora tenha se constituído de fato a partir do fim do século 18 e durante o século 19, na chamada “era das revoluções” (HOBSBAWN, 1990)� Essa forma de Estado, como a conhecemos, indica um domínio político direto sobre seus habitantes e a rigidez de suas fronteiras� Como exemplo posterior, tomemos a nossa Constituição Federal, de 1988, uma vez que é o documento legal máximo do Estado brasileiro, segundo o qual todas as demais legislações mu- nicipais e estaduais devem a ele se subordinar, em última instância� A propósito da crescente força que as intervenções dos Estados passaram a ter sobre as populações situadas em seu território, durante o século 19, o historiador Eric Hobsbawm afirma que: [...] se tornaram tão universais e rotinizadas nos Estados “modernos” que uma família teria que viver em um lugar muito inacessível se um de seus membros não quisesse entrar em contato regular com o Estado nacional e seus agentes: através do carteiro, do policial ou do guarda, e oportunamente do profes- sor; através dos homens que trabalhavam nas estradas de ferro, quando estas eram públicas; para não mencionar os quartéis de soldados ou mesmo as bandas militares 5 amplamente audíveis (HOBSBAWM, 1990, p. 102). Nos dias de hoje, existem Estados que se caracte- rizam como representantes de mais de uma nação, a exemplo do Canadá, no qual convivem legalmente grupos correspondentes às primeiras nações (first nations), anteriores à constituição política e social do país, que se organizam e reivindicam políticas voltadas às suas características étnicas específicas. Esses grupos que habitam o território canadense possuem assembleia própria, que conta com a par- ticipação de cerca de 900 mil pessoas, oriundas de 634 grupos� Na página da Assembly of first nations (Assembleia das primeiras nações – http://www.afn.ca), é pos- sível consultar os documentos e ideias referentes à identidade desses grupos, dentre as quais se desta- cam a noção de autodeterminação, ancestralidade, direitos e responsabilidades, que vão para além da nacionalidade canadense� Os movimentos de autorreconhecimento da ances- tralidade étnica das identidades autóctones têm sido reconhecidos por países diversos� No caso do Canadá e da Austrália, por exemplo, os Estados ini- ciaram a partir da segunda metade do século 20 uma série de pronunciamentos e políticas voltadas para o perdão e reconciliação em relação às populações originárias que foram vítimas dos extermínios físicos e culturais promovidos pelos Estados� Essa mu- 6 http://www.afn.ca dança de perspectiva levou a Bolívia a oficialmente reconhecer sua plurinacionalidade, uma vez que grupos étnicos distintos estão situados nos limites administrativos do país – sobretudo os quéchuas e os aimarás, grupos que já traziam componentes nacionais antes da invasão espanhola� Os atributos particulares que definem as nações são historicamente construídos, uma vez que, há muito tempo, o conceito de raça – tomado de empréstimo da biologia – deixou de ser empregado para designar o que define uma nação como particular. A história, desse modo, passa a ser o componente decisivo para a formação das identidades nacionais� Podcast 1 7 https://famonline.instructure.com/files/86487/download?download_frd=1 A INVASÃO DA AMÉRICA E O CHOQUE ENTRE “OUTROS” Um primeiro ponto deve deter nossa atenção no que concerne aos impactos resultantes dos encontros entre as diferentes culturas� Esse ponto deriva de questões apresentadas por Tzvetan Todorov (1983) e contribuem para localizarmos um dos vetores pre- sentes no processo de formação das identidades na- cionais� Em obra intitulada A conquista da América: a questão do outro, Todorov expõe ao leitor suas intenções: Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múl- tiplas, infinitas. Podem-se descobrir os ou- tros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu e um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá- -los e distingui-los de mim. Posso conceber 8 os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo so- cial concreto ao qual nós não pertencemos (TODOROV, 1983, p. 3). Questões bastante profundas que, em linhas ge- rais, podem ser elaboradas retomando a noção anteriormente apresentada no Módulo I, a partir do conceito de alteridade� Esse termo contribui de ma- neira interessante para pensarmos no momento em que os europeus chegaram ao continente americano, sobretudo a chegada dosespanhóis na região do México e da América Central, junto às naus capita- neadas por Cristóvão Colombo, e a estranheza que marcou tanto a percepção dos indígenas quanto a dos europeus invasores: quem era o outro como indivíduo, e quem era o outro como grupo social? Fugindo das representações românticas que inter- pretam a conquista do território americano pelos espanhóis como uma descoberta, Todorov não mede palavras para designar o que ocorreu nas décadas que se seguiram a essa chegada� Trata-se, segundo ele, do “maior genocídio da história da humanida- de” (TODOROV, 1983, p� 