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PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL: DIMENSIONAMENTO Janaina Almeida Stédile A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir as principais diretrizes do urbanismo moderno corbusiano. � Determinar os elementos que caracterizam a Ville Radieuse de Le Corbusier. � Identificar as características urbanas da Escola de Chicago. Introdução Este capítulo abordará uma importante parte da história da arquitetura: o momento em que surge o campo do urbanismo tal como entendemos e atuamos hoje em dia. Apesar de todas as críticas tecidas ao longo dos anos aos preceitos modernistas, esses ainda nos influenciam de forma relevante: as cidades contemporâneas se estruturam a partir das ideias modernas. Além disso, a própria interpretação do espaço urbano dos urbanistas carrega conceitos e métodos modernos. Neste capítulo, você conhecerá a principal corrente do movimento moderno — o racionalismo — por meio do estudo das ideias do seu protagonista, Le Corbusier. Também conhecerá uma segunda vertente modernista, que preconizava uma relação mais direta com o meio am- biente. Você entenderá um pouco mais dessa corrente através de dois eventos ocorridos na cidade de Chicago: o nascimento da sociologia urbana e as ideias de Frank Lloyd Wright para a cidade. Antecedentes do urbanismo corbusiano Para entender a obra de Le Corbusier, é preciso saber que ele propunha não apenas uma nova linguagem, mas uma nova maneira de habitar a cidade. O movimento racionalista, do qual era seguramente uma das personalidades de maior expressão, entendia que as soluções arquitetônicas deviam imitar a máquina, devendo ser projetadas por meio dos estudos da realidade e da busca da solução de maior eficiência. Por isso, essa corrente, hegemônica dentro do movimento moderno, é cunhada como racionalista, ou funcionalista. É preciso, antes, voltar alguns anos e entender o cenário em que essas ideias foram formuladas. Para os historiadores, o período moderno da história se inicia com o Renascimento, em que o ser humano passa a valorizar o pensamento crítico, a reflexão, o estudo e a técnica. Nos séculos seguintes, em especial os séculos XVIII e XIX, houve um expressivo crescimento das ciências e da tecnologia, mudando definitivamente muitos campos da sociedade, mas, em especial, a configuração espacial das cidades e dos territórios. Certamente, o desenvolvimento da produção industrial foi um dos grandes fatores de mudanças nas concepções arquitetônicas e urbanísticas. Primeiro porque as fábricas passaram a fazer parte da paisagem urbana e precisavam de maiores extensões de terra para sua implantação, dependendo diretamente do centro urbano, mas sem causar incômodos severos ao restante da cidade. Além disso, as áreas industriais geraram a necessidade de mais habitação para os operários, que migravam do campo para a cidade. A indústria também gerou a necessidade da construção de grandes infraestruturas para o escoamento da produção, majoritariamente, ferrovias e pontes metálicas, que criam um sistema de comunicação regional. Por fim, mas definitivamente não menos importante: os produtos industrializados forneciam aos arquitetos e urbanistas um campo vasto de possibilidades construtivas. Concomitante ao desenvolvimento da indústria e entrelaçado a ela de forma simbiótica está o desenvolvimento da ciência em todos os seus grandes campos. Nesse momento, conhecido como século da filosofia e da ciência, os campos de conhecimento foram sistematizados e essa organização da ciência faz surgir novas áreas de investigação, como, por exemplo: a psicologia, a sociologia, a antropologia e a própria biologia, que datam do século XIX como campos de conhecimento coesos. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago2 O desenvolvimento das ciências forneceu à indústria o domínio do aço e o advento do concreto armado, possibilitando que as ideias modernas tivessem respaldo da tecnologia construtiva do que havia de mais avançado, de modo que suas ideias saíam do campo da teoria e encontravam terreno fértil para o seu desenvolvimento. “A maioria das posturas teóricas e dos slogans adotados nas décadas seguintes é fruto dessas intuições precoces de uma nova cultura baseada na indústria” (COHEN, 2013, p. 18). É nesse cenário que se encontram as exposições universais, que tinham por objetivo demonstrar as últimas novidades tecnológicas da época, bem como o movimento Art Nouveau (arte nova), que tinha a sua linguagem orga- nicista baseada nas possibilidades abertas pelo domínio do aço e do concreto. A construção de grandes vãos se apresentava como uma realidade possível e é nessa época que surgem as galerias comerciais cobertas com grandes telhados metálicos de fechamento de vidro. Duas exposições universais se destacam: a primeira delas, de 1889, em Paris, e a segunda, de 1893, a Exposição Universal Colombiana de Chicago. É para a exposição universal de Paris que os engenheiros Gustave Eiffel e Maurice Koechlin projetam e constroem a torre Eiffel. Inicialmente, a construção teria o propósito de pórtico de entrada para a feira, porém, sua importância está associada à capacidade técnica construtiva de projetar uma torre alta em estrutura de aço. A feira de Chicago refletia as inovações que a indústria crescente suscitava na própria paisagem da cidade. Apesar de os pavilhões da exibição ainda apresentarem fachadas neoclássicas, as exibições internas apresentavam a mais alta tecnologia industrial americana e a própria cidade de Chicago incorporava, nos edifícios, tecnologias construtivas em aço, utilizadas nas fábricas. A mais coerente e revolucionária hipótese arquitetônica aventada no período entre as duas exposições de Paris foi provavelmente a do arquiteto Otto Wag- ner. Em Modern Architektur (1896), escrito para seus alunos da Academia de Belas Artes de Viena, ele preconiza um Nutzstil (estilo utilitário), livre de referências históricas e que transpunha para a arquitetura os ritmos da sociedade industrial (COHEN, 2013, p. 26). Porém, todos esses avanços geraram ônus social e urbano relevantes. Em especial, para a massa de trabalhadores, que migrava para a cidade e ali encontrava condições de vida precárias. São as reformas do Barão Haussmann, em Paris, a partir de 1853, que realmente transformam a cidade histórica tradicional, motivadas não só pelo crescimento da cidade e novas dinâmicas 3A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago do capital, mas, principalmente, pelo controle social de uma população em- pobrecida, que ocupava as ruas pedindo mudanças políticas e econômicas. O desemprego, condição estrutural da velha Paris, traduzido na fome e nas péssimas condições de habitação, era o principal combustível das barricadas. E o método para tal empresa foi a demolição, seguido da reconstrução. As pa- lavras encontradas com mais frequência no terceiro volume das ”Mémoires du Baron Haussmann” são: decreto, utilidade pública, expropriação, prolongamen- to, alargamento, abertura e demolição (ARRAIS, 2016, documento on-line). A intervenção de Haussmann gerou a figura da propriedade privada ur- bana, colocou em relevância o caráter das ruas como circulação de pessoas e mercadorias e ratificou a ideia de periferia, que ainda não se configurava de maneira clara nas cidades. Suas reformas resolveram problemas significati- vos para a indústria, mas agravaram os problemas urbanos que atingiam os trabalhadores e as classes médias. No final do século XIX e começo do XX, essas questões se tornaram centro das discussões dos arquitetos, que não poderiam mais desvincular a produção arquitetônica de uma proposta que organizasse o ambiente urbano. Assim, na aurora do século XX, os arquitetos, que durante os séculos passados apenas intervinham no embelezamento da cidade por meio de edifícios e espaços públicos, tinham agora o desafiode projetar cidades que dessem conta da vida moderna, construídas por parâmetros advindos de pesquisas e estudos, bem como concebidas de maneira única, contribuindo para equidade social. Modernismo racionalista O movimento moderno de arquitetura é comumente associado à sua corrente hegemônica que recebe diversos nomes no decorrer da histórica, alguns deles são: estilo internacional, racionalismo ou funcionalismo. Ela recebe esses nomes devido a algumas de suas ideias centrais. A primeira é que a arquitetura e as cidades, independente do arcabouço cultural e histórico, deveriam ser o lugar do ser humano moderno. O ser hu- mano moderno era uma construção teórica que ganharia vida pelo Modulor de Le Corbusier, que padroniza as necessidades humanas. A padronização e a desconsideração com o patrimônio histórico e especificidades culturais serão os grandes motes das críticas ao movimento moderno iniciadas a partir da década de 1950. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago4 Assim, os funcionalistas acreditavam que o projeto da cidade e do objeto arquitetônico deveria ser resultado de seus objetivos e funções. Havia, nesse processo, a ideia de uma extrema racionalização e padronização dos espaços, mas, principalmente, do espaço urbano, que passa a ser organizado a partir das suas atribuições funcionais em um sistema maior da padronização dos elementos construtivos e dos ambientes urbanos. Segundo os racionalistas, essa ação contribuiria para a construção de uma sociedade mais igualitária e livre das desigualdades sociais. Essa concepção atribui às atividades do arquiteto e urbanista, no século XX, o papel de transformador social. Moderno, modernismo ou modernista? No cotidiano, costumamos atribuir o adjetivo de “moderno” para objetos, eventos ou até mesmo pessoas, por exemplo: “a vovó moderninha de Fulano; o corte de cabelo moderno; o carro mais moderno, a casa moderna”. Aqui, temos um problema de ordem teórica. É bem verdade que a palavra moderno possa ser utilizada para qualificar objetos, eventos e pessoas que estejam de acordo com a última geração de novidades, ou que estejam um pouco além dela, questionando cânones sociais e culturais: a “vovó moderninha” é aquela que desfruta dos tempos atuais, o corte de cabelo moderno é aquele mais ousado, o carro mais moderno é aquele que tem diversos instrumentos tecnológicos à disposição. E a casa moderna? A casa moderna é a casa projetada pelos arquitetos modernos, entre o final do século XIX e a década de 1960. Então, se você quiser projetar uma casa moderna, em pleno século XXI, não seria possível? Sim, é possível, mas o projeto será feito a partir dos ideários modernistas daquela época. Ironicamente, você projetará uma casa historicista projetando uma casa moderna. Então, em um caso o moderno é futuro, mas em outro, passado? Inicialmente, todo moderno projetava para o futuro, mas algumas ciências adotam termos que dentro daquela ciência tinham outros significados. Embora o termo “moderno” tenha uma história bem mais antiga, o que Habermas chama de projeto da modernidade entrou em foco durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço inte- lectual dos pensadores iluministas “para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade, e a lei universal e arte autônoma nos termos da própria lógica internas destas”. A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca de emancipação humana e no enriquecimento da vida diária (HARVEY, 2001, p. 23). 5A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago Por exemplo, para alguns historiadores, a era Moderna da História começa no Renas- cimento. Para outros, como Habermas (2000), toma corpo como projeto no Iluminismo. Já na arquitetura designa um movimento artístico do final do século XIX até meados do século XX, entretanto, o desenvolvimento dessa época é atribuído aos séculos anteriores, por isso, Modernismo, ou seja, à maneira moderna. E Modernismo e modernista? Ismo e ista são sufixos, que fazem o significado original da palavra variar um pouco. Pode-se simplificar dizendo que os modernistas são aquelas pessoas que faziam parte do movimento moderno, ou modernistas são espaços (abertos ou fechados) projetados na época e de acordo com os preceitos modernos ou do Modernismo. Ou seja, você pode utilizar moderna ou modernista para se referir à arquitetura ligada ao movimento moderno. Urbanismo corbusiano Pode-se estudar o urbanismo corbusiano por meio de vários documentos e suas inúmeras obras, porém, Ville Radieuse (1930) e a Carta de Atenas (1933) sintetizam melhor sua maneira de pensar e apresentam um amadurecimento de pesquisas anteriores (FRAMPTON, 1997). Elas são também cânones da arquitetura moderna, influenciando toda uma geração de arquitetos e urbanistas e, principalmente, a construção de cidades. Na década de 1960, iniciou-se um movimento de críticas à arquitetura e ao urbanismo racionalistas, que ficou conhecido como pós-moderno. Apesar de estarmos cem anos das origens das ideias funcionais, a cidade contemporânea ainda carrega diversas características