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Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870 D559d 2019 Diehl, Alessandra Dependência química e sexualidade: um guia para profissionais que atuam em serviços de tratamento / Alessandra Diehl. - 1. ed. – Curitiba: Appris, 2019. 267 p. ; 27 cm (Saúde e humanidade) Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-3544-1 1. Educação sexual. 2. Dependência quimica. I. Título. II. Série. CDD – 362.293 Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT. Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570 http://www.editoraappris.com.br/ http://www.editoraappris.com.br/ Editora Appris Ltda. 1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010. FICHA TÉCNICA EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP Marilda Aparecida Behrens - PUCPR EDITORAÇÃO Lucas Andrade ASSESSORIA EDITORIAL Alana Cabral DIAGRAMAÇÃO Suzana vd Tempel CAPA Lucielli Trevizan REVISÃO Bruna Fernanda Martins GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira Débora Nazário Karla Pipolo Olegário LIVRARIAS E EVENTOS Milene Salles | Estevão Misael CONVERSÃO PARA E-PUB Carlos Eduardo H. Pereira COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES DIREÇÃO CIENTIFICA Dra. Doutora Márcia Gonçalves - UNITAU CONSULTORES Lilian Dias Bernardo – IFRJ Taiuani Marquine Raymundo - UFPR Janaína Doria Líbano Soares - IFRJ Rubens Reimao – USP Edson Marques – Unioeste Maria Cristina Marcucci Ribeiro – UNIAN-SP Maria Helena Zamora – PUC-Rio Aidecivaldo Fernandes de Jesus – FEPI Zaida Aurora Geraldes – FAMERP AGRADECIMENTOS Primeiramente, eu gostaria de agradecer à Editora Appris, pela oportunidade de escrever uma obra sobre um tema que para mim é muito valioso, rico e interessante, bem como pela abertura a inovações criativas de temas complexos e tabus, mas ao mesmo tempo extremamente necessários. Agradecer também a toda sua equipe de editoração, pela dedicação e profissionalismo na condução desta obra. Igualmente agradeço aos nossos colaboradores, porque sem eles/elas/elxs nada disto poderia ser possível. Pessoas amigas que dedicaram o seu precioso tempo e aceitaram prontamente minha solicitação e meu convite para escrever capítulos com muito preciosismo e empenho. Agradeço a todos os meus mestres e às minhas equipes de trabalho por onde estive, a contar pelo Departamento de Saúde Mental (DSM) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL); Hospital Espírita de Pelotas (HEP); à Clínica Olivé Leite (COL), em Pelotas; à Unidade Comunitária em Álcool e outras Drogas, do Jardim Ângela (UCAD); à enfermaria de psiquiatria do Hospital M’ Boi Mirim; à enfermaria de dependência química de São Bernardo do Campo; à enfermaria Ônix do Hospital João Evangelista; ao Mirante e ao Espaço Girassol do Instituto de Psiquiatria Américo Bairral (IPB); ao Centro de Estudos Psiquiátricos Américo Bairral (CEBAP), uma das federadas paulistas da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), da qual tive a honra de ser presidente em duas gestões; às unidades básicas de saúde (UBS) Jardim Maringá, Patriarca e Jardim Itapema; aos colegas e professores da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto (UP), em Portugal; à Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (ABEAD) e minha gestão do “Nós da ABEAD”, da qual sou atual vice- presidente (2017-2019); ao Geneve Foundation for Medical Education and Research (GFMER), em Genebra, na Suíça; ao Centro Universitário Salesiano (UNISAL); ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); ao Centro Brasileiro de Pós-Graduações (CENBRAP); à Vida Mental; ao CAPS-AD Sé; ao Instituto Paulista de Sexualidade (Inpasex); à Unidade de Aperfeiçoamento Psiquiátrico e Psicológico (UPPSI), pelo apoio, pelo incentivo, pela parceria e por eu ter tido a grande oportunidade de viver uma história muito bonita junto a todos os colegas que estiveram dedicando seus afetos para cuidar dos dependentes químicos e seus familiares, da saúde mental e de questões sexuais desses serviços. Essa não foi uma história de paixão, e sim de amor, pois histórias de paixão passam, são fugazes e efêmeras, enquanto histórias de amor perduram. Essa nossa história, portanto, segue viva. Ao meu colega de residência, o psiquiatra surfista, Dr. Eduardo Mylius Pimentel, com o qual tenho uma longa e profícua amizade, e além de ser generoso, líder, “cool”, “irado” e muito querido é também um dos meus amigos e colegas mais “gatos”! Gratidão também à Dr.ª Ângela Kretschmann, pelo nosso encontro em 2018. Com sua forma mansa, delicada, mas extremamente criteriosa e enérgica, foi capaz de ser o apoio e um alicerce amoroso muito importante para o meu crescimento pessoal, profissional e espiritual nesta vida. Em especial, à Dr.ª Sandra Cristina Pillon, pessoa humilde, inteligente, dedicada, acolhedora e humana. Sou grata pela parceria que entrou na minha vida para produzirmos muitos e muitos trabalhos juntas. Às vezes, perder o equilíbrio por amor faz parte de viver a vida em equilíbrio. (Personagem Ketut, em filme Comer, Rezar e Amar. Autora Elizabeth Gilbert, EUA, 2010) https://www.google.com/search?rlz=1C1FERN_pt-BRBR794BR794&q=comer,+rezar,+amar+elizabeth+gilbert&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LSz9U3MM9OyU7LUuIEsdPzLHIttISzk6300zJzcsGEVXFJflHlIlaV5Pzc1CIdhaLUqkQglZibWKSQmpNZlZiUWpKhkJ6Zk5RaVAIAsdAwY1UAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwicl_Gr8J_gAhWTJrkGHckpAFEQmxMoATAjegQIBxAP APRESENTAÇÃO Nestes vinte e poucos anos que venho trabalhando com pessoas com problemas pelo uso de substâncias e seus familiares, sempre notei uma lacuna imensa na abordagem de questões relativas à dimensão sexual desses pacientes nos contextos de tratamento em que já trabalhei. À medida que comecei a estudar mais o universo da dependência química, mais eu sentia a necessidade de aprofundar-me no universo da sexualidade humana, pois já percebia que existia uma associação estreita entre esses dois mundos. No entanto, quando quis me apropriar desses conhecimentos, tive bastantes dificuldades de encontrar material compilado ou até mesmo de obter experiências de outras pessoas que trabalhavam com a dependência química em estruturação de programas e ações voltadas às questões relativas à dimensão sexual. Também percebi barreiras em fazer com que essas duas áreas do conhecimento começassem a dialogar de forma assertiva e distante de ideologias, “achismos” ou dogmas pré-estabelecidos pelas esferas de cuidados vigentes. E por acreditar que a sexualidade não pode mais seguir sendo invisível, periférica ou delegada a um segundo plano nos inúmeros locais disponíveis para o tratamento de pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias é que vim desenvolvendo trabalhos e estudos nessa interface do conhecimento. É urgente a necessidade de aumentar a compreensão dos profissionais da saúde, em especial daqueles que lidam diretamente com comportamentos adictivos, sobre a sexualidade, a saúde sexual, a diversidade sexual, os comportamentos sexuais de risco e a disfunção sexual entre usuários de álcool e outras drogas. Além disso, é fundamental compreender a necessidade de se avaliar o histórico de trauma sexual, abuso sexual, aborto, estupro e a necessidade de incorporar a avaliação de fatores de risco e do estímulo a práticas sexuais mais seguras na rotina dos tratamentos atualmente disponíveis para a dependência química. Também é igualmenteurgente que a abordagem seja respeitosa, inclusiva, ética, numa atmosfera de não julgamento e com mais acolhimento para que as pessoas possam sentir-se abertas a falar sobre sua sexualidade, seus vínculos, seus problemas sexuais, seus afetos e desafetos. Embora a mudança de comportamento individual seja fundamental para melhorar a saúde sexual, também são necessários esforços para lidar com os determinantes mais amplos de comportamento sexual, particularmente aqueles que se relacionam com o contexto social. Intervenções comportamentais abrangentes são necessárias e devem considerar o contexto social na estruturação de seus programas em nível individual, assim como tentar modificar as normas sociais que apoiam a manutenção de mudança de comportamento, e trabalhar as competências de forma assertiva e os fatores que contribuem para determinado comportamento sexual de risco, por exemplo. Incluir a dimensão sexual nos tratamentos de usuários de substâncias é compreender que estamos respeitando tudo aquilo que nos torna mais humanos e nos realiza enquanto pessoas no sentido mais profundo dessa compreensão. Como bem escreveu o Dr. Ronaldo Zacharias: [...] A ética do cuidado se caracteriza por um estilo de presença que põe no centro a pessoa mais frágil e vulnerável. A prevenção e o tratamento da dependência implicam o combate a toda forma de desigualdade, discriminação, indiferença, exclusão e injustiça (Zacharias, 2019, p. 45). Nesse contexto, os leitores encontrarão algumas das interfaces da associação entre dependência química e sexualidade humana. Convidei mais alguns colegas para ampliar e compor aquilo que já havia escrito, a fim de enrriquecer ainda mais esta obra, dividindo-a em três eixos principais, a saber: “Sexualidade, comportamentos e práticas sexuais associadas ao uso de substâncias”, “Sexualidade e dependência química em populações específicas” e, finalmente, “Intervenções e recuperação”. Assim espero, sobretudo, que sobre muito espaço para ser preenchido; desejo que tenhamos dúvidas e algumas poucas certezas, porque o importante é estarmos sempre em movimento para que possamos ampliar o olhar para o tema e estabelecer nos nossos cotidianos de trabalho práticas que consigam abarcar a melhoria desse cuidado. Alessandra Diehl PREFÁCIO I A sexualidade é uma faceta inerente ao ser humano. Considerada uma dimensão central da vida do indivíduo, deve ser entendida em sua multidimensionalidade frente à complexidade e à importância de sua presença em todas as dimensões do desenvolvimento humano. Trata-se, portanto, de um tema de interesse multidisciplinar, cuja abordagem é influenciada pelas múltiplas interações existentes entre fatores biológicos, psicológicos, sociais, históricos, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, religiosos e espirituais. Tratar da sexualidade não é uma tarefa fácil, pois a abrangência dessa esfera da vida humana e toda a estratificação de sentidos que historicamente se sedimentaram em torno dela terminaram produzindo certo desconhecimento do ser humano com relação à sua própria sexualidade. Frequentemente os aspectos relacionados às vivências sexuais se veem submersos em um espectro de valores morais, demarcados e demarcadores de condutas, usos e hábitos sociais que remetem a mais de um sujeito. Com o recrudescimento atual de crenças obscurantistas dentro de um preocupante cenário neoconservador, o qual evidencia retrocessos em relação às políticas públicas arduamente conquistadas nas últimas décadas, é urgente e necessário fomentar uma reflexão sobre a sexualidade humana pautada em evidências científicas e focada na atuação dos profissionais de saúde. Por essas razões, as questões relacionadas à sexualidade têm sido alvo de acalorados debates e inúmeros questionamentos nos dias atuais. Algo semelhante ocorre com a abordagem de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas e, eventualmente, sofrem com a dependência química. Uma das crenças mais comumente observadas em profissionais de saúde é a de que dependentes químicos não são merecedores de cuidados. O estigma e a discriminação estão entre os principais obstáculos para a prevenção, o tratamento e o cuidado em relação à pessoa com transtornos relacionados ao uso de substâncias. A dupla discriminação que existe em torno da relação entre sexualidade e uso de substâncias (outro assunto polêmico) tem sido tema propulsor de inúmeras controvérsias que atualmente agitam a sociedade, requerendo o posicionamento urgente da Academia e do conhecimento científico. Assim, esta obra traz um apelo aos profissionais para reexaminarem suas percepções, atitudes e comportamentos, com vistas a auxiliar na construção de uma visão de mundo mais inclusiva e pluralista. Também contribui para estimular a estruturação da identidade dos usuários de substâncias, tornando- os mais fortalecidos. Este livro estimula a reflexão sobre como prevenir o aparecimento e desenvolvimento de problemas relativos à sexualidade humana e, sobretudo, a compreender os papéis desempenhados por vários atores nessa interface (sexualidade e drogas) que merecem acesso a recursos diversos em suas comunidades. Partindo das evidências científicas disponíveis, esta obra discute amplamente alguns aspectos que orbitam em torno dessa temática instigante, contribuindo para desmistificar a sexualidade e combater preconceitos e estigmas relacionados a esse campo, com foco na saúde e no bem-estar coletivo. O arcabouço que sustenta este livro está dividido em três partes. Na primeira, são descritas as bases teóricas, seguidas por dados históricos e resultados de estudos epidemiológicos relacionados aos temas investigados. Essas contribuições delineiam e fundamentam os enlaces e entrelaçamentos entre a sexualidade, comportamentos e práticas sexuais associadas ao uso de substâncias que influenciam comportamentos sexuais e de risco, disfunção sexual, dependência de sexo e envolvimento em situações de violência, infração e crime. A segunda parte está dedicada a temas que associam sexualidade e dependência química em populações específicas, considerando suas peculiaridades, como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Intersexuais, Queer, Assexuais, plus (LGBTTQIA+), adolescentes, mulheres, idosos, homens, profissionais do sexo e presidiários ou pessoas em situação de encarceramento. A terceira parte segue detalhando uma combinação de ações e propostas de intervenções empregadas no processo de recuperação e reabilitação psicossocial. Assim, os capítulos abordam elementos fundamentais para realizar uma abordagem humanizada e estruturar uma intervenção em saúde sexual para dependentes químicos em tratamento, com ênfase na prática clínica, mostrando as contribuições das teorias complementares, da espiritualidade e da abordagem motivacional, salientando o valor da perspectiva do modelo de redução de danos no processo de recuperação do usuário de substâncais. Assim, o presente livro envolve uma investigação com interface entre uso de drogas e comportamento sexual e de risco em adultos de ambos os sexos e vários gêneros, oferecendo subsídios para a sistematização do cuidado a essa população altamente vulnerável. A contribuição oferecida é de extrema atualidade, tendo em vista a premente necessidade de ampliar os investimentos em capacitação para profissionais de saúde da rede de serviços, sensibilizando-os para identificar o entrelaçamento entre as questões da sexualidade e a prevenção e o tratamento do uso de substâncias. Também pelo seu ineditismo e criatividade tanto na área da dependência química quanto da sexualidade, uma vez que se desconhece outra obra que aborde tal temática em tamanha profundidade. Dessa forma, espera-se que os leitores possam aproveitar o material para aperfeiçoar conhecimentos, expandir suas práticas, mudar atitudes e colocar em prática em seus serviços de atenção os aprendizados aqui adquiridos. Boa leitura! Prof.ª Dr.ª Sandra Cristina Pillon Enfermeira. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federalde São Paulo (UNIFESP). Professora titular. Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem da Organização Mundial de Saúde (OMS) PREFÁCIO II Tive (Neliana Figlie) o privilégio de coorientar Alessandra Diehl em sua tese de doutorado “Disfunção sexual, aborto, diversidade sexual, comportamento sexual de risco e crime em uma amostra de usuários de drogas não injetáveis”, na qual a inquieta Dr.ª Alessandra fez um aprofundado estudo sobre dependência química e sexualidade humana de modo a preencher uma lacuna existente no cenário nacional no que tange a referida temática e suas implicações no tratamento da saúde mental. De um lado, um transtorno psiquiátrico e, do outro, uma condição humana, ambos os conceitos carregados de significados, recheados de ideias pré-concebidas, rótulos, que dificultam a visão tanto do Transtorno por Uso de Substâncias (TUS) quanto da sexualidade, de forma objetiva e realista, por parte tanto da população geral quanto dos profissionais da área da saúde e afins. O profissional como uma peça-chave no desfecho clínico de serviços de saúde tem, no presente guia, uma obra com diretrizes importantes para que todos aqueles envolvidos no tratamento do TUS possam responder de forma efetiva às necessidades dessas pessoas, com ética, aceitação, respeito e respaldo científico, de modo a motivá-los e engajá-los nos tratamentos oferecidos, dada a alta prevalência de consequências relacionadas a comportamentos sexuais e aspectos da sexualidade associada ao consumo de substâncias. O fornecimento de informações baseadas em evidências tem, nesta obra, o objetivo de ampliar a flexibilidade cognitiva dos profissionais que acolhem pacientes que com TUS têm desdobramentos na área da sexualidade, muitas vezes comprometendo a saúde mental e física de um modo geral. Afinal, faz-se necessário preparo e capacitação, além de uma visão realista e humanista dos fenômenos, destituída de julgamentos e preconceitos, para abordar dois comportamentos que geram um imenso prazer, mas que ao mesmo tempo podem colocar em risco o bem-estar e a integridade física e mental. Daí a necessidade de estarmos preparados e capacitados, reconhecendo fatores de risco e de proteção associados de modo a oferecer uma resposta efetiva para a população acometida. Neliana Buzi Figlie Psicóloga. Especialista em Dependência Química. Mestre em Saúde Mental. Doutora em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Associada ao Motivational Interviewing Network of Trainers (MINT). Formação em Entrevista Motivacional pela University of New México – Center on Alcoholism, Substance Abuse and Addictions (CASAA). Coordenadora e docente na Unidade de Aperfeiçoamento Profissional em Psicologia e Psiquiatria (UPPSI) Neide Zanelatto Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Coordenadora e docente da Unidade de Aperfeiçoamento Profissional em Psicologia e Psiquiatria (UPPSI) SUMÁRIO PARTE 1 – Sexualidade, comportamentos e práticas sexuais associadas ao uso de substâncias Saúde sexual, uso de drogas e saúde pública Alessandra Diehl Estigma e discriminação. Ética e direitos humanos Alessandra Diehl Fatos e contextos que fundamentam a interface do uso de substâncias com a sexualidade Alessandra Diehl Drogas de uso e sua relação com a sexualidade Alessandra Diehl Comportamentos sexuais de risco entre usuários de drogas Alessandra Diehl Disfunção sexual em dependentes de substâncias Alessandra Diehl Dependência de sexo, parafilias e dependência de drogas Alessandra Diehl Crime, violência e comportamentos sexuais em usuários de substâncias Alessandra Diehl PARTE 2 – Sexualidade e dependência química em populações especí�cas LGBTTQIA+ Alessandra Diehl Adolescentes Ana Carolina Schmidt de Oliveira, Hewdy Lobo Ribeiro Mulheres Alessandra Diehl Envelhecimento, sexualidade e uso de substâncias Manoel Antônio dos Santos, Carolina de Souza, Wanderlei Abadio de Oliveira, Eduardo Name Risk, Carolina Leonidas, Adriana Inocenti Miasso, Kelly Graziani Giacchero Vedana, Jacqueline de Souza, Sandra Cristina Pillon, Erika Arantes de Oliveira-Cardoso Homens Alessandra Diehl, Sandra Cristina Pillon, Manoel Antonio dos Santos Profissionais do sexo Alessandra Diehl ,Rogério Bosso Presidiários ou pessoas em situação de encarceramento Alessandra Diehl PARTE 3 – Intervenções e recuperação Saúde sexual e reprodutiva de usuários de substâncias Alessandra Diehl Como eu abordo a sexualidade de usuários de substâncias na perspectiva da terapia cognitiva sexual? Aline Sardinha Sexualidade e recuperação Luiz Guilherme Pinto Sexualidade e espiritualidade Leonardo Afonso dos Santos Relacionamentos abusivos e a dinâmica da dependência química Raquel Constantino Nogueira, Raphael Mestres, Sabrina Presman Redução de danos na perspectiva da saúde sexual e do uso de substâncias Maria Carolina Pedalino Pinheiro, Ísis Marafanti, Alessandra Diehl Estruturação de uma intervenção em saúde sexual para dependentes químicos em tratamento Alessandra Diehl Referências Sobre os Colaboradores Parte 1 Sexualidade, comportamentos e praticas sexuais associadas ao uso de substancias CAPÍTULO 1 SAÚDE SEXUAL, USO DE DROGAS E SAÚDE PÚBLICA Alessandra Diehl Saúde sexual é um direito fundamental e extremamente importante para os indivíduos, casais e famílias, e ao mesmo tempo para o desenvolvimento social e econômico de comunidades e de países (WHO, 2010; Temmerman et al., 2014). Em 2006, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ampliou o conceito de saúde apresentado em 1948, ao declarar que a saúde sexual não é apenas “o completo bem-estar emocional, físico e mental dos indivíduos e ausência de doenças ou enfermidades”, mas também engloba o entendimento de elementos como identidade sexual e de gênero, expressão sexual, relacionamento e prazer (WHO, 2006, 2010). A OMS também incluiu condições ou consequências negativas, tais como: infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), vírus da imunodeficiência humana (HIV), infecções do trato reprodutivo, infertilidade, gestação não planejada, aborto, disfunções sexuais, violência sexual e práticas nocivas ou ditas nefastas, tais como a mutilação genital feminina (MGF), praticada em alguns países da África e Oriente Médio por razões não médicas (Banks et al., 2006; Victora et al., 2011; Temmerman et al., 2014; Pistani, Ceccato, 2014). A saúde sexual deve abranger os direitos de todas as pessoas a terem o conhecimento e as oportunidades para alcançar uma vida sexual segura e prazerosa. Entretanto as habilidades de homens e mulheres de atingirem a saúde sexual e o bem-estar dependem do seu acesso à compreensão completa e adequada de informações sobre sexualidade e do conhecimento sobre os riscos que podem enfrentar suas vulnerabilidades e as consequências adversas da atividade sexual (WHO, 2010). Além disso, as pessoas devem ter acesso tanto a cuidados em saúde sexual de boa qualidade e a um ambiente que promova a saúde sexual de forma holística e afirmativa como também a serviços de saúde sexual que incluam programas de contracepção, atenção a apectos da saúde mental relacionados a condições sexuais, tratamento de ISTs e câncer cervical, aconselhamento quanto à violência contra mulheres e meninas e acolhimento das necessidades de saúde sexual e reprodutiva de adolescentes. O acesso universal à saúde sexual e reprodutiva é essencial não só para alcançar o desenvolvimento sustentável, mas também para garantir que esse paradigma atenda às necessidades e aspirações das pessoas ao redor do mundo e as levem à realização de sua saúde e de seus direitos humanos fundamentais (WHO,2010; Temmerman et al., 2014). Entre os principais elementos conceituais de saúde sexual estão aqueles que valorizama segurança e a liberdade de opinião e expressão, sem discriminação, coerção, tortura, crueldade e violência, respeitando os direitos humanos e o direito à privacidade. A saúde sexual é relevante ao longo da vida, não somente para aqueles em idade reprodutiva, mas também para jovens e idosos. Além disso, outro elemento importante é o fato de a saúde sexual poder ser expressada de diversas formas, sendo criticamente influenciada por normas de gênero, papéis de gênero, expectativas e dinâmicas de poder, além de que ela deve ser compreendida dentro de contextos sociais, culturais, econômicos e políticos específicos (WHO, 2010). Saúde sexual não pode ser entendida e definida sem uma ampla consideração do que vem a ser de fato a sexualidade, a qual assinala importantes comportamentos e desfechos relacionados à saúde sexual: [...] um aspecto central do ser humano através da vida que engloba sexo, gênero, identidade e papéis, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. Sexualidade é experimentada e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas estas dimensões, nem todas elas são sempre experienciadas e expressadas. Sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, históricos, religiosos e espirituais (WHO, 2006, p. 4). Segundo a Organização Mundial da Saúde, as principais preocupações com a saúde sexual são: 1. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à integridade corporal e à segurança sexual: Necessidade de comportamentos promotores de saúde para a identificação precoce de problemas sexuais (por exemplo, check-ups regulares e exames de saúde). Necessidade de abolir todas as formas de coerção sexual e violência sexual (incluindo estupro, abuso sexual e assédio). Necessidade de extinção de mutilações corporais (por exemplo, mutilação genital feminina). 2. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao erotismo Necessidade de conhecimento sobre o corpo, relacionada à resposta sexual e ao prazer. Necessidade de reconhecimento do valor do prazer sexual desfrutado ao longo da vida de maneiras seguras e responsáveis dentro de uma estrutura de valores que respeite os direitos dos outros. Necessidade de promoção de relações sexuais praticadas de maneira segura e responsável. Necessidade de promover a prática e o prazer de relacionamentos consensuais, não exploradores, honestos e mutuamente agradáveis. 3. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao gênero Necessidade de igualdade de gênero. Necessidade de combate a todas as formas de discriminação baseadas no gênero. Necessidade de respeito e aceitação das diferenças de gênero. 4. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à orientação sexual Necessidade de livre orientação sexual sem discriminação. Necessidade de liberdade para expressar orientação sexual de maneira segura e responsável dentro de uma estrutura de valores respeitosa dos direitos dos outros. 5. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao apego emocional Necessidade de interropção de relações exploratórias, coercivas, violentas ou manipuladoras. Necessidade de informações sobre as escolhas/possibilidades de suas configurações familiares. Necessidade de desenvolver habilidades tais como: tomada de decisão, comunicação, assertividade e negociação, que melhorem os relacionamentos pessoais. Necessidade de expressão respeitosa e responsável de amor e separação/divórcio. 6. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à reprodução Necessidade de fazer escolhas informadas e responsáveis sobre a reprodução. Necessidade de tomar decisões e práticas responsáveis em relação ao comportamento reprodutivo, independentemente de idade, sexo, gênero e estado civil. Acesso aos cuidados de saúde reprodutiva. Acesso à maternidade segura. Prevenção e tratamento da infertilidade. Entende-se por comportamento sexual uma gama de possibilidades de expressão da sexualidade e de práticas sexuais. Trata-se de um conjunto complexo de atitudes e posicionamentos que vão muito além da atividade sexual, a qual, em geral, não se limita ao intercurso sexual (WHO, 2006). Saúde sexual e políticas públicas devem caminhar lado a lado, uma vez que muitas das questões envolvidas com a sexualidade podem ter profundas implicações para a saúde pública. Convencionalmente, a saúde pública tem focado nos efeitos adversos do comportamento sexual (Wellings et al., 2006). Uma delas, a questão do HIV/AIDS, por exemplo, teve um grande impacto na sociedade, uma vez que mudou conceitos, pesquisas e políticas em matéria de saúde e sexualidade, trazendo também grande ônus de morbidade para as sociedades ao redor do mundo (Wellings et al., 2006; Global Burden of Desease, 2015). Quando o primeiro caso sintomático de AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida) apareceu, no início dos anos 80, ter o vírus HIV foi considerado como uma “sentença de morte”. Apesar de ainda ser uma questão de saúde muito grave em nível mundial, mais de 30 anos depois do seu surgimento esse não é mais o caso em muitos países onde há políticas de saúde e acesso ao tratamento. Em todo o mundo, 61% das pessoas soropositivas para o HIV de países de baixa e média renda recebem terapia antirretroviral (UNAIDS, 2014). Segundo os dados da UNIAIDS, em 2017, cerca de 58% de todas as novas infecções pelo HIV entre adultos com mais de 15 anos de idade ocorreram em mulheres. A cada semana, 6.600 jovens mulheres de 15 a 24 anos adquiriram HIV no ano passado. O aumento da vulnerabilidade ao HIV tem sido associado à violência. Mais de uma em cada três mulheres em todo o mundo sofreram violência física ou sexual, muitas vezes nas mãos de seus parceiros íntimos. O panorama mais atual fornecido pela mesma organização revela que atualmente temos 36,9 milhões [31,1 milhões – 43,9 milhões] de pessoas em todo o mundo vivendo com HIV; 21,7 milhões [19,1 milhões – 22,6 milhões] de pessoas têm acesso ao tratamento;1,8 milhão [1,4 milhão – 2,4 milhões] de novas infecções por HIV e 940.000 [670.000–1,3 milhão] de pessoas morreram por causas relacionadas à AIDS em 2017 no mundo. As autoridades alertam que apesar das taxas de mortalidade devido ao HIV/AIDS terem caído em média 50% em países como o Brasil, por exemplo, e a sobrevida ter aumentado cinco vezes nacionalmente, ainda há muito para ser trabalhado. Muitos fatores contribuíram para a obtenção desses resultados, entre os quais o movimento da reforma sanitária, o contexto sociocultural de ativismo e de estratégias adotadas para a mobilização social, a solidariedade e o processo de democratização do país (Silva et al., 2014; Granjeiro et al., 2012). A epidemia de HIV/AIDS é um fenômeno global, dinâmico e instável, constituindo um mosaico de sub-epidemias regionais (Brito et al., 2001). Como consequência das profundas desigualdades que existem na sociedade brasileira, a propagação da infecção pelo HIV revelou uma epidemia de múltiplas dimensões, que vem sofrendo transformações epidemiológicas significativas. Inicialmente restrita aos grandes centros urbanos (São Paulo e Rio de Janeiro) e com predomínio do sexo masculino, a epidemia de HIV/AIDS está, atualmente, caracterizada pela heterossexualização, feminização, interiorização e pauperização (Silva et al., 2014). A evolução do perfil da AIDS no Brasil dá-se, acima de tudo, devido à difusão geográfica da doença a partir dos grandes centros urbanos em direção aos médios e pequenos municípios no interior do país, devido ao aumento da transmissão heterossexual e ao persistente crescimento dos casos entre dependentes de substâncias (Malta et al., 2010; Silva et al., 2014; UNAIDS, 2014). Segundo os dados do site do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNIADS, 2019), nota-se que: [...] A tuberculose continua a ser a principal causa de morte entre pessoas vivendo com HIV A tuberculose é responsável por cerca de uma a cada três mortespor causas relacionadas à AIDS. Em 2016, 10,4 milhões de pessoas desenvolveram tuberculose (TB), incluindo 1,2 milhão de pessoas vivendo com HIV. Pessoas vivendo com HIV sem sintomas de TB precisam de terapia preventiva contra TB, que contribui para diminuir o risco de desenvolver TB e reduz as taxas de mortalidade por TB/HIV em cerca de 40%. Estima-se que 49% das pessoas que vivem com HIV e tuberculose desconhecem sua coinfecção e, portanto, não estão recebendo cuidados (UNIADS, 2019, s/p). A associação do consumo de crack em pacientes portadores do vírus HIV e com TB representam um desafio triplo e requer medidas de saúde públicas triplicadas. Na verdade, entre os dependentes de substâncias, a questão é bastante relevante do ponto de vista de saúde pública, uma vez que o contexto epidemiológico e sociocultural do país revela níveis crescentes de consumo de muitas substâncias, associados a elevadas taxas de preconceito com relação a usuários de drogas e estigmas somados quando se analisam outras populações igualmente vulneráveis, como as profissionais do sexo femininas, moradores de rua e travestis, por exemplo (Venturi, 2009; Granjeiro et al., 2012; LENAD/INPAD, 2012). Aviltados e criminalizados por décadas, usuários de substâncias têm sido relegados às margens da sociedade, assediados, presos, torturados, com serviços de saúde e sociais muitas vezes negados e, em alguns países, até mesmo sumariamente executados. Em meio a crescentes apelos populares, da saúde pública e de esforços humanitários, os