7)� Desse encontro violento e genocida, forçado pelos europeus, decorreria a formação das identidades nacionais presentes nos países modernos� 9 Mas, para além do extermínio físico, ocorreu também uma forma de percepção ambígua dos indígenas que demarcaria, segundo Todorov, a relação entre colonizadores e colonizados também nos séculos seguintes� Essa forma de se ver o outro está re- lacionada a uma tendência de projetar-se sobre o outro suas próprias experiências. No entanto, como o outro é diferente, passa-se a elaborar uma justifi- cativa de superioridade moral sobre ele, uma vez que ele estaria em um estágio não-civilizado da história humana� Nesse sentido, a igreja e o Estado toma- ram para si a missão de colonizar os territórios e exterminar também a cultura dos próprios indígenas, negando suas diferenças� No caso brasileiro, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (2010) apresenta registros das primeiras impressões que os portugueses tiveram sobre os índios que aqui estavam� A partir de ampla análise documental, o historiador percebe que a referência sobre o lugar e sobre os índios esteve baseada em uma perspectiva cristã, que via o território como uma espécie de jardim de Éden, um paraíso perdido (HOLANDA, 2010)� Desse modo, pode-se dizer que a tendência dos in- vasores europeus foi dupla: assimilar os índios como iguais, mas atribuir a eles um estatuto de inferiori- dade, uma vez que ainda não estariam no mesmo patamar humano que os europeus� Nas palavras de Todorov: 10 Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o uni- verso; na convicção de que o mundo é um (TODOROV, 1983). Todavia, essa concepção foi sendo progressivamen- te modificada à medida que os processos de colo- nização avançavam, sobretudo a partir da segunda metade do século 16� A iconografia europeia relacionada à colonização produziu uma série de registros interessantes aos nossos olhos contemporâneos� Na imagem a se- guir, podemos observar a representação que um europeu, Jean Théodore de Bry (1561-1623), fez a respeito dos Tupinambá brasileiros� Importa com- preendermos que o gravurista nunca esteve em terri- tório brasileiro, de modo que sua representação dos indígenas se pautou exclusivamente pelos relatos que alguns viajantes fizeram sobre os costumes antropofágicos dos indígenas – o consumo ritual da carne dos inimigos vencidos em guerra, com o pro- pósito de assimilar suas qualidades –, intensificando o caráter brutal do ritual para atender às demandas da imprensa europeia que então ganhava força� 11 Figura 1: Cenas de antropofagia no Brasil, Theodore de Bry, 1596. Fonte: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18720/ cenas-de-antropofagia-no-brasil. Acesso em: 28 jun. 2019. Quando da chegada dos portugueses ao território brasileiro, aqui existiam diferentes grupos indígenas, cada qual com seus costumes, tradições e línguas� Essa diversidade existente, todavia, não foi conside- rada de maneira aprofundada pelos europeus, pois todos foram identificados igualmente como índios, termo este que tem origem nas excursões feitas an- teriormente pelos europeus no continente asiático� Dentre a pluralidade de grupos étnicos que ocu- pavam o território brasileiro, destacavam-se dois grandes grupos, os tupinambás e os tapuias, sub- divididos em muitos outros� À semelhança do ocor- rido com as populações indígenas no restante do 12 https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18720/cenas-de-antropofagia-no-brasil https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/18720/cenas-de-antropofagia-no-brasil continente de colonização espanhola, os índios que estavam no território, hoje reconhecido como brasileiro, presenciaram um verdadeiro extermínio, seja pela violência direta dos invasores, mediante assassinatos, estupros e crueldades de toda sorte, seja pelas doenças trazidas junto com os europeus, para as quais os indígenas não possuíam anticorpos adequados� Desse modo, junto à perseguição feita por grupos com diferentes intenções – destacando- -se os jesuítas e os bandeirantes, por exemplo –, os indígenas foram vitimados por gripe, pneumonia, sífilis, disenteria e tuberculose (SHELTON, 2005). Abordamos acima que o choque cultural referen- te às invasões europeias no continente america- no trouxe uma série de representações parciais e equivocadas a respeito dos grupos autóctones que habitavam o território� Tais representações, por sua vez, justificaram inúmeras violências em relação às populações indígenas, de maneira a estigmatizar suas identidades étnicas� Mas será que essas falsas representações estão restritas apenas ao passado pouco lisonjeiro da atuação dos invasores? Para responder a essa pergunta, convém refletirmos so- bre os mecanismos de produção das identidades nacionais nos séculos seguintes� 13 SAIBA MAIS: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Bra- sil (1995), escrito por Darcy Ribeiro� O antropólogo Darcy Ribeiro (1922 – 1997) se consolidou como uma das principais