modernistas. Muitos exemplos podem ser dados: os Planos Diretores ainda classificam as ruas pela sua capacidade viária, ainda apresentam zoneamento, e, em muitos lugares, o recuo de frente, ou seja, desalinhamento da edificação com a rua, é obrigatório. Ainda podemos falar do adensamento das cidades por meio de torres residenciais, com o térreo de uso comum do edifício, das plantas livres para prédios de escritório, do sistema construtivo pilar-viga, com concreto armado, as grandes fachadas de vidro dos edifícios de escritório, para citar alguns outros. Todos esses exemplos foram criados pelos racionalistas e ainda regem a paisagem da cidade contemporânea. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago6 Ville Radieuse (1930) A Ville Radieuse, ou cidade radiosa em português, é um projeto urbano teórico não construído, mas que servia de base para a exposição material dos conceitos que, três anos mais tarde, encontrariam-se na Carta de Atenas. O conceito da Ville Radieuse já havia sido expresso em algumas ideias, na década de 1920, como, por exemplo, o Plain Voisin para Paris, em 1925, porém, foi publicado pela primeira vez no livro Urbanismo, de Le Corbusier, em 1930 (FRAMPTON, 1997). O modelo recebeu o nome de cidade radiosa porque havia uma preo- cupação central com as condições de salubridade da habitação, portanto, essas deveriam receber a maior quantidade de luz solar possível. Os edifícios habitacionais projetados por Corbusier, denominados Unité d’habitation (unidade habitacional), configuravam-se como arranha-céus de 50 metros de altura, de alta densidade, similares entre si, pré-fabricados, isolados um dos outros, organizados em uma grade cartesiana, que deveria estar em volta de um grande espaço verde, além de se situar em uma zona da cidade apenas dedicada à habitação. As Unité deveriam acomodar 2.700 habitantes e se portariam como edifício autossuficiente, com equipamentos de serviços no próprio edifício, como refeitório e lavanderia coletivos, escola de educação infantil e piscina. As unidades habitacionais seriam projetadas como máquinas de mo- rar, os espaços deveriam ser eficientes e de medidas mínimas necessárias. As dimensões humanas e áreas mínimas necessárias para exercer determinada função são os critérios de projeto. A unidade VR otimizava cada centímetro quadrado de espaço de que se dispunha, e, em termos de espessura, suas divisões eram tão reduzidas a ponto de se tornarem inadequadas como barreiras acústicas. Com finalida- des semelhantes, os núcleos de serviços, isto é, a cozinha e o banheiro eram reduzidos ao mínimo. Além disso, cada apartamento tinha uma certa capa- cidade de transformação em termos de uso noturno e diurno, com a retirada de divisórias corrediças. Quando fechados estes elementos subdividiamo espaço para dormir, e, abertos, ofereciam uma área de lazer para as crianças que poderiam ter continuidade com a sala de estar. Por meio desses artifícios, o apartamento VR típico destinava-se a ser tão ergometricamente eficiente quantos as cabines de dormir de um wagon-lit, (....) trata-se de uma evidente tentativa de prover o equipamento normativo de uma civilização da era da máquina (FRAMPTON, 1997, p. 218). 7A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago A ideia de zoneamento, tão amplamente usada nas cidades contemporâneas, aparece pela primeira vez como fator de organização das cidades no projeto de Le Corbusier. A Ville Radieuse apresenta nova zonas com usos bem definidos: � cidades-satélites ligadas à educação; � zona comercial; � zona de transporte, incluindo trens e transportes aéreos; � zona de hotéis e embaixadas; � zona residencial; � zona verde; � zona da indústria leve; � zona de armazém e trens de carga; � zona da indústria pesada (FRAMPTON, 1997, p. 220). Há três ressignificações de elementos tradicionais da cidade na Ville Radieuse: o térreo, a rua e o centro da cidade. A área térrea das cidades tradi- cionais é o nível em que a cidade acontece, onde se acessa os prédios, e a rua como espaço onde o encontro e a troca acontece; onde estão as lojas, oficinas e cafés, as entradas das casas e das escolas. Na Ville Radieuse, as funções e vivências originais do térreo são separadas por zonas de uso ou simplesmente por se encontrarem em outros pavimentos. O uso da rua é desassociado dos edifícios, que são construídos recuados e sobre pilotis, com a intenção de deixar o térreo livre. A rua passa a ser um elemento apenas funcional de circulação e deve ser hierarquizada pelo fluxo de automóveis. O centro da cidade perde seu valor do lugar onde todas as atividades urbanas da cidade se encontram, para ter uma característica cívica e monumental. Ele é transformado em uma grande alameda central. A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, é o maior exemplo construído do conceito corbusiano de centro. Na Figura 1, veja um exemplo de uma grande esplanada linear. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago8 Figura 1. Grande esplanada linear que ocupa o lugar dos centros radiais das cidades históricas. Fonte: Merin (2013, documento on-line). A cidade ainda se organizava por meio de um sistema de circulação eficiente em que não houvesse cruzamentos. De acordo com os ideais modernistas de progresso, o projeto da cidade radiosa emerge, em grande descampado, o conceito de tábula rasa — não dialogava com as existências pregressas, mas propunha uma construção do zero a partir do ideal racional, que leva em conta o desenvolvimento da indústria e as questões sociais e econômicas. A Ville Radieuse, juntamente com a Carta de Atenas, vai orientar a reconstrução das cidades europeias no pós-guerra, bem como vai encontrar terreno fértil para o seu desenvolvimento nas cidades novas do continente americano. 9A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago Carta de Atenas (1933) A Carta de Atenas é o documento que sintetiza os debates e trabalhos ocorridos no IV CIAM — Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, porém, foi redigido pelo próprio Corbusier, que na época já se apresentava como um dos mais importantes idealizadores da arquitetura e urbanismo modernos (COHEN, 2013). A Carta de Atenas pode ser visualizada com clareza no projeto teórico da Ville Radieuse. Le Corbusier não é o único arquiteto ocupado como a condição das cidades nos tempos modernos, havia grupos de arquitetos modernos desenvolvendo debates e novas ideias na Alemanha, Itália, Inglaterra e Holanda. Eles sentiram a necessidade de reunir as suas experiências e encontrar caminhos e soluções para problemas comuns. Esse é um dos motivos pelos quais o movimento é conhecido como International Style (estilo internacional). Para eles, a nova arquitetura não deveria ser obra de personalidades indi- viduais, mas uma construção coletiva, que permitisse resolver os problemas complexos colocados pela sociedade que se reorganizava, ao mesmo tempo que deveria encontrar uma expressão coesa e inidentificável. Assim, os CIAMs se tornaram espaço de construção da ideologia funciona- lista. Eles debatiam a necessidade da construção econômica e industrializada para atender a população que morava precariamente, elaborando, pela primeira vez, normativas, métodos e procedimentos para a racionalização da indústria da construção. A iniciativa da criação dos encontros partiu de uma mulher, Hélène de Mandrot, que aspirava ser a mecenas da arquitetura moderna. Em seu castelo em La Sarraz, na Suíça, aconteceu a primeira reunião, em 1928, que tinha como eixo de debates seis temas trazidos por Le Corbusier, quais sejam: � a técnica moderna e suas consequências; � estandarização; � economia; � urbanística; � educação da juventude; � arquitetura do Estado (COHEN, 2013, p. 197). Os seguintes CIAMs trataram da habitação mínima (1929 — Alemanha) e da racionalização do espaço (1930 — Bélgica), temas que se encadeiam e originam o tema do IV CIAM — a cidade funcional. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago10 O IV congresso foi dedicado à análise das condições de 33 cidades: Amsterdã, Atenas, Bruxelas, Baltimore, Bandung, Budapeste, Berlim, Bar- celona, Charleroi, Colónia, Dalat, Detroit, Dessau, Frankfurt, Genebra, Génova, La Hague, Los Angeles, Littoria, Londres, Madrid, Oslo, Paris, Praga, Roma, Roterdã, Estocolmo, Utrecht, Verona, Varsóvia, Zagreb e Zurique (COHEN, 2013). A Carta, síntese do encontro, é dividida em três parte. A primeira transcreve criticamente as análises realizadas nas 33 cidades. A segunda parte organiza a cidade moderna em cinco grandes pontos. Por fim, a terceira apresenta um texto conclusivo. Veja a seguir os cinco pontos da