Estados-Membros das Organizações das Nações Unidas (ONU) chamaram a sociedade/governantes para tomarem medidas eficazes de saúde pública a fim de melhorarem os resultados de saúde das pessoas que usam drogas, incluindo programas que reduzem o impacto dos danos associados ao uso de substâncias (UNIADS, 2019). O aumento de vulnerabilidades predispõe dependentes de substâncias a diversos desfechos negativos com relação ao comportamento sexual, fazendo com que a saúde sexual dessa população seja de interesse da saúde pública (Harvey, 2009). Esses danos vão além de sua redução para a busca do resgate de vidas e fomentos para que o processo atinja a abstinência e, posteriormente, a recuperação. Em fevereiro de 2019, a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde (MS) lançou uma nota técnica com esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) e nas diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (PNAD). As mudanças na PNAD constituem a chamada “Nova Política sobre Drogas no Brasil”. Uma das primeiras e importantes mudanças nessa nova política é a redefinição e inclusão de serviços e dispositivos de saúde que passam a integrar a chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que vão desde a prevenção primária às intervenções complexas em unidades de internação e pós tratamento, com reinserção social, incluindo a presença de comunidades terapêuticas. Em razão da imensa diversidade de questões envolvendo a dependência química, o tratamento exige múltiplas abordagens contemplando diferentes ambientes terapêuticos. Assim, devem estar disponíveis as mais variadas modalidades de tratamento em um processo continuum de cuidados, mediante as necessidades de cada paciente naquele momento, respeitando-se uma trajetória de cuidados, segundo a evolução da gravidade da doença. Recursos que vão desde a prevenção primária até intervenções complexas em unidades de internação devem estar integrados, para uma política de assistência eficaz (PNAD, 2019). CAPÍTULO 2 ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO. ÉTICA E DIREITOS HUMANOS Alessandra Diehl Cerca de 275 milhões de pessoas em todo o mundo, o que equivale a 5,6% da população mundial, entre 15 e 64 anos de idade, fizeram uso drogas pelo menos uma vez durante o último ano pesquisado segundo dados do relatório da World Drug Report publicado em 2018. Cerca de 31 milhões de pessoas que usam drogas sofrem transtornos por uso de substâncias, o que significa que seu uso de drogas é prejudicial ao ponto de necessitarem de tratamento. Além disso, cerca de 450.000 pessoas morreram como resultado do uso de drogas em 2015. Dessas mortes, 167.750 estavam diretamente associadas a transtornos relacionados ao uso de drogas (principalmente overdoses). O restante foi indiretamente atribuível ao uso de drogas e incluiu mortes relacionadas ao HIV e hepatite C adquiridas por meio de práticas de uso de drogas injetáveis de forma não segura (World Drug Report, 2018). A variedade de substâncias e combinações disponíveis para os usuários nunca foi tão ampla. Assim como o estigma e a discriminação, os quais podem estar entre os principais obstáculos para a prevenção, tratamento e cuidados dirigidos a pessoas com transtornos relacionados ao uso de substâncias. Quando somamos ao uso de substâncias às questões sexuais, o estigma tende a ser muito maior. Esse preconceito faz com que os usuários de substâncias sejam vistos como “perigosos”, “violentos” e plenamente responsáveis pela sua condição. Os usuários de crack, por exemplo, podem ser rotulados como pessoas que não “encaixam-se no ideário da sociedade” por muitas vezes não possuírem vínculos familiares, emprego formal e moradia e acabam por serem ainda mais excluídos. Outras crenças são de que usuários de crack apresentam “comportamento indisciplinado” e, por isso, são discriminados, sujeitos “marginais e criminosos”, abolindo sua singularidade, potencializando situações de vulnerabilidade (Bard et al., 2016). Já pessoas portadoras de HIV, por exemplo, são vistas ainda nos dias atuais como pessoas “promíscuas”, “sujas” ou “contaminantes”, apesar de inúmeras campanhas e ações, tais como “Getting to Zero”, para zerar novas infecções pelo HIV, zerar mortes relacionadas à AIDS e zerar a discriminação (Krishan et al., 2018). O estigma não é um conceito novo. No entanto ele permanece altamente significativo no contexto do HIV/AIDS. Existe um amplo consenso de que o estigma relacionado ao HIV/AIDS compromete o bem-estar das pessoas que vivem com a doença. Estudo conduzido por Gilbert e Walker (2010) na África do Sul revela que o nível de estigma percebido é intenso e afeta várias dimensões da vida dos portadores de HIV/AIDS, particularmente na divulgação (revelação do seu status sorológico) e no tratamento. O estigma também permeia a experiência de pessoas HIV positivas em relação ao uso de terapia antirretroviral (TARV). A intensidade do estigma relacionado ao HIV/AIDS pode ser uma ameaça e comprometer o valor atribuído ao uso do medicamento, impactando, assim, na vida diária das pessoas que convivem com HIV/AIDS. Esse estudo sugere que, após três décadas da epidemia, a estigmatização continua a ser uma característica central da experiência do paciente com HIV/AIDS. Na clínica em que essa pesquisa foi conduzida, o HIV/AIDS foi considerado uma condição crônica cada vez mais gerenciável pelo acesso contínuo à TARV. No entanto essa abordagem não foi compartilhada por muitos membros da família, vizinhos e empregadores, os quais tinham pontos de vista altamente estigmatizadores (Gilbert & Walker, 2010). O relatório do UNAIDS publicado em março de 2019 destaca a urgência de alcançar pessoas que usam drogas para reduzir infecções por HIV. Embora exista o argumento de que a descriminalização do uso e posse de drogas para uso pessoal tende a aumentar o acesso e a vinculação a serviços de saúde e serviços de assistência social para práticas de redução de danos, as criminalizações e punições severas, em alguns lugares do mundo, continuam sendo comuns. A descriminalização da posse de drogas, o cultivo para uso pessoal e o veto a medidas de compulsoriedade mencionados no relatório são todos temas polêmicos e podem ter diferentes realidades em diferentes países. O relatório também menciona que uma em cada cinco pessoas presas em todo o mundo estão em situação de encarceramento no sistema prisional por delitos relacionados às substâncias; cerca de 80% dos quais estão na prisão por posse para usopessoal. Além disso, o relatório lista 35 países que ainda pena de morte por delitos relacionados a drogas. “[...] O uso de centros de detenção compulsória para pessoas que usam drogas deve cessar, e os centros existentes devem ser fechados” (UNIADS, 2019, p. 8). Outro aspecto de preconceito nessa interface também pode ser dirigido a homens, em geral, os quais sentem muita dificuldade para partilhar seus problemas de disfunção erétil (DE) causada pelo longo consumo de álcool ou de revelar a um profissional de saúde essa sua queixa por temer que sua virilidade e masculinidade possam ser motivos de piadas jocosas. Além disso, recaídas e lapsos no consumo de substâncias para quem encontra-se em recuperação podem ocorrer por questões ligadas a conflitivas conjugais, por exemplo. Gustavo Venturi e colegas, em 2009, realizaram uma pesquisa com o apoio da Fundação Perseu Abramo e revelaram que ao se perguntar para os entrevistados por quais pessoas eles tinham sentimentos de raiva, ódio ou repulsa, apareceu em primeiro lugar “pessoas que não acreditam em Deus”, e em segundo lugar “os usuários de substâncias”. Também obtiveram pontuações os portadores de HIV e as travestis (Venturi et al., 2009). Os dados revelam que 41% da população brasileira tem “ódio e antipatia” de conviver com os usuários de drogas, 22% relata o mesmo sentimento para com profissionais do sexo, 19% para com gays e bissexuais e 22% para com as travestis (Venturi, 2009). Podemos entender o preconceito, nesse contexto, como um julgamento prematuro e inadequado sobre o uso de substâncias e/ou sobre determinado comportamento sexual. Trata-se do ato de definir alguém ou algo, construindo-se uma ideia sem conhecimentos prévios. Já o preconceito é a valorização negativa/depreciativa que atribui às características da alteridade; implica a negação do outro diferente e a afirmação da própria identidade como dominante (Bandeira & Batista, 2002). No Brasil, há a necessidade ainda de superar o grande preconceito e o estigma que envolve as populações mais vulneráveis com o aumento da incidência de HIV/AIDS notificadas pela UNIADS. Além disso, a inclusão de minorias e dos membros mais vulneráveis da população nos serviços de saúde do país ainda é um desafio para os planejadores de saúde (Brito et al., 2001). Como mencionado no resumo do artigo de Krishan et al. (2018, s/p): [...] Na maioria das vezes, a prevenção do HIV / AIDS é discutida em termos de fidelidade à parceria, uso de dispositivos de proteção como preservativos, profilaxia pré e pós-exposição, uso de terapias anti-retrovirais e uso de microbicidas, mudança de comportamento, etc. As questões relacionadas ao HIV são, no entanto, uma das questões pertinentes que precisam ser efetivamente abordadas na comunidade LGBTQIA+. Diversas razões podem justificar o estigma do uso de substâncias por parte dos profissionais de saúde, incluindo o fato de que, muitas vezes, o consumo de drogas não é visto como um problema de saúde, mas como falha de caráter, com forte apelo moral a essa questão, fazendo com que seja atribuída ao usuário de substâncias a total responsabilidade pelo seu consumo e manutenção deste. As consequências desse estigma acabam por restringir as possibilidades de acesso a serviços para dependentes químicos e acesso a serviços de triagem e tratamento para HIV/AIDS, por exemplo. O estigma e a discriminação afetam negativamente a qualidade dos serviços prestados, podendo constituir uma barreira para a busca por ajuda (Silveira et al., 2010), sendo extremamente necessário o desenvolvimento de políticas públicas com ações de educação em saúde, prevenção, informação e combate ao estigma por parte de profissionais da saúde e de toda a sociedade. Novos avanços no tratamento de pessoas portadoras de transtornos por uso de substâncias (TUS) têm sido observados nas últimas décadas, como, por exemplo, um maior conhecimento dos mecanismos de neurotransmissão cerebral, a descoberta do sistema endocanabinoide e novas terapias psicológicas sendo reformuladas para melhor atender a essa crescente demanda de novos usuários de álcool e outras drogas. No entanto cada descoberta traz novos desafios às principais obrigações éticas de honrar o consentimento informado, proteger a confidencialidade e respeitar a justiça, ao mesmo tempo protegendo essas pessoas de danos e assegurando o bem do paciente individualmente e coletivamente. O tratamento de indivíduos com transtornos por uso de substâncias e questões relativas às suas sexualidades também está associado a muitos dilemas éticos. O corpo crescente de evidências neurobiológicas que contesta as suposições tradicionais sobre o “livre-arbítrio” e a “responsabilidade” evoca abordagens mais deliberadas e com nuances para o consentimento informado e a participação das políticas públicas sobre as drogas e da psiquiatria forense no âmbito da prestação de cuidados (Geppert & Bogenschutz, 2009). Portanto, muitos profissionais da saúde e da saúde mental que trabalham na área da adicção enfrentam vários dilemas éticos, os quais têm muitas dificuldades de solucionar ao tentar equacionar as suas tomadas de decisões dentro dos quatro princípios éticos – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Ao discutirmos os transtornos por uso de substâncias e suas questões sexuais, deve-se ter em mente que existem diferenças importantes entre os países em termos de aspectos sociais e culturais, bem como o quadro legislativo e o sistema de prestação de cuidados de saúde em cada local (Parmar et al., 2017). O uso de medidas coercivas no cuidado ao dependente químico, por exemplo, mudou muito nos últimos 30 anos, uma vez que as leis que adotaram o critério de “periculosidade”, a fim de garantir os direitos dos pacientes à não intervenção, estão cada vez mais sujeitas à crítica, já que muitos autores defendem critérios mais amplos de periculosidade. A UNIADS em seu último relatório em 2019 recomenda que “O uso de centros de detenção compulsória para pessoas que usam drogas deve cessar, e os centros existentes devem ser fechados” (UNIAIDS, 2019, p. 8). Uma das questões morais mais importantes em debate atual, por exemplo, é se os pacientes dependentes químicos que correm o risco de causar perigo a si mesmos (risco de suicídio, por exemplo) devem ser admitidos e/ou tratados involuntariamente, ou uma gestante usuária de crack e/ou opioide, que não aceita ou não adere ao tratamento ambulatorial, deveria ser internada involuntariamente, por exemplo. A ambiguidade que essas noções carregam na prática do cuidado indica que o conflito entre a prevenção do perigo e o respeito pela autonomia não é tão nítido quanto os sistemas jurídicos parecem estar implicados. Algumas medidas compulsórias e involuntárias não precisam ser interpretadas como uma violação da autonomia – em vez disso, elas devem ser interpretadas como uma forma de fornecer melhores e adequados cuidados ao indivíduo e à sua família, que dele necessita (Janssens et al., 2004). Existe uma necessidade urgente de sensibilizar os profissionais para a importância de dar a devida consideração aos aspectos éticos e de direitos humanos em seu trabalho clínico com essa população e, sobretudo, reafirmar essa necessidade para a interface dependência química e sexualidade (Geppert & Bogenschutz, 2009; UNIADS, 2019). Também é urgente considerar a busca pela equidade de gênero em diversos setores da sociedade. Coe e colaboradores (2019) escreveram algo muito importante e interessante sobre esse tema em um artigo intitulado “Organisational best practices towards gender equality in science and medicine”, publicado na renomada revista Lancet, e alertam no resumo do artigo que: [...] Em agosto de 2018, o presidente do Banco Mundial observou que o ‘capital humano’ – o potencial dos indivíduos – será o investimento de longo prazo mais importante que qualquer país pode fazer para a prosperidade e a qualidade de vida de seu povo”. No entanto, líderes e profissionais da ciência acadêmica e da medicina continuam desconhecidose pouco instruídos sobre a natureza, a extensão e o impacto das barreiras à plena participação de mulheres e minorias na ciência e medicina em todo o mundo. Essa falta de conscientização e educação resulta em falhas para mobilizar totalmente o capital humano de metade da população e limita os avanços tecnológicos e médicos globais. A falta crônica de recrutamento, promoção e retenção de mulheres na ciência e na medicina deve-se às barreiras sistêmicas, estruturais, organizacionais, institucionais, culturais e sociais à equidade e à inclusão. Essas barreiras devem ser identificadas e removidas por meio do aumento da conscientização sobre os desafios combinados com abordagens baseadas em evidências e baseadas em dados, que levam a metas e resultados mensuráveis (Coe, Wiley & Bekker, 2019, p.587). Os autores pesquisaram as abordagens e insights que podem ajudar a identificar e remover preconceitos e barreiras sistêmicas na ciência e na medicina, e propõem ferramentas que podem ajudar na mudança organizacional em direção à igualdade de gênero. Entre elas incluem legislação formal e cotas obrigatórias em níveis nacionais ou de grande escala (por exemplo, paridade de gênero), técnicas que aumentam a equidade (por exemplo, equidade de gênero) por meio de mudanças culturais organizacionais facilitadas em níveis institucionais e desenvolvimento profissional de competências essenciais tantos em níveis individuais quanto coletivos (Coe et al., 2019). Em 2019 o príncipe Willian, o Duque de Cambridge, participou pela BBC One, onde falou especialmente sobre a dor do luto da perda da mãe ainda quando criança e estimulou, sobretudo, os homens britânicos a falarem mais sobre seus próprios sentimentos sem medo ou vergonha. O intuito é falar sobre o estigma, preconceito e tabus com relação aos transtornos mentais e a dependência química e, por conseguinte, ajudar as pessoas a buscarem ajuda para si e para seus entes queridos, os quais por ventura podem estar sofrendo com alguma questão relacionada a esse tema. Quando uma pessoa pública, carismática e tão querida pela população como o Príncipe Willian mostra-se publicamente um encorajador da saúde mental isso tende a diminuir a psicofobia, ou seja, o preconceito e a discriminação contra as pessoas que têm transtornos mentais. Muitas pessoas com doença mental lutam todos os dias contra o estigma social e o estigma internalizado (o seu próprio estigma e a sua auto aceitação). Isso porque o estigma é uma importante barreira para a busca de tratamento e pode causar ainda mais comprometimentos sociais e ocupacionais. Ser visto como “louco”, “maluco”, “doido”, “pirado” e outras tantas terminologias pejorativas é parte do dia a dia dessas pessoas que, por sua vez, tentam esconder suas dores e seus afetos ou desafetos. O estigma afeta a qualidade de vida dos doentes mentais, assim como está associado a um pior prognóstico e até mesmo a maiores tendências suicidas em seus portadores, assim como baixa autoestima, menor taxa de recuperação. Pessoas com transtornos mentais experimentam taxas desproporcionalmente mais altas de incapacidade e mortalidade. Por exemplo, pessoas com depressão maior e esquizofrenia têm uma chance 40% a 60% maior de morrer prematuramente do que a população geral. A saúde mental é parte integrante da saúde e do bem-estar, uma vez que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade. A saúde mental, como outros aspectos da saúde, pode ser afetada por uma série de fatores socioeconômicos que precisam ser abordados por meio de estratégias abrangentes de promoção, prevenção, tratamento e recuperação em uma abordagem por todos os gestores de governos (WHO, 2013). Segundo dados da OMS, somente a depressão é responsável por 4,3% da carga global de doenças e está entre as maiores causas de incapacidade em todo o mundo [11% de todos os anos vividos com incapacidade globalmente], particularmente para as mulheres. As consequências econômicas dessas perdas de saúde são igualmente grandes. Por exemplo, o impacto global cumulativo dos distúrbios mentais em termos de perda de produção econômica será de US $ 16,3 milhões entre 2011 e 2030. A OMS também nos informa que o número de profissionais de saúde especializados para lidar com a saúde mental em países de baixa e média renda é extremamente insuficiente. Quase metade da população mundial vive em países onde, em média, há um psiquiatra para atender 200 mil pessoas ou mais. Da mesma forma, uma proporção muito maior de países de alta renda do que países de baixa renda informa que possui uma política, um plano e uma legislação sobre saúde mental. Por exemplo, apenas 36% das pessoas que vivem em países de baixa renda são cobertas pela legislação de saúde mental, em comparação com 92% em países de alta renda (World Health Organization, 2013). Queremos um mundo no qual a saúde mental seja valorizada, promovida e protegida. Assim como os transtornos mentais possam ser evitados e as pessoas afetadas por esses transtornos possam ser capazes de exercer toda a gama de direitos humanos e acessar saúde de alta qualidade e culturalmente apropriada para elas com assistência social de forma oportuna para promover a recuperação, a fim de atingir o nível mais alto possível de saúde e participar plenamente na sociedade e no trabalho, livre de estigmatização e discriminação (World Health Organization, 2013). Nesse contexto, julgo oportuno reconhecer dois fatos importantes, os quais podem somar para esta discussão. O primeiro deles diz respeito ao artigo dois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual afirma que “não deverá existir nenhum tipo de distinção entre seres humanos e que todos devem ser atendidos quando solicitarem e que os seus direitos sejam cumpridos independente de sua cor, sexo, religião ou qualquer outro tipo de opinião, ou outra particularidade” (UNIC, 2009, s/p). Esses direitos, ligados à igualdade, obrigam os Estados (governos) a promoverem políticas públicas que proporcionem condições necessárias de existência também para as pessoas que não podem pagar por esses serviços. É por isso que também já existe uma política de drogas cujo conjunto de normas e ações estabelecidas pelo poder público na Lei de Drogas (Lei nº11.343/2006) trata não somente da justiça criminal, mas também de uma série de princípios e objetivos no âmbito das políticas públicas que abordam as questões relacionadas às drogas. Prevê ações nas áreas de prevenção, da reinserção social do usuário em situação de vulnerabilidade social e da repressão ao comércio ilícito. Todos esses, portanto, são direitos dos usuários de substâncias. O segundo fato importante é reconhecer o papel de um movimento social que começou nos Estados Unidos da América (EUA) chamado “Faces and Voices of Recovery”, o qual foi fundado em 2001 em St. Paul, Minnesota. Eles acreditam que eliminando o estigma e a discriminação e removendo barreiras à recuperação mais pessoas levarão uma vida saudável em recuperação de longo prazo. Recuperação em longo prazo no idioma inglês a gente conhece como “long term recovery”. São aquelas pessoas que achamos que não existem, porém elas estão há mais de 15, 20, 30, 40 anos em recuperação. Só nos Estados Unidos da América (EUA), acredita-se que existam mais de 23 milhões de pessoas em recuperação. Isso significa dizer também que elas estão todo esse tempo sem fazer uso de álcool ou outras drogas, mas, sobretudo, vivendo de fato em recuperação. Em outras palavras, elas estão voltando a ter uma vida produtiva, como um membro da família, como um membro da sociedade, integradas com maior qualidade de vida. É claro que isso para nós que trabalhamos com dependência química é um grande alento e, sobretudo, muita esperança. A pergunta que não quer calar é: como esses milhares e milhões de pessoas conseguiram? Bem, certamente o caminho é longo para manter-se longamente em recuperação. Os programas de mútua ajuda baseados nas intervenções na comunidade, como os AlcoólicosAnônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), podem fornecer alguns dos incentivos que tornam a recuperação sustentada ou a recuperação em longo prazo muito mais atraente. Eles incluem maior autoaceitação e esperança de uma vida melhor, e a capacidade de conectar o indivíduo a uma rede de pessoas que oferecem suporte para o outro de várias maneiras, as quais podem incluir amizades, relacionamentos românticos, atividades recreativas e ajudam com questões como emprego e habitação. Além disso, programas de mútua ajuda dão aos participantes a oportunidade de ajudar os outros, o que pode ser altamente recompensador. No entanto, como tem sido amplamente notado, a maioria dos indivíduos com transtornos por uso de substâncias não se envolve em programas de mútua ajuda, o que destaca a necessidade de uma variedade de incentivos de recuperação na comunidade. A primeira recomendação diz respeito aos tratamentos, os quais devem ir além do foco na redução ou eliminação do uso de substâncias, visando ao maior acesso e a mais tempo gasto em experiências que serão agradáveis ou gratificantes para os pacientes. Em segundo lugar, deve haver incentivos suficientes no ambiente para justificar o esforço necessário para manter a abstinência em longo prazo para indivíduos que frequentemente têm acesso limitado a esses incentivos prazerosos para além do consumo de drogas (Diehl, Cordeiro, Laranjeira, 2019). O Faces and Voices of Recovery acreditam que juntos podem promover políticas que reduzem a discriminação e buscam soluções que promovam o acesso aos serviços de suporte de tratamento e recuperação necessários para levar uma vida em recuperação. Principalmente, mostrando suas Faces e suas Vozes em prol disso. Essas vidas importam! Suas Faces e suas Vozes são poderosas! Eles têm trabalhado para garantir que as políticas federais e estaduais reflitam a esperança e a resiliência encontradas nas comunidades de recuperação trabalhando para ajudar os outros por meio de uma abordagem abrangente/holística para solucionar a crise da dependência nos EUA e outros locais do mundo, os quais também já aderiram ao mesmo movimento, incluindo o Brasil (site URL: https://facesevozes.org.br/). Que bom que o preconceito parece ter cura! CAPÍTULO 3 FATOS E CONTEXTOS QUE FUNDAMENTAM A INTERFACE DO USO DE SUBSTÂNCIAS COM A SEXUALIDADE Alessandra Diehl A imortalizada citação “Sexo, Drogas & Rock and Roll”, advinda dos anos 60 e 70, remete-nos a um período de extrema “curtição” – termo que emergiu do lendário festival de música de Woodstock e que tem, até os dias atuais, os seus eternos ícones: Janis Joplin, Santana, Jimi Hendrix, entre outros, como símbolos da contracultura, contestação e da liberdade aspirada daquela época. Certamente, esse período da história foi uma das “grandes ondas” de drogas mais comentadas da mundialmente, uma vez que maconha, haxixe, mescalina, heroína e o famoso “ácido azul”, como era conhecido também o alucinógeno dietilamida do ácido lisérgico (LSD), circulavam livremente entre um milhão de pessoas nos três dias mais popularizados da história dos festivais musicais (Gibson, 2001; Mariuzzo, 2009). Na mesma época, o movimento musical brasileiro tinha o cantor “maluco beleza”, Raul Seixas, por exemplo, como um rito da mesma geração instrumental que tinha essa relação de busca de êxtase, inspiração poética e promoção de liberação sexual e sentidos por meio das drogas (Nery, 2009; Diehl, Vieira, 2013). A busca de um elixir afrodisíaco não é algo novo na história da humanidade; tampouco apenas produto das famosas gerações Rock & Roll, paz e amor, Coca-Cola, tribalistas, rave, pagodeiros, sertanejos e de funkeiros dos dias de hoje. A tão almejada combinação de prazer sexual e diversão também aparecia na antiga medicina chinesa e hindu mediante utilização de preparados para ajudar a melhorar a vida sexual de seus povos (Stearns, 2010). O escritor Vatsyayana, no século II, já mencionava em sua obra mais famosa, o Kama Sutra, uma série de meios para excitar ou aumentar o desejo sexual. Para isso, utilizam unguentos e poções derivados de ervas e raízes, as quais são cultivadas e praticadas pelos mágicos e cientistas do Veda (quatro textos sagrados escritos em sânscrito por volta de 1500 anos antes de Cristo) para ajudar no equilíbrio daquele que, pela prática do Dharma, Artha e Kama, poderá gozar de felicidade neste mundo e no mundo vindouro (Vatsyayana, 2012). Na concepção hinduísta, o Senhor dos Seres criou homens e mulheres sob a forma de mandamentos, os quais deveriam respeitar a regulação e harmonia entre três pilares: O Dharma, o Artha e o Kama. O primeiro refere-se à aquisição do mérito religioso, é a virtude dos seres. O segundo refere-se à aquisição de riqueza e de propriedades. Finalmente, o Kama – que significa amor, prazer e gratificação sexual. Assim, em outras palavras, Kama é a fruição dos objetos apropriados pelos cinco sentidos (audição, tato, visão, paladar e olfato) amparados pela mente e em conjunto com a alma. Kama é a consciência do prazer oriunda do contato entre o órgão do sentido e seu objeto. Sutra significa aforismos, relatos ou transcrições. De tal modo, Kama Sutra são os “Aforismos do Amor” (Vatsyayana, 2012). A cidade de Khajuraho, na Índia, abriga belíssimos templos do Hinduísmo medieval, construídos ao longo de cem anos (950 até o ano de 1050) em referência à obra Kama Sutra. Atualmente, os templos são considerados patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Várias das posições sexuais foram retratadas por meio de delicadas e pequenas esculturas nas paredes dos templos. São um exemplo da ligação entre a religião e o erotismo, sendo excelentes demonstrações dos estilos arquitetônicos da Índia. Os templos ganharam popularidade e se tornaram alguns dos pontos turísticos mais visitados da Índia devido à representação do Kama Sutra e de alguns aspectos da forma de vida tradicional durante a época medieval naquela região. A obra já recebeu vários rótulos e críticas, incluindo de “pornográfica” e “erótica”, já foi reduzida a um “manual de posições sexuais” e acabou caindo no jargão popular entre aqueles livros que todos comentam, mas que de fato poucos leram. O Kama Sutra está muito longe de ser um simples “manual sexual”. Isso http://pt.wikipedia.org/wiki/950 http://pt.wikipedia.org/wiki/1050 http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o http://pt.wikipedia.org/wiki/Erotismo porque a obra fala muito mais de comportamentos, costumes de cidadãos, práticas e da cultura oriental do que propriamente apenas o intercurso sexual. Kama Sutra é – em síntese – um tratado, sobre homens e mulheres, sua relação e sua união mútua (Khandelwal, 1987; Vatsyayana, 2012). A Figura 1 ilustra uma das esculturas dos templos. FIGURA 1 - ESCULTURAS DO KAMA SUTRA DO TEMPLO DE KHAJURAHO, NA ÍNDIA Fonte: Arquivo pessoal da autora Outras combinações de nutrientes e especiarias também já ganharam popularidade nos dias atuais. Elas representam uma “ajuda extra” para o desempenho sexual e auxiliam na produção hormonal, na formação de espermatozoides ou no envolvimento emocional nas relações envolvendo amor, sexo e prazer. São substâncias tais como o chocolate, a pimenta, o gengibre, o amendoim, a catuaba e o ovo de codorna (Stearns, 2010). A noção de união sexual como um momento para o casal expressar o amor e explorar o prazer parece ter-se perdido ao longo dos séculos em uma cultura que delibera sexualidade apenas como penetração. A sexualidade no século XXI parecer ter como meta o ideal da perfeição. Muitos homens e mulheres desejam ter corpos perfeitos e uma performance sexual irreal e exageradamente satisfatória na cama. Frequentemente, buscam uma vida sexual inatingível e acabam frustrados. Além disso, há uma forte cultura da “potencialização da atividade sexual” com o recurso de medicamentos e drogas, advindos de uma sociedade que busca constantemente aquilo que pode ser http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Khandelwal%20S%5Bauth%5D “mais”como fonte de felicidade: mais libido, mais energia, maior excitação, mais desinibição e mais prolongada ereção. A primazia do princípio do prazer sobre o da realidade, o risco como ponto central na vida recreativa de jovens e de usuários de substâncias, o significado desafiador e de “emancipação” que eles atribuem às experiências sensoriais são fatores reforçados pelas características sociais e culturais também da atual “geração millenium” (Diehl et al., 2014a; Tavares et al., 2014). O aprendizado da sexualidade – como um todo – está cada vez menos focada no desempenho e mais na busca do prazer imediato. O exercício da sexualidade pode ser manifestado como uma forma de energia que influencia tanto os pensamentos quanto a saúde física e mental dos indivíduos. Sua prática, tão necessária para a saúde quanto comer, dormir e fazer exercícios físicos, é, portanto, um dos pilares fundamentais dos indicadores de qualidade de vida (Lins, 2007; WHO, 2010; Diehl, Vieira, 2013). Compreendida a partir de um enfoque extremamente abrangente, manifestando-se em todas as fases da vida do ser humano (desde a infância até a senilidade), a sexualidade, ao contrário do imaginário popular, tem na genitalidade apenas um de seus aspectos, como mencionado inicialmente na própria definição de sexualidade (Lins, Braga, 2005; WHO, 2006, 2010; Diehl, Vieira, 2013). Vivemos num mundo em que o álcool e as drogas estão muito presentes no universo que engloba questões relacionadas ao “ser e estar sexual” dos seres humanos. Em outras palavras, as drogas estão fortemente associadas a experiências e práticas sexuais diversas, à iniciação sexual precoce, a comportamentos sexuais de risco, à gravidez indesejada, à violência sexual, ao aborto e às disfunções sexuais, que podem ser causadas pelo uso crônico de substâncias (Vieira, Diehl, 2011; McNaughton Reyes et al., 2014). Existe uma incessante busca, principalmente entre os adolescentes e adultos jovens, por substâncias capazes de aumentar a libido e o prazer, facilitar a aproximação entre as pessoas, prolongar