referências para o estudo das relações étnicas formadoras da experiência nacional brasileira. Embora ad- mita que nossa identidade étnica esteja relacio- nada com diferentes matrizes culturais, o antro- pólogo não defende o processo de intercâmbio desses grupos como harmonioso� Segundo ele, o processo que estabeleceu uma certa unidade étnica, percebida como identidade nacional, es- teve e permanece relacionado com processos de violência e desigualdades. Em suas palavras, a unidade nacional “resultou de um proces- so continuado e violento de unificação políti- ca, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica dis- crepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamen- talmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação potenciali- za e reforça, nessas condições, a repressão social e classista, castigando como separatis- tas movimentos que eram meramente republi- canos ou antioligárquicos” (RIBEIRO, 2015, p� 23)� 14 Figura 2: Capa do livro O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro Fonte: https://globaleditora.com.br/catalogos/ livro/?id=3607 15 https://globaleditora.com.br/catalogos/livro/?id=3607 https://globaleditora.com.br/catalogos/livro/?id=3607 A IDENTIDADE NACIONAL E O ESTADO VISTO COMO OBJETO DE ANÁLISE ANTROPOLÓGICA O Estado como um mito O filósofo polonês Ernst Cassirer (1874–1945) reali- zou uma instigante análise a respeito da identidade nacional e da estrutura do Estado, pensando este como uma espécie de mito moderno� Publicado pou- co antes da morte do autor, em 1945, a obra O mito do Estado foi escrita como tentativa de compreensão dos acontecimentos que marcaram a primeira meta- de do século 20: duas grandes guerras e ascensão dos regimes nazista e fascista� Cassirer defende que o Estado é resultado de uma construção coletiva mítica, pois seus elementos constitutivos seriam os mesmos encontrados nos mitos, a exemplo do culto ao herói, do culto à superioridade racial, e da crença de que as nações possuem um destino inevitável, geralmente visto como grandioso (CASSIRER, 1976)� Os três componentes apontados porCassirer per- manecem, em maior ou menor medida, recorrentes nos diferentes nacionalismos desde fins do século 16 18� Basta pensarmos em como esses elementos constam em nossa própria experiência nacional e nas dos demais países contemporâneos� Nesse sentido, é comum o expediente de definição de he- róis nacionais, cuja superioridade moral se torna algo indiscutível, mesmo à luz de evidências que demonstram o contrário� Além disso, se a noção de raça já deixou de ser considerada devido às suas inconsistências empíricas, a ideia de que existem nações superiores e outras, consequentemente, in- feriores, é algo bastante presente, por exemplo, em filmes estrangeiros, como se pode notar em boa parcela da produção hollywoodiana contemporânea� Podcast 2 O terceiro ponto apresentado por Cassirer tam- bém é fundamental para compreendermos como os Estados modernos possuem semelhanças com estruturas míticas� A ideia de que algumas nações possuem como destino inevitável impor seu poder sobre outras nações é algo que permanece cons- tante, se pensarmos nos discursos proferidos por líderes de diferentes nações ao justificarem invasões militares em países alheios� 17 https://famonline.instructure.com/files/86488/download?download_frd=1 O Estado e a nação como comunidades “imaginadas” O antropólogo Benedict Richard O’Gorman Anderson (1936–2015) desenvolveu profunda análise a respei- to das origens da identidade nacional� Em primeiro lugar, diz o autor, não é possível localizar a data de nascimento ou o registro oficial de surgimento de uma nação� As nações, desse modo, são constru- ções coletivas, sem início bem determinado e que se valem de elementos que gradualmente lhes dão feições e que se tornam recorrentes� Dentre esses elementos, destaca-se a importância exercida pelos meios de comunicação, bem como também pelo sistema educacional – responsável pela reprodução da história considerada oficial de uma nação – e pelas ações realizadas por parte do Estado, para afirmar sua identidade sobre sua po- pulação, mas também é possível notar a influência de outros componentes menos evidentes, a exemplo do censo, do mapa e do museu� Mas como esses três elementos podem servir para reforçar uma de- terminada identidade nacional? Se pensarmos em como nossa ideia de nação de- pende em grande medida de determinadas infor- mações, inseridas em contextos que lhes atribuem significados particulares – por exemplo, quantida- de de pessoas e características dessas pessoas –, podemos perceber que os resultados dos censos 18 são fundamentais para demarcarmos os limites de nossa população� De outro lado, os mapas definem os limites físicos, sendo que tais limites, como sabemos, variam con- forme o momento histórico em que estão situados� Historicamente, os territórios são incorporados e perdidos pelos países ao longo de guerras e disputas com seus vizinhos� Por fim, os museus