carta e seus principais conceitos (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL [IPHAN], 2015). Habitação � “A determinação dos setores habitacionais deve ser ditada por razões de higiene [...].” � “Densidades razoáveis devem ser impostas, de acordo com as formas de habitação postas pela própria natureza do terreno [...].” � “Um número mínimo de horas de insolação deve ser fixado para cada moradia [...].” � “O alinhamento das habitações ao longo das vias de comunicação deve ser proibido [...].” � “Os modernos recursos técnicos devem ser levados em conta para erguer construções elevadas [...].” � “As construções elevadas erguidas a uma grande distância uma das outras devem liberar o solo para amplas superfícies verdes [...]” (IPHAN, 2015, p. 12–14). Lazer � “Doravante todo bairro residencial deve compreender a superfície verde necessária à organização racional dos jogos e esportes das crianças, dos adolescentes e dos adultos [...].” � “Os quarteirões insalubres devem ser demolidos e substituídos por superfícies verdes: os bairros limítrofes serão saneados [...].” 11A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago � “As novas superfícies verdes devem servir a objetivos claramente defi- nidos: acolher jardins de infância, escolas, centros juvenis ou todas as construções de uso comunitário ligadas intimamente à habitação [...].” � “As horas livres semanais devem ocorrer em locais adequadamente preparados: parques, florestas, áreas de esporte, estádios, praias, etc... [...]” (IPHAN, 2015, p. 16–17). Trabalho � “As distâncias entre os locais de trabalho e os locais de habitação devem ser reduzidas ao mínimo [...].” � “Os setores industriais devem ser independentes dos setores habita- cionais e separados uns dos outros por uma zona de vegetação [...].” � “As zonas industriais devem ser contíguas à estrada de ferro, ao canal e à rodovia [...].” � “O artesanato, intimamente ligado à vida urbana, da qual procede diretamente, deve poder ocupar locais claramente designados no interior da cidade [...].”� “Ao centro de negócios, consagrado à administração privada ou pública, deve ser garantida boa comunicação, tanto com os bairros habitacionais quanto com as indústrias ou os artesanatos instalados na cidade ou em suas proximidades [...]” (IPHAN, 2015, p. 20–21). Circulação � “Devem ser feitas análises úteis baseadas em estatísticas rigorosas do conjunto da circulação na cidade e sua região, trabalho que revelará os leitos de circulação e a qualidade de seus tráfegos [...].” � “As vias de circulação devem ser classificadas conforme sua natureza, e construídas em função dos veículos e de suas velocidades [...].” � “Os cruzamentos de tráfego intenso serão organizados em circulação contínua por meio de mudanças de níveis [...].” � “O pedestre deve poder seguir por trajetos diversos do automóvel [...].” � “As ruas devem ser diferenciadas de acordo com suas destinações: ruas residenciais, ruas de passeio, ruas de trânsito, vias principais [...].” � “As zonas de vegetação devem isolar, em princípio, os leitos de grande circulação [...]” (IPHAN, 2015, p. 24–25). A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago12 Patrimônios históricos das cidades � “Os valores arquitetônicos devem ser salvaguardados (edifícios isolados ou conjuntos urbanos) [...].” � “Eles serão salvaguardados se constituírem expressão de uma cultura anterior e se corresponderem a um interesse geral [...].” � “Se sua conservação não acarreta o sacrifício de populações mantidas em condições insalubres [...].” � “Se for possível remediar sua presença prejudicial com medidas radicais: por exemplo, o desvio de elementos vitais de circulação ou mesmo o deslocamento de centros considerados até então imutáveis [...].” � “A destruição de cortiços ao redor de monumentos históricos dará a ocasião para criar superfícies verdes [...].” � “O emprego de estilos do passado, sob pretextos estéticos, nas constru- ções novas erigidas nas zonas históricas, tem consequências nefastas. A manutenção de tais usos ou a introdução de tais iniciativas não serão toleradas de forma alguma [...]” (IPHAN, 2015, p. 25–27). Le Corbusier foi um arquiteto atuante, no século XX, não só no campo teórico-aca- dêmico, mas também como profissional da arquitetura, deixando inúmeras obras de arquitetura e urbanismo que, até os dias de hoje, são paradigmáticas: suscitam muitas críticas ao mesmo tempo que ainda servem de modelo para as cidades. Os cincos pontos da Carta de Atenas de 1933 e o modelo teórico da Ville Radieuse podem ser considerados síntese do seu pensamento. 13A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago Austríaca, arquiteta e ativista da resistência contra o na- zismo, Margarete “Grete” Schütte-Lihotzky (1897–2000) foi uma arquiteta atuante no movimento moderno. Um dos seus trabalhos foi o projeto Nova Frankfurt juntamente com o arquiteto e urbanista Ernst May. Ela é conhecida pelos valores humanitários que empregava nas decisões de projeto. https://qrgo.page.link/TvQ6h Contribuições da cidade de Chicago ao modernismo A cidade de Chicago começa a despontar no cenário internacional pelo seu parque industrial e seus avanços na própria planta e maquinários industriais. Ela é também lugar dos primeiros arranha-céus de estrutura de aço e planta livre, saídos das pranchetas dos arquitetos Adler e Sullivan. A cidade também é conhecida por sua universidade, que desenvolve estudos na área da sociologia urbana, desenvolvendo o conceito de ecologia humana. Concomitantemente ao desenvolvimento das ideias racionalistas, havia outras correntes com propostas que partiam da mesma análise dos problemas, mas propunham soluções na direção inversa. Essas são correntes de várias expressões, que aconteceram ao longo do século XX e que também aportam ao contemporâneo com validades. As correntes organicistas se espelhavam nas experiências positivas do passado, ligadas à vida no campo e à relação com a natureza, para resolver os problemas da metrópole. É de 1903 a criação da primeira Cidade Jardim de Letchworth, Inglaterra, promovida por Ebezener Howard e projetada pelo arquiteto Raymond Unwin, que propunha uma cidade-subúrbio. Pode-se dizer que os racionalistas encontram muito ponto de apoio em uma Europa devastada pela guerra e a América Latina e África em desen- volvimento. O estilo se espalhou com grande facilidade por esses lugares. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago14 Nos Estados Unidos, o International Style também produz as cidades ameri- canas de rodovias e arranha-céus, porém, tem como um dos protagonistas o arquiteto Frank Lloyd Wright, um defensor do organicismo, que desenvolve a Broadacre City como modelo ecológico para construções da cidade. Escola de sociologia urbana de Chicago A escola de sociologia de Chicago se distinguia das pesquisas tradicionais da sociologia, que se ocupam da difusão e extensão de sistemas teóricos complexos, porque se ocupava de problemas práticos e procurava resultados concretos. Esse desvencilho das tradicionais escolas de pensadores europeus permitia uma liberdade de experimentação e de exploração de campos de pesquisa sociológica. Não demorou muito para os pesquisadores associarem organização social às cidades, fundando, assim, o campo da sociologia urbana, que contribuiu sobremaneira nos estudos urbanos. Se a empiria era uma orientação para a pesquisa em Chicago, como atesta COULON (1995), cabe ressaltar que ela não se refugiava na esfera quantitativa. Para BECKER (1996), uma das características centrais da Escola de Chicago era não ser puramente qualitativa ou quantitativa. Ao contrário, uma das mais importantes contribuições dos sociólogos de Chicago foi o desenvolvimento de métodos originais de investigação, que iam desde a utilização de documentos pessoais, passando por trabalhos sistemáticos de campo e chegando à explora- ção de diferentes fontes documentais (TEODÓSIO, 2003, documento on-line). Teodósio (2003) ainda afirma que, apesar das influências da sociologia europeia, em especial as dos sociológicos alemães, como Simmel, a escola de sociologia de Chicago se constituiu por pensamento autenticamente americano. Robert Ezra Park foi um dos principais pensadores e fundadores da es- cola que estuda a cidade a partir da ideia de ecologia humana, que leva em consideração os indivíduos inseridos no seu meio social e busca compreender qual a relação do espaço físico com as relações sociais e com o modo e estilo de vida dos indivíduos. A Escola de Chicago desenvolve esse conceito de ecologia humana, que entende o ser humano como parte de um sistema ambiental maior. Essa teoria influencia não só os projetos de Frank Lloyd Wright, mas gerações futuras de arquitetos e ambientalistas. 15A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago Frank Lloyd Wright e Broadacre City Frank Lloyd Wright é discípulo de Sullivan e trabalha em Chicago no momento do desenvolvimento científico e industrial da cidade. Assim, o contexto norte- -americano fez com que, três anos depois da Carta de Atenas, em 1935, Frank Lloyd Wright apresentasse, em Nova Iorque, a maquete do plano para uma cidade ideal: Broadacre City. A cidade modelo de Wright, ao contrário do ideário moderno, tem a es- trutura urbana organizada a partir da paisagem natural. É uma resposta aos problemas urbanos de sua época, mas também uma crítica à cidade racionalista, que alienava o ser humano da natureza, com espaços artificiais, reduzindo os aspectos simbólicos da vida. Broadacre City se baseia no conceito da arqui- tetura orgânica, que busca uma relação idílica entre os avanços tecnológicos contemporâneos e os recursos naturais (DELLA MANNA, 2008). Wright se opunha a duas ideias racionalistas: a metrópole, ou seja, a or- ganização territorial a partir de grandes cidades industriais de arranha-céus; e a ideia de que a cidade deveria funcionar com a eficiência de uma fábrica. Broadacre City propõe uma interaçãofísica entre o campo e a cidade, em que se aproveitaria os benefícios de ambos. Certamente, por trás desta tese da desorganização social há uma noção ro- mântica do passado que vê a sociedade como que constituída por pequenas comunidades “orgânicas”, que teriam sido destruídas pela vida moderna e pela industrialização, e substituídas por uma sociedade amorfa, impessoal, atomística, incapaz de dar ao homem as gratificações básicas de que ele necessitaria e de motivar as lealdades conhecidas das antigas comunidades (DELLA MANNA, 2008, documento on-line). A Broadacre City, inspirada nas pequenas cidades rurais, propõe baixas densidades de habitantes por hectare, pequena escala dos elementos utilizados, unidades industriais e agrícolas descentralizadas, lazer ligado a atividades do campo. É um cenário rural para atividades urbanas que estão dispersas e isoladas em unidades pequenas, conectadas uma às outras por extensas redes rodoviárias e aéreas. As habitações são unifamiliares, com pelo menos quatro acres de terreno cada. O local de trabalho pode ser diretamente ligado à moradia, agrupados em pequenos centros, ou em áreas produtivas que ficam a poucos minutos da casa. Assim, o modelo de Wright é um sistema acêntrico, composto por elementos inseridos em uma rede de circulação e ligados por ela a uma totalidade de espaço (GREY, 2018). Observe, na Figura 2, a maquete de Broadacre City. A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago16 Figura 2. Maquete de Broadacre City, 1935. Fonte: Weidemann (2018, documento on-line). A Broadacre City se guia por pensamento ecológico de desenvolvimento sustentável e equilíbrio ambiental, dado por meio de pequenas comunidades de economia equilibrada, para que possam utilizar integralmente as matérias- -primas e as fontes de energia locais. No entendimento de Wright, uma pequena comunidade majoritariamente autossuficiente, que dependesse do meio natural em seu entorno, criaria uma nova consciência em relação à natureza. Wright defendia que autossuficiência comunitária seria mais eficiente do que a divisão do trabalho existente na sociedade industrial. Por certo, não seria o fim da indústria, mas a geração de pequenas fábricas familiares, concebidas a partir das raízes ecológicas, o que resultaria no usufruto mais cuidadoso da natureza. Todos esses conceitos parecem bem recentes e estão na pauta dos debates sobre a cidade contemporânea, mas datam de quase cem anos atrás, quando os intelectuais da escola de sociologia de Chicago começam a relacionar os campos das ciências e desenvolver pesquisas de campo. 17A metrópole moderna de Le Corbusier e a Escola de Chicago ARRAIS, T. A. Nas trilhas de Paris, David Harvey e a capital da modernidade. Confins, n. 27, 2016. Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/10942#text. Acesso em: 24 set. 2019. COHEN, J. L. O futuro da arquitetura desde 1889: uma história mundial. São Paulo: Cosac & Naify, 2013. DELLA MANNA, E. 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