o orgasmo e auxiliar a ereção. Nesse contexto, já existe evidência científica acumulada da estreita associação entre o uso de álcool, tabaco e outras drogas, o exercício da sexualidade e a prática de comportamentos sexuais de risco (Eaton et al., 2012; Berhan et al., 2013; Li et al., 2013; Oshri et al., 2013; Wood, 2010), os quais podem contribuir para as principais causas de morbidade e mortalidade entre os adultos e adultos jovens, com elevados custos sociais e financeiros para a sociedade (Koniak, Brecht, 1995; Cohen et al., 2002). Isso porque o álcool e outras substâncias, como a maconha, a cocaína e o ecstasy, tendem a reduzir a capacidade de tomada de decisão e aumentar o risco de sexo não protegido, exposição à violência sexual, maior violência no namoro, causando maiores possibilidades de gravidez não planejada, aborto, infecções sexualmente transmissíveis (IST)/Vírus da Imunodeficiência Humana/transmissão do HIV e prática de sexo com múltiplas parcerias sexuais (Andrade et al., 2013; Sanchez et al., 2013; Teitelman et al., 2013; Temple et al., 2013; Thurstone et al., 2013). Para termos uma ideia da dimensão dessa interface em números, podemos observar os dados provenientes do relatório de 2013 do Sistema de Vigilância de Comportamento de Risco da Juventude, que tem monitorado, todos os anos, os principais comportamentos em jovens de 10 a 24 anos nos Estados Unidos da América (EUA). O estudo revela que muitos estudantes do ensino médio estão envolvidos em comportamentos de risco à saúde associados às principais causas de morte entre as pessoas dessa faixa etária que têm sido estudadas naquele país. Destaca-se que nos 30 dias anteriores à pesquisa, 4% dos estudantes tinham fumado cigarros de nicotina; 34,9% dos estudantes tinham consumido pelo menos um tipo de bebida alcoólica em pelo menos um dia durante os 30 dias anteriores à pesquisa; 40,7% dos estudantes haviam usado maconha uma ou mais vezes durante a sua vida; 23,4% dos estudantes haviam usado maconha uma ou mais vezes durante os 30 dias anteriores à pesquisa; 5,5% dos estudantes tinham usado qualquer forma de cocaína; 7,1% dos estudantes haviam usado drogas alucinógenas na vida; 8,9% já tinham cheirado cola ou inalado quaisquer tintas ou sprays para obter intoxicação uma ou mais vezes durante a sua vida; 6,6% dos estudantes haviam usado ecstasy. Quase metade (46,8%) dos estudantes já tiveram relação sexual; 34% haviam tido relações sexuais durante os três meses anteriores à pesquisa; 15% já haviam tido relações sexuais com quatro ou mais pessoas durante a sua vida; 5,6% dos estudantes tinham tido relações sexuais pela primeira vez antes dos 13 anos. Entre os estudantes atualmente sexualmente ativos, 59,1% haviam usado preservativo na última relação sexual. Em nível nacional, 7,3% dos estudantes http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Koniak-Griffin%20D%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=7501487 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Brecht%20ML%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=7501487 já tinham sido fisicamente forçados a ter relações sexuais quando eles não queriam. A prevalência de ter sido forçado a ter relação sexual foi maior no gênero feminino (10,5%) do que em homens (4,2%). Entre os 73,9% dos alunos de todo o país que namorou ou saiu com alguém durante os 12 meses que antecederam a pesquisa,10,3% tinham sido atingidos, batido em alguma coisa, ou se ferido com um objeto ou arma de propósito por alguém com quem eles estavam namorando ou “ficando” (termo utilizado para sair com alguém sem necessariamente o compromisso de namoro) por uma ou mais vezes durante os 12 meses que antecederam a pesquisa. A prevalência da violência física no namoro foi maior no gênero feminino (13%) do que em homens (7,4%) (Kann et al., 2014). No Brasil, dados semelhantes aos americanos foram conduzidos pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias para Políticas Públicas para o Álcool e as Drogas (INPAD) com o II Levantamento Nacional do Consumo de Álcool e Drogas (LENAD) sobre comportamentos de risco com informações preliminares fornecidas em 2014. Os dados revelam que de uma amostra de 1.742 adolescentes e jovens de 14 a 25 anos, sendo que 1.157 dos adolescentes tinham de 14 a 17 anos, cerca de 4,8% haviam usado maconha no último ano, 3,4% haviam usado cocaína no último ano e 43% dos jovens entre 14 e 17 anos também usou cocaína. Enquanto que 55% dos jovens de 18 a 21 anos e 61% dos de 22 a 25 anos beberam num padrão de binge (4 doses para as meninas e 5 para os meninos, em 2 horas, em uma única ocasião) (LENAD/INPAD, 2012). Quanto à prática de sexo seguro, 34,1% relataram que nunca, ou quase nunca, usavam preservativo (camisinha) nas relações sexuais, sendo que o não uso foi maior entre as meninas, com 38,2% dos casos, e 29,6% dos casos em meninos. O aborto provocado e/ou espontâneo ocorreu em 12,4% das jovens de 14 a 20 anos, e 14,8% entre as de 20 a 25 anos (LENAD/INPAD, 2012). A famosa “primeira vez” – a primeira experiência sexual – costuma ser uma situação que, em geral, causa bastante ansiedade e medo para a maioria das pessoas. Embora não existam muitas estatísticas sobre a prevalência e incidência dessa associação, o relato do uso de substâncias para facilitar a iniciação sexual não parece ser raro (Waylen & Wolke, 2004). Um estudo escocês revelou que 50% dos meninos da amostra estudada relataram ter ingerido bebida alcoólica antes da primeira relação sexual (Hooke et al., 2000). Estudo de coorte longitudinal com 21.616 estudantes mexicanos com quatro anos de seguimento mostrou uma incidência de 7% dos jovens relatando o abuso de substâncias na iniciação sexual (Bojorquez et al., 2010). Também é fato que jovens que consomem álcool e drogas estão mais predispostos a ter início precoce da vida sexual e comportamentos sexuais de risco (Scivoletto et al., 1999; Baldwin et al., 2013). Faz parte do imaginário popular a expectativa sobre o efeito da substância em causar desinibição, facilitar aaproximação e o encontro sexual ou aumentar o desejo e o prazer. Tanto que parece que as palavras drogas e sexo “imploram” por um “e” entre elas. Entretanto as substâncias agem de formas diferentes no organismo e seus efeitos dependem de vários fatores, dentre eles citam-se: o tipo de droga e a quantidade da droga utilizada, o mecanismo de ação da substância no sistema nervoso central, a qualidade da droga, o ambiente, o gênero, além da crença e expectativa que se tem em relação aos efeitos dela (Tuchman, 2010; Tyler & Melander, 2010; Vieira & Diehl, 2011). Muitos desses jovens e adultos jovens que combinam o consumo de substâncias com seu comportamento sexual certamente terão problemas num futuro próximo, principalmente no que concerne ao desenvolvimento de um padrão de dependência de álcool e drogas. Eles correrão maior risco de praticar sexo desprotegido, de desenvolver disfunções sexuais associadas ao consumo de substâncias, o que favorece processos de recaída em dependentes químicos, tendendo a piorar o prognóstico e a recuperação destes (Vieira, Diehl, 2011; Harvey, 2009). Dentro desse contexto, os dependentes de substâncias constituem uma população bastante interessante e particularmente complexa para o desenvolvimento de estudos, intervenções terapêuticas, prevenção e promoção de saúde com relação à associação de uma ampla gama de possibilidades de expressão de comportamentos sexuais, que incluem risco sexual, vulnerabilidades, disfunções sexuais, comportamento hiperssexual e violência, por exemplo (Timpson et al., 2010; Jakubczyk et al., 2013; Shoptaw et al., 2013; Wechsberg et al., 2013). Apesar da abundante literatura internacional sobre comportamentos sexuais e uso de drogas, poucos estudos, principalmente no Brasil, têm explorado a prevalência de relações sexuais desprotegidas em usuários de http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Tyler%20K%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Melander%20L%22%5BAuthor%5D drogas não injetáveis e os seus comportamentos sexuais, tanto em contextos epidemiológicos quanto em ambientes clínicos, como de outreach treatment, ou em locais de “bolsões e cenas” de maior concentração de uso de drogas em grandes centros urbanos, os quais muitas vezes não são captados por levantamentos domiciliares. Os locais de tratamento tradicionais, em geral, captam apenas uma parte dessa população, ou apenas os mais motivados (de Souza et al., 2002; Nunes et al., 2007; Barbosa Júnior et al., 2009; Bassols et al., 2010; Malta et al., 2010; Cortez et al., 2011). Estudos e programas de prevenção da transmissão do vírus da imunodeficiência humana – ou, no idioma inglês, Human Immunodeficiency Virus (HIV) – entre dependentes químicos têm focado principalmente em usuários de drogas injetáveis (Wellings et al., 2006; Chikovani et al., 2013; Shoptaw et al., 2013). Hoje, no mundo, existem 35 milhões de pessoas vivendo com o HIV. Destas, pelo menos 3 milhões são usuárias de drogas injetáveis (WHO, 2014). Esses programas auxiliaram a reduzir a incidência e prevalência de HIV (Suohu et al., 2012; Mishra et al., 2014). No entanto a maioria dos abusadores de substâncias em todo o mundo não são usuários de drogas injetáveis, sendo que houve uma escassez de intervenções de prevenção do HIV visando a esse público que não usa droga injetável (Shoptaw et al., 2013). Essa realidade deve tornar-se um crescente e novo foco de pesquisa devido ao papel que a atividade sexual desprotegida desempenha na transmissão do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) em usuários de drogas não injetáveis (Brewer et al., 2007; Atkinson et al., 2010; Dickson- Gomez et al., 2012). Um dos motivos está relacionado ao fato de que a taxa de novos infectados pelo vírus HIV no Brasil cresceu 11% entre 2005 e 2013; ao contrário dos números de tendências globais, os quais mostraram um declínio em todo o mundo (diminuição global de 27,5%), conforme os dados recentemente divulgados pela UNAIDS, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS, 2014). Os dados evidenciam que no Brasil uma nova epidemia tem altas taxas de infecção entre três populações mais vulneráveis: os homens que fazem sexo com homens (HSH), cujo tamanho relativo corresponde a 3,1% da população; as profissionais do sexo femininas (1,2%); e os usuários de drogas. Dentre os usuários de drogas, aqueles que fazem uso da forma injetável correspondem a apenas 0,5% (Brasil, 2011). Estima-se que no Brasil cerca de 540 mil indivíduos entre 15 e 49 anos vivam com o HIV/AIDS (Brasil, 2013). Trinta anos depois do início e conhecimento da epidemia de AIDS, a relação atual entre sexualidade e HIV/AIDS sofreu mudanças profundas. Isso porque a epidemia de HIV abriu uma ampla gama de abordagens e metodologias na pesquisa sobre esse tema, levando a uma abertura maior na discussão e no debate sobre sexualidade, valores sexuais, preconceitos, práticas e comportamentos sexuais. A sexualidade tornou-se um dos principais espaços contestados no discurso público, de maneira antes inconcebível, e forças conservadoras e progressistas entraram no debate de tal maneira que tiveram um profundo impacto sobre políticas sexuais nas duas últimas décadas no Brasil e no mundo (Diehl, Vieira, 2013; Silva et al., 2014). Em termos da cobertura de teste de HIV, apenas 36,5% da população sexualmente ativa no Brasil entre 15 e 64 anos realizou o teste de HIV alguma vez na sua vida (Brasil, 2011). Entre os usuários de drogas do Brasil nos dias atuais, destaca-se o aumento das taxas de consumo de cocaína associadas à “epidemia do crack” vivenciada pelo país nos últimos 25 anos ou mais. Isso porque, com o advento do crack fumado no início dos anos 1990, houve uma mudança da via de administração da cocaína entre usuários em muitos países do mundo, incluindo no Brasil (Dunn & Laranjeira, 1999; Brewer et al., 2007; Nappo et al, 2011; Dickson-Gomez et al., 2012; Rodrigues et al., 2012). Cabe salientar que o Brasil também não tem propriamente uma “cultura de injetáveis” atualmente, isso porque o crack invadiu esse cenário em várias camadas sociais. Além de ser uma droga considerada barata, está amplamente disponível, inclusive nas zonas rurais do país. Nunca houve, de fato, uma tradição do uso de heroína e metanfetamina injetáveis, como vivenciada em outros países do mundo (Rondinelli et al., 2009; Eskandarieh et al., 2013; Bertoni et al., 2014). Estudo conduzido por de Azevedo e colegas (2007) comparando usuários de cocaína fumada na forma de crack (n=132) com cocaína injetável (n=119) já sinalizava que os usuários de crack apresentavam menor tempo de consumo de drogas quando comparados com os usuários de cocaína injetável. No entanto eles tiveram maiores taxas de atividade sexual de risco e diferenças no consumo de múltiplas drogas. Embora a soroprevalência do HIV entre usuários de crack tenha se mostrado inferior aos usuários de cocaína injetável (7% versus 33%), essa taxa é elevada quando comparada com a população geral da mesma idade. Da mesma forma que a população geral brasileira, em que mais de 95% das pessoas sabem que o preservativo é a melhor maneira de se evitar a infecção pelo HIV (Brasil, 2011), sabe-se também que os usuários de crack têm acesso à informação sobre o HIV/AIDS, mas não fazem uso desse conhecimento para mudar comportamentos de risco que os expõem à infecção pelo HIV e à transmissão deste para outras parcerias sexuais (Azevedo et al., 2007). Entre mulheres usuárias de crack no Brasil, por exemplo, o crescente número de casos registrados de infecção pelo HIV pode ser associado com o desenvolvimento de comportamentos sexuais de risco que envolvem a troca de favores sexuais por drogas ou dinheiro, ou com o fato de essas mulheres estarem na atividade de mendicância (Nappo et al., 2011). Essas usuárias, geralmente, utilizam a atividade sexual como moeda de troca quando o desejo por drogas é intenso e não há mais dinheiro para novas aquisições. Elas acabam deixando de usar o preservativo, participando de várias atividadessexuais por dia em locais não seguros – visto que muitas não têm habitação estável; as taxas de desemprego entre mulheres são maiores que entre os homens. Além disso, frequentemente se envolvem em atividades com múltiplas parcerias sexuais (Brewer et al., 2007; Willians et al., 2008; Bungay et al., 2010; Nappo et al., 2011; Bertoni et al., 2014). Essa relativa carência de dados sobre comportamentos sexuais em usuários de drogas não injetáveis justifica a necessidade de expansão da evidência nacional disponível. Tais estudos são muito necessários, devido às características e práticas sexuais de risco entre homens e mulheres com transtornos relacionados ao consumo de substâncias (Nappo et al., 2011; Wechsberg et al., 2010; Dickson-Gomez et al., 2012); além das disfunções sexuais causadas pelo uso crônico de álcool e outras drogas, que comprometem a autoestima, a qualidade de vida e predispõem a recaídas, as quais merecem ser adequadamente exploradas e tratadas (Fahrner, 1987; Tuchman, 2010). CAPÍTULO 4 DROGAS DE USO E SUA RELAÇÃO COM A SEXUALIDADE Alessandra Diehl O álcool é presença quase que obrigatória em contextos sociais, sendo conhecido por seu efeito de desinibição; seja para tomar mais coragem para se aproximar de alguém, seja para relaxar ou “baixar a guarda”. Esse ditado também nos remete à associação de álcool e violência de gênero (no geral, os homens parecem ficar mais intolerantes e “valentes” sob seu efeito, haja vista a frequência de brigas quando há consumo exagerado de álcool) (Zaleski, 2009). As mulheres, por sua vez, ficam mais vulneráveis a agressões sexuais (Kingree et al., 2014). Acredita-se que uma em cada quatro universitárias já sofreu estupro durante a sua vida acadêmica nas faculdades norte-americanas (Starfelt et al., 2015); esse dado oficial ainda é raro no Brasil, muito embora saibamos que de fato ocorrem (Diehl, 2014). Considerando que as agressões sexuais entre mulheres em idade universitária não têm diminuído nos últimos 50 anos e o consumo de álcool está presente em mais de 50% de todos os assaltos sexuais contra as mulheres, é fundamental que os pesquisadores, gestores de políticas públicas e professores universitários continuem a esmiuçar essa complexa relação e reformular a nossa forma de olhar a violência sexual e o papel da ampla disponibilidade do álcool nesse processo (Diehl, 2014; Starfelt et al., 2015). Crenças e equívocos sobre atividade sexual, gênero e estupro têm sido explorados extensivamente para tentar explicar as atribuições relativas ao envolvimento do álcool nos casos de violência sexual. Já se tem sólida evidência científica mostrando que o beber em binge é um fator de risco para o envolvimento do álcool nos episódios de agressão sexual. Os efeitos fisiológicos diretos do álcool no sistema nervoso central (SNC); atitudes de hostilidade em relação às mulheres; a aceitação de mitos de estupro (Ex. “mulher na balada bebendo certamente quer transar” ou “se estivesse em casa não seria estuprada”); influências de pares, com pressão dos colegas para ter atividade sexual; a aprovação pelos pares da prática de atividade sexual forçada/coagida ou sem consentimento; e comportamentos de risco que incluem grande número de parcerias sexuais, são alguns dos possíveis mediadores da associação entre universitários, álcool e a agressão sexual (Kingree et al., 2014; Starfelt et al., 2015). Em doses baixas, o álcool pode aumentar o desejo sexual; porém, se o consumo for mais alto, há prejuízo da ereção e ejaculação (Rosen, 1991). O álcool, muito embora tenha efeito no processo de desinibição quando utilizado em baixas doses e, consequentemente, ajude na facilitação inicial ao encontro sexual, tem efeitos tóxicos diretos sobre as gônadas (testículos e ovários) e o fígado (aumenta o catabolismo de testosterona e sua transformação em estrogênios), levando a disfunções sexuais após exposição e abuso crônico (Saso, 2002). Nas mulheres, o álcool pode interferir na lubrificação vaginal e na capacidade de atingir o orgasmo (Saso, 2002). A ação depressora do álcool também pode causar sonolência e diminuir o desejo sexual (O’Farrel et al., 1991; Rosen, 1991; Saso, 2002; Vieira, Diehl, 2011). Popularmente conhecido como “bala” ou “E”, o ecstasy invadiu o cenário das “baladas” de música eletrônica mundiais nos anos 80, com a promessa de ser a “pílula do amor”, capaz de aumentar o interesse sexual, assim como a sensação de proximidade e intimidade com terceiros (Zuckerman & Boyer, 2012). Muitos usuários de ecstasy dizem que sentem muita vontade de tocar, abraçar as pessoas, e que o efeito da droga é mais sensorial que propriamente sexual (McElrath, 2005; Vieira & Diehl, 2011; Nguyen et al., 2014). É comum o relato de que o consumo de cocaína, assim como o de ecstasy, aumenta o desejo sexual. Há relatos de aumento da autoestima e bem-estar, as pessoas sentem-se mais atraentes e atraídas, sensuais, sem que, necessariamente, o objetivo seja a relação sexual ou a melhora do desempenho, pois muitas vezes o consumo dessas substâncias impede a ereção e o orgasmo (Vieira & Diehl, 2011; Nguyen et al., 2014). Em relação à cocaína, os efeitos na atividade sexual são dose-dependentes e podem tanto acarretar em aumento do prazer e da intensidade do orgasmo quanto também podem piorar o desempenho sexual (Palha & Esteves, 2008). Várias linhas de pesquisa têm sugerido que a facilitação do comportamento sexual durante a intoxicação por cocaína pode ser causada pelos efeitos farmacológicos diretos dessa droga de abuso no sistema nervoso central (por exemplo, aumento do desejo sexual), enquanto outros pesquisadores têm apontado mais para a importância dos fatores relacionados com o contexto do uso dessa droga (por exemplo, as oportunidades para o comportamento sexual e as expectativas sobre os efeitos da droga) do que propriamente os efeitos farmacológicos da cocaína (Saso, 2002; Celentano et al., 2008; Palha & Esteves, 2008). Resultados preliminares de estudos sugerem que a relação entre cocaína e comportamentos sexuais – especialmente entre usuários de cocaína em longo prazo – pode ser facilitada por novas oportunidades para a atividade sexual que existem no contexto de uso de cocaína, e não somente pela busca dos efeitos farmacológicos da droga de abuso (Saso, 2002; Celentano et al., 2008; Wright, 2012). Existe uma associação entre uso compulsivo de crack e troca de favores sexuais pela droga, em que os usuários de crack, motivados pela fissura ou pela urgência em consumir a substância, “vendem” o corpo para a obtenção da droga (Nappo et al., 2011; Bertoni et al., 2014; Pallonen et al., 2009). A atividade sexual como moeda de troca para conseguir o crack envolve diversos fatores de risco e pode ser uma combinação muito perigosa. Muitas vezes, o usuário, “desesperado” para usar a droga, aumenta o número de parcerias sexuais e aceita manter relação sexual sem o uso de preservativos ou por pagamentos irrisórios, contribuindo assim para a repetição desse comportamento (Brewer et al., 2007; MacMaster et al., 2009; Bungay et al., 2010; Nappo et al., 2011). A maconha segue sendo uma droga que gera debates acalorados e polêmicos sobre seus vários aspectos, desde questões ligadas a discussões de legalização, do uso medicinal de canabinoides para tratamento de epilepsias refratárias, até questões de saúde mental no que concerne ao desenvolvimento de psicoses e sua relação com a esquizofrenia (Diehl et al., 2010a; Diehl et al., 2014b; Crocker & Tibbo, 2015). Não poderia ser diferente a presença de contendas em relação a sua participação nos efeitos sobre a esfera sexual (Smith et al., 2010). Os apaixonados pela “erva” a glorificam e os pesquisadores http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Palha%20AP%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Esteves%20M%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlushttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Tibbo%20PG%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=25704358 ainda estão em busca de mais evidências científicas (Shamloul & Bella, 2011; Diehl et al., 2014b). Estudo de revisão conduzido por Shamloul e Bella (2011) sobre o impacto da maconha na saúde sexual masculina mostra que os estudos que examinaram os efeitos do uso da maconha sobre a função sexual dos homens têm sido limitados tanto no aspecto qualitativo quanto quantitativo, principalmente por questões metodológicas relacionadas, por exemplo, ao pequeno número das amostras estudadas e aos diferentes métodos de medir os desfechos avaliados. A maioria dos resultados provenientes dos estudos dessa revisão é conflitante e contraditória. Isso porque existem alguns estudos apontando efeitos benéficos da cannabis na melhora da função erétil; outros estudos já não encontraram os mesmos resultados. Um exemplo é o estudo italiano conduzido por Aversa e colegas (2008), o qual avaliou os homens que faziam uso crônico de maconha e os comparou com controles; eles mostram que o uso crônico da maconha pode estar envolvido no início de dano endotelial de artérias penianas, as quais predispõem à disfunção erétil. As recentes pesquisas realizadas com animais in vitro identificaram possíveis ligações entre cannabis e saúde sexual masculina, uma vez que a droga parece ter ação de antagonismo periférico sobre a função erétil, estimulando receptores específicos no tecido cavernoso peniano (Shamloul & Bella, 2011). Alguns poucos relatos também estão associados à capacidade da maconha de aumentar a libido, prolongar o orgasmo e favorecer o encontro sexual. No entanto pouca literatura científica tem sido produzida envolvendo a associação do uso/abuso e dependência de maconha com temas vinculados à sexualidade humana. Alguns estudos que avaliaram a associação da maconha com questões ligadas à sexualidade revelaram que existe associação do uso dessa droga e aumento do número de parcerias sexuais (principalmente entre adolescentes), dificuldade de atingir o orgasmo no gênero masculino, dificuldades de ereção e comportamentos sexuais de risco em poli usuários de drogas em tratamento (Aversa et al., 2008; Diehl et al., 2014b). Outros estudos têm apontado a relação da maconha com alteração do eixo hipotálamo-pituitário gonadal (HPG) e desenvolvimento de infertilidade (Bryan et al., 2012; Andrade et al., 2013; Diehl, Vieira, 2013). http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404 Estudo conduzido por Smith e colaboradores (2010) avaliou uma amostra de 8.650 pessoas que responderam perguntas sobre o uso de cannabis, sendo que 754 (8,7%) relataram uso de maconha no ano anterior, 126 (1,5%) relataram o uso diário, 126 (1,5%) relataram uso semanal e 502 (5,8%) relataram uso menos frequentemente do que semanalmente. Após ajustes para fatores sociodemográficos, o uso de cannabis diário em comparação com a não utilização da droga esteve associado a uma maior probabilidade de relatar duas ou mais parcerias sexuais no ano anterior, tanto em homens (odds ratio ajustado de 2,08, 95% intervalo de confiança 1,11-3,89; p = 0,02) quanto em mulheres (2,58, 1,08-6,18; p = 0,03). O uso diário de cannabis também esteve associado com o autorrelato de diagnóstico prévio de infecção sexualmente transmissível em mulheres, mas não nos homens (7,19, 1,28-40,31; p = 0,02 e 1,45, 0,17-12,42; p= 0,74, respectivamente). A frequência de consumo de maconha não esteve relacionada a problemas sexuais em mulheres. Porém o uso diário versus não uso esteve associado, entre os homens, com o aumento da incapacidade de atingir o orgasmo (3,94, 1,71-9,07; p<0,01), ou com atingir o orgasmo precocemente, sem controle deste (2,68, 1,41-5,08; p<0,01), ou ainda, com retardo ejaculatório (2,05, 1,02-4,12; p = 0,4) (Smith et al., 2010). Por outro lado, existe uma ampla gama de estudos avaliando amostras de adolescentes que relacionam a maconha com diversos desfechos na esfera de comportamento sexual e sexualidade (De Genna et al., 2007; Callahan et al., 2013; Assis et al., 2014; McNaughton et al., 2014). Entre eles a associação de um efeito resposta do uso precoce e atual de maconha com infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) na idade adulta jovem. Uso de maconha precoce e atual também foi preditor de um maior número de parcerias sexuais durante a vida (De Genna et al., 2007). Outro estudo conduzido por Callahan e colaboradores (2013) examinou as relações entre dependência de maconha e o modelo teórico de intenção de uso do preservativo em adolescentes envolvidos com a justiça. Cerca de 720 participantes preencheram medidas iniciais de comportamento sexual e uso de substâncias; destes, 649 (90,13%) foram reavaliados seis meses depois. Houve altos níveis de uso de maconha (58,7% preencheram critérios para dependência) e comportamento sexual de risco entre os participantes. No entanto a dependência de maconha não influenciou, significativamente, as relações entre os constructos do modelo de intenção de usar preservativo inicial nem no seguimento de 6 meses (Callahan et al., 2013). Já em usuários de heroína, observa-se que, durante o período de uso crônico, a frequência de relações sexuais, masturbação e poluções noturnas está diminuída. Além disso, tanto a qualidade quanto a frequência de orgasmos estão reduzidas (Palha & Esteves, 2008; Diehl & Vieira, 2013). Frequentemente, o uso, o abuso e a dependência de heroína têm sido associados a comportamentos sexuais de risco que incluem aumento de vulnerabilidades para aquisição do vírus HIV, hepatite B e C e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) pelo sexo desprotegido e compartilhamento de seringas, apesar de ter havido uma dramática redução dessa via de uso injetável em muitos países do mundo (Napoli et al., 2010). O uso de metanfetamina (Crystal, meth) está também altamente associado à atividade sexual, sendo bastante popular nas festas onde homens que fazem sexo com homens (HSH) festejam, dançam e também buscam por parcerias sexuais (Wechsberg et al., 2010; Zuckerman & Boyer, 2012). O apelo de aumento da sensação de prazer sexual gerada por essa droga talvez seja o mote para ter se popularizado entre aqueles que buscam por esse efeito da metanfetamina. O uso dessa droga também está claramente associado ao risco de infecção por HIV, ao aumento do número de casos de AIDS e à disseminação de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), uma vez que aumenta as chances de intercurso desprotegido (Roll et al., 2009; Bao et al., 2015). O Gama-Hidroxi-Butirato (GHB) foi muito utilizado como suplemento alimentar entre fisiculturistas e adeptos de exercício físico na década de 80, e desde os anos 90 tem sido muito apreciado pelos jovens frequentadores de boates e danceterias como uma club drug (Diehl, 2010; Zuckerman, Boyer, 2012). A droga foi desenvolvida em 1961, chegando ao mercado americano como um suplemento dietético destinado a aumentar massa muscular, bem como aumentar a libido. O GHB também está entre as “date rape drugs” (drogas do estupro) (Diehl et al., 2010; Zuckerman & Boyer, 2012; Diehl & Vieira 2013). O GHB, apesar de ser bastante comum nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, é ainda uma substância relativamente nova no Brasil. Também pode ser encontrado nas danceterias das grandes cidades, tendo como alvo o público jovem e os gays, com o apelo de “ecstasy líquido”; em uma analogia ao ecstasy como uma estratégia de marketing que pretende conquistaro mesmo público da “pílula do amor”, muito embora as drogas não produzam efeitos semelhantes, uma vez que o GHB é depressor do sistema nervoso central (SNC), enquanto o ecstasy é um estimulante (Diehl, 2010; Brennan et al., 2014). O oxido nitroso foi preparado pela primeira vez em 1772. Também chamado de “gás hilariante”, é um gás incolor, não inflamável e de odor ligeiramente doce. Está classificado entre os solventes voláteis. Pode ser encontrado em frascos ou na forma de ampolas, sendo consumido geralmente por inalação. Popularmente conhecidos como “Popper”, o nitrato (óxido nitroso) é uma substância que emergiu em ambientes de sex shop, associado à suposta capacidade de aumentar o desejo e o prazer sexual (Diehl, 2010; Zuckerman & Boyer, 2012). Outra droga que merece destaque nesse contexto da sexualidade é a cetamina (um anestésico veterinário); o uso recreativo e o desenvolvimento de dependência dessa droga vêm sendo documentados desde o início dos anos 70. A sua popularidade tem aumentado principalmente entre os adolescentes (16 a 24 anos) e homens que fazem sexo com homens (HSH), sobretudo envolvidos em eventos de grandes festas de música eletrônica, onde é mais conhecida por meio das gírias K ou Special K (Diehl, 2010; Zuckerman & Boyer, 2012). Apesar de estar relacionada ao aumento da excitação sexual e diminuição de inibição, há relatos de retardo ejaculatório após o uso dessa substância. Pode também ser utilizada com a finalidade de relaxar os músculos do ânus, diminuindo dor durante a penetração anal. A diminuição da inibição associada a sexo desprotegido (sem preservativo) aumenta os riscos de exposição a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e Hepatites (Diehl, 2010; Pinto et al., 2014). A cetamina vem sendo estudada atualmente para o tratamento da depressão grave refratária e com risco de suicídio importante. Para depressão, é mais comumente administrada como uma infusão intravenosa lenta em doses subanestésicas (geralmente 0,5 mg / kg). Como antidepressivo, é notavelmente diferente dos antidepressivos convencionais, pois acarreta atenuação rápida e acentuada dos sintomas depressivos, mesmo em pacientes com depressão refratária. Não se sabe ainda o seu efeito em longo prazo e riscos de desenvolvimento de dependência (Ghosh & Viswanath, 2019). O uso recreativo dos inibidores da fosfodiesterase tipo 5 (PDE5i) (ex: Viagra®, Cialis®, Levitra®, Eleva®), que são utilizados eficazmente para o tratamento da disfunção erétil (DE), por jovens saudáveis sem DE, tem chamado a atenção da mídia, assim como de pesquisadores, uma vez que, nas raves, o “comprimido azul” é apenas mais um dos ingredientes dos coquetéis que embalam as festas eletrônicas. Muitos jovens, saudáveis e sem disfunção erétil associam o medicamento a outras drogas de abuso, tais como o ecstasy, numa tentativa de aumentar a autoconfiança, prolongar o estado de excitação e melhorar o desempenho sexual. Estudos têm encontrado associação de até 59% de uso dos inibidores de fosfodiesterase 5 (PDE5) e abuso de substâncias (Horvarth et