possibilitam a definição de uma história oficial, ou seja, uma narrativa que interessa à construção da identidade que as nações reivindi- cam� Evidentemente, essas construções nem sempre estão de acordo com os fatos históricos tal como eles ocorreram� Por exemplo, historicamente sabe- mos que a atuação dos bandeirantes no sudeste do Brasil foi marcada pela extrema violência com a qual trataram as populações nativas, capturando-as e sujeitando-as a todo tipo de crueldades� Entretanto, a despeito dos conhecimentos históricos a respeito do assunto, os diversos monumentos aos bandei- rantes, presentes, por exemplo, na cidade de São Paulo, tornaram-se símbolos constitutivos da pró- pria identidade paulistana� 19 Figura 2: Monumento ao Anhanguera, esculpido por Luigi Brizzolara e inaugurado em 1924. Atualmente está exposto em frente ao Parque Trianon, na Avenida Paulista.Fonte: https://www.al.sp.gov.br/ noticia/?id=272834 Acesso em: 28 jun. 2019. A partir dessas considerações, podemos pensar que os censos, os museus e os mapas produzem um certo sentido de identidade nacional� Esse sentido, como afirma Anderson, é tributário de operações simbólicas relacionadas às dinâmicas culturais: O meu ponto de partida é que tanto a nacio- nalidade – ou, como talvez se prefira dizer, devido aos múltiplos significados desse ter- mo, a condição nacional – quanto o nacio- nalismo são produtos culturais específicos. Para bem entendê-los, temos de considerar, com cuidado, suas origens históricas, de que maneiras seus significados se transforma- ram ao longo do tempo e por que dispõem, 20 https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=272834 https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=272834 nos dias de hoje, de uma legitimidade emo- cional tão profunda (ANDERSON, 2009, p. 30). Essas considerações realizadas pelo antropólogo demonstram que as raízes da nossa identidade na- cional são sujeitas à ação cultural e aos movimentos históricos. Entretanto, essas afirmações não indicam que esses sentimentos sejam meramente fictícios, uma vez que as ideias de nação e de nacionalismo produzem emoções profundas entre as pessoas� Sobre a formação das estruturas racistas Assim como os demais conceitos, a categoria raça atende a diferentes significados que são mobilizados de acordo com interesses dos grupos que a utilizam� Todavia, para além de assumir um significado me- ramente semântico, o termo raça trouxe consigo, durante muito tempo, uma série de teorias anexas� São as chamadas teorias raciais� Vimos anteriormente que a noção de etnia designa a identidade de um determinado grupo, sendo este marcado por semelhanças relacionadas a uma an- cestralidade comum e a padrões culturais discer- níveis em relação a outros grupos� Raça, por outro lado, pretende indicar que essas diferenças estão relacionadas a componentes físicos e biológicos� 21 Assim, a noção de raça serviu equivocadamente, ao longo dos tempos, para indicar diferenças que são culturais e sociais, tais como posições de status dentro dos grupos hierarquizados e pertencimentos a grupos sociais específicos. Embora não seja do nosso interesse neste material entrar em questões pertinentes ao campo da bio- logia, pode-se afirmar que a noção de raça, como elemento de diferenciação das espécies vivas, pou- co contribui para definir os grupos humanos, uma vez que a raça humana se constitui como única� As diferenças, desse modo, estariam em outra esfera� Mas, qual é, de fato, o problema existente de fato na utilização desse termo? De saída, podemos afirmar algo que parece óbvio: uma categoria é sempre formulada por um indiví- duo ou uma pessoa cuja função é necessariamente categorizar as diferenças� Um possível problema referente a esse fato é que, em muitos momentos, os categorizadores possuem eles próprios uma de- terminada visão estreita a respeito do mundo em que estão situados� Dessa forma, corre-se o risco de reproduzir-se nas categorias os próprios precon- ceitos dos categorizadores� O etnocentrismo e o ra- cismo são exemplos constantes desses equívocos� Essas perspectivas sobre as teorias subjacentes à categoria raça foram apresentadas por Claude Lévi-Strauss, em texto clássico intitulado Raça e História (1952)� 22 Lévi-Strauss parte da noção de que o uso da catego- ria raça justificou uma série de violências em relação a populações humanas. Essas violências, estudadas por Lévi-Strauss, estariam relacionadas às teorias racistas que apresentam concepções pseudocientí- ficas, uma vez que as diferentes aptidões humanas pouco ou nada teriam a ver com a base biológica� A análise realizada por Lévi-Strauss indica também a diversidade humana como necessariamente dinâ- mica, uma vez que as identidades são construídas e reconstruídas em um movimento incessante: A humanidade está constantemente em luta com dois processos contraditórios, para ins- taurar a unificação, enquanto que o outro visa manter ou restabelecer a diversificação. A posição de cada época ou de cada cultura no sistema, a orientação segundo a qualesta se encontra comprometida são tais que só um desses processos lhe parece ter sentido, parecendo o outro ser a negação do primeiro (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 361). Nesse sentido, a Antropologia surge então como uma forma de adquirir subsídios para lidar com as diversidades humanas de maneira mais compreensi- va. Ainda sobre o assunto, Lévi-Strauss afirma que: 23 A tolerância não é uma posição contemplati- va dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que pode- mos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspon- dentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras (LÉVI- STRAUSS, 1993, p. 366). O etnocídio como efeito perverso do etnocentrismo e do racismo Se o etnocentrismo pode ser compreendido como uma forma limitada de compreensão da diversidade humana, é possível verificar seus efeitos quando essa perspectiva passa a ser colocada em prática por grupos que detêm poder de imposição de suas vontades sobre os outros? Como resposta para a pergunta formulada acima, refletiremos brevemente sobre o termo etnocídio, que indica, em linhas gerais, o genocídio realizado por um grupo em relação ao espírito de outros, ou seja, em relação à sua cultura� Essas observações se 24 apoiam em outro texto clássico da Antropologia, in- titulado Do etnocídio, escrito pelo antropólogo Pierre Clastres (1934–1977) e publicado originalmente em 1974� Mas antes de discutirmos sobre essa noção, convém lembrarmos do que trata o termo genocídio� A ascensão do nazismo na Alemanha, durante a primeira metade do século 20, esteve relacionada a um movimento de apelo à identidade que serviu de justificativa para a criação do Terceiro Reich (1933- 1945), a saber, a ideia de que os alemães possuíam uma origem única, pura e superior sobre os demais grupos humanos do mundo� Essa noção esteve rela- cionada à ideia de raça ariana, elaborada e apresen- tada por Adolf Hitler em seu livro Main Kampf (Minha luta), publicado originalmente em 1925� Nesta obra, Hitler apresentou uma suposta teoria segundo a qual não apenas os alemães eram dotados de pureza ra- cial originária, mas também outros grupos poderiam ser vistos como impuros e degenerados, do ponto de vista de suas raças e de seus posicionamentos ide- ológicos� Entre esses grupos marginalizados foram incluídos judeus, homossexuais, ciganos, eslavos e comunistas, entre outros� Após a chegada de Hitler ao poder, os nazistas, de- fensores de ideais políticos reconhecidamente de extrema-direita, iniciaram uma série de perseguições aos grupos considerados por eles inferiores� Sob o lema Deutschland über alles (Alemanha acima de tudo), desenvolveram formas de policiamento e prisões específicas para esses grupos, resultando naquilo que foi chamado por eles de solução final, ou 25 seja, o extermínio físico dos grupos marginalizados em campos de concentração� Figura 3: Imagem 4: Dawid Samoszul, criança judia que foi assas- sinada pelos nazistas no campo de concentração de Treblinka, aos nove anos de idade.Fonte: https://encyclopedia.ushmm.org/content/ pt-br/article/introduction-to-the-holocaust. Acesso: 28 jun. 2019. 26 A morte sistemática de milhares de pessoas sob o pretexto da pureza racial nunca antes havia sido empreendida e registrada da forma como os nazis- tas o fizeram. Desse modo, após a Segunda Guerra Mundial, durante os tribunais que julgaram os crimes cometidos pelos nazistas, na cidade de Nuremberg, em 1946, empregou-se o termo genocídio para de- signar as atrocidades e o extermínio físico em massa de pessoas nos campos de concentração nazistas� Mas uma questão importante pode ser destacada desses eventos� Existe a possibilidade de exterminar um grupo humano sem necessariamente recorrer à sua destruição física? Essa questão foi respondida por Pierre Clastres ao recorrer ao termo etnocídio, ou seja, o extermínio cultural de um grupo, de ma- neira a aniquilar seus valores, suas religiões e suas características étnicas� Assim, os termos genocídio e etnocídio teriam semelhanças e diferenças: Ele [o termo etnocídio] tem em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro é a diferença, certamente, mas é so- bretudo a má diferença. Essas duas atitudes distinguem-se quanto à natureza do trata- mento reservado à diferença. O espírito, se se pode dizer, genocida quer pura e simples- mente negá-la. Exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus. O et- nocida, em contrapartida, admite a relativida- de do mal na diferença: os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigando-os a se 27 transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto (CLASTRES, 2004, p. 85). Há de se ressaltar que, no Brasil e em outros países, as populações indígenas foram submetidas aos dois processos – genocídio e etnocídio –, uma vez que a perseguição aos índios no Brasil é constante desde a invasão dos portugueses� Durante a Ditadura Militar (1964-1985), por exemplo, a despeito da dificuldade