al., 2007; Diehl & Vieira, 2013). Pouco ainda se sabe sobre os possíveis efeitos danosos à saúde, principalmente em longo prazo, advindos exatamente desse tipo de associação. No entanto acredita-se que possa haver aumento de batimentos cardíacos, com desenvolvimento de arritmias e surgimento de quadros semelhantes a uma crise de pânico (Halkitis & Green, 2007; Horvarth et al., 2007; Diehl & Vieira, 2013). Finalmente, porém não menos importante, está o consumo de nicotina e desenvolvimento da dependência de tabagismo na questão da sexualidade (Zil- A- Rubab et al., 2013). Em homens, a associação com disfunção erétil devido ao uso crônico já vem sendo bem documentada na literatura (Tostes et al., 2008). De qualquer forma, os supostos benefícios de algumas dessas drogas de uso aqui descritas na questão da sexualidade não parecem justificar o seu uso para nenhuma dessas finalidades (Diehl & Vieira, 2013). http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Halkitis%20PN%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19482790 CAPÍTULO 5 COMPORTAMENTOS SEXUAIS DE RISCO ENTRE USUÁRIOS DE DROGAS Alessandra Diehl O termo risco pode ser entendido como a chance ou a probabilidade da ocorrência de algum evento cujas consequências constituem oportunidades para se obter vantagens ou então ameaças ao sucesso. A maioria das decisões tomadas em situações da vida real é arriscada, porque estão associadas a possíveis consequências negativas. O risco na verdade existe quando a imprevisibilidade pode causar uma perda potencial de recursos próprios limitados, energéticos, sociais, financeiros e assim por diante. Dessa forma, o risco também pode estar ligado ao contexto social em que uma rede de fatores e interesses culturais, históricos, políticos, socioeconômicos e ambientais estão envolvidos (Anselme, 2014). Tais fatores relacionam-se à saúde integral, que se caracteriza como um processo dinâmico de responsabilidade pessoal e coletiva relacionada à qualidade e ao modo de vida cotidiana, inseridos no contexto global (Celentano et al., 2008; Brodish et al., 2011; Anselme, 2014). Assim sendo, o comportamento sexual de risco entre dependentes de substâncias pode variar de acordo com o tipo de droga utilizada, a via de administração, o contexto social, gênero, a faixa etária, orientação sexual e o tipo de interação sexual (Celentano et al., 2008; Tyler et al., 2010; Varma et al., 2010; Sherman et al., 2011; Wechsberg et al., 2013). A grande maioria das substâncias tende a causar prejuízo do funcionamento cognitivo, com diminuição da capacidade de tomada de decisão, diminuição da capacidade de julgamento crítico e a percepção de prejuízos, o que aumenta a susceptibilidade de engajar-se em comportamentos sexuais de risco (Kopetz et al., 2010). Muitos estudos clínicos, incluindo alguns estudos brasileiros, têm consistentemente relatado taxas elevadas de relações sexuais desprotegidas nessa população e maior número de parcerias sexuais (Malta et al., 2010; Nappo et al., 2011; Remy et al., 2013). Entende-se por atividade sexual desprotegido a prática de sexo não seguro durante aquela relação sexual que acontece sem o uso do preservativo. Inclui- se o intercurso vaginal, tanto para a vulnerabilidade da ocorrência de gravidez não desejada quanto para a contaminação por IST/AIDS, somando as práticas de intercurso anal e oral. O risco da transmissão do vírus HIV após uma única exposição de contato sexual pode ser considerado baixo no intercurso anal receptivo (0,8 a 3%), intercurso pênis na vagina de homem para mulher (0,05 a 0,15%), intercurso pênis na vagina de mulher para homem (0,03 a 0,09%), sendo que o risco no intercurso oral não é certo, mas se acredita que seja dez vezes menor do que o intercurso vaginal (Royce et al., 1997). Entretanto esse risco de contaminação tende a aumentar devido à importante presença dos chamados cofatores para a transmissão do vírus HIV. Entre esses cofatores, um dos principais é a presença de uma IST não tratada; uma vez que, em geral, nessas situações existe uma destruição da barreira epitelial normal, um aumento do pool de linfócitos e macrófagos e o processo inflamatório gerado pelas ISTs pode aumentar a carga viral do HIV nas secreções genitais. Principalmente em países de baixa renda, o risco de transmissão do vírus HIV 1 pode ser maior devido à alta prevalência de ISTs (WHO, 2007; Boily et al., 2009). A relação sexual anal representa o mais alto risco de transmissão para a infecção do HIV, mas muito do que se sabe sobre sexo anal ainda é baseado em estudos de homens que fazem sexo com homens (HSH). Poucos estudos têm avaliado a questão do sexo anal entre adultos heterossexuais, especialmente aqueles que podem estar em risco para o HIV, como usuários de substâncias (Ibañez et al., 2010). A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem informado que a forma mais eficiente de prevenção contra a AIDS e outras infecções sexualmente transmissíveis é o uso da camisinha em todas as relações sexuais.A pesquisa de conhecimento, atitudes e práticas na população brasileira conduzida pelo Ministério da Saúde com 8 mil pessoas entre 15 e 64 anos, realizada no ano de 2008 e publicada em 2011, mostra que 45,7% dos entrevistados fizeram uso de preservativo em todas as relações sexuais com parcerias ocasionais nos últimos 12 meses da pesquisa. Além disso, 77,3% foram sexualmente ativos nos últimos 12 meses, 8,8% tiveram mais de cinco parcerias sexuais nos últimos 12 meses da pesquisa, 17% dos homens e 9,5% das mulheres já tiveram alguma IST na vida, 26,8% tiveram sua primeira relação sexual antes dos 15 anos. Os jovens são os que mais fazem sexo protegido em relação aos mais velhos (Brasil, 2011). Entre os preservativos disponíveis no mercado temos basicamente dois tipos: o feminino e o masculino. O preservativo feminino é uma bolsa cilíndrica de poliuretano que apresenta dois anéis flexíveis. O menor anel é colocado no fundo da vagina e recobre o colo uterino, enquanto a bolsa recobre a vagina, e o segundo anel protege parte da vulva. Os aspectos positivos desse método incluem: prevenção das ISTs, se usado corretamente; bom custo-benefício; facilidade de ser inserido previamente à relação sexual, sem haver necessidade de parar as preliminares para ele ser colocado; uso está no controle da mulher; não havendo, portanto, a necessidade de negociação com a outra pessoa. Entre os aspectos negativos encontrados, citam-se: a baixa adesão das usuárias; o fato de não estar integralmente disponível nas redes públicas de todo o Brasil e de outros locais do mundo (Dowdy et al., 2006); muitas mulheres que nunca desenvolveram o hábito de se tocarem intimamente em seus genitais anteriormente ao uso desse método, em geral, têm receios, tabus, medos, preconceitos de utilizá-lo. Alguns casais também se queixam de ser pouco prático, e outros de que pode ser barulhento durante o ato sexual (Wang et al., 2014; Beksinska et al., 2015). Entre outras queixas de falha no uso do preservativo feminino estão as de rompimento, deslizamento, invaginação e pouca educação sexual e/ou orientação de como utilizá-lo. Estudo conduzido por Beksinska et al. (2015) mostra que as falhas de utilização tendem a diminuir quando a mulher começa a se apropriar mais dessa prática e tentar utilizar o preservativo feminino mais vezes (Beksinska et al., 2015). Já o preservativo masculino é um dos métodos mais acessíveis, por estar amplamente disponível na maioria das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país ou outros serviços governamentais, sendo que apenas 27,2% dos indivíduos entre 15 a 64 anos de idade relataram ter retirado esse insumo de prevenção. Além disso, ele é considerado pela OMS como o método de escolha para a prevenção das ISTs, entre elas o HIV, devendo ser indicado em conjunto com outros métodos (Brasil, 2011). O preservativo masculino está indicado que seja usado em todas as relações sexuais (sexo oral, sexo vaginal e sexo anal), colocando-o antes do contato do pênis com a vagina ou com o ânus ou a boca. Deve-se desenrolá-lo sobre o pênis ereto, deixando um espaço na extremidade para armazenar o ejaculado; por fim, retirar o pênis ainda ereto da vagina/do ânus/da boca e, logo após, desprezar o preservativo. Existe disponível também, no mercado erótico, a calcinha protetora para a prática de sexo oral feito na mulher. A calcinha íntima possui uma camada fina de látex que protege e permite passar o calor e a percepção da sensibilidade do toque da língua, proporcionando o prazer e a prática do sexo oral mais seguro, sem contato com secreções na área genital. O uso do preservativo é um importante método de planejamento familiar e, como já mencionado, é também um extraordinário aliado na prevenção de ISTs, especialmente o HIV/AIDS. No entanto o uso do preservativo envolve normas sociais complexas e dinâmicas interpessoais influenciadas pela cultura, por cognições sociais, por questões de poder de gênero e pelo estabelecimento de limites para a autonomia que fazem com que exista uma escolha irracional ou racional de usar ou não usar preservativos (Miranda et al., 2011; Norman et al., 2011; Ober et al., 2011; Maticka-Tyndale, 2012). Há diferenças distintas entre as estruturas cognitivas subjacentes do uso do preservativo para o gênero masculino e o feminino (Barkley & Burns, 2000; Sterk et al., 2004; Silva & Vargens, 2009). O aumento da incidência de HIV/AIDS em mulheres nos remete para as questões de gênero que construíram os papéis sociais de homens e mulheres, cuja assimetria provoca aumento da vulnerabilidade das mulheres à infecção (Montoya, 1998; Diehl et al., 2014a). Embora a geração atual de adolescentes e adultos jovens seja sem dúvida mais autônoma (Silva et al., 1988), receberam, no entanto, como herança cultural, a ideia de que as mulheres têm menor liberdade em sua vida sexual e menos poder de decisão sobre o sexo protegido. A desigualdade entre os gêneros produz uma ideia de submissão e interiorização e mantém a crença de que a mulher se faz alguém a partir do homem, tornando-a dependente afetivamente, carente e crente no romantismo (Gonçalves Canosa, 2006; Diehl et al., 2014a). Espera-se da mulher um papel passivo. Assim, preparar-se para uma atitude contraceptiva ou de prevenção de saúde é assumir papel ativo, o qual ainda, nas relações de gênero, é delegado ao homem. Mesmo que a virgindade não seja mais tão importante para a maior parte da sociedade, a vivência da sexualidade para os mais jovens ainda é considerada socialmente aceitável se for inocente, movida pela paixão, sem premeditação, e por condução masculina. Ou seja, trocou-se um valor (o da virgindade) por seu significado (passividade) (Gonçalves Canosa, 2006; Diehl et al., 2014a). Em contrapartida, não se reforça aos meninos a importância da sua responsabilidade na contracepção e nos cuidados com a sua saúde e da sua parceria sexual (Zuilkowski & Jukes, 2012). A distribuição de preservativos e as campanhas preventivas no Brasil não conseguem ainda atingir boa camada da população (Brasil, 2011), até porque não é fácil lidar com as questões subjetivas que envolvem gênero e relações amorosas. Por outro lado, sabe-se que apenas a informação por si só não é capaz de mudar comportamentos (Azevedo et al., 2007; Diehl et al., 2014a). Historicamente, o uso do preservativo traz a ideia de comportamento desviante. Por isso, mesmo na atualidade, se a mulher não estiver consciente de seu desejo pela relação sexual, fatalmente abrirá mão de negociá-lo, por ter medo de ser mal interpretada ou porque – na verdade – aquela relação sexual é entendida por ela como mais comum e esperada do homem. A recusa dos homens em usar o preservativo é o foco do problema, já que a maioria não gosta de usar a camisinha por acreditar que não sentirá o orgasmo da parceira, nem o seu próprio, com tanta intensidade (Siegler et al., 2012; Zou et al., 2012). O medo de perder o parceiro é, sem dúvida, uma das grandes causas para se “abrir mão” da camisinha para as mulheres (Diehl et al., 2014a). O comportamento pessoal de uso de preservativo de forma responsável tem relação direta, nos homens, com o grau de intenção de uso de preservativo com a sua última parceria sexual (Brafford & Beck, 1991). Já nas mulheres, a intenção de uso está ainda fortemente influenciada por normas subjetivas pessoais e sociais; em gays, o não uso do preservativo pode estar relacionado ao desejo de atingir intimidade ou à crença de que, estando em um relacionamento monogâmico, não há necessidade de usar preservativo. O uso incorreto e inconsistente de preservativos tende a limitar o sucesso de programas de prevenção a ISTs e ao HIV em todo o mundo, especialmente em populações vulneráveis, como os usuários de drogas (Ross et al., 2003; Sanders et al., 2012; Zou et al., 2012). Compreender os padrões de uso de preservativos e as razões de ambos os gêneros – masculino e feminino – para fazerem escolhas em usar preservativo com suas parcerias sexuais (fixa ou ocasional) e as atitudes gerais em relação aouso do preservativo é importante tanto para o desenvolvimento quanto para a implementação de intervenções adequadas, as quais podem aumentar a promoção do uso do preservativo entre usuários de drogas. Para aumentar o uso de preservativos, os programas de tratamento devem considerar a segmentação específica do gênero no que tange a atitudes específicas em relação ao uso do preservativo nessas populações (Niv & Hser, 2007; Miranda et al., 2011). Deve-se prestar especial atenção ao usuário de crack, porque alguns estudos têm mostrado que o risco sexual associado ao uso de crack varia de acordo com os diferentes contextos em que o crack é usado (ex.: econômicos, sociais, fissura, locais de uso etc.) (Montoya, 1998; Ross et al., 2003; Schönnesson et al., 2008). A vulnerabilidade para as práticas sexuais de risco, tais como trocas de atividade sexual por dinheiro ou drogas, e a vitimização sexual são, provavelmente, mais elevadas nessa população, pelas características farmacológicas, sociais e culturais atreladas a essa droga de escolha (Kang et al., 2005; Brewer et al., 2007; Ober et al., 2011; Dickson- Gomez et al., 2012). Como mostra, por exemplo, o estudo de Nunes e colaboradores (2007), que avaliou uma amostra de 125 mulheres usuárias de crack provenientes de comunidades carentes em Salvador, Brasil, com 90% delas tendo baixo nível de escolaridade e elevada taxa de desemprego. Ainda, 37% das mulheres relataram atividade sexual por dinheiro ou drogas e 58% relataram que não usaram preservativos durante as relações sexuais nos últimos 30 dias. O estudo reforça que mulheres usuárias de crack são um grupo de vulnerabilidade importante no que diz respeito à transmissão de ISTs (Nunes et al., 2007). Outros estudos a respeito do não uso de preservativos no gênero feminino têm mostrado outras razões, as quais incluem: achar que conhece bem a parceria sexual; ter uma “antipatia” geral para o uso de preservativos; ter atitudes e conceitos negativos relacionados ao preservativo (Ex. diminui sensibilidade); não ter fácil acesso e disponibilidade de preservativos no momento da relação sexual; questões conjugais (ser casado versus outra classificação estado civil); religiosidade (menor); ter problemas com drogas (quanto maior o problema com drogas maiores foram as atitudes negativas com relação ao uso de preservativos); finalmente, não há a percepção de que existe a necessidade de uso de preservativos naquela relação sexual (Sterk et al., 2004; Bungay et al., 2010; Miranda et al., 2011; Norman et al., 2011). Outras razões comuns para usuários de drogas não usarem o preservativo são: uma menor percepção do risco de contrair o HIV /IST; atitudes negativas em relação aos efeitos de preservativos no prazer e no desejo sexual; alta excitação sexual quando sob a influência de drogas; e dificuldade em convencer as parcerias sexuais a usarem preservativos (Weinstock et al., 1993; Mitchell & Latimer, 2009). Vinte e nove estudos de amostras provenientes de pacientes dependentes de substâncias foram identificados em uma revisão sistemática e meta-análise realizada por Malta et al. (2010), com 13.063 participantes no Brasil entre 1999 a 2009. Esses estudos, consistentemente, têm reconhecido que o usuário de drogas injetáveis (UDI) e o compartilhamento de agulhas e seringas estão entre os preditores-chave da infecção pelo HIV, bem como a mulher profissional do sexo e homens que fazem sexo com homens (HSH). Os resultados mostraram que a prevalência do HIV combinado por meio dos estudos destinados a usuários de drogas, tanto injetáveis quanto não injetáveis, foi de 23,1% (intervalo de confiança de 95% (CI): 16,7-30,2) e 38,3% nos indivíduos que relataram que nunca usam ou quase nunca usam preservativos com parcerias sexuais ocasionais (Malta et al., 2010). Estudo conduzido pela Fundação Fio Cruz, no final de 2011 a junho de 2013, com 7.381 usuários de crack no Brasil, mostrou que 39,5% dos entrevistados relataram não ter usado preservativo nas relações sexuais vaginais no último mês da pesquisa e 53,9% nunca realizaram na vida testagem para HIV. Nessa amostra, os usuários de crack têm prevalência oito vezes maior que a população geral para ser portador do vírus HIV (5% versus 0,6%). Além disso, 2,9% dos usuários de crack que vivem nas capitais do país têm Hepatite C (FIOCRUZ, 2013). Outros estudos também têm sinalizado a vulnerabilidade de outras infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis, Human Papiloma Virus (HPV), Hepatite B e C em usuárias de drogas (Judd et al., 2005; Islam et al., 2013; Nguyen et al., 2014; Pinto et al., 2014). Estudo conduzido por Pinto e colaboradores (2014) apresentou a amostra de 598 mulheres provenientes do Centro de Referência e Treinamento (CRT) da AIDS na cidade de São Paulo mostrando prevalência de sífilis prévia de 6,2% (IC 95% 4,3-8,1). Observou-se que o crack foi identificado entre os principais fatores de risco associados à alta prevalência de sífilis prévia [Odds Ratio = 6,8 (IC 95% 1,7-27,5)]. Usuários de club drugs (Ex. Ecstasy, GHB) compõem outra população que aumentou dramaticamente ao longo das últimas duas décadas, segundo o último Relatório de Drogas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 2013). Alguns estudos têm documentado uma maior prevalência do uso inconsistente do preservativo e de múltiplas parcerias sexuais entre os usuários de club drugs em comparação com a população geral (Ibañez et al., 2010; Zuckerman, Boyer, 2012). Em um estudo nacional realizado por Remy et al. (2013) com 240 usuários de club drugs, 80% relataram ter usado álcool/drogas para fazer com que a relação sexual pudesse durar mais tempo, 52,5% relataram ter tido relações sexuais desprotegidas, 63% relataram ter mais de duas parcerias sexuais, 40% relataram ter tido sexo anal, e 15% haviam trocado dinheiro por sexo ou sexo por dinheiro (trading sex) nos 12 meses anteriores à entrevista. Finalmente, 84% relataram ter tido relações sexuais com um homem que provavelmente tinha tido relações sexuais com outro homem nos 12 meses anteriores à entrevista (Remy et al., 2013). Evidências recentes sugerem uma associação entre o uso de maconha e comportamentos sexuais de risco, tais como iniciação sexual precoce, não uso de preservativo e aumento do número de parcerias sexuais em homens e mulheres (Saso, 2002; Eloi-Stiven et al., 2007; Aversa et al., 2008; Hendershot et al., 2010). Importante também na questão do comportamento sexual de risco é o número de parcerias sexuais, tipo ou padrão de relacionamento amoroso (monogâmico, não monogâmico) ou arranjos sexuais (casual ou fixo), tipo de intercurso sexual (anal, vaginal, oral), práticas sexuais variantes, uso de “brinquedos sexuais” e o uso de álcool e drogas, os quais podem estar mais ou menos propensos a riscos de contaminação se não houver uso de preservativo (Li & McDaid, 2014; El-Bassel et al., 2014; Parsons & Starks, 2014). Infelizmente, as tentativas de mudar os comportamentos sexuais de risco nas mulheres que são usuárias de cocaína na forma de crack têm tido menos sucesso do que os esforços para mudar o comportamento de risco com compartilhamento de agulhas e seringas em usuários de drogas injetáveis (Montoya, 1998; Nunes et al., 2007; Malchy et al., 2011). Intervenções breves em grupo, tais como escolhas positivas, intervenções educativas ou motivacionais já foram avaliadas com algum sucesso para aumentar o uso de preservativos, da intenção de usar o preservativo, para mudar as atitudes do uso do preservativo e crenças entre os fumantes de crack e outras drogas (Harris et al., 2010; Williams et al., 2012; Fischer et al., 2015). Revisão de Cochrane, conduzida por Meader et al. (2010), avaliou um total de 35 estudos com 11867 participantes afim de avaliar a eficácia de intervenções psicossociais do tipo multisessão, em comparação com a educação padrão e controles de intervenção mínimas para a redução do uso de seringas e de comportamento sexual de risco, tanto em usuários de cocaína injetável quanto na forma decrack. Os resultados mostram que todos os grupos foram eficazes em promover alguma redução do comportamento de risco. Além disso, houve alguma evidência de benefício para intervenções psicossociais multisessão quando comparadas com os controles mínimos. As análises de subgrupos sugerem que as pessoas em tratamento formal são propensas a responder a intervenções psicossociais multisessão. Parece também que grupos de gênero único (somente mulheres ou somente homens) podem estar associados a um maior benefício (Meader et al., 2010). Cabe finalmente mencionarmos um fenômeno mundial relativamente recente chamado de “chemsex”, do inglês chemical sex (sexo químico), ou seja, festas com convidados que irão usar drogas, fazer atividade sexual sob o efeito delas e com sérios riscos de não usarem preservativos. Em Londres, o fenômeno já vem sendo considerado uma questão de saúde pública pelas autoridades e especialistas. O termo “chemsex” foi cunhado para indicar a ingestão voluntária de drogas psicoativas e não psicoativas no contexto de ambientes recreativos para facilitar e/ou melhorar as relações sexuais http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Li%20J%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24345556 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=McDaid%20LM%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24345556 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Parsons%20JT%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24322670 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Starks%20TJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24322670 principalmente entre homens que fazem sexo com outros homens (HSH) (Giorgetti et al., 2017). Os tipos de drogas ofertadas são das mais variadas, no entanto uma bandeja com speed e cetamina parece ser um dos “menus principais”. Mas mefedrona, metanfetamina e GHB estão na lista a fim de fazerem com que o participante da festa possa suportar sessões de atividade sexual por mais tempo, as quais podem durar vários dias. As atividades envolvem um claro perigo, emoções e sensações intensas e uma oportunidade para exercitar habilidades especializadas (Hickson et al., 2018). Um dos principais problemas para estabelecer intervenções prioritárias de políticas de saúde para chemsex é a falta de dados epidemiológicos disponíveis sobre a questão. Ações sociais devem ser tomadas a fim de derrubar as barreiras que atualmente existem entre usuários de drogas no acesso a serviços, incluindo a vergonha e o estigma frequentemente associados ao uso de substâncias. São necessários recursos mais específicos para enfrentar altos riscos de infecções e transmissão do HIV (Giorgetti et al., 2017). CAPÍTULO 6 DISFUNÇÃO SEXUAL EM DEPENDENTES DE SUBSTÂNCIAS Alessandra Diehl Para falarmos sobre disfunções sexuais, é preciso entender as fases da resposta sexual humana. Os pioneiros nesse campo de pesquisa sobre as respostas da sexualidade humana foram William Masters e Virginia Johnson (1966), que descreveram o ciclo de resposta sexual nas seguintes fases: excitação, platô, orgasmo e resolução. Ilustrado pela Figura1. FIGURA 1 - CICLO DE RESPOSTA SEXUAL Fonte: Adaptada de Masters e Johnson, 1966 Algum tempo mais tarde, em 1974, Helen Kaplan propôs a importância do estágio do desejo para que haja engajamento sexual no seguinte esquema: desejo, excitação, orgasmo e resolução (Kaplan, 1974). Enquanto que os sexólogos brasileiros Mabel e Ricardo Cavalcanti propuseram (Cavalcanti, M. & Cavalcanti, R., 2012): Apetência: fase subjetiva, em que há resposta a um estímulo, caracterizando-se pelo desejo ou apetência sexual. Excitação: resposta fisiológica (ereção no homem e tumescência e lubrificação na mulher). Orgasmo: contrações musculares reflexas e sensação de clímax do prazer sexual. Relaxamento: retorno progressivo do organismo às condições basais com relaxamento muscular e de congestão sanguínea. Cabe mencionar também que, para a pesquisadora canadense Rosemary Basson, o ciclo de resposta sexual na mulher deve ser compreendido diferentemente do modelo dos homens, uma vez que nas mulheres a intimidade emocional é extremamente relevante, podendo sair do estágio de neutralidade sexual para então, sob estímulos, engajar-se na atividade sexual (Basson, 2011). A busca de um modelo de resposta sexual mais flexível para as mulheres Há ainda um debate na literatura científica sobre qual modelo de resposta sexual humano pode de fato melhor representar a resposta sexual de mulheres (Hayes et al., 2011). Tradicionalmente, a pesquisa sexual tem sido conduzida dentro do modelo de resposta sexual linear proposto por Masters e Johnson (1966), modificado por Kaplan (1979), com a introdução da dimensão do desejo sexual. A crítica aos modelos lineares levou ao desenvolvimento de um modelo circular específico para a resposta sexual feminina idealizado por Basson (2000). No entanto esse modelo de resposta para as mulheres também tem sido alvo de críticas, uma vez que parece se adequar e melhor representar apenas aquelas mulheres com alguma disfunção sexual. Os pontos-chave do modelo da canadense Rosemary Basson incluem o fato de que o desejo sexual não é obrigatório para que a resposta sexual seja iniciada, embora possa se seguir de estímulos sexuais prazerosos. A ênfase está na motivação da mulher para se envolver na atividade sexual. O modelo é circular, porque as emoções positivas ou negativas experimentadas durante cada atividade sexual tendem a influenciar subsequentemente a motivação da mulher para participar de encontros sexuais posteriores. O artigo de Ferenidou e seus colegas gregos, publicado em 2016 no Journal of Sexual Medicine, observou uma interessante lacuna na literatura científica, uma vez que os estudos publicados até o momento abordaram mulheres solicitando para que elas escolhessem entre um ou outro modelo que melhor se “encaixa” com o seu contexto sexual (ou linear ou circular). Apenas um estudo conduzido por Nowosielski, Wrobel e Kowalczyk (2016) na Polônia com 100 mulheres deu a opção para a amostra de mulheres incluídas escolhessem um ou outro, ou ambos. Entre as limitações desse estudo estão o fato de a amostra ser relativamente pequena, o que impede generalizações, assim como o fato de haver uma proporção semelhante de mulheres com e sem disfunção sexual. Dentro desse cenário, o artigo de Ferenidou et al. (2016) teve como objetivos saber qual modelo de resposta sexual humano melhor representa e ajusta-se às experiências sexuais das mulheres, e também conhecer os fatores que poderiam explicar a variação da escolha de um ou outro modelo (linear ou circular, ambos ou nenhum) de resposta sexual humano nas mulheres baseados na dimensão do conceito de motivação sexual proposto no modelo circular de Basson. Para tanto, os autores recrutaram de forma aleatória e randômica 205 mulheres trabalhadoras de um hospital na Grécia. Destas, 172 (76.2%) responderam ao inquérito voluntário, anônimo, sem identificação, cuja resposta era depositada em uma urna. No entanto a amostra final foi composta por 157 mulheres, uma vez que 15 tiveram que ser excluídas por não completarem todo o questionário de forma adequada. Os critérios de inclusão eram apenas a voluntariedade em participar e ser maior de 18 anos. A média de idade dessa amostra (variando entre 21 a 58 anos) foi de 34 anos. Os instrumentos utilizados foram: 1. A criação de uma pergunta formulada para que as mulheres fossem convidadas a escolher qual dos modelos descreve sua atual experiência sexual. As mulheres também tiveram oportunidade de escolher os dois modelos e, em seguida, indicar quantas vezes cada modelo descreveu melhor sua experiência sexual numa escala de frequência. 2. O Índice de funcionamento Sexual Feminino (FSFI) é um instrumento de autorrelato com 19 itens para avaliar as principais dimensões da função sexual em mulheres, o qual foi validado e adaptado culturalmente em pelo menos 15 países, inclusive na Grécia. Uma pontuação total não superior a 26.55 é sugerida como o ponto de corte para distinguir mulheres com aquelas sem uma disfunção sexual. Os autores usaramuma versão adaptada do instrumento com back translation feita por intermédio de grupos focais anteriormente à pesquisa. 3. A Brief Sexual Symptom Checklist for Women (BSSC-W) é uma lista de verificação de autorrelato com quatro itens simples sobre a percepção e a satisfação das mulheres em relação à função sexual desenvolvida pela Consulta Internacional sobre Medicina Sexual. A lista de verificação de sintomas breves é adequada para uso em ambientes de atenção primária e aborda o nível de satisfação com a função sexual usando uma única pergunta: “Você está satisfeita com sua função sexual (sim ou não)?” Para uma resposta negativa, três perguntas adicionais se seguem as quais avaliam a duração da insatisfação de uma paciente com sua função sexual, o(s) tipo(s) de problemas sexuais vivenciados e a disposição da paciente em discutir o problema com um profissional de saúde. 