de acesso a informações devido à ampla censu- ra promovida pelos militares, alguns documentos evidenciam a devastação dos territórios indígenas e o extermínio dessas populações através de as- sassinatos e da introdução de doenças, a exemplo da varíola, que foi inoculada em índios por aqueles que estiveram na dianteira do processo de ocupação do interior do país� Sobre esse assunto, os poucos registros que não foram destruídos, constavam no relatório do procurador Jader de Figueiredo Correia, realizado em 1967, sobre a atuação do Serviço Nacional do Índio (SNI)� Se seguirmos as observações de Pierre Clastres, veremos que os processos de etnocídio não estive- ram limitados às invasões e colonização por parte dos europeus na África, América, Ásia e Oceania� O processo de identificação do outro não necessaria- mente como maus, mas como grupos que podem ser melhorados ou civilizados seguindo padrões culturais específicos (religiosos, econômicos, entre outros), é algo recorrente mesmo nos dias de hoje e 28 convém ao leitor deste material que procure refletir e identificar a permanência de práticas etnocidas em nossas sociedades contemporâneas� Figura 4: Guarda Rural Indígena, criada pela Funai em 1968, que submeteu os índios a treinamentos militares.Fonte: Acervo O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia- -de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-mili- tar-21110809. Acesso em: 28 jun. 2019. 29 https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia-de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-militar-21110809 https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia-de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-militar-21110809 https://oglobo.globo.com/cultura/livros/a-historia-de-resistencia-morte-dos-povos-indigenas-na-ditadura-militar-21110809 Saiba mais: Filme Martírio (2016), dirigido por Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida� Produ- ção: Papo Amarelo Produções Cinematográficas e Vídeo nas Aldeias� 162min Figura 3: Pôster do filme Martírio. Créditos Figura 6:� Fonte: https://letterboxd� com/film/martirio/. Acesso em: 28 jun. 2019. Com o objetivo de reconstruir a luta indígena no Brasil desde a redemocratização do país, os ci- neastas apresentam em Martírio importantes re- gistros para se compreender como o massacre e a perseguição aos índios permanecem como constantes em nossa política contemporânea� Além desse potente documento político, antro- pológico e jurídico, Carelli se notabilizou como um dos principais cineastas que se empenham em documentar a situação indígena no Brasil� Em companhia de outros cineastas e antropólo- gos, Carelli é um dosresponsáveis pela iniciati- va Filme nas aldeias, que desde 1986 estimula 30 projetos audiovisuais desenvolvidos pelos pró- prios índios� A partir dos anos 2000, o projeto se tornou uma ONG autônoma. É possível encontrar no site da ONG (http://videonasaldeias�org�br/) uma plataforma de streaming com produções feitas por antropólogos e índios de diferentes et- nias� Dentre as produções realizadas pela ONG, recomenda-se a série Índios no Brasil, apresen- tada por Ailton Krenak, a respeito dos diversos grupos indígenas presentes no território brasi- leiro� É possível assistir à série completa, dispo- nibilizada pela própria ONG, através do endereço https://vimeo�com/showcase/1426010 (Acesso em: 12 jun� 2019)� 31 A IDENTIDADE NEGRA ONTEM E HOJE No Brasil, os processos de extermínio da popula- ção indígena ao longo da construção da identidade nacional brasileira foram seguidos pela sujeição, sequestro e assassinato das populações negras sequestradas no continente africano e trazidas ao território brasileiro para serem escravizadas� Se pensarmos na escravidão, ou seja, na sujeição de uma pessoa ou um grupo por outras pessoas ou grupos, veremos que não é algo incomum na história das sociedades humanas� Entretanto, não é possível estabelecer semelhança entre as formas antigas de escravidão e a forma como se desenvolveu a escra- vidão de negros africanos no Brasil� Não é possível, pois quando os negros africanos vieram para cá à força foram considerados mercadorias e ferramentas de trabalho, que se tornaram fundamentais para o tipo de colônia de exploração que aqui se consoli- dou� Esses dois componentes de identidades dos escravizados distinguem e particularizam signifi- cativamente os processos de escravidão ocorridos em território brasileiro diante dos demais� Diferentemente dos indígenas, a quem ocasional- mente as instituições reconheciam algum grau de humanidade – ainda que quase sempre formal –, 32 os negros escravizados foram considerados como meros objetos sobre os quais o Estado e os escravi- zadores tiveram diretos de posse garantidos� Nesse sentido, a historiadora Keila Grinberg afirma que: Durante todo o período colonial, os castigos infligidos aos escravos eram prerrogativa dos senhores, praticamente uma obrigação, reconhecida e corroborada pelos costumes e pelas leis. Assim, o castigo deveria ser “jus- to”, só executado quando houvesse motivos e de maneira corretiva, para evitar a reinci- dência. Se o domínio mais amplo sobre a ordem escravista era mantido pelas autori- dades coloniais, que reprimiam as fugas e a formação de quilombos, a continuidade da dominação dos senhores sobre seus escra- vos cabia aos próprios senhores. A ação do poder real se dava fora da unidade produti- va, fora da casa do senhor. Fosse executado pelas autoridades ou pelo senhor, o controle dos comportamentos seguia a mesma lógi- ca: a punição deveria ser pública, exemplar, reafirmando o poder do senhor ou do sobe- rano (GRINBERG, 2018, p. 138). Cada vez mais os historiadores têm encontrado re- gistros que comprovam que os negros escravizados não assistiram passivelmente sua sujeição� Exemplo dessas fugas e resistências constantes foi o famoso quilombo de Palmares, cuja existência durou cerca 33 de cem anos e se tornou uma sociedade à parte, composta por negros que fugiram da escravidão� Mas, além deste exemplo clássico, outras inúmeras formas de resistência marcaram a identidade dos escravizados no Brasil� Ao deter os lamentáveis títulos de maior destino dos negros sequestrados e de última nação a abolir a escravidão africana, é impossível deixar de se com- preender nossas dinâmicas políticas, econômicas e sociais sem considerar o fato de que foram séculos de tráfico transatlântico e de exploração de pessoas tornadas escravas, de meados do século 16 até a abolição oficial, em 1888. A propósito das interpretações sobre a identida- de que formou a nação brasileira, existe uma linha interpretativa que se costuma atribuir ao antropó- logo e historiador Gilberto Freyre (1900–1987), au- tor de obras como Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados & Mucambos (1936)� Em ambas as obras, Freyre apresenta a relação de dependência e aproximação entre o espaço dos escravos e dos escravistas, mas também induz uma representação relativamente passiva no que concerne à miscige- nação de brancos e negros no Brasil� De maneira sintética, a tese freyreana está próxi- ma daquilo que ficou conhecido como democracia racial (embora o termo, propriamente dito, não seja constante na obra do autor)� De acordo com Freyre, o intercurso sexual e o intercâmbio cultural de africa- nos e portugueses procederam, no Brasil, um certo 34 efeito democratizante no que se refere às distâncias entre esses povos� Embora não negligenciasse as violências às quais os escravizados foram submetidos, Freyre acaba por defender essa miscigenação como algo que te- ria atenuado os antagonismos dos grupos durante o processo de colonização� No entanto, a tese de Gilberto Freyre foi questionada por dois importan- tes intelectuais: Florestan Fernandes e Abdias do Nascimento� O sociólogo Florestan Fernandes (1920–1995) rea- lizou intensos estudos sobre a realidade dos negros no Brasil� Em obra intitulada A integração do negro na sociedade de classes (1964), Fernandes procura investigar os modos possíveis de inserção dos ne- gros com a emergência do capitalismo brasileiro. Entre os diversos pontos tratados pelo sociólogo, destaca-se a dificuldade estrutural que marcou a integração dos negros, devido à permanência da mentalidade escravista na sociedade brasileira, que não conferiu democraticamente as mesmas possibi- lidades e posições sociais a negros e brancos após a abolição da escravidão. Afirma Fernandes que os negros, no Brasil, correspondem ao: [...] contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior 35 do capitalismo no Brasil (FERNANDES, 1973, p. 9). Os efeitos perversos e nada democráticos da es- cravidão foram também tratados por Abdias do Nascimento (1914–2011), intelectual negro de gran- de relevância para as discussões sobre o racismo no Brasil – racismo este identificável nas institui- ções brasileiras, a exemplo da família, da escola e do Estado – portanto, racismo institucional� Segundo Nascimento, em obra de referência para os estudos brasileiros sobre a identidade negra, O genocídio do negro brasileiro: um processo de ra- cismo mascarado (1978), a tese de Gilberto Freyre esconderia uma grande perversidade ao naturalizar as relações entre escravos e escravistas, de modo a apresentar uma espécie de mito do senhor bene- volente que, segundo o autor, nunca existiu: Durante séculos, por mais incrível que pare- ça, esse duro e ignóbil sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro, de ser uma instituição benigna, de caráter humano. Isto graças ao colonialismo por- tuguês que permanentemente adotou for- mas de comportamento muito específicas para disfarçar sua fundamental violência e crueldade. Um dos recursos utilizados nesse sentido foram a mentira e a dissimulação [...]. Essa rabulice colonizadora pretendia imprimir o selo de legalidade, benevolência 36 e generosidade civilizadora à sua atuação no território africano. Porém todas essas e outras dissimulações oficiais não dissimu- laram a realidade, que consistia no saque de terras e povos, e na repressão e negação de suas culturas – ambos sustentados e rea- lizados, não pelo artifício jurídico, mas sim pela força militar imperialista (NASCIMENTO, 1978, p. 50). Esse procedimento ao qual Nascimento se refere, baseado em uma miscigenação cultural harmoniosa entre portugueses e negros africanos escravizados, estaria na própria interpretação de como funciona a mentalidade colonial�Esse assunto será tratado com atenção na próxima unidade, mas antes ficaremos com as constatações de Nascimento: No Brasil, é a escravidão que define a quali- dade, a extensão, e a intensidade da relação física e espiritual dos filhos de três conti- nentes que lá se encontraram: confrontan- do um ao outro no esforço épico de edifi- car um novo país, com suas características próprias, tanto na composição étnica do seu povo quanto na especificidade do seu espírito – quer dizer, uma cultura e uma ci- vilização com seu próprio ritmo e identidade (NASCIMENTO, 1978, p. 59). 37 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta unidade tratamos dos assuntos pertinentes à construção das identidades nacionais� Como ob- servamos anteriormente, as ideias de nação e de nacionalismo exerceram e exercem grande influência sobre os horizontes culturais das pessoas desde o final do século 18. Muitos conflitos que ocorrem atualmente, em dife- rentes partes do mundo, apresentam componentes referentes históricos que estão relacionados aos efeitos do nacionalismo� Boa parte da diversidade cultural presente hoje em países distintos ao redor do mundo também é influenciada pela noção e iden- tidade nacional� Na próxima unidade, voltaremos nossas atenções para a construção das diversidades no interior dos espaços de socialização contemporâneos� Como será visto, para refletirmos sobre esses aspectos que demarcam identidades e comportamentos, precisa- remos de apoio das novas teorias sobre a formação de identidades� 38 b) Contra o conceito de “democracia racial”: a crítica de Florestan Fernandes e Abdias do Nascimento às teses de Gilberto Freyre. a) Características da escravidão negra no Brasil. Pessoas tornadas mercadorias e ferramentas de trabalho; A identidade negra ontem e hoje: 5 b) Etnocídio como extermínio cultural, segundo Pierre Clastres. a) Genocídio e fundamentos racistas do Terceiro Reich; Sobre a formação das estruturas racistas. Raça e história, segundo Claude Lévi-Strauss; 4.1 Sobre a formação das estruturas racistas. Raça e história, segundo Claude Lévi-Strauss; 4 b) O Estado pensado como “comunidade imaginada”: Benedict Anderson. Sentidos identitários despertados pela nação. a) O Estado pensado como “mito”: Ernst Cassirer. Elementos constitutivos do imaginário sobre o Estado; A identidade nacional e o Estado vistos como objetos de análise antropológica: 3 b) Iconografia e representações dos indígenas. a) Tzvetan Todorov sobre a conquista da América. Dificuldades na representação do “outro”; A invasão da América e o choque entre “outros” 2 b) Plurinacionalidade e Estados contemporâneos. a) Estados no século 19; Povo, Estado, nação e identidade:t SOBRE AS CONSTRUÇÕES DAS IDENTIDADES E DAS DIVERSIDADES 1 Referências ALMADA, Sandra. Abdias nascimento: retratos do Brasil negro. São Paulo: Selo Negro, 2009. BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pen- samento afrodiaspórico. São Paulo: Autêntica, 2018. CASSIRER, Ernst. O mito do estado. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac Naify, 2004. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na so- ciedade de classes. v. 1. São Paulo: Ática, 1978. GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. In SCHWARCZ, Lilia; GOMES, Flavio (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Tradução de Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1990. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2015. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Edusp, 2007. NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: um processo de racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978. NASCIMENTO, Elisa Larkin (ed.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro Edições, 2008. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sen- tido do Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015. SHELTON, Dinah. Encyclopedia of genocide and crimes against humanity. Farming Hills: Macmillan Reference, 2005. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983. _GoBack Introdução Sobre as construções das identidades e das diversidades Povo, Estado, nação e identidade A invasão da América e o choque entre “outros” A identidade nacional e o Estado visto como objeto de análise antropológica O Estado como um mito O Estado e a nação como comunidades “imaginadas” Sobre a formação das estruturas racistas O etnocídio como efeito perverso do etnocentrismo e do racismo A identidade negra ontem e hoje Considerações finais Síntese bt_foward 15: Página 1: bt_foward 17: Página 40: Página 41:
Compartilhar