4. Reasons for Having Sex Questionnaire (YSEX): é um instrumento que consiste em 142 razões pelas quais as pessoas fazem sexo, divididas em quatro fatores gerais e 13 subfatores. Os participantes pontuam de 1 a 5 na frequência com cada razão que os leva a ter atividade sexual. Nesse estudo, foram utilizadas 13 frases representando os 13 subfatores do questionário principal (versão curta). Os resultados gerais mostram que 64.3% das mulheres escolheram o modelo linear (Master, Johnson, & Kaplan), 14.6% escolheram o modelo circular da Basson e 20% escolheram os dois modelos. Não houve diferenças estatísticas dessa correlação. Quanto à motivação das mulheres para se engajarem em atividade sexual estão 36.5% por prazer, 31.4% para expressar sentimentos em relação ao parceiro e 27.2% por amor e compromisso. Quanto maior o índice de FSF maior a satisfação sexual e maior a probabilidade de ter escolhido os dois modelos. Mulheres com disfunção sexual tenderam a ter escolhido o modelo da Basson, circular. Os autores apontaram as limitações desse estudo, que incluem os possíveis vieses de seleção e aferição dos dados. Soma-se o fato de ser uma amostra pequena e daí a necessidade de se ter cautela com generalizações. Os autores também apontaram que as escalas utilizadas não são validadas naquele país, assim como o contexto em que as perguntas foram feitas, num ambiente de trabalho, pois todas essas questões podem ter influenciado os resultados. No entanto o aspecto positivo a ressaltar desse estudo e com possíveis implicações para a prática clínica foi o fato de a discussão os autores proporem que os terapeutas e profissionais de saúde que trabalham na área com os modelos de resposta sexual para mulheres não fiquem “engessados” ou que necessariamente o profissional tenha que escolher um ou outro para trabalhar com suas pacientes. Mais da metade das mulheres endossou os dois modelos, embora em dois terços do tempo o modelo linear fosse o preferido. Esses achados sugerem heterogeneidade e flexibilidade na resposta sexual, dependendo das circunstâncias. A adoção de um ou outro modelo não é necessariamente uma escolha vitalícia. As mulheres podem caracterizar seu estilo de resposta sexual como um modelo mais próximo em uma determinada vez e outro modelo em um momento diferente, retratando a variabilidade do comprometimento com um ou outro modelo ao longo do ciclo de vida. Esse artigo recebeu comentário de crítica em cartas ao editor escrito por de Driscoll M, Basson R, Brotto L, Correia S, Goldmeier D, Laan E, Luria M, Shultz W, Tiefer L, Toates F, intitulado “Empirically Supported Incentive Model of Sexual Response Ignored” e publicado no J Sex Med (2017 May; 14 (5): 758-759. doi: 10.1016/j.jsxm.2017.03.248). Segundo Driscoll e colegas (2017), o círculo representado nesse estudo por Ferenidou et al. (2016) não reflete o modelo de Rosemary Basson e não deve ser rotulado dessa forma. O modelo de Basson (subsequente ao seu modelo parcial inicial em 2000, que introduziu a ideia de reconhecer o desejo que era responsivo aos estímulos, uma vez que a atividade sexual já tenha começado), foi representado a partir de 2001 como um composto – permitindo o comportamento sexual decorrente de um senso de desejo sexual já presente e/ou de outras motivações. Basson observou que muitas dessas outras motivações têm relação com aumentar ou promover a intimidade, como mais tarde confirmado por grandes estudos e por pequenos, como o de Ferenidou et al. (2016). Outras motivações dizem respeito à expectativa ou à antecipação do prazer sexual, embora no momento da oferta do convite sexual, ou da sua iniciação, a pessoa é sexualmente “neutra”, mas está “aberta” ou querendo se excitar e sentir o desejo “em breve”. A observação de que a maioria das mulheres endossou os dois modelos que foram oferecidos sugere fortemente que o modelo composto de Basson (em oposição ao círculo descrito por Ferenidou et al., 2016) refletiria melhor sua variável, diversa, e as experiências sexuais fluidas. A segunda crítica foi relativa ao fato de que quando a disfunção sexual é identificada ou definida por baixos níveis de desejo aparentemente não provocado ou “espontâneo”, como em instrumentos e discussões que assumem apenas o desejo espontâneo como “normal”, então as mulheres mais familiarizadas com o desejo desencadeado a partir de estímulos sexuais serão https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Brotto%20L%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Goldmeier%20D%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Laan%20E%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Shultz%20W%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Tiefer%20L%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Toates%20F%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526 automaticamente consideradas disfuncional. Não há reconhecimento ou mensuração de sua maior parte responsiva – ou nos termos “extrínsecos” da Kaplan – ao usar esses instrumentos. As questões que os autores não contextualizaram na discussão e que acredito que caberia ainda discutir de forma breve são: (1) o contexto cultural. Será que esses achados são particulares dessa amostra e têm uma questão cultural envolvida? Daí a recomendação para replicação em outros contextos, não só de locais de saúde, como foram coletados esses dados, mas também outras amostras para verificar se os achados se repetem com maior diversificação de mulheres. Também (2) não foi contextualizado o fato de a amostra ser constituída somente por mulheres heterossexuais e cisgêneras. Já que os autores chamam a atenção para a flexibilidade do modelo e a heterogeneidade das vivências sexuais de mulheres e a fluidez delas, também fica a curiosidade para saber se essa flexibilidade reflete-se em diferentes grupos de mulheres, como em negras e lésbicas, transexuais, por exemplo, o que não foi sequer discutido ou aventado. A Função Sexual A função sexual baseia-se em uma complexa rede de vias neurais periféricas e centrais (Wu et al., 2009). Classicamente, os receptores externos do corpo transmitem informações a partir do ambiente para o córtex cerebral, por meio do tálamo. De tal modo que a resposta sexual humana envolve a participação de múltiplos tipos de estímulos (psicológicos, biológicos, ambientais) e o processamento do entendimento do controle sexual e da resposta sexual supõe a integração entre os mecanismos fisiológicos clássicos com os processos mais complexos da mente humana (Motofei & Rowland, 2014). Assim, a cognição e a sexualidade são duas funções relacionais dependentes de todos esses estímulos (Heaton & Adams, 2003). Estudos de imagem funcional cerebral em humanos têm indicado o papel essencial das regiões corticais, como o córtex cingulado anterior, na participação da função sexual e do amor romântico. No entanto pode-se dizer que ainda se sabe muito pouco sobre os substratos neurais envolvidos em evocar estados afetivos do amor romântico (Bartels & Zeki,2000). http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Rowland%20DL%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24053436 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Heaton%20JP%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=14551574 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Zeki%20S%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=11117499 O desejo sexual desperta nos seres humanos o estímulo para buscar experiências sexuais ou tornar-se receptivo a elas. A percepção de um estímulo positivo desencadeia uma ativação em centros específicos localizados em áreas cerebrais conhecidas como centros de recompensas cerebrais ou centro do prazer. A ativação biológica ocorre em linhas gerais por ação tanto de hormônios quanto de neurotransmissores. Os ritmos sexuais biológicos nos homens e nas mulheres são modulados pelos hormônios sexuais por meio da sua ação sobre os centros sexuais do cérebro. Assim, homens e mulheres podem controlar esses estímulos, modificá-los ou submetê-los à sua vontade. Pode-se dizer que o cérebro é o órgão sexual mais importante no ser humano e que a regulação fisiológica da função sexual ocorre pelo envolvimento de várias regiões encefálicas. Destaca-se o hipotálamo na área pré-óptica medial, que determina a regulação excitação/inibição e é considerado decisivo no comportamento sexual. Também merece destaque o papel do sistema límbico, da amígdala ou corpo amigdaloide situado no lobo temporal, que atua na modulação do comportamento erótico e emocional. No ser humano, o córtex tem grande importância na regulação sexual, pois define a modulação psíquica e de aprendizagem, definindo, portanto, a ação de ser inibidor ou facilitador desse processo (Pereira, 2013). Quanto aos hormônios, o papel da testosterona é o mais significativo, sendo considerado para ambos os sexos o “hormônio do desejo”. Outro hormônio que atua nos centros sexuais do cérebro é o fator liberador do hormônio luteinizante (LH-RF), que pode “incrementar” o desejo sexual, mesmo na ausência da testosterona. O papel desses hormônios influencia o comportamento sexual por meio de sua interação com neurotransmissores que modulam os impulsos neurais dentro dos circuitos sexuais. As bases neurofisiológicas e neuroanatômicas do desejo sexual não foram tão bem delineadas como outros impulsos como a fome, a sede ou a necessidade de dormir. No entanto sabe-se que dois neurotransmissores estão bastante envolvidos na fase de desejo: a dopamina e a serotonina. A dopamina estimula o desejo sexual e a serotonina atua como inibidora dele (Pereira, 2013). Disfunção sexual é definida por Cavalcanti e Cavalcanti como um “bloqueio” parcial ou total da resposta psicofisiológica, ou seja, entre uma fase e outra (Cavalcanti & Cavalcanti, 2012). Se o bloqueio ocorre entre o estímulo e a apetência/desejo, caracteriza-se disfunção de apetência ou desejo hipoativo. Disfunção de excitação ocorre quando existe um bloqueio entre a apetência e a excitação (disfunção erétil no homem e alterações na lubrificação vaginal na mulher). Disfunção orgástica é a ausência do orgasmo ou anorgasmia. É importante ressaltar que, no homem, o orgasmo geralmente coincide com a ejaculação e, assim, tem-se as disfunções ejaculatórias (ejaculação rápida ou precoce, e ejaculação bloqueada ou retardada). Outras disfunções são a dispareunia (dor na relação sexual) e vaginismo (contração involuntária da vagina, que impede a penetração). Vale lembrar que para ser considerada de fato uma síndrome clínica de disfunção sexual, os sintomas devem estar presentes por um período igual ou superior a seis meses. Essas terminologias estão em processo de modificação, sendo que algumas já foram incorporadas na nova Diagnostic Statistc of Mental Disorders (DSM) V e algumas outras serão incluídas na Classificação Internacional das Doenças (CID) 11, na qual está sendo proposta uma categoria única para as disfunções sexuais, ou seja, uma classificação unificada de disfunções sexuais sem o subitem orgânico e não orgânico, eliminando assim a falsa dicotomia entre mente e corpo. Também existe a tentativa de unificar as disfunções sexuais masculinas e femininas, quando possível. Acredita-se que isso possa reduzir o estigma e incentivar a busca pelo tratamento. Assim, a categoria requer um novo capítulo que provavelmente sairá do capítulo V, de transtornos mentais. Está sendo sugerido um novo capítulo para questões da saúde sexual e condições relacionadas. Também está sendo proposta a remoção das categorias “aversão sexual” e “falta de prazer sexual”, as quais estão amarradas a velhas noções de “frigidez” feminina (Waldinger & Schweitzer, 2006; Perelman, 2011; Clayton et al., 2012). A disfunção sexual é um problema que pode se tornar crônico, muito comum e prevalente na população geral (Abdo, 2004; Hayes et al., 2006; Burri & Spector, 2011; Lewis, 2011) e em especial entre as pessoas que usam drogas em todo o mundo (Lemere & Smith,1973; Rosen, 1991; Okulate et al., 2003; Cheng et al., 2007; Palha & Esteves, 2008), estando associada à baixa autoestima, a sintomas de depressão, ao prejuízo na qualidade de vida e na saúde física, os quais podem ser um gatilho para a recaída da droga, percebida, muitas vezes, como benéfica pelo usuário para a sua resposta sexual (Okulate et al., 2003; Bang-Ping, 2009; Mialon et al., 2012; Cioe et al., 2013). No entanto a maioria dos psicólogos, clínicos e psiquiatras que atuam na área do tratamento das dependências de substâncias raramente realizam uma anamnese sexual sumária nas consultas de rotina que incluem diretrizes sobre as disfunções sexuais em pacientes dependentes de drogas. Portanto essa conduta ainda não é uma prática generalizada em ambientes clínicos e, como resultado, a disfunção sexual é ainda muitas vezes negligenciada e inexplorada em atendimento clínico de rotina de pacientes dependentes de drogas (Harvey, 2009, 2010; Diehl et al., 2011a; Zaazaa et al., 2013). A identificação da magnitude desses transtornos e a gestão de questões relacionadas com a saúde sexual nessa população podem ter impacto significativo na promoção da saúde desses indivíduos (Vieira & Diehl, 2011; Harvey, 2010). Gerenciar os problemas sexuais e o uso de drogas é especialmente importante para a melhora dos sintomas relacionados à disfunção sexual, já que sua resolução não pode acarretar uma busca de alívio no uso de drogas, em resposta à frustração de não atingir o prazer sexual (Harvey, 2009). Acredita-se que a percepção desses problemas por parte dos profissionais de saúde tende a contribuir para uma atenção integral e mais humanizada (Worly et al., 2010). Portanto, a disfunção sexual em pacientes com transtornos por uso de substâncias é uma questão a ser considerada no campo da medicina sexual (Zaazaa et al., 2013), mas ainda com sub-representação nos estudos científicos sobre esse assunto no cenário acadêmico (Cheng et al., 2007; Chew et al., 2009), uma vez que há uma falta de estudos descritivos com foco na disfunção sexual em homens e mulheres dependentes de álcool e outras drogas, e isso inclui os estudos brasileiros. Muitos dos estudos sobre esse tema presentes na literatura científica internacional têm sido realizados principalmente com usuários de opioides ou avaliando os efeitos de medicamentos (metadona e buprenorfina), usados para tratar usuários de heroína, sobre a resposta sexual (Diehl et al., 2010; Babakhanian et al., 2012; Cioe et al., 2013). Os relatos são provenientes de adultos jovens do sexo masculino dependentes de opioide, com idade média variando de 28 a 49 anos, cujas taxas de prevalência de disfunção erétil variaram em média de 21-52% (Hallinan et al., 2008; Babakhanian et al., 2012; Cioe et al., 2013). A prevalência de ejaculação precoce em dependentes de opioides tem sido referida como sendo quase três vezes maior do que o relatado na população geral (um em cada quatro homens pode sofrer de ejaculação precoce) (Abdo, 2004; Chekuri et al., 2012). Em longo prazo, os opioides afetam o eixo hipotalâmico-pituitário-gonadal (HPG) e interferem na produção de hormônios sexuais,o que contribui para a disfunção erétil. Além disso, os opioides exógenos se ligam a receptores µ (mu) no hipotálamo, diminuindo a liberação do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH). Os opioides também aumentam a liberação de prolactina pela hipófise e modificam a produção de hidroepiandrosterona (DHEA) nas glândulas suprarrenais, o que afeta tanto a produção quanto a liberação de testosterona. Isso leva à diminuição na liberação de hormônio luteinizante, do hormônio folículo-estimulante da hipófise e a uma queda na produção gonadal de esteroides (testosterona e estradiol) (Cicero et al., 1979). Existe relato de que o consumo sistemático e em longo prazo de altas quantidades de álcool pode acarretar disfunção sexual em homens, uma vez que se acredita que o álcool pode causar danos neurológicos (Pandey et al., 2012). Estudo sobre esse tema na década de 70 mostra que a prevalência de disfunção sexual na população dependente de álcool era em torno de 8%, e persistindo em 50%, mesmo após longa abstinência de álcool (Lemere & Smith, 1973). Outros autores encontraram taxas de disfunção sexual variando de 40 a 95% em pacientes dependentes de álcool. As disfunções sexuais comumente relatadas foram a disfunção erétil, seguida de ejaculação precoce, ejaculação retardada e diminuição do desejo sexual entre os homens. Entre as mulheres dependentes de álcool, observa-se a presença de dispareunia e secura vaginal. Outra correlação consistente de disfunção sexual relatada em pacientes dependentes de álcool é o avanço da idade. Outros correspondentes de disfunção sexual incluem a idade de início de consumo de álcool, a duração do alcoolismo (quanto mais crônico, maior a presença de disfunção sexual), a presença de doença hepática, o uso de cigarro, o baixo nível de escolaridade e o desemprego (Arackal & Benegal, 2007; Krupnov et al., 2011; Vieira & Diehl, 2011; Zaazaa et al., 2013). A principal limitação dos dados existentes é a maneira pela qual a disfunção sexual foi avaliada em estudos com indivíduos dependentes de álcool. Alguns estudos têm avaliado a disfunção sexual usando a notificação espontânea ou questões abertas, que podem ser interpretadas de forma diferente por diferentes pacientes e, portanto, os resultados podem não ser comparáveis. Outros estudos usaram medidas inconsistentes e não validadas de disfunção sexual. Além disso, os grupos foram mistos de homens e mulheres, não avaliaram outros fatores contextuais que podem contribuir para a disfunção sexual ou, em sua grande maioria, não utilizaram controles pareados (Fahrner, 1987; O’Farrell et al., 1991; Rosen, 1991; Okulate et al., 2003; Cheng et al., 2007; Chew et al., 2009). Apesar de a disfunção sexual feminina ter sido investigada em grupos de mulheres com vários problemas de saúde, como as portadoras de síndrome dos ovários policísticos, diabetes, HIV e câncer de mama, as mulheres com transtorno por uso de substâncias têm sido pouco estudadas com relação à disfunção sexual. Mulheres dependentes de álcool e outras drogas representam uma população única para fatores de vulnerabilidade e que continuam a sofrer baixas taxas de detecção e acesso limitado ao tratamento para questões relacionadas às disfunções sexuais (Lau et al., 2005; Hayes et al., 2006; Niv & Hser, 2007). Fatores sociodemográficos como idade, estado civil, renda e educação têm sido fortemente preditivas de sintomas de disfunção sexual nas mulheres, cujas taxas de prevalência de sintomas de disfunção sexual variam de 12 a 63% (Burri et al., 2011; Lewis, 2011; Worly et al., 2010). O manejo das disfunções sexuais em dependentes químicos nem sempre é uma tarefa fácil. No entanto ela é possível à medida que a droga de uso seja removida e os outros fatores de risco possíveis causadores e o tipo de disfunção sexual sejam identificados e trabalhados (ex. obesidade, tabagismo, dislipidemia, sedentarismo, entre outros). Por exemplo, nas últimas décadas, a disseminação de opioides nos EUA tornou-se uma epidemia, em grande parte estimulada pelo aumento do uso de analgésicos prescritos. Com a epidemia veio um aumento concomitante na incidência de deficiência de androgênio induzida por opioides. Embora a deficiência de androgênios possa afetar significativamente a função sexual masculina e a qualidade de vida, é uma entidade clínica negligenciada e pouco entendida que requer mais atenção dos profissionais de saúde. Como a deficiência de androgênios causadas por opioides é uma consequência subestimada e subdiagnosticada do uso crônico de opioides, os profissionais de saúde devem estar particularmente atentos a sinais de hipogonadismo nessa população de pacientes. É razoável que especialistas em dor, urologistas e médicos da atenção primária acompanhem de perto os pacientes com opioides prescritos e discutam as opções disponíveis para o tratamento do hipogonadismo. Deve haver a solicitação de estudos laboratoriais (testosterona, hormônio luteinizante [LH], hormônio folículo estimulante [FSH]) em pacientes sintomáticos que têm uma história de uso crônico de opioides. As opções de tratamento incluem cessação de opioides, opioides de ação curta e terapia de reposição de testosterona (TRT). O paciente e o médico devem pesar os riscos e benefícios do TRT contra abordagens mais conservadoras (Hsieh et al., 2018). Para ejaculadores precoces o uso de antidepressivos inibidores da recaptação da serotonina (IRSS) continua sendo uma boa possibilidade, tal como paroxetina 20 mg/dia, fluoxetina 20 mg/dia, sertralina 50 mg/dia entre outros. Para a disfunção erétil (DE) pode avaliar riscos e benefícios, assim como contraindicações para o uso dos inibidores da fosfodiesterase -5 (PDE-5) (Diehl & Vieira, 2017). A população de mulheres com diagnóstico de dependência de álcool entra na fase da menopausa na mesma idade que a população de mulheres não bebedoras. O tempo de uso de álcool é um fator importante que afeta tanto o curso da menopausa quanto a dinâmica do período da perimenopausa, levando à escalada dos sintomas. Identificar o alcoolismo e tratar os sintomas da menopausa tende a trazer maior qualidade de vida, já que o alcoolismo prejudica as funções sexuais femininas (diminuição do desejo sexual, redução do fluido vaginal, dificuldade para sentir o orgasmo). Daí a importância de avaliar o estágio e sintomas menopausais e tratá-los conjuntamente quando possível (Jenczura et al., 2018). A idade precoce do início da menopausa tem sido associada ao aumento dos riscos de todas as causas, cardiovasculares e de mortalidade por câncer. O risco da idade precoce na menopausa associada à exposição primária e secundária ao álcool e ao tabaco são também importantes a serem consideradas em mulheres dependentes dessas duas substâncias (Fleming et al., 2008). CAPÍTULO 7 DEPENDÊNCIA DE SEXO, PARAFILIAS E DEPENDÊNCIA DE DROGAS Alessandra Diehl A dependência de sexo é discutivelmente uma questão ainda controversa, mas isso não retira o fato de que alguns indivíduos buscam ajuda profissional para sexo excessivamente problemático, independentemente de como o comportamento é conceituado (Dhuffar & Griffiths, 2016). Há certa inconsistência entre os pesquisadores não somente quanto ao conceito, mas também quanto à definição de dependência de sexo. Goodman (1993) definiu a dependência sexual como uma falha em resistir aos impulsos sexuais, com frequente ocupação com atividades sexuais, as quais são preferidas em detrimento a outras atividades, inquietação quando não é possível realizar atividade sexual e tolerância a esse comportamento. Já Mick e Hollander (2006) definiram dependência de sexo como um comportamento sexual compulsivo e impulsivo, enquanto Kafka (2010) definiu como hiperssexualidade, que é o comportamento sexual acima da média, o qual é caracterizado por falha em interromper o comportamento sexual com consequências ocupacionais. Em vista das várias definições de dependência de sexo, um dos desafios é determinar o que constitui de fato essa condição. A quinta edição do Manual Diagnóstico eEstatístico de Transtorno Mental (DSM-5) usa o termo hiperssexualidade como um sintoma (American Psychiatric Association, 2013), mas esse termo é problemático, pois a maioria dos pacientes não sente que sua atividade ou impulsos estão acima da média. Além disso, o DSM-5 não usa o termo hiperssexualidade como transtorno mental. Em segundo lugar, o termo é enganoso, uma vez que a dependência de sexo é resultado de um impulso ou desejo sexual e não de desejo sexual excepcional e, finalmente, a dependência de sexo pode se manifestar de maneiras diferentes que não necessariamente encaixam-se nessa definição (Dhuffar & Griffiths, 2016). De acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID-11) da Organização Mundial da Saúde (2018), o transtorno de comportamento sexual compulsivo é caracterizado por um padrão persistente de falha no controle de impulsos sexuais repetitivos e intensos, resultando em comportamento sexual repetitivo. Consequentemente, os sintomas desse transtorno incluem atividades sexuais repetitivas que induzem sofrimento mental significativo e eventualmente prejudicam a saúde física e mental do indivíduo, apesar do esforço malsucedido de reduzir os impulsos e comportamentos sexuais repetitivos (Dhuffar & Griffiths, 2016). O transtorno hiperssexual tem íntima relação com o fenômeno do prazer e com a gratificação cerebral (Vieira Jr. & Bizeto, 2006; Kaplan & Krueger, 2010; Berner & Briken, 2012). Tratam-se de comportamentos sexuais compulsivos e impulsivos que incluem atos sexuais repetitivos, busca compulsiva por parcerias sexuais, masturbação excessiva, consumo exagerado de filmes pornográficos, literatura erótica e/ou profissionais do sexo, uso compulsivo da internet para excitação sexual ou pensamentos sexuais compulsivos que, de tão frequentes e intensos, acabam por interferir na intimidade interpessoal e sexual, bem como com o funcionamento laboral e profissional, gerando vergonha, culpa e stress pessoal (Black et al., 1997; Abdo & Scanavino, 2008; Garcia & Thibaut, 2010; Levine, 2010). Portanto é uma síndrome clínica reconhecida atualmente apenas na CID e não no DSM V (Walters et al., 2011), subdiagnosticada tanto na população em geral quanto em amostras clínicas. Entre os norte-americanos, atinge 5% a 6% da população. Dados populacionais brasileiros sobre esta condição ainda são inexistentes (Abdo & Scanavino, 2008; Kuzma & Black, 2008; Levine, 2010). O quadro clínico, em geral, ocorre no final da adolescência ou início da vida adulta, sendo que a busca por tratamento costuma ser tardia, geralmente coincide com algum problema de ordem judicial, legal, ocupacional ou familiar por conta do comportamento disfuncional ou “fora de controle” (Weissberg & Levay, 1986; Abdo & Scanavino, 2008; Garcia & Thibaut, 2010). Evidências empíricas sugerem que, entre os que buscam tratamento, os homens são mais propensos do que as mulheres a procurarem ajuda para http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Kaplan%20MS%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Krueger%20RB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Berner%20W%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=22876526 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Briken%20P%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=22876526 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D dependência de sexo. No entanto barreiras potenciais ao tratamento de mulheres dependentes do sexo são identificadas para que elas não procurem por tratamento, citam-se: (a) barreiras individuais, (b) barreiras sociais, (c) barreiras de pesquisa e (d) barreiras de tratamento (Dhuffar & Griffiths, 2016). No estudo de Dhuffar e Griffiths (2016) com 267 participantes, os homens mostraram maiores pontuações de dependência de sexo do que as mulheres, foram mais abertos a experiências sexuais diversas e mostraram-se menos neuróticos que as mulheres. Fatores de personalidade contribuíram significativamente para a variância da dependência de sexo entre os gêneros. A abertura a experiências e o neuroticismo apresentaram correlações positivas com os escores da escala de rastreio de sexo. Os traços de personalidade explicaram 11,7% da variância. Há cerca de um século, Krafft-Ebbing descreveu um quadro psicopatológico da sexualidade que resultava em uma sucessão de envolvimentos em atividades sexuais insaciáveis, nas quais os indivíduos se engajavam de maneira impulsiva em relações sexuais (Ebbing, 1965). Alguns autores defendem a sua inclusão na categoria dos transtornos obsessivo- compulsivos (TOC). Outros autores defendem que tais comportamentos corresponderiam, mais especificamente, aos critérios diagnósticos dos transtornos de controle dos impulsos, segundo classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Finalmente, há os que considerem esses comportamentos como pertinentes à esfera das dependências (Quadland, 1985; Abdo & Scanavino, 2008). Alguns pesquisadores reconhecem que a denominação “sexo compulsivo” engloba, na verdade, “comportamentos que resultam em prazer imediato a despeito de consequências danosas”, ou seja, um dos critérios nucleares das dependências (Carnes, 1983, 1989; Garcia & Thibaut, 2010; Kaplan & Krueger, 2010; Wöfle, 2010). Na atualidade, o fenômeno do transtorno hiperssexual tem sido descrito dentro de um espectro de três clusters de sintomas, os quais incluem: impulsividade, obsessividade/compulsividade ou, ainda, similar às dependências por substâncias (Bancroft & Vukadinovic, 2004; Mick & Hollander, 2006; Stein, 2008; Karila et al., 2014). A questão conceitual ainda apresenta controvérsias (Steven & Christopher, 1998), sendo que os novos http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Kaplan%20MS%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Krueger%20RB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460 manuais classificatórios podem trazer atualizações, mas estes poderão falhar devido a grandes diferenças interculturais e individuais na definição de sexualidade “normal” como o ponto de origem para alterações “patológicas”. Vale lembrar que, em medicina, o conceito de normalidade tem a conotação daquilo que é mais frequente ou mais encontradiço, nem sempre não normal significa doença (Hook et al., 2010; Wölfle, 2010). Carnes, em 1989, propôs fases de um ciclo de dependência de sexo caracterizado por quatro estágios, conforme ilustram o Quadro 1 e a Figura 2. QUADRO 2 - FASES DA DEPENDÊNCIA SEXUAL, SEGUNDO CARNES (1989) Fonte: Carnes, 1989 FIGURA 2 - CICLO DA ADICÇÃO SEXUAL Fonte: Adaptado de Carnes, 1989 A pesquisa sugere que há várias semelhanças entre a neuroplasticidade induzida por recompensas naturais (ex. comida, exercício) e aquelas por drogas de abuso e que, dependendo da recompensa, a exposição repetida a recompensas naturais pode induzir a neuroplasticidades que promovem o comportamento dependente, inclusive o de sexo (Olsen, 2011). Entre as comorbidades psiquiátricas mais comuns estão: transtornos ansiosos (50%), transtornos do humor (39%), transtornos pelo uso de substâncias (24% a 65%), transtorno parafílico (30% exibicionistas) (Black et al., 1997). O tratamento é em longo prazo e acarreta sofrimento, dificuldade real à intimidade do seu portador e pode estar associado a uma série de desfechos negativos, incluindo comportamento de alto risco para aquisição de HIV/AIDS (Wright, 2010; Diehl et al., 2014c). Trata-se, portanto, de uma condição de caráter crônico e que cursa com recaídas, necessitando de abordagens multidisciplinares, as quais incluem terapia medicamentosa, psicossociais, terapia de casal, terapia cognitivo e comportamental, grupos de mútua-ajuda, tais como o Dependentes de Amore Sexo Anônimos (DASA) para seu tratamento (DASA, 2010; Garcia & Thibaut, 2010; Raymond et al., 2010; Reid et al., 2011). Kafka (2014), Garcia e Thibaut (2010) e Echeburúa (2012) discutem a validade do diagnóstico proposto para o DSM sobre hiperssexualidade enquanto um transtorno e uma nova condição psiquiátrica ou “excessos” de comportamentos sexuais não parafílicos. Um dos grandes problemas parece ser a conceitualização do transtorno de hiperssexualidade com base em modelos de transtorno obsessivo compulsivo, ou de controle de impulso, ou de dependência (adicção) (Bancroft & Vukadinovic, 2004), uma vez que existe intersecção com todos esses. Garcia e Thibaut (2010) optam pelo modelo de transtorno de adicção como modelo base para o transtorno de hiperssexualidade não parafílica. A discussão teórica anterior (Bancroft, 2008; Stein, 2008) já privilegiava o modelo de falta de controle do impulso, compreendendo que seria necessário desenvolver pesquisas para essa valorização. Bancroft e Vukadinovic (2004), ao estudarem um grupo autodenominado por comportamentos sexuais http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Wright%20PJ%22%5BAuthor%5D excessivos, diagnosticaram transtornos de impulso, apontando a associação de transtornos de humor e sexualidade. Levine (2010), estudando uma amostra clínica, obteve metade dos sujeitos sem diagnósticos psiquiátricos, 25% com outras condições psiquiátricas e 25% apresentando comportamentos parafílicos. Karila et al. (2013) apontam que as pessoas que se categorizam como tendo transtornos sexuais compulsivos, impulsivos ou adictivos percebem-se hiperssexuais, apresentam pensamentos, fantasias e comportamentos obsessivos (Rodrigues Jr. 2009a, 2009b). Além disso, apontam que essas denominações incluem vários comportamentos que podem ser problemáticos, incluindo masturbação excessiva, “cybersex”, uso de pornografia, sexo por telefone, clubes de stripers (Bancroft, 2008). Essas variações de comportamento, embora possam ocorrer em pessoas sem essas queixas ou entre adultos de forma consensual, sem que produzam desconforto a eles ou a outras pessoas, também se associam a comportamentos parafílicos (Patra et al., 2003). Echeburúa (2012) discute que esses comportamentos têm a finalidade de reduzir ansiedades e outros efeitos disfóricos (vergonha e depressão), e que os diagnósticos psiquiátricos do Eixo I são as comorbidades dessas formas de hiperssexualidade/adicção sexual. Isso reforça a necessidade de compreender e tratar essas comorbidades. Reconhecer que um comportamento descrito de excesso de expressões sexuais diferencia-se de comorbidades, mas pode associar-se a elas, e estas serem de espectros diferentes permite planejamento de tratamentos diferenciados por essas comorbidades e, sobretudo, aumenta a complexidade dos casos (Garcia & Thibaut, 2010; Levine, 2010). Em estudo desenvolvido por Nelson Antônio Filho e colaboradores em 2015 no Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (CAISM) da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, a prevalência de dependência de sexo, segundo rastreados pela escala de severidade de dependência de sexo, em uma amostra de 149 pacientes usuários de drogas que foram atendidos ambulatoriamente nesse serviço, foi de 26% (Antonio Filho et al., 2015). Isso sugere a necessidade de ampliar estudos sobre a sobreposição de dependência de sexo em usuários de drogas. Parece existir uma associação entre a busca de drogas que aumentam o funcionamento sexual nesses indivíduos (Ex. sidelnafila [Viagra®]), sendo http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D uma causa frequente e não reconhecida de recaídas no uso de substâncias psicoativas (Schneider & Irons, 2001). O interesse da comunidade científica em compreender os determinados tipos de comportamentos sexuais e o seu envolvimento com o uso/abuso e dependência de substâncias psicoativas cresceu nos últimos anos (Zuilkowski & Jukes, 2012; Zaazaa et al., 2013). Daí a importância de ampliar evidência sobre esse assunto. Estudos nacionais a respeito dessa temática em amostras específicas de dependentes químicos têm sido pouco relatados na literatura nacional, o que justifica ampliar evidência científica com dados brasileiros. Nesse contexto, o impulso sexual excessivo (dependência de sexo) na população de usuários de drogas e álcool tem implicações importantes para o planejamento de políticas de saúde, para adequada condução de pesquisas científicas e oferecimento de serviços especializados para esse público (Harvey, 2009). Entre os medicamentos descritos para o tratamento da dependência de sexo estão: os inibidores de recaptação da serotonina (IRSS) em doses altas, tais como paroxetina 80 mg/dia, a qual pode auxiliar na diminuição da libido e ter um efeito colateral desejável para esses casos, que é o retardo ejaculatório. Também podemos lançar mão do uso de reguladores do humor como o topiramato, valproato de sódio e carbamazepina para fins de diminuir impulsividade, com doses terapêuticas usualmente utilizadas para o tratamento dos transtornos do humor (com o devido cuidado de observar função hepática). Também pode-se associar o uso de antagonistas opioides com a naltrexona com IRSS, como o duplo objetivo de diminuir “fissura” pela vontade de estar engajado em atividade sexual (Diehl & Vieira, 2013). Parafilias e Transtornos Parafílicos O Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (APA), em sua quinta versão – o DSM-5 – apresenta o termo parafilia como qualquer interesse sexual intenso e persistente que não seja a estimulação genital ou as carícias entre parcerias humanas que podem consentir e ter maturidade física, com fenótipo normal. No conjunto de critérios diagnósticos para cada transtorno parafílico listado, o Critério A aborda a natureza qualitativa do quadro, como expor a genitália; e o Critério B as consequências negativas, como prejuízo funcional e sofrimento (para si ou para o outro). O diagnóstico de transtorno parafílico requer que o indivíduo atenda a ambos critérios (A e B). Os transtornos tradicionalmente selecionados para descrição no DSM foram mantidos. Nem toda parafilia é um transtorno parafílico e a maioria das pessoas com interesses sexuais anômalos não tem um transtorno mental. Sendo assim, o comportamento parafílico é uma condição necessária, porém não suficiente para o transtorno parafílico e por si só não justifica ou supõe necessariamente uma intervenção terapêutica (Diehl & Vieira, 2017). O quadro 2 ilustra os principais tipos de transtornos parafílicos listados no manual de critérios diagnósticos americano. Transtorno voyeurista: espiar outras pessoas em atividades privadas Transtorno exibicionista: expor os genitais Transtorno frotteurista: tocar ou esfregar-se em indivíduo que não consentiu Transtorno do masoquismo sexual: passar por humilhação, submissão ou sofrimento Transtorno do sadismo sexual: submeter outra pessoa a humilhação, submissão ou sofrimento Transtorno pedofílicos: foco sexual em crianças Transtorno fetichista: usar objetos inanimados ou ter o foco altamente específico em partes não genitais do corpo Transtorno transvéstico: vestir roupas do sexo oposto visando excitação sexual QUADRO 2 - TRANSTORNOS PARAFÍLICOS ESPECÍFICOS DO DSM-5 Fonte: Diehl e Vieira (2017) Assim como houve mudanças no DSM-5, a Classificação Internacional das Doenças (CID 11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) também incorpora pontos importantes de mudanças sobre esse diagnóstico dos transtornos parafílicos, em substituição ao “transtorno de preferência sexual”, como era chamado na versão anterior, na CID 10. Um transtorno parafílico envolve um padrão persistente e intenso de excitação sexual atípico, que se manifesta por pensamentos, fantasias, impulsos e/ou comportamentos sexuais. Se o foco do padrão de excitação envolve outros cuja idade ou estado torna-os relutantes ou incapazes de consentir (por exemplo,crianças pré- púberes, um indivíduo que não desconfia que está sendo visto através de uma janela, um animal), o diagnóstico de transtorno parafílico deve ser feito apenas se a pessoa agiu sobre o padrão de excitação e/ou está nitidamente incomodada com isso. Em padrões de excitação que envolvem adultos com consentimento ou comportamento solitário, um transtorno parafílico pode ser diagnosticado somente se 1) a pessoa está nitidamente angustiada com a natureza do padrão de excitação e o sofrimento não é simplesmente uma consequência da possível rejeição ou desaprovação da sociedade; ou 2) a natureza do comportamento parafílico envolve risco significativo de lesão ou morte (por exemplo, asfixiofilia). Um padrão de excitação que não envolve indivíduos que são relutantes ou incapazes de consentimento e não está associada com acentuado sofrimento ou risco significativo de lesão ou morte, não é considerado um transtorno. A CID-11 inova ao abordar a ausência de consentimento, angústia e dano como dimensões constitutivas (Diehl & Vieira, 2017). Existe sobreposição entre parafilias e transtornos por uso de substâncias e/ou dependência de sexo. Estudo conduzido por Clemente et al. (2017) teve por objetivo avaliar a prevalência de pensamentos/comportamentos parafílicos (incluindo transtornos parafílicos) com e sem dependência de sexo e condições relacionadas à atividade sexual em uma amostra de pacientes com transtornos por uso de substâncias. Esse foi um estudo transversal de indivíduos dependentes de substâncias que procuraram tratamento ambulatorial em São Paulo, Brasil. Os dados incluíram informações sociodemográficas, droga de escolha, respostas a perguntas sobre comportamento sexual e os seguintes questionários padronizados. A amostra foi composta por 134 pessoas que usam drogas, predominantemente homens (76,1%), 39,6% tinham idade entre 18 e 29 anos e 54,9% eram solteiras. A maioria das pessoas que usavam drogas fazia de forma de policonsumo, 73,9% eram usuários de álcool e cocaína, 63,4% usuários de maconha, 81,1% usuários de tabaco e 5,2% usuários de esteroides. A prevalência de pensamentos/comportamentos parafílicos (incluindo transtornos parafílicas) com e sem dependência sexual foi de 47%. As taxas de HPV/herpes e hepatite B foram de 7,9% e 6,3%, respectivamente. Os pensamentos/comportamentos parafílicos e não parafílicos foram associados à presença de negligência física na infância, baixo nível educacional, heterossexualidade e juventude (idade de 18 a 20 anos). A alta prevalência de pensamentos/comportamentos parafílicos com ou sem dependência sexual em pessoas que usam drogas pode estar relacionada à experiência de negligência física e emocional durante a infância, e essa possibilidade deve ser rotineiramente investigada na prática clínica (Clemente et al., 2017). CAPÍTULO 8 CRIME, VIOLÊNCIA E COMPORTAMENTOS SEXUAIS EM USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS Alessandra Diehl Alguns estudos têm indicado a existência de associação entre crime/violência e comportamento sexual de risco em usuários de substâncias (Abdalla-Filho et al., 2010; Bastos, 2012; Zweig et al., 2012; Wechsberg et al., 2013). As taxas de criminalidade variaram de 23% a 97%, de acordo com o perfil da população com dependência de substâncias (por exemplo, diferentes drogas de escolha e diferentes faixas etárias), assim como os tipos de crimes investigados (Carvalho & Seibel 2009; Fernández-Montalvo et al., 2013; Johnson et al., 2013; Soyka et al., 2012; Spunt et al., 1990a; Spunt et al.,1990b; Vaughn et al., 2010). Durante a última década, cresceu o interesse na relação entre a droga, em especial o crack, o comportamento sexual de risco e a violência/crime (Fagan, 1993; Souza, 2011; Oliveira & Souza, 2013; Paim Kessler et al., 2012; Narvaez et al., 2014). Muitos dos estudos na literatura científica sobre esse tema têm focado mais na relação do consumo de substâncias com violência em perpetradores sexuais e menos em outros aspectos do comportamento sexual que podem estar atrelados ao crime, à violência e à droga (Weiner et al., 2005; Baltieri & Andrade, 2008a, 2008b). Esse é um assunto ainda bastante complexo, e a associação entre esses três elementos ainda não é bem compreendida, visto que nem sempre existe uma relação direta e linear entre as três questões (Collins et al., 2005; Rodrigues et al., 2012; Fernandez- Montalvo et al., 2013; Frederik et al., 2013). É necessário considerar, também, nessa questão, os contextos socioculturais, étnicos, de gênero, o viver em situação de rua, a faixa etária, o envolvimento em “gangues” e/ou crime organizado, a presença de outras doenças mentais associadas ao uso de álcool e drogas e a vivência e experiência do tráfico de drogas (Little, 1981; Meirelles & Minayo Gomez, 2009; Villagra Lanza et al., 2011; Khowaja et al.,2012; Mukku et al., 2012; Johnson et al., 2013; Pinchevsky et al., 2013). Um estudo interessante nessa área foi conduzido por Oteo Pérez et al. (2014), com uma amostra de 1.039 usuários frequentes de crack, os quais foram recrutados de três grandes cidades holandesas, com o objetivo de avaliar fatores associados à criminalidade e ao tráfico de drogas entre esses usuários. Um total de 431 (41,5%) participantes haviam se envolvido em crime nos últimos 30 dias da pesquisa, em geral relacionado à venda de drogas (68,9%), seguido por crimes contra a propriedade (34,4%) e alguns casos de crimes violentos (9,7%). O envolvimento com a criminalidade atual dessa amostra esteve associado a ter pouca idade, falta de moradia, padrões mais pesados de uso de crack e história prévia de sentença criminal. Aqueles usuários de crack que recebe benefícios sociais do governo tendem a ser mais propensos a se especializar apenas em vender drogas e menos em cometer crimes contra a propriedade. Os autores desse estudo sugerem que a redução do uso de drogas entre os usuários de crack e a criminalidade envolvida nessas condições poderia ter um impacto significativo se questões habitacionais fossem minimizadas, abordando as suas condições de moradia. No entanto advertem que os benefícios sociais podem agir como fator de proteção contra o cometer crimes contra a propriedade, mas não contra a venda de drogas (Oteo Pérez et al., 2014). Um dos poucos estudos brasileiros que investigaram a violência e os comportamentos sexuais de risco em usuários de crack foi um estudo de base populacional com 1.560 participantes com 18-24 anos que mostrou claramente as chances aumentadas de não usar preservativo, agressão e posse de arma de fogo nessa população (Navaez et al., 2014). Em geral, os estudos com usuários de crack têm percebido o aumento dos comportamentos sexuais de risco (Carvalho & Seibel, 2009; Cortez et al., 2011; Narvaez et al., 2014), bem como potencial envolvimento em situações predisponentes à violência ou a problemas legais (Azevedo et al., 2007; Dias et al., 2011). A combinação http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Meirelles%20ZV%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19851592 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Minayo%20Gomez%20C%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19851592 desses elementos tende a aumentar a complexidade dos casos de pacientes que procuram tratamento e, portanto, são muitas vezes mais difíceis de gerenciar, exigindo a inclusão de outras esferas de atenção (legal e forenses) que transcendem os cuidados tradicionais oferecidos no modelo biomédico (Abdalla-Filho & Souza, 2010; Bastos, 2012; Silva et al., 2012). A investigação dessa temática desempenha um papel vital em todo o processo de recuperação desses usuários, mas principalmente na reinserção social no pós-tratamento. Esforços de avaliação dessa natureza e da melhor compreensão da extensão desses problemas são importantes para melhorar as estratégias de políticas públicas no desenvolvimento de programas de intervenção para essa população (Bastos, 2012; Zweig et al., 2012). Histórico de abuso sexual, negligência e maus tratos em usuários de substâncias Adultos com transtornos por uso de substâncias relataram taxasmais altas de abuso e negligência sexual infantil do que os pares sem tais transtornos. Cerca de 40-90% dos usuários de substâncias relatam histórico de abuso na infância; indivíduos que sofrem abuso na infância têm duas vezes mais chances de ter transtornos por uso de substâncias na vida adulta quando comparados à população geral. Abuso ou negligência física, sexual e emocional foram identificados como preditores de dependência persistente de álcool e nicotina. Estima-se que 30% dos transtornos psiquiátricos diagnosticados em adultos possam ser diretamente ligados a experiências da infância (Banducci et al., 2014; Diehl et al., 2018). A relação entre maus tratos na infância, comportamento sexual de alto risco na idade adulta e uso de drogas não foi extensivamente investigada. Um modelo conceitual que tenta explicar a conexão entre maus tratos na infância, comportamento sexual de risco tardio e consumo de álcool está de acordo com Miller, que formulou a hipótese dos seguintes mecanismos: a) uso de substâncias para lidar com o trauma inicial da violência (mais estudos com álcool do que qualquer outra droga); b) má adaptação sexual (sexo desprotegido, múltiplos parcerias, comércio sexual e revitimização sexual de adultos; c) doença mental relacionada ao abuso (transtornos parafílicos); e d) redes sociais mais arriscadas (maior probabilidade de uso de substâncias) (Diehl et al., 2018; Miller, 1999). Diehl e colaboradores (2018) conduziram estudo sobre a temática do histórico de abuso negligência e maus tratos em usuários de substâncias. Os principais achados do estudo indicam altas taxas de negligência física (78,4%), negligência emocional (88,1%), abuso emocional (80,6%) e abuso sexual (31,3%) entre adultos dependentes de substâncias que buscaram cuidados ambulatoriais. As taxas de maus tratos foram maiores para as mulheres do que para os homens. As estimativas de maus tratos na população geral indicam que quase um quarto dos adultos (22,6%) em todo o mundo sofreu abuso físico durante a infância, 36,3% sofreram abuso emocional e 16,3% sofreram negligência física, sem diferenças significativas entre homens e mulheres. Também foi observado uma associação entre maus tratos e probabilidade de dependência em sexo, pensamentos parafílicos e vitimização sexual na idade adulta. Nossos achados também têm implicações para os cenários clínicos projetados para o tratamento de dependência de substância. Eles podem ajudar na implementação de estratégias de intervenção por profissionais de saúde; devido à alta prevalência de maus tratos essas questões precisam ser abordadas com o objetivo de prevenir recaídas e melhorar o prognóstico. Identificar e tratar pessoas com históricos de maus tratos pode ter um impacto significativo na saúde pública. Nossos achados apoiam a noção de que o tratamento dos transtornos por uso de substâncias deve incluir triagem para maus tratos e intervenções integradas para tratar sequelas comuns de abuso (por exemplo, transtorno de estresse pós-traumático e risco de suicídio). Usuários de drogas com história de maus tratos necessitam de esforços mais intensivos de prevenção ao suicídio. A integração de intervenções preventivas em programas frequentemente acessados por usuários de drogas, como clínicas comunitárias, requer maior atenção, consideração e avaliação (Diehl et al., 2018). Parte 2 Sexualidade, e dependencia quimica em populacoes especificas CAPÍTULO 9 LGBTTQIA+ Alessandra Diehl Eu sou um gay alcoólatra. Estes dois rótulos têm informado a minha vida. Quando eu tinha 15 anos eu fui à biblioteca da nossa cidade natal e procurei todos e quaisquer catálogos e títulos que forneciam alguma referência sobre a homossexualidade. E sabem o que eu acabei aprendendo sobre mim? Sim, que eu era psicologicamente anormal, que eu era ilegal, que eu era imoral e que eu era inaceitável. (SAMHSA, 2012) A compreensão das variações da orientação sexual humana e as vulnerabilidades individuais e coletivas que a orientação homoafetiva tem na sociedade em geral são tão importantes quanto compreender a influência e a relevância da cultura, etnia, idade, genética, nível socioeconômico e a influência do meio em que as pessoas residem no desenvolvimento de ajustamentos individuais a diferenças que nem sempre são bem toleradas pela maioria das pessoas (Adams et al., 1996; Cabaj, 2008; Seidman et al., 2012). O quadro 1 apresenta algumas definições e conceitos úteis para melhor compreender o universo. Termo Definição Sexo Refere-se ao aspecto biológico, ou seja, às características anatomofisiológicas que distinguem machos e fêmeas Gênero Trata-se de uma convenção social para o que determinada cultura compreende como o que é masculino ou feminino Genderqueer Termo que se refere ao não binarismo de gênero Gênero fluido, entre os gêneros Agênero – não pertencer a nenhum gênero Outro gênero ou “terceiro gênero” Orientação sexual É a direção do desejo erótico, do afeto amoroso e da atração sexual e emocional de uma pessoa pelas outras. Esse desejo não é algo que pareça ser prontamente mensurado, estático ou que possa ser facilmente categorizado. De maneira geral: Heterossexual: quem sente atração por pessoas do sexo oposto Homossexual: quem sente atração por pessoas do mesmo sexo Bissexual: quem sente atração por pessoas de ambos os sexos Assexual: quem não sente atração sexual por outra pessoa. Acredita-se que o conceito seja uma das orientações sexuais e não apenas uma baixa do desejo sexual Pansexual: termo controverso, geralmente referente a quem sente atração sexual por outras pessoas independentemente de sexo, gênero, orientação sexual, identidade ou de expressão de gênero LGBTTQQIA + Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, questionaning, intersexuais e assexuais. O sinal + é utilizado para representar as diversas identidades que estão emergindo. Termo Definição Estar no armário (estar dentro do armário ou estar trancado no armário) Termo coloquial para se referir a um contexto em que um indivíduo LGBT esconde sua orientação ou identidade sexual ou de gênero das outras pessoas ou de si mesmo Papéis de gênero São constructos culturais e históricos que fazem referência às atribuições sociais do masculino e do feminino que um indivíduo ocupa na sociedade Identidade de gênero É como uma pessoa mentalmente se percebe, se reconhece, se vê ou se identifica quanto ao gênero (i. e., se ela se reconhece como homem, mulher ou como alguém fora do binarismo homem e mulher) Expressão de gênero Refere-se à maneira que uma pessoa se apresenta ao se vestir, andar, cortar o cabelo, falar, se comportar, utilizar acessórios para se apresentar à sociedade, conforme determinada cultura entende os gêneros feminino e masculino. Em outras palavras, é como as pessoas demonstram o próprio gênero para o mundo externo Cisgênero Indivíduo que nasce com um sexo biológico e se reconhece ou se identifica mentalmente com esse sexo de nascimento. Termo usado na comunidade transamericana para descrever indivíduos não trans Transgênero Termo “guarda-chuva” para designar pessoas sem conformidade de gênero, que não se identificam com seu sexo biológico; inclui transexuais, travestis Transexual Pessoa que nasce com um sexo biológico, no entanto, mentalmente, se identifica com o sexo oposto ao do nascimento. Em geral, deseja modificar seu corpo para se tornar o mais alinhado possível com o gênero experienciado, o que pode incluir cirurgia de transgenitalização Homem trans Alguém que nasceu biologicamente/anatomicamente como mulher, mas se identifica e se apresenta como homem Mulher trans Alguém que nasceu homem biologicamente/anatomicamente e se identifica e se apresenta como mulher Travesti Em teoria, o termo travesti poderia ser usado para a pessoa que nasceu biologicamente de um sexo e se apresenta como o de outro sem grande desconforto com seus órgãos genitais, ou drásticas mudanças físicas para alinhamento corporal com o gênero experienciado. Entretanto, no Brasil, há o sensocomum em empregar o termo travesti para indivíduos que nascem biologicamente homens e desejam se vestir como mulheres nas suas vidas sociais, representam papel de gênero feminino, apresentam-se com vestimentas e características secundárias femininas como mamas, sem barba e pelos, mas que não desejam remover o órgão genital e nem sempre apresentam extremo desconforto ou descontentamento com ele. A travesti não se apresenta como mulher para fins exclusivos de gratificação sexual, mas para viver e ser aceita como do gênero feminino Intersexual Historicamente conhecidos como hermafroditas; o termo intersexual refere-se a diferentes apresentações de genitais ambíguos ou atípicos. Trata-se de pessoas que têm uma combinação dos dois sexos biológicos Travestismo fetichista Trata-se de uma parafilia (padrão atípico de excitação) em que a pessoa deseja se vestir com peças de roupas ou um traje completo do sexo/gênero oposto para fins de excitação sexual Heterossexismo Sistema de crenças que naturaliza e idealiza a heterossexualidade como superior, ao mesmo tempo em que desvaloriza, estigmatiza, discrimina e nega os não heterossexuais. Também compreendida como uma vulnerabilidade que contribui para desfechos negativos em saúde. Homofobia Preconceito geralmente expresso por meio de atitudes e sentimentos negativos, tais como intolerância, ódio, nojo ou desprezo direcionados a homossexuais Termo Definição Transfobia Trata-se de uma série de atitudes e sentimentos negativos, como ódio e ira direcionados a transexuais, transgêneros, travestis Simpatizante Trata-se da criação de um ambiente que aceite e seja aberto a pessoas LGBT. O termo pode se referir a instituições ou pessoas. Hijras Hijra é um terceiro papel de gênero institucionalizado na Índia. Elas afirmam não serem nem masculinos nem femininos, mas contêm elementos de ambos. Algumas podem submeter-se a castração do pénis e/ou testículos sem a criação de uma neovagina Muxes Elas são um grupo único de indígenas do México nascidos biologicamente homens que abertamente se vestem de vestuário zapoteca feminino, e tem sido descritas também como um terceiro gênero. Muitos têm o cabelo longo e algumas podem também se submeter a procedimentos estéticos e cirúrgicos para ter um fenótipo mais feminino. Two spirit Também considerado um terceiro gênero entre os nativos indígenas dos Estados Unidos da América (EUA) nascidos biologicamente homens e que se utilizam de elementos da expressão de gênero tanto do feminino quanto do masculino. Disforia de gênero Nomenclatura utilizada pela DSM-5 para se referir à condição clínica caracterizada pela incongruência entre o sexo biológico de nascimento e a identidade de gênero experienciada pelo indivíduo. QUADRO 1 - TERMOS E DEFINIÇÕES ÚTEIS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL Fonte: Adaptado de Diehl & Vieira (2017). In Orientação sexual: Lésbica, Gay, Bissexual ou Assexual. Sexualidade do Prazer ao Sofrer (2a ed). Rio de Janeiro: Editora Roca Grupo Gen. pp.145-164. Diehl, Vieira, Zanetti, Fanganielo, Robles, Sarharan & Mari et al. (2017), Cabaj (2008) e Cabaj (2001) Vulnerabilidades variadas, estigmas, preconceitos, comprometimentos físicos, psíquicos, cognitivos e emocionais, dificuldades sociais, culturais, educacionais, jurídicas e familiares fazem parte da complexidade vivenciada por usuários de álcool e drogas, tanto da comunidade LGBT como de qualquer outro segmento da sociedade que procura por serviços de saúde. Entretanto, para muitas pessoas, a vergonha e o medo do preconceito as afastam da busca de tratamento (Cochran et al., 2000; Cabaj, 2008; Kecojevic et al., 2012). A maneira com que o abuso e a dependência de álcool e outras drogas se expressam na população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) vem sendo foco de muitos estudos transculturais na área da dependência química (Cabaj & Stein, 1996; Bryan et al., 2007). Especialmente nas últimas duas décadas, tem crescido o interesse de pesquisadores em avaliar aspectos emocionais, exposição ao vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), comportamentos sexuais, abordagens clínicas e a epidemia do uso de metanfetamina (Crystal, Meth) correlacionados à extensão do abuso e dependência de substâncias psicoativas entre indivíduos LGBT (Cabaj, 2008; Halkitis & Jerome, 2008). Muitos desses estudos mostram que o uso de substâncias psicoativas, especialmente o álcool e as “club drugs” – drogas sintéticas obtidas por meio da manipulação laboratorial (particularmente após a explosão do uso da metanfetamina em meados dos anos 90) –, têm exercido um papel relevante quanto a prejuízos na vida de muitos gays e lésbicas ao redor do mundo (Halkitis & Jerome, 2008). Parece existir um “mito cultural” de que gays e lésbicas, por utilizarem drogas recreativas e por frequentemente estarem em situações sociais, teriam padrão de consumo de álcool e drogas mais problemático, multifacetado e “desviante” do que indivíduos heterossexuais, dando ênfase a um comportamento estereotipado que, certamente, não pode ser generalizado (Tucker et al., 2008). Estudos sobre o uso de álcool e drogas nessa população, historicamente, sempre foram mais escassos e com limitações metodológicas. Entre estas, cita-se o viés de seleção, uma vez que foram conduzidos em locais de maior concentração de consumo de álcool e outras drogas como, por exemplo, as boates e os bares (King et al., 2008). Habilidades em reconhecer questões pertinentes às vulnerabilidades que atravessam tanto o campo da dependência química quanto da diversidade sexual são fatores importantes no processo de acolhimento, de promoção de saúde, prevenção, facilitação do acesso e da disponibilidade de oferta de tratamento em saúde para esse grupo de pessoas (Hellman et al., 1989; King & Nazareth, 2006; Bryan et al., 2007; Diehl, 2009; Harvey, 2009). O quadro 2 apresenta a teoria do estresse das minorias que pode ser uma das possibilidades de compreensão desses fenômenos de vulnerabilidade. Esta teoria fundamentada inicialmente por Meyer (1995) entende que o excesso de situações adversas e condições no meio social, e não somente situações individuais, são motivos de somatórias de estresses, os quais tendem a ser prejudiciais à saúde física e mental de pessoas pertencentes às minorais, incluindo as minorias sexuais estigmatizadas. A teoria do estresse minoritário propõe que as disparidades de saúde entre populações como as minorias sexuais podem ser explicadas em grande parte por estressores induzidos por uma cultura hostil e homofóbica, que muitas vezes resultam em experiências de preconceito de familiares e terceiros, rejeição e homofobia internalizada e podem afetar o comportamento e o acesso aos cuidados em saúde. Preconceito externo de terceiros refere-se a qualquer experiência percebida ou real por um indivíduo com associações estruturais ou institucionais ou relacionado ao preconceito social direto (isto é, ouvir xingamentos e manifestações de ódio). Também está incluído nesta teoria a expectativa de uma pessoa de sofrer rejeição pela sua identidade e estigma social contra gays e indivíduos transexuais. QUADRO 2 - TEORIA DO ESTRESSE DAS MINORIAS Fonte: Meyer IH. Minority stress and mental health in gay men. Journal of Health and Social Behavior. Mar 1995, p. 36-38; 56 Nesse contexto, a melhor compreensão de questões relativas ao universo LGBT tem implicações importantes para planejamento de políticas de saúde (tratamento e prevenção) (Drescher, 2001, 2010); para a adequada condução de pesquisas científicas; e para o treinamento de profissionais nos serviços de saúde, conforme recomenda o Substance Abuse and Mental Health Services Administration – SAMHSA (SAMHSA, 2001; Cabaj, 2008). Muitas vulnerabilidades interagindo entre si podem contribuir para o uso, abuso e consequente dependência de substâncias em indivíduos LGBT (Hidaka et al., 2006; Parks et al., 2007; Cabaj, 2008). Entre essas vulnerabilidades, citam-se: Sociais Gays e lésbicas continuam a encarar grande sofrimento social proveniente de fatores como adiscriminação, baixa aceitação social, as lutas contínuas para reconhecimento de relacionamentos, o casamento e a proteção no trabalho. Soma-se o risco de ataques verbais e físicos e o efeito do diagnóstico do HIV (SAMHSA, 2001; Hequembourg & Brallier, 2009). Heterossexismo Trata-se de um sistema ideológico que ignora, deprecia e estigmatiza qualquer forma de expressão emocional, afetiva, comportamental, qualquer atividade sexual, relacionamento ou identidade social da comunidade de um não heterossexual (Hyde & DeLamater, 2008). Homofobia Trata-se do medo irracional, da aversão ou da discriminação de pessoas com orientação ou comportamentos homossexuais (Hyde & DeLamater, 2008; McDermott et al., 2008). Preconceito é http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hequembourg%20AL%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Brallier%20SA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus definido como qualquer opinião ou sentimento, quer favorável ou desfavorável, concebidos sem exame crítico; enquanto fobia é um medo exagerado, falta de tolerância. Partindo-se da definição de fobia, cabe perguntarmos: do que é que se tem medo em relação à homossexualidade? E, ainda, sendo a homossexualidade uma expressão natural da sexualidade, qual é a “ameaça” que ela representa? Do que e por que se tem medo, afinal? Uma das hipóteses que se pode aventar, utilizando um conceito da psicologia, é a projeção, um mecanismo de defesa psíquico, em que o indivíduo que tem pouca consciência ou tolerância em relação às próprias características projeta no outro o que não aceita em si próprio, ou seja: se perturba tanto, pode ser que haja algo “mal resolvido” (Adams et al., 1996; Diehl et al., 2011a). As várias faces do preconceito e discriminação contra os homossexuais, muitas vezes, tomam proporções avassaladoras e chegam ao extremo da violência, resultando em mortes. A homofobia, definida como rejeição ou aversão a homossexuais e à homossexualidade, é protagonista e mola propulsora de muitos crimes de ódio. Como a orientação sexual, ou etnia, crença, origem, classe social, pode “justificar” um crime? Com que direito alguém discrimina, humilha, persegue, agride ou mata outra pessoa devido à sua orientação sexual? Em nome de quê? O Brasil tem a vergonhosa liderança internacional em crimes de homofobia: a cada 21 horas, uma pessoa com orientação sexual não heteronormativa é assassinado no país (Grupo Gay da Bahia, 2013). Várias são as formas de preconceito que a população LGBT sofre no Brasil. Abaixo, algumas são relacionadas, segundo documento publicado pelo Grupo Gay da Bahia, intitulado “Violação dos Direitos Humanos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais no Brasil: 2004”: 1. Agressões e torturas; 2. Ameaças e golpes; 3. Discriminação em órgãos e por autoridades governamentais; 4. Discriminação econômica, contra a livre movimentação, privacidade e trabalho; 5. Discriminação familiar, escolar, científica e religiosa; 6. Difamação e discriminação na mídia; 7. Insulto e preconceito contra homossexuais; 8. Lesbofobia: violência antilésbica; 9. Travestifobia. Homofobia internalizada Refere-se à resistência e à aceitação de si mesmo com relação à própria orientação homossexual. Relaciona-se com a vergonha e o conceito negativo de si mesmo. Essa negação pode acarretar níveis diferentes de sofrimento, podendo culminar, muitas vezes, em suicídio (Cabaj, 2008; King et al., 2008). “Coming out” Essa expressão em inglês, adaptada para o nosso idioma, quer dizer “sair do armário”. Refere-se à experiência de alguns, mas não de todos, gays e lésbicas, quando exploram ou assumem o seu status homossexual atual, tentando conciliá-lo com a socialização anterior (Lins, 2007). Esse parece ser um dos momentos mais difíceis e propícios ao uso de substâncias psicoativas, com riscos de maior possibilidade de manutenção desse uso ao longo da vida (SAMHSA, 2001). O uso de drogas pode servir como um alívio “mais fácil”, provendo aceitação da sexualidade e, mais importante, fornecendo o conforto que muitas vezes não está presente na família ou na sociedade. O uso de substância psicoativa pode auxiliar o processo de socialização e a realização daquilo que se acha ser “proibido”. Muitos gays têm suas primeiras experiências sexuais sob a influência de álcool e outras drogas. Para muitos gays e lésbicas, essa associação entre abuso de substâncias psicoativas e sexualidade persiste e pode tornar-se parte do processo de ‘sair do armário” e da formação pessoal e social da identidade (Cabaj, 2008; LeBeau & Jellison, 2009). Culturais Existe uma tendência entre gays e lésbicas de terem maior convivência entre o chamado “gueto gay”, por questões de autopreservação da comunidade, proteção e suporte dos iguais, e também por http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Jellison%20WA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus apropriação do sentimento de pertencimento (LeBeau & Jellison, 2009). O mundo social de homossexuais e de heterossexuais é repleto de bares, clubes, boates, turismo gay e saunas, onde o álcool e outras drogas estão também muito presentes e amplamente disponíveis (Cabaj, 2008; Rosario, 2008). Ainda podemos incluir outras vulnerabilidades: reconhecer-se como sem valor ou como uma pessoa má, falta de contato e de relacionamentos de apoio com adultos ou pares, falta de maneiras alternativas de vivenciar a diferença, falta de acesso a uma modelagem positiva, falta de oportunidade para socializar com outros gays e lésbicas, exceto em clubes e bares, o risco de contrair HIV (Diehl et al., 2011b). A despeito das várias limitações metodológicas dos estudos sobre abuso e dependência de substâncias psicoativas nessa população, pode-se notar que existe uma tendência a encontrarmos maiores taxas de abuso e dependência de substâncias psicoativas em LGB do que em heterossexuais, particularmente entre lésbicas e mulheres bissexuais (Cohran & Mays, 2000; Midanik et al., 2007). Este último grupo possui, em geral, um risco relativo (RR) para dependência de álcool quatro vezes maior, e 3,5 vezes maior para drogas que as mulheres exclusivamente heterossexuais (King et al., 2008). Diehl (2009) conduziu uma revisão da literatura sobre essa temática e cuja busca de artigos baseou- se na seleção de estudos de abuso e/ou dependência de álcool e/ou drogas ilícitas na população geral (ex. estudos de base populacional) ou em amostras selecionadas representativas (ex. todos os estudantes de uma cidade) na qual a orientação sexual foi relatada. Dos nove estudos incluídos nessa revisão, pelo menos seis mostraram claramente o risco ou prevalência de maiores taxas de abuso de substâncias, particularmente o álcool, entre lésbicas e mulheres bissexuais (Cochran & Mays, 2000; King & Nazareth, 2006; King et al., 2008). Vide Tabela 1. Esse achado está presente também nos poucos estudos longitudinais entre as adolescentes com orientação homoafetiva ou bissexual, evidenciando que a problemática tende a se estabelecer em fases bastante precoces (Ziyadeh, 2007; Tucker et al., 2008). A revisão sistemática conduzida por Marshal et al. (2008), que avaliou os estudos sobre uso de substâncias em jovens Lésbicas, Gays e Bissexuais (LGB), mostrou que essa população tem taxas mais altas de uso de álcool e drogas que os jovens heterossexuais (OR= 2,89). Em outras palavras, as taxas são 190% maiores em jovens LGB quando comparados a jovens heterossexuais; e substancialmente mais altas em determinados subgrupos de jovens LGB (340% mais alto para jovens bissexuais, 400% mais alto para lésbicas) (Marshal et al., 2008). Várias outras pesquisas têm mostrado que lésbicas estão sob risco elevado para o beber nocivo ou perigoso (Rosario et al., 2009). Comparadasàs mulheres heterossexuais, as lésbicas têm menos probabilidade de se manter abstinentes do álcool e entrar em processo de recuperação, assim como tem menos probabilidade de diminuir o consumo de álcool quando envelhecem e são mais propensas a apresentar problemas relacionados ao consumo dessa substância psicoativa (SAMHSA, 2001). A tensão e o stress associados à formação da identidade lésbica, somados ao reforço positivo para beber dos pares em locais de maior socialização, baixa autoeficácia para resistir, questões relativas ao chamado “gênero atípico” ou à expressão do gênero (ex. butch versus femme) são alguns dos fatores frequentemente atribuíveis ao maior risco de exposição desse público. Cabe ressaltar, no entanto, que esses fatores não foram largamente testados ou avaliados cientificamente (Parks et al., 2007; Tucker et al., 2008; Rosario et al., 2009). Evidências de estudos de população gerais indicam que padrões de uso de álcool estabelecidos cedo no curso da vida ou durante transições de vida influenciam tanto o uso de álcool posterior quanto os problemas relacionados a esse consumo (Vieira et al., 2007). Para mulheres lésbicas e bissexuais, os dados de outros autores também sugerem que o beber pesado em idades precoces e de contextos que http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22LeBeau%20RT%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Jellison%20WA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus influenciam o uso de álcool posterior têm implicações importantes para a redução de risco e prevenção entre esse público (Parks et al., 2007; Rosario et al., 2009). Os estudos da revisão de Diehl (2009) são muito heterogêneos quanto às medidas de desfechos, apresentação dos dados, tipos de drogas pesquisadas, pesquisa de orientação sexual, método de avaliação do abuso e dependência de substâncias; daí a dificuldade de serem agrupados e generalizados (Vide Tabela 1). AUTORES POPULAÇÃO DO ESTUDO SUBSTÂNCIA /USO/ DEPENDÊNCIA METODOLOGIA GRUPO DE COMPARAÇÃO DESFECHOS COMENTÁRIOS 1. Stall, Willey, 1988. Homens gays Álcool, cocaína e maconha. Estudo de base populacional (San Francisco Mens Health Study) Homens heterossexuais Poucas diferenças no padrão de beber. Importante prevalência no uso de drogas durante os seis meses de avaliação, assim como uso de drogas pelo menos uma vez por semana entre gays. 2. Skinner, Otis,1996. N= 1,067 LG Seis drogas ilícitas, quatro drogas psicotrópicas e duas drogas lícitas (álcool e tabaco). Estudo longitudinal do The Trilogy Project População geral do National Household Survey on Drug Abuse (NHSDA). LG têm significativamente taxas mais altas de uso de maconha, inalantes e álcool no último ano que a população geral, mas não de cocaína. LG consumiram mais álcool no último mês da entrevista que a população geral. Poucas diferenças entre as duas amostras para consumo de álcool pesado. 50% de adesão nas respostas 3. Cohran, Mays, 2000. N= 96 gays N= 96 Lésbicas Dependência de álcool (DSM IV). Estudo de base populacional N= 3922 mulheres HT N= 5792 homens HT a) Dependência de álcool: 10% (G) X 7,6% (Homem HT) 7% (L) X 2% Mulher HT b) Dependência de drogas: 5,7% (G) X 2,8% Homem HT 5% (L) X 1,3% Mulher HT LG têm mais dependência de álcool e outras drogas que indivíduos HT. AUTORES POPULAÇÃO DO ESTUDO SUBSTÂNCIA /USO/ DEPENDÊNCIA METODOLOGIA GRUPO DE COMPARAÇÃO DESFECHOS COMENTÁRIOS 4. King, Nazareth, 2006. N= 26 lésbicas e N= 85 mulheres bissexuais; N= 38 gay e N= 23 homens bissexuais Álcool - CAGE, tabaco. Estudo Cross section controlado -13 settings de atenção primária em Londres N= 934 mulheres heterossexuais N=373Homens heterossexuais - Mulheres bissexuais abusam mais de álcool (OR 2,73, 1,70– 4,40); - Mulheres bissexuais (OR 2,53, 1,60–4,00) e lésbicas (OR 3,13, 1,41–6,97) e homens bissexuais têm mais chances de serem tabagistas que seus controles (OR 2,48, 1,04, 5,86). O estudo também avaliou outros comportamentos de saúde, tais como número de parcerias sexuais e transtornos psicológicos. 5. Midanik et al., 2007. N = 7,612. O uso de álcool e problemas relacionados ao consumo foram acessados através do número de drinks no último ano, número de dias com consumo de cinco ou mais drinks no último ano. Dependência do álcool pelo DSM IV. Levantamento nacional telefônico de 2000, com amostra probabilística de adultos americanos maiores de 18 anos. HT Não foi encontrado padrão consistente de uso ou problemas relacionados ao álcool baseado na orientação sexual de homens. Para as mulheres, orientação bissexual ou comportamento bissexual foi constantemente associado com maior uso e problemas relacionados ao álcool quando comparada à orientação e ao comportamento HT em mulheres. Nenhuma diferença entre homens; entre lésbicas e mulheres bissexuais, maiores padrões de consumo de álcool. 6. Cochran et al., 2007. N= 4,488 Latinos americanos adultos 4,8% da amostra LGB Álcool National Latino and Asian American Survey (NLAAS) HT Nenhuma diferença no consumo de substâncias. Mesmo nível de morbidade encontrado entre latinos e população geral. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22King%20M%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus AUTORES POPULAÇÃO DO ESTUDO SUBSTÂNCIA /USO/ DEPENDÊNCIA METODOLOGIA GRUPO DE COMPARAÇÃO DESFECHOS COMENTÁRIOS 7. Tucker et al., 2008. N= 1,479 HT N= 141 bissexuais femininas Álcool e drogas DSM–IV. Coorte longitudinal da costa dos EUA HT Durante a adolescência, mulheres bissexuais são mais prováveis de serem usuárias solitárias e correntes de álcool. Aos 23 anos, o uso de droga entre este grupo aumenta em frequência, quantidade e problemas relacionados. Alerta para enfoque de prevenção diferenciada mais em mulheres bissexuais. 8. King et al., 2008. N= 214,344 HT N= 11,971 não HT Álcool e outras drogas. Revisão Sistemática / metanálise HT LGB têm 1,5 vezes mais chances de dependência de substâncias (RR 1,51–4,00) que HT. O risco de dependência de álcool no último ano (RR 4,00, CI 2,85, 5,61; e de dependência de drogas: RR 3,50, CI 1,87, 6,53; ou de qualquer substância RR 3,42, CI 1,97– 5,92) foi maior em lésbicas e mulheres bissexuais. 9. Ziyadeh et al., 2006. N= 9731 adolescentes Álcool – beber em «binge». Estudo Cross section do Projeto Growing Up Today Meninas e meninos HT Meninas HT e meninas lésbicas / bissexuais tiveram risco elevado quando comparadas a meninas heterossexuais em quase todos os comportamentos álcool- relacionados. Meninos heterossexuais também estavam a risco elevado. Não foi observada nenhuma diferença significante em comportamentos álcool- relacionados entre gay / bissexuais e meninos HT. TABELA 1 - REVISÃO DOS ESTUDOS DE DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS EM LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, 2009 Fonte: Diehl, 2009 Legenda: HT = Heterossexuais, LGB = Lésbicas, gays e bissexuais, LG = lésbicas e gays, OR = Odds Ratio, RR = Risco Relativo, CAGE = Cut down, Annoyed, Guilty, Eye-opener, DSM = Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders De uma maneira geral, os estudos incluídos na revisão empregam a pesquisa do autorrelato sobre a orientação sexual em detrimento do comportamento sexual; o que, metodologicamente, parece estar mais adequado (Seidman et al., 2012). Isso porque se sabe que comportamento sexual não é um correlato perfeito de orientação sexual (Purdam et al., 2008). Pesquisas de base populacional anteriores que examinaram padrões de comportamento sexual e autorrelato de orientação sexual encontraram aproximadamente 2/3 dos indivíduos que relataram ter parcerias sexuais do mesmo gênero no último ano da pesquisa também se identificaram como LGB. Enquanto que aproximadamente ¼ das lésbicas, gays e bissexuaisrelataram não ter tido parcerias sexuais do mesmo gênero no último ano da pesquisa (Cabaj & Stein, 1996; Cochran & Mays, 2000; Seidman et al., 2012;). Já para a pesquisa do uso e dependência de substâncias, os instrumentos são dos mais diversos e com graus variados de confiabilidade e especificidade. Por exemplo, o instrumento CAGE (acrônimo de Cut Down, Annoyed, Guilty, Eye-opener), utilizado por King e Nazareth (2006), não faz diagnóstico, funciona apenas como seleção de prováveis casos de dependência de álcool. Bem diferente daqueles instrumentos mais próximos do “padrão ouro”, que é a entrevista realizada baseando-se nos critérios de dependência do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) ou da Classificação Internacional das Doenças (CID) ou ainda do Composite International Diagnostic Interview (CIDI) (Cabaj, 2008). Diversos são os fatores que colaboram para que os estudos sobre essa temática apresentem limitações metodológicas. Um desses fatores é o fato de a sexualidade não ser algo estático, mas sim algo fluido, em processo de desenvolvimento e evolução. Assim sendo, investigadores muitas vezes não concordam quanto aos critérios de definição de orientação sexual, identidade sexual ou atração sexual. Consequentemente, algumas pesquisas não têm consenso sobre a definição de critérios e termos relacionados às questões ligadas ao público LGB (SAMHSA, 2001; Seidman et al., 2007). Além disso, observa-se falta de informações sobre a dimensão real do tamanho da população LGB (SAMHSA, 2001). Nos EUA, dados apontam que 10% dos homens e 5% das mulheres sejam homossexuais (SAMHSA, 2001). No Brasil, o primeiro grande estudo com representatividade das cinco regiões do país foi conduzido por Abdo (2004) e revelou que, de uma amostra de 7103 pessoas, 6,1% dos entrevistados do sexo masculino e 2,4% do sexo feminino se definiram homossexuais, e apenas 1,8% se declarou bissexual (Abdo, 2004). Outra questão metodológica importante dessas pesquisas é a ausência de questionamento sobre a orientação afetivo-sexual em grandes levantamentos epidemiológicos sobre abuso e dependência de substâncias. Isso reflete poucos dados de representatividade populacional. No Brasil, por exemplo, os grandes levantamentos domiciliares nacionais sobre o uso de substâncias na população brasileira, realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), não contêm qualquer dado sobre orientação afetivo-sexual (Carlini et al., 2005). Já o LENAD de 2012 pesquisou orientação sexual e identidade de gênero em estudo domiciliar e encontrou 3.4% da população brasileira se identificando enquanto pertencente a uma das minorias sexuais (LENAD, 2012). Soma-se o fato de que a maioria dos estudos sobre essa temática foi conduzido em amostras de conveniência, quer seja em amostras clínicas, em que se sabe que a população de Lésbicas, Gays e Bissexuais (LGB) procura menos tratamento que a população geral; ou, ainda, com representações extrapoladas de indivíduos com padrões de consumo encontrados em bares e/ou boates de maior concentração dessa população (Cabaj, 2008). A maioria dos estudos incluídos na revisão mencionada foi conduzida nos EUA, sendo que seria interessante que outras pesquisas com metodologia apropriada pudessem verificar como esse fenômeno do uso e dependência de substâncias entre gays e lésbicas se comporta em outras culturas (Diehl, 2009). O único estudo da revisão de Diehl (2009) que fez essa relação transcultural foi conduzido por Cochran et al. (2007) e não encontrou nenhuma diferença no consumo de substâncias entre os latinos e asiáticos americanos estudados (Cochran et al., 2007). Outro estudo, que não foi incluído na revisão citada (por não preencher critérios de inclusão), mas que, no entanto, merece ser comentado, por ser uma variante dos clássicos estudos americanos, foi conduzido por Hidaka et al. (2006). Trata-se de um estudo de base populacional com 2062 HSH, com 70,5% da amostra identificando-se como gays, que utilizou recrutamento de 57 web sites da comunidade gay do Japão. Entre os principais achados, destaca-se que 45% dos respondedores já utilizaram pelo menos uma vez na vida algum tipo de droga e 19,6% já utilizaram mais de um tipo de droga, sendo que as drogas mais utilizadas foram: amylnitrato (63,2%), ecstasy (9,3%) e maconha (5,7%) (Hidaka et al., 2006; Diehl, 2009). Não se observou na literatura o desenvolvimento de estudos de base populacionais sobre essa temática após 2009, uma vez que a maioria dos estudos publicados após esse ano da revisão feita por Diehl (2009) foram desenvolvidos em amostras de conveniência ou estudos cross section (Kecojevic et al., 2012). Os principais achados dessa revisão da literatura sobre dependência química em indivíduos LGB em 2009 têm algumas implicações para a prática clínica, entre eles, citam-se (Diehl, 2009): (1) A importância de se perguntar sobre a orientação afetiva sexual em serviços de saúde. A maioria dos programas de tratamento destinados a usuários de substâncias não abordam a orientação afetivo sexual de seus pacientes, e poucos serviços são especializados para ter esse “olhar diferenciado”. Programas de tratamento para o uso de substâncias, frequentemente, apresentam falta de recursos adequados para satisfazer as necessidades dessa população, apesar de muitos deles declararem ter um enfoque diferenciado. Nos EUA e em Porto Rico, por exemplo, somente 11,8% dos 911 serviços de tratamento para substâncias psicoativas pesquisados (incluindo internações, tratamento residencial e ambulatorial) realmente ofereciam tratamento especializado para o público LGBT (Bryan et al., 2007). Devido à homofobia, principalmente, alguns pacientes poderão apresentar dificuldade ou se sentir desconfortáveis para aceitar o tratamento. Lidar com essa questão nos grupos, na sala de espera ou no mesmo espaço de convivência é uma tarefa muitas vezes difícil para um profissional não sensibilizado. Existe uma ideia errônea de que o uso da substância pode “alterar” a orientação sexual do indivíduo. Crenças como essas constituem barreiras para o tratamento desse público e devem ser sempre manejadas (SAMHSA, 2001). (2) Lésbicas e mulheres bissexuais podem ter necessidades especiais e devem ser alvo de promoção de saúde, prevenção e tratamentos especializados. Especialmente para aquelas com problemas relacionados ao álcool. Sabe-se que a intoxicação alcoólica pode aumentar o comportamento sexual de risco. Além disso, o abuso e a dependência de álcool acarretam dificuldades de aderência para terapias de HIV, sendo que o álcool pode aumentar a progressão da infecção dessa doença por supressão imune (Rosario et al., 2009). Um olhar para a travestilidade O artigo intitulado “Estigma e resistência entre travestis e mulheres transexuais em Salvador, Bahia, Brasil” ilustra muito bem o olhar para a travestilidade e o estigma sofrido por essa população. Trata-se de um estudo qualitativo, chamado de “Estudo PopTrans”, escrito por Laio Magno, Inês Dourado e Luis http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hidaka%20Y%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hidaka%20Y%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus Augusto Vasconcelos da Silva, da Universidade do Estado da Bahia, conduzido entre 2014 e 2016 com base na análise de narrativas produzidas por 19 travestis e mulheres transexuais (identidades autodefinidas por elas) em Salvador, Bahia, e publicado nos Cadernos de Saúde Pública no ano de 2018. Assim, dentro desse contexto, o objetivo desse estudo foi avaliar as experiências do processo de estigma, por meio da descrição de fatos, acontecimentos, atores e contextos que marcaram as trajetórias de vida das travestis e mulheres transexuais entrevistadas, e também tentaram compreender a relação entre oestigma e suas performances femininas. Os autores fazem uma introdução breve contextualizando a questão do estigma sobre a travestilidade e do ser uma mulher trans no Brasil. Atribuem tal estigma principalmente ao fato de que as travestis, ao romperem com a heteronormatividade compulsória da sociedade e ao sustentarem a “ambiguidade ou duplicidade sexual na própria afirmação indentitária”, tendem a transitarem com maior fluidez entre os gêneros, e isso por si só tende a gerar repulsa, estigma, violência por parte da sociedade em vários níveis, que vão desde violações aos direitos humanos, encarceramento policial por conta da identidade de gênero, criminalização, dificuldade de acesso a serviços de saúde, ausência de acesso ao uso adequado de hormônios e de procedimentos cirúrgicos para modificação corporal até a dificuldade em realizar a readequação do nome de registro em consonância com sua identidade de gênero, entre outras. O cenário brasileiro atual da transfobia e a morte precoce de travestis no Brasil são assustadores. A transfobia é um fenômeno social complexo que pode ser definido como a manifestação de medo irracional, aversão, ódio, discriminação e outras formas de intolerância dirigidas a indivíduos com identidade trans. A transfobia pode ter consequências negativas para aqueles que a experimentam como vitimização, uso de substâncias, depressão, suicídio e tentativas de suicídio, deficiências, baixa autoestima e uma pletora de violações dos direitos humanos que, em muitos casos, podem culminar em homicídio. Além disso, a transfobia pode estar relacionada ao acesso precário à saúde de pessoas transexuais devido a uma variedade de fatores, incluindo a falta de conhecimento do médico e de outros profissionais de saúde e a competência educacional na prestação de cuidados a pessoas transexuais (Fernandes, 2013). O Brasil tem uma notoriedade lamentável como país mais transfóbico do mundo, já que foi responsável por 845 casos de homicídio registrados entre janeiro de 2008 e abril de 2016, em contagem global de homicídios de 2115 em 65 países em todo o mundo. Apesar disso, a homofobia e a transfobia não são codificadas e reconhecidas com especificadores de crimes no Brasil. O projeto de lei nº 122/2006 (PL 122), que criminalizaria a homofobia, a transfobia e a lesbofobia, foi apresentado à Câmara dos Deputados em 2006, mas ainda não se tornou lei (Bernardi, 2006). Em 2019, o SupremoTribunal Federal decidiu criminalizar a homofobia como forma de racismo, sendo que a homofobia passa a ser utilizada como qualificadora de motivo torpe no caso de homicídios dolosos ocorridos contra homossexuais. Estudo epidemiológico Recrutou travestis ou mulher transexuais, com idade maior ou igual a 15 anos e que estivessem residindo em Salvador ou região metropolitana no período do estudo. A disposição em contar as histórias de vida também foi levada em consideração no recrutamento para o estudo qualitativo. As entrevistas foram realizadas em profundidade com base na diversidade sociodemográfica e nas experiências dessas participantes na tentativa de produzir uma heterogeneidade de histórias. Tais entrevistas ocorreram em uma sala reservada na sede do PopTrans ou em outro lugar, de acordo com a indicação da própria participante. O PopTrans é um projeto de pesquisa interdisciplinar com a participação de uma equipe de pesquisadores de diferentes áreas, os quais tem como objetivo conhecer as condições e os modos de vida, e ao mesmo tempo investigar fatores determinantes da infecção pelo HIV, sífilis e hepatites B e C entre travestis e mulheres transexuais em Salvador-Bahia. Os autores utilizaram dois conceitos para análise das narrativas. O primeiro deles inspirado no conceito de gênero de Judith Butler (2003) como uma “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância”. E o segundo conceito de estigma do cientista social Erving Goffman (1981) “como um atributo profundamente depreciativo identificado nas interações sociais”. Os pesquisadores de campo buscaram focalizar os processos de construção do ser e das modificações corporais, formas de interação com outras pessoas, os itinerários de cuidados com a saúde, incluindo as dificuldades e formas de acesso aos serviços de saúde, as formas de discriminação ou violência vividas no cotidiano e as expectativas e projetos para o futuro. Todas as participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram garantidos o anonimato e a confidencialidade das entrevistas por meio da adoção de nomes fictícios. O projeto de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (no 225.943/2012). Entre os principais resultados destacam-se inicialmente os dados sociodemográficos das 19 pessoas entrevistadas, os quais revelam uma população jovem de 20 a 40 anos, com baixa escolaridade, a grande maioria em atividade atual de trabalhadora do sexo, pardas, solteiras e vivendo com uma renda de um a dois salários mínimos por mês. Quanto ao histórico de discriminação e violência, 36.8% já foram “forçadas a fazer sexo”, 42.1 % já sofreu agressão por parte da polícia, 52.6% relatou histórico de discriminação na família, 63.2% já sofreu discriminação pelos vizinhos, 73.7% relataram ter sofrido agressão física e 78.9% já sofreu agressão verbal. O estigma relacionado à formação da identidade de gênero e ao constante processo de construção de uma travesti podem ser barreiras importantes para o acesso delas à escolaridade e ao emprego formal. Essa situação de marginalização socioeconômica geralmente justifica sua entrada no trabalho sexual. O trabalho sexual muitas vezes é realizado em troca de poucos recursos financeiros ou como “moeda de troca”. Ainda o trabalho sexual tem relação com a necessidade de autossustento e a falta de opções laborais no mercado de trabalho, o qual parece não tolerar a identidade não binária. Esse trabalho também é geralmente feito em condições precárias de segurança, o que as expõe a uma diversidade de riscos (sexuais, abusos, roubos etc.). Muitas travestis e mulheres transexuais parecem indicar que a expressão “afeminada” esteve presente nos seus corpos e nos objetos utilizados por elas desde muito pequenas – já na primeira infância – como um sinal que as separava das demais crianças. O corpo é performado ainda na infância e na adolescência por intermédio de trejeitos “de menina”, “boiola”, “viado”, os quais são muitas vezes reconhecidos por familiares e por outras pessoas próximas. Os objetos (boneca, faz de conta da toalha como cabelo, assessórios etc.) e roupas (vestidos, saias etc.) utilizados na infância possuem um agenciamento performático importante. Ambos são classificados como “coisa de mulher” e fazem parte da infância das travestis e mulheres transexuais. Nesse momento, esses são identificados como marcadores que distinguem a performance “afeminada” das travestis e mulheres transexuais daquelas apresentadas pelos meninos, frustrando a expectativa de muitos ao seu redor – a começar pelo primeiro lugar de pertencimento, que em geral é a família, e pelo segundo lugar de pertencimento que é a escola. As performances distinguem as travestis e mulheres transexuais de outras pessoas pelo processo de rotulação e de separação entre grupos reconhecidos como “apropriadamente generificados” daqueles que não “se encaixam” na divisão binária. Esse atributo também parece impor a impossibilidade de atenção social e recai sobre elas um grande descrédito ou demérito por serem quem são. Ao contrariar aquilo que é o socialmente “esperado” num universo de gêneros binários, as travestis e as mulheres transexuais multiplicam as narrativas sobre discriminação sofrida ao longo de suas trajetórias de vida. Nesse estudo, as narrativas sobre expulsão de travestis e mulheres transexuais de casa e da escola devido a sua performance “afeminada” demonstram tantoa estereotipia quanto a separação das travestis e mulheres transexuais do convívio familiar com aquelas pessoas consideradas “apropriadamente generificadas”, ao mesmo tempo que reforça um sistema de gênero binário de oposição. A resistência parece emergir, sobretudo, na formação de alianças com outras travestis e na interação social com elas, assim como na formação de associações em prol das causas que interessam ao ativismo de transexuais. Cabe destacar neste artigo os pontos fortes desse estudo, os quais estão centrados no fato de que o método qualitativo empregado foi capaz de aprofundar a complexidade de fenômenos como a vivência do estigma dentro do universo da travestilidade das entrevistadas em Salvador, Bahia, assim como aprofundar fatos e processos particulares desse grupo de 19 travestis e mulheres trans permitindo experimentar a realidade tal como as entrevistadas a sentem ou vivenciam. Por outro lado, os autores desse artigo não apontam uma limitação sequer de seu estudo ou mesmo suas potencialidades. Não contextualizam, por exemplo, as limitações de generalização dos resultados, uma vez que se pode inferir que esse contexto pode ser particular das travestis e mulheres transexuais de Salvador, mas não se sabe, por exemplo, se essa narrativa é vivenciada de forma semelhante ou diferente pelas travestis do Rio Grande do Sul, por exemplo, onde a cultura é completamente distinta daquela observada no nordeste do Brasil. Também não apresentaram as implicações desses achados para as políticas públicas ou para a promoção social e educacional, tampouco para futuros estudos. Entre as possíveis implicações para políticas púbicas nesse contexto estão a capacitação de profissionais da saúde para melhor atenderem travestis e mulheres transexuais dentro das especificidades e de suas necessidades numa atmosfera de acolhimento e respeito em serviços de saúde, já que esse foi um dos temas mais apontados como fatores de estigma e dificuldades de acesso a serviços de saúde e cuidados em saúde. Isso vale para qualquer serviço, inclusive aqueles de tratamento de transtornos relacionados ao uso de substâncias que em geral são serviços binários, ou seja, destinado apenas para homens e/ou mulheres, e não para pessoas que têm gênero em transição ou que transitam no sentido queer da palavra. A expansão da pesquisa sobre as diversas populações transexuais tende a ajudar a aumentar a compreensão de como sociedades e culturas lidam com questões de gêneros não binários. Pesquisas comparativas sobre as características da vivência do estigma de travestis e mulheres transexuais, das suas performances, bem como dos processos de resistência dessas identidades, tendem a uma maior compreensão da complexidade da identidade de gênero, o que em última instância pode contribuir para a redução do estigma associado a identidades de gênero não binárias e à promoção ativa dos direitos humanos de indivíduos com tais identidades. Um olhar para os agêneros, não binários, queer Agêneros são pessoas que, em geral, têm a sua identidade de gênero chamada de neutra, ou, em outras palavras, elas não querem ter um gênero. Não existe ainda uma “causa” por que as pessoas se identificam com não pertencentes a nenhum gênero. A tendência atual é acreditarmos que tais identidades estão dentro do espetro de possibilidades das variações possíveis de gênero. Elas são assim e ponto! Tais identidades de gênero fora do binário de “mulheres e homens” estão sendo cada vez mais reconhecidas tanto em sistemas legais quanto médicos de acordo com a presença emergente delas em espaços públicos e privados antes não reconhecidos e, sobretudo, do advocacy de grupos de pessoas organizadas para defender suas causas e anseios em nossas sociedades. Tanto que a cidade de New York recentemente permitiu que documentos de seus cidadãos pudessem conter o gênero neutro, identificado com um X em respeito e reconhecimento a existência delxs. Na Austrália, por exemplo, as mudanças legislativas e políticas podem beneficiar pessoas de experiência trans e/ou não binária (por exemplo, homens designados por mulheres com corpos estereotipados femininos, mulheres designadas por homens com corpos estereotipados “masculinos” e pessoas que se identificam como genderqueer, agênero [não tem gênero], bigênero [ter dois gêneros] ou outra possibilidade de gênero). O termo utilizado para pessoas não binárias está associado a pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias únicas de “masculino” ou “feminino”, ou seja, a esses dois polos apenas de possibilidades de autoidentificar-se. Algumas pessoas não binárias podem sentir que seu gênero está “em algum lugar entre homem e mulher”. Portanto, podem se sentirem “transitando” entre esses dois universos e isso ser sua identidade e também sua expressão de gênero. Já algumas pessoas têm um gênero que não é nem masculino nem feminino e pode se identificar tanto como homem quanto mulher ao mesmo tempo, ou como gêneros diferentes em momentos diferentes, como nenhum gênero, ou disputar a própria ideia de apenas dois gêneros. Os termos genéricos para esses gêneros todos são gêneros “genderqueer” ou “non-binary”, daí a possível relação dessas terminologias. Na construção do gênero é importante sempre termos em mente que quem se considera algo ou alguém deve ser a própria pessoa portadora daquela identidade. Por isso é importante lembrar sempre que essa identidade construída socialmente é atribuída pelo sujeito, e não pelos outros ou por terceiros. Por isso, quando se pergunta se uma pessoa pode ser considerada transexual, o meu impulso inicial é de responder “não sei, você tem que perguntar para ela se ela se considera uma pessoa trans!”. Compreendem? Estamos falando de nomenclaturas muito complexas, porém mais que “nomenclaturas”, estamos a falar de pessoas, de gente, de seres humanos, ou seja, de gente que se percebe, identifica-se, reconhece-se como tal. Embora esses gêneros existam historicamente e globalmente, eles permanecem marginalizados e, como tal, apesar de não serem “transtornos” ou patológicos em si mesmos, as pessoas com tais identidades permanecem em alto risco de vitimização e de estresse minoritário ou de marginalização como resultado da discriminação. Os estudos sobre a temática sim são ainda escassos. Mais dados e pesquisas são necessários para colmatar as lacunas de conhecimento que existem atualmente e melhoram o acolhimento e os cuidados para agêneros e para pessoas não binárias em qualquer dos espaços que frequentem ou necessitem. Os estudos sobre o tema em sua maioria estão mais preocupados em avaliar questões ligadas a estigmas, a efeitos da patologização, ao stress minoritário e seus efeitos ou como orientar profissionais da saúde de como lidar com jovens agêneros e não binários em ambientes de saúde, por exemplo. São escassos talvez porque, apesar de essas pessoas existirem há muito tempo, o tema tem ganhado maior visibilidade somente nos últimos anos. Acredito que a crescente visibilidade gere maior interesse dos acadêmicos em melhor conhecê-los e saber de suas necessidades, anseios e trajetórias. Outra explicação para a escassez de estudos sobre o tema talvez esteja ligada às dificuldades de recrutar tais indivíduos para pesquisas devido ao número reduzido, daí o surgimento de pesquisas mais qualitativas do que quantitativas. Estudos baseados em população mostram uma pequena porcentagem, mas uma proporção considerável em termos de números brutos – de pessoas que se identificam como não binárias. Os achados de um estudo piloto, por exemplo, do questionário recém-projetado, o Gender Diversity Questionnaire, que incluiu perguntas sobre identidade de gênero e expressão de gênero respondidas por 251 adolescentes que compareceram ao Serviço Nacional de Desenvolvimento de Identidade de Gênero do Reino Unido entre junho de 2016 e fevereiro de 2017, revelou 1.2% de agêneros nessa amostra, o que coincide com estimativas dimensionadas para a população geral (Twist & Graaf, 2018). A vida deuma pessoa agênero é como de outra pessoa qualquer. No entanto provavelmente com mais barreiras ligadas ao preconceito e ao reconhecimento delas como identidades estáveis ou reais. Daí a importância dos movimentos indentitários na organização de reconhecimento e, principalmente, de pertencimento. Não se reconhecer como alguém pertencente ao masculino ou ao feminino como a grande maioria das outras pessoas pode trazer angústia e busca de um lugar de pertencimento. Pode trazer ansiedade e depressão e até mesmo risco de suicídio. As famílias também podem ter dificuldades de lidar com essa questão e podem “forçar”/“insistir” para que seu familiar se “encaixe” em um modelo. Movimentos de familiares como as “Mães pela Diversidade” fazem um trabalho valoroso nesse sentido de orientar, acolher, partilhar e compartilhar informações, saberes, experiências e trajetórias. A orientação sexual de uma pessoa agênera pode ser diversa e rica também. Não existe um “padrão”. Acho que se existir um “critério”, esse talvez seja o amor, o gostar, o se sentir atraído por aquela outra pessoa ou pessoas. Existe ou não um marcador biológico ou psicológico para isso? Se sim, a resposta é não, pois não conhecemos ainda se existe essa ou aquela característica. Muito provável que não exista. É importantíssimo falarmos e, sobretudo, pesquisarmos mais sobre esse tema e discutirmos de uma forma assertiva, amorosa, ética, baseada em evidências científicas e não apenas em “achismos” e “ideologismos”, quer sejam religiosos ou dogmáticos, sobre as possibilidades de existência humana num momento político nacional que pode ser bastante complicado e difícil de dialogar se entendermos que o mundo é apenas das meninas que “vestem rosa e dos meninos que vestem azul”. Temos que perguntar para essas pessoas agêneras, binárias, queer o que elas acham disso. Será que de fato mesmo está existindo uma maior “confusão na cabeça das crianças” com relação à sua criação de uma forma mais fluida com relação ao seu gênero? Não temos essas respostas prontas! Daí a necessidade de pesquisas, diálogo informado e de ouvirmos os maiores interessados nesse reconhecimento, que são as pessoas agêneras e que transitam ou que transgridem as normativas de gêneros binários. Não pesquiso esse tema em específico, por isso a minha relação com o tema é advinda dos cursos que tenho frequentado e das palestras e movimentos que tenho contato. Conheço alguns colegas que estão desenvolvendo debates e estudos sobre o tema dentro da perspectiva da Teoria Queer da Judith Butler. Recentemente, tive a oportunidade de ir a uma palestra de Paul Preciado, um filósofo trans feminista, bastante interessante, que fala sobre algo bem complexo que é o “corpo político”. Mas isso já daria um outro capítulo. Mas vale a pena conferir! Fica a dica! CAPÍTULO 10 ADOLESCENTES Ana Carolina Schmidt de Oliveira Hewdy Lobo Ribeiro Introdução Independentemente da complexidade do serviço de saúde que recebe adolescentes para tratamento, certamente o profissional da saúde irá se deparar com a temática da sexualidade e uso de drogas, em muitos casos em um mesmo paciente. É na adolescência que em geral se inicia a descoberta da sexualidade e que a maioria das pessoas tem a primeira experiência sexual (UNESCO, 2018). Também é nessa época da vida que a maioria das pessoas que chegam a experimentar algum tipo de substância irá fazer o primeiro uso (Instituto Nacional de Pesquisa de Álcool e Drogas – INPAD, 2013). Apesar de a maioria das pessoas desenvolverem sua sexualidade de forma saudável e natural e, portanto, não evoluírem para um transtorno relacionado a substâncias, há uma parcela da população que terá problemas em relação a uma ou ambas dessas áreas. Por isso, é essencial que profissionais da saúde tenham conhecimentos para prevenir, rastrear, identificar, acolher, avaliar ou mesmo tratar questões relacionadas à sexualidade e às drogas na adolescência. Considera-se que adolescência inicia com a puberdade e termina com a aquisição das regras sociais do mundo dos adultos (Geier, 2013). Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019 definir a adolescência como a fase entre os 10 e os 19 anos, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) como a fase entre os 12 e os 18 anos, é importante lembrar que existem variáveis individuais que marcam em cada sujeito a duração desse período. Como se sabe, a adolescência é marcada por diversas mudanças: Físicas, decorrentes da puberdade; Cognitivas, pela maturação cerebral; Socioemocional, pelas transformações nos papéis sociais e na dinâmica dos relacionamentos. Apesar do aumento das capacidades cognitivas em relação à infância, o controle cognitivo sobre os comportamentos se desenvolve gradualmente, ou seja, até a adultez haverá limitações nessa habilidade mental (Geier, 2013). Além disso, na adolescência é característica a busca por prazer, sensações, novidades e principalmente por recompensas, o que é entendido como adaptativo. Essa motivação interna os possibilita conhecer e explorar novos ambientes e experiências gerando conhecimentos e competências essenciais para a vida adulta (Geier, 2013). Porém essa energia direcionada ao novo é acompanhada por uma dificuldade em manejá-la, podendo levar o jovem a situações de risco à sua saúde. De fato, o engajamento de adolescentes em comportamentos de risco é maior do que em qualquer outra fase da vida, e está diretamente relacionado com a morbidade e a mortalidade nessa população (Geier, 2013). Aqui cabe um parêntesis para esclarecer o que seria um comportamento de risco: são aqueles que podem gerar resultados subjetivamente desejados (como o prazer da relação sem camisinha), porém que também podem causar consequências negativas e mal adaptativas (como o contágio por infecção sexualmente transmissível (ISTs) (Geier & Luna, 2009). Além disso, a capacidade para tomada de decisão – entre outras importantes funções cognitivas – não está completamente desenvolvida nessa faixa etária. Influências no desenvolvimento saudável do jovem pode trazer prejuízos ainda maiores nessa habilidade e gerar comportamentos de risco (Geier, 2013). Por exemplo, é reconhecido em diversos estudos que adolescentes usuários de drogas usam menos frequentemente camisinha em suas relações sexuais. Nesses casos, o reforço do prazer imediato influencia sua tomada de decisão e consequentemente o comportamento. Dentro desse contexto, o presente capítulo tem como objetivo justamente apresentar informações para embasar essas práticas no dia a dia do atendimento a adolescentes. Uso de substâncias na adolescência Apesar da maioria dos adolescentes que experimentam álcool, tabaco e outras drogas não apresentar nenhum tipo de transtorno ou problema, uma parcela significativa terá consequências importantes do uso, inclusive o desenvolvimento de um transtorno relacionado a substância (Geier, 2013). De acordo com o Ministério da Saúde (2005), o consumo de substâncias é um dos maiores fatores causadores de vulnerabilidades entre os jovens brasileiros, como dependência química, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, tráfico de drogas, acidentes, violência e morte. Atualmente no Brasil 25,5% dos adolescentes estudantes da rede pública ou privada de ensino já tiveram contato com algum tipo de substância, sem levar em consideração o álcool e o tabaco (Carlini et al., 2010). De acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II LENAD), 4% dos jovens já experimentou maconha, 3% usou no último ano, sendo que entre estes 10% são dependentes da substância (INPAD, 2013). Em relação à cocaína 3% dos adolescentes já experimentaram na vida alguma forma dessa substância, sendo que 2% consumiram no último ano (INPAD, 2013; ABDALLA et al., 2013). Quanto à cocaína fumada, 1% dos jovens já fizeram uso na vida, representando 150 mil jovens, e 0,2% no último ano, que seriam 18 mil jovens, valendo ressaltar que o Brasil é o maior mercado consumidor dessa substância no mundo (INPAD, 2013). O álcool tambémmerece destaque, tendo em vista que mesmo lícito para adultos, seu consumo é proibido para menores de 18 anos. Ainda assim, o levantamento realizado por Carlini et al. (2010) mostra que 60% dos jovens estudantes já beberam na vida, 42,4% no último ano, 21,1% no último mês, enquanto 2,7% fazem um consumo frequente e 1,6% fazem um consumo pesado dessa substância. Sabe-se que a adolescência pode representar um período de vulnerabilidade para o desenvolvimento da dependência química. Fatores como conquista da própria identidade sem o devido suporte social, curiosidade natural pelas drogas, modismos, pressão da turma, exposição a substâncias, exposição à violência doméstica, violência urbana, falta de recursos socioeconômicos, envolvimento com a criminalidade, exposição ao uso de drogas dos pais, entre outros, podem vulnerabilizar o indivíduo para o contato inicial com a substância e para a persistência nesse consumo (Bessa, Boarati & Scivoletto, 2011). Sexualidade na adolescência Como se sabe, a adolescência é um período de grande descoberta na área da sexualidade. Com as mudanças que ocorrem com a puberdade, o novo corpo traz a possibilidade de novas experiências. Desde uma perspectiva saudável, é o momento em que o jovem irá conhecer seus desejos, o enamoramento, a masturbação, a busca pelo prazer e de relacionamentos afetivos sexuais. Aprende-se a partir dessas primeiras experiências o necessário para estabelecer relações saudáveis (Corona & Funes, 2015). Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2018), a saúde sexual está relacionada com conhecimentos, habilidades sociais e valores que possibilitam desenvolver relações sociais e sexuais respeitosas, escolhas livres e baseadas nos próprios direitos, de maneira a garantir saúde, bem-estar e dignidade. Apesar de essa faixa etária estar relacionada com maiores comportamentos de risco para IST e gestação indesejada, a maioria dos adolescentes consegue chegar à vida adulta sem ser contaminado, sem filhos ou abortos (Corona & Funes, 2015). Porém uma significativa parcela dessa população terá seus direitos fundamentais violados pela gestação ou aborto, pela contaminação por ISTs ou mesmo pela violência sexual ou de gênero. Apesar de a violência sexual poder estar presente em qualquer faixa etária, nesse período pode ser difícil para o jovem se posicionar contra pressões nessa área. Não é incomum relatos de jovens que se veem pressionados pelos colegas para terem relações sexuais com pessoas que não desejam. Infelizmente, o abuso sexual de menores é um fato alarmante no Brasil (Ministério da Saúde, 2016). Dados de notificações compulsórias de violências interpessoal e autoprovocada pelos serviços de saúde públicos e privados revelam que em 2015, 38,5% das notificações eram de vítimas crianças e adolescentes entre zero e 19 anos. A violência sexual representou 11,3% das notificações. Foram identificados 56.036 casos de estupro contra meninas dessa faixa etária entre 2011 e 2015, geralmente ocorridos na residência (72%), sendo o autor da violência, principalmente, amigo, conhecido, pai ou padrasto. Entre 2010 e 2014 houve 5.008 nascimentos de mães nessa faixa etária. Vale destacar que meninas grávidas com até 12 anos de idade são consideradas vítimas de violência sexual (Ministério da Saúde, 2016). Nesse sentido, outro tema de preocupação na adolescência é a gravidez precoce. No Brasil a taxa de gestações na adolescência é de 68,4 nascimentos para cada 1 mil adolescentes entre 15 e 19 anos, o que supera a taxa mundial de 46 nascimentos, e a taxa da américa latina de 65,5 nascimentos. A gestação nesse período da vida está associada à baixa escolaridade, à pobreza, a ser indígena ou de região rural (ONUBR, 2018). Os prejuízos são inúmeros, não só para a jovem como para o bebê, que pode apresentar maior risco de problemas de saúde e socioeconômicos. A adolescente possivelmente terá com a gestação ou futuro papel de mãe um obstáculo para seu desenvolvimento biopsicossocial, como para sua saúde, educação e para a entrada no mercado de trabalho. Há inclusive maior o risco de morte materna por complicações na gestação, pré e pós-parto, uma das principais causas da morte entre adolescentes e jovens de 15 a 24 anos no Brasil (ONUBR, 2018). Isso abre a discussão sobre o aborto na adolescência. Segundo as Nações Unidas (ONUBR, 2014), anualmente ocorrem por volta de 3,2 milhões de abortos inseguros em jovens entre 15 e 19 anos em países em desenvolvimento como o Brasil. O país perde mais de 7 bilhões de reais com gravidez de adolescentes por complicações durante a gravidez ou o parto (ONUBR, 2014). Esse fenômeno destaca a importância do debate sobre o tema; sem reservas falar sobre o tema pode prevenir a gestação ou mesmo o aborto clandestino. A vergonha de adultos para falar sobre sexualidade representa um fator de risco para os jovens, que conhecidamente apresentam dúvidas frequentes sobre temas como (Telma et al., 2005): Relação sexual, por exemplo, o que é, o que é sexo oral, o que é masturbação, o que é orgasmo, mitos, entre outros; Gravidez e anticoncepção, por exemplo, o que é anticoncepção, quais são os métodos anticoncepcionais, e mitos, como se na primeira relação sexual ou sexo anal engravida, entre outros; IST, por exemplo, o que são, como são os sintomas, quais as formas de transmissão, como se previne, onde se faz o diagnóstico, qual o tempo de incubação, entre outras; Orientação sexual, por exemplo, como me definir sexualmente, o que é bissexualidade, o que é transexualidade, entre outros; Questões sobre o corpo, a fisiologia, sobre disfunções sexuais, entre outros; Onde buscar consultas médicas. O que se observa é que o jovem continua a ter muitas das dúvidas que os jovens de antigamente tinham, e seguem em muitos casos sem acesso a informações de qualidade e confiáveis. Ainda é frequente que jovens tenham que lidar sozinhos com as mudanças corporais da puberdade, ou que descubram sobre a sexualidade com seus pares. Ainda que tenham a internet com infinitas informações, nem sempre estas estarão orientadas para a sua idade, além de muitas vezes não serem confiáveis. Um cenário infeliz é o aprendizado de jovens sobre a sexualidade por meio da pornografia, de tão fácil acesso no mundo on-line. Por isso, apesar da grande disponibilidade de informações sobre a sexualidade, é importante que os adultos de confiança do jovem conversem sobre o tema, para que tenham critérios e crítica sobre o que recebe de outras fontes (Chandra-Mouli, 2015). Sexo e drogas na adolescência No Brasil, poucos estudos verificaram a relação entre uso de substâncias e comportamento sexual na adolescência. Miozzo et al. (2013) avaliaram o consumo de substâncias e o padrão de comportamento sexual em alunos do ensino médio (n=453, ambos sexos) em uma cidade do Rio Grande do Sul e identificaram um uso na vida de álcool (82,34%), tabaco (12,58%), maconha (6,62%) e cocaína (5,30%). Entre os 54,5% dos alunos que referiram já ter tido relação sexual, foi encontrada uma associação entre já ter utilizado drogas em geral, álcool ou tabaco e já ter tido relação sexual. Wendland et al. (2018) investigaram, por meio do Estudo Epidemiológico sobre a Prevalência Nacional do HPV, o comportamento sexual de jovens na transição para a vida adulta (n=8562). Identificaram que a maioria dos homens teve uma iniciação sexual precoce e mais parcerias sexuais quando comparado com as mulheres, e que estas referiram usar métodos anticoncepcionais mais frequentemente que os homens. Verificaram que 15,5% das mulheres e 25,3% dos homens já fizeram uso de drogas antes da relação sexual, e entre eles a contaminação por ISTs foi mais frequente (em ambos os sexos). Fica clara a relação entre uso de substâncias e prejuízos na sexualidade na adolescência. Porém, quando se trata de sexo e drogas, pode-se estabelecer a relação entre essas áreas desde diferentes direções. O início da vida sexual pode representar um fator de risco para um uso mal adaptativode substâncias, como no caso de jovens que sentem necessidade de beber para poder paquerar, ou aqueles que buscam em substâncias formas de melhorar seu desempenho sexual. Já o uso de substâncias pode vulnerabilizar o jovem para comportamentos sexuais de risco, como negligenciar o uso de camisinha, ou mesmo expor o jovem a situações de violência como estupro ou troca de sexo por drogas (Sampaio Filho et al., 2010). O uso de álcool, por exemplo, está consistentemente associado a comportamentos de risco. Um estudo com 138 universitários verificou que quanto maior o beber em binge, menor a autoeficácia quanto à prevenção de ISTs. Um fator de risco nesse sentido é a expectativa positiva da relação sexual enquanto intoxicado pelo álcool (Johnson et al., 2018). Desde outra perspectiva, os fatores de risco para comportamentos sexuais e os transtornos relacionados a substâncias muitas vezes coincidem, sendo que a vivência deles estaria aumentando as chances do jovem de apresentar problemas nessas duas áreas. O quadro 1 ilustra os fatores de risco para adoção de comportamentos sexuais de risco na adolescência: Pressão social de pares e desejo de pertencimento; Diversão e festas relacionadas a comportamentos de risco; Insegurança, baixa autoestima, ansiedade; Desejo por melhora de performance e pelo corpo socialmente aceito; Vivência de traumas e maus-tratos; Vulnerabilidade socioeconômica; Contextos de violência, como tráfico de pessoas ou prostituição infantil; Entre outros. QUADRO 1 - FATORES DE RISCO COMUNS Fonte: Elaborado pelos autores A necessidade de aprovação dos pares é evidente na adolescência. Os comportamentos de risco são muitas vezes motivados por recompensas sociais. Portanto são mais prováveis de acontecer na presença dos pares (Albert et al., 2013). Ambrosia et al. (2018) explicam que isso ocorre devido à combinação de uma maior sensibilidade neural e comportamental ao afeto positivo dos pares. Nessa fase as mudanças biológicas, afetivas e comportamentais se dão orientadas ao social, no sentido de priorizar as amizades, relações sexuais e relacionamentos românticos. Essa dinâmica esclarece por que a influência dos amigos nessa fase parece ser mais motivadora que a dos pais (Liao et al., 2013). Whitton et al. (2018) verificou, por exemplo, que entre adolescentes Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) relacionamentos românticos podem promover tanto o tabagismo e uso de maconha como um efeito protetivo contra o uso de álcool e outras drogas ilícitas. Em relação aos jovens LGBT, infelizmente a literatura demonstra que eles fazem um maior uso de substâncias que o pares heterossexuais, inclusive apresentam maior uso de múltiplas substâncias, o que aumenta a probabilidade de prejuízos (Dermody, 2018). Jovens transgêneros, além de mais uso de substâncias, vivenciam ainda mais histórico de violência, risco de suicídio e comportamentos sexuais de risco que seus pares cisgêneros (Johns et al., 2019). Quanto ao histórico de violência, sabe-se que as adolescentes que apresentam histórico de maus-tratos também têm maior risco para comportamentos de risco, tanto relacionado ao uso de drogas como sexuais. É marcada nesses casos a escolha de uma parceria que promove esses comportamentos e inibe conversas sobre práticas saudáveis (Clark et al., 2018). Portanto, entre jovens, evidentemente o uso de substâncias não se dá apenas com fins recreacionais, mas também como maneira de obter recompensas sociais e alívio do sofrimento. Nesse ponto, é interessante notar o uso de substâncias com outros objetivos que não o de efeitos psíquicos, por exemplo, o consumo de fármacos como laxantes, para obtenção do corpo magro imposto socialmente, e Sildenafila para garantia de ereção duradoura, ou seja, a busca por efeitos diretamente relacionados à sexualidade (Diehl & Schmidt, 2015). Por fim, destacam-se casos eminentemente graves da associação entre sexo, drogas e adolescência, como o uso de substâncias na prostituição na adolescência decorrente da exploração sexual de menores, do turismo sexual, do tráfico de pessoas, ou mesmo da pornografia digital. Avaliação e intervenção Mewton et al. (2019) sinalizam que o uso de álcool, o uso de drogas, o tabagismo, o sexo sem proteção e sono insuficiente são os comportamentos de risco de jovens que devem funcionar de alerta para os profissionais da saúde por representarem fatores de risco preditores de morbidade e mortalidade nessa população. Desse modo, são comportamentos que exigem políticas urgentes de prevenção e tratamento. Campanhas de prevenção de comportamentos de risco na adolescência são amplamente aplicadas em escolas, Unidades Básicas de Saúde (UBS), entre outros espaços comunitários. Porém, tendo em vista a alarmante epidemiologia de uso de substâncias e de prejuízos relacionados à sexualidade na adolescência, os resultados destas ainda são insuficientes e profissionais da saúde devem contribuir com novas políticas para uma efetiva prevenção. Educadores e pais, quando se deparam com o uso de drogas e questões relacionadas à sexualidade entre seus alunos e filhos, muitas vezes sentem-se limitados em como ajudar, em como abordar esses temas de maneira construtiva e protetiva. Assim, uma das vias da prevenção está nas mãos dos profissionais da saúde ao instrumentalizar a população adulta sobre como lidar com o uso de drogas e a sexualidade na adolescência (Oliveira, Diehl & Cordeiro, 2014). De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), em seu artigo 101 (Medidas Específicas de Proteção), o jovem possui o direito garantido de receber atendimento para seu uso problemático de substâncias. Assim, os adolescentes dependentes químicos devem ter à disposição: “orientação, apoio e acompanhamento temporários; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial, ou inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos”. Em avaliações de adolescentes, profissionais da saúde devem sempre investigar: o uso de álcool, tabaco ou outras drogas, comportamentos sexuais de risco e os fatores de risco e proteção presentes em relação a essas duas áreas. Para tanto, pode ser interessante utilizar escalas como a Drug Use Screening Inventory (DUSI) (De Micheli, Formigoni, 2000) e a Youth Risk Behavior Survey (YRBS) (Pinto & Correa, 2010). Como relatado, esse deve ser um cuidado para toda população adolescente, mas deve-se estar ainda mais atento para as potenciais vulnerabilidades apresentadas por meninas vítimas de maus-tratos e jovens LGBT vítimas da homofobia e da transfobia. Essas violências relacionadas ao gênero e/ou orientação sexual estão intimamente relacionadas com a construção da sexualidade e aumentam os riscos para a saúde biopsicossocial (Corona & Funes, 2015), inclusive podendo resultar em uso de substâncias ou transtornos mentais (Natarelli et al., 2015). Em relação a jovens que sofrem maus-tratos pela parceria, intervenções que podem contribuir são ilustradas no quadro 2: Promover informações sobre as características de parcerias que promovem comportamentos de risco e das que estão associadas às relações saudáveis; Proporcionar informações sobre como a parceria pode influenciar no uso de substâncias; Conversas sobre sexo seguro; Prover informações sobre sexo seguro e sobre os riscos do sexo não seguro; E proporcionar informações sobre os riscos associados com o uso de drogas e prática de sexo não seguro com a parceria. QUADRO 2 - INTERVENÇÕES COM JOVENS QUE SOFREM MAUS-TRATOS PELA PARCERIA Fonte: Traduzido livremente de Clark et al. (2018) Quanto aos transtornos relacionados a substâncias, de acordo National Institute on Drug Abuse (NIDA, 2014) os componentes dos tratamentos para adolescentes devem compreender uma combinação de terapias e serviços para atender às necessidades individuais do jovem, como demonstrado na figura 1 abaixo: FIGURA 1 - COMPONENTES DO TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA PARA ADOLESCENTES Fonte:Adaptado de NIDA (2014) Legenda: SPA= substâncias psicoativas Ainda de acordo com NIDA (2014), os seguintes 13 princípios são fundamentais para o tratamento do adolescente dependente de substâncias: 1- O uso de substâncias na adolescência precisa ser identificado e tratado o mais rápido possível. 2- Os adolescentes usuários de substâncias podem se beneficiar de uma intervenção mesmo que eles não sejam dependentes ainda. 3- Consultas de rotina podem ser boas oportunidades para rastrear o uso de substâncias. 4- Intervenções judiciais e pressão familiar desempenham importante papel na admissão e na manutenção do adolescente no tratamento. 5- O tratamento deve ser adaptado às necessidades específicas de cada adolescente. 6- O tratamento deve atender às necessidades integrais dos adolescentes (educação, família, outras), e não apenas ter foco no uso de substância. 7- Terapia comportamental é eficaz no tratamento do uso de drogas na adolescência. 8- Incluir a família e a comunidade é um aspecto importante do tratamento. 9- Para que o tratamento seja efetivo, é importante identificar e tratar quaisquer outras condições de saúde mental. 10- Questões sensíveis, como violência, abuso e risco de suicídio, devem ser pesquisadas, identificadas e tratadas. 11- É importante monitorar o uso de drogas durante o tratamento de adolescentes. 12- Permanecer em tratamento por um período de tempo adequado e manter continuidade são aspectos importantes. 13- É importante realizar testes para doenças sexualmente transmissíveis, principalmente HIV, hepatite B e hepatite C. QUADRO 3 - 13 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O TRATAMENTO DO ADOLESCENTE DEPENDENTE DE SUBSTÂNCIAS Fonte: adaptado e traduzido livremente de NIDA (2014) No Brasil, a rede de tratamento para adolescentes que apresentam o diagnóstico de dependência química é composta por serviços de diversas complexidades. Esses jovens devem receber tratamento médico e psicossocial em regime ambulatorial em sua região de residência, sendo preservando seu convívio em sociedade, em serviços como UBS, Ambulatórios de Especialidades, Centro de Apoio Psicossocial Infanto Juvenil (CAPS I) ou Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS AD). Nos casos considerados graves, a equipe multidisciplinar pode avaliar a necessidade de internação em enfermaria psiquiátrica especializada em dependência química (Brasil, 2001; Brasil, 2014). Esses serviços devem estar atentos às questões relacionadas aos comportamentos sexuais de risco dos jovens usuários e proporcionar o apoio necessário para o atendimento das necessidades referentes à sexualidade. Chandra-Mouli (2015), uma das referências na área da sexualidade na adolescência, propõe que a educação sexual não deve ocorrer apenas no âmbito da saúde, mas sim no contexto familiar, escolar, comunitário também. Apesar de tabu e de existir o mito de que a educação sexual influenciaria o jovem a iniciar a vida sexual antes de estar preparado, o autor defende a partir de evidências de que educação sexual em realidade prepara o jovem para uma vida sexual sadia e feliz. De fato, pode promover mudanças positivas no comportamento sexual e diminuir consequências à saúde. De acordo com a Chandra-Mouli (2015), educação sexual não é apenas ensinar sobre sexo, reprodução ou evitar IST e gravidez indesejada, mas sim uma abordagem integral apropriada a cada idade e cultura sobre sexualidade e relacionamentos. Portanto, adultos devem aplicar a educação sexual com o objetivo de que o jovem possa: 1. Melhorar conhecimentos e compreensão sobre sexualidade e relacionamentos, por exemplo, sobre como é a menstruação; 2. Promover a autoconsciência e normas sociais equitativas nesses temas, por exemplo, que tudo bem as meninas também iniciarem paqueras, assim como os meninos; 3. Desenvolver habilidades sociais para fazer e seguir as próprias escolhas, por exemplo, para dizer não quando não quer ter relação sexual. Sabe-se que a falta de informação de qualidade, a falta de uma educação sexual integral e a dificuldade de acesso a serviços de saúde sexual aumentam as chances de gravidez na adolescência. Portanto, atuar sobre esses pontos é fundamental. Para tanto, a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2018, recomendou: Implementação de programas intersetoriais de prevenção à gravidez baseados em evidências; Aumentar e garantir o acesso ao uso de contraceptivos; Prevenir as relações sexuais sob coação; Reduzir significativamente a interrupção de gestações em condições perigosas; Aumentar o atendimento qualificado antes, durante e depois do parto; Incluir as jovens no desenho e na implementação dos programas de prevenção da gravidez adolescente; Criar e manter um entorno favorável para a igualdade de gênero, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. O Fundo de População das Nações Unidas – Divisão de Informação e Relações Externas – Setor de Mídia e Comunicação, cuja sigla é UNFPA, em 2013 também propôs ações indiretas, intersetoriais e holísticas que influem nesse cenário, como manter jovens na escola, prevenir a infecção por HIV e a formação e empoderamento de meninas para a autonomia. Sobre essa temática da gravidez na adolescência, é essencial também atuar sobre os papéis dos meninos e homens na prevenção. A UNFPA também destaca a importância da implementação de programas de apoio às meninas que engravidam – tanto as vítimas de abuso sexual ou estupro como as de relacionamentos consentidos – rompendo com a marginalização dessas jovens. Uma notícia que traz esperança no Brasil é a que entre 2004 e 2015 houve uma queda de 17% no número de gestações na adolescência no Brasil, resultado da expansão do programa Saúde da Família, maior acesso a métodos anticoncepcionais e do Programa Saúde na Escola, que proporciona educação em saúde e promove o empoderamento para suas próprias escolhas (Ministério da Saúde, 2019). De maneira geral a UNESCO (2018) propõe que os seguintes temas devem ser abordados em uma educação sexual integrada: Relacionamentos: família, amizade, relações românticas, entre outros. Valores, direitos, cultura e sexualidade: valores e sexualidade, direitos humanos, entre outros. Como entender o gênero: construção social de gênero, igualdade, violência de gênero, entre outros. A violência e a segurança pessoal: consentimento, privacidade, integridade, entre outros. Habilidades para a saúde e bem-estar: tomada de decisões, comunicação, onde encontrar apoio, entre outros. O corpo humano e seu desenvolvimento: anatomia, puberdade, reprodução, entre outros. Sexualidade e conduta sexual: relações sexuais, ciclo de vida sexual, reposta sexual, entre outros. Saúde sexual e reprodutiva: gravidez, anticoncepção, ISTs, tratamentos ISTs, entre outros. QUADRO 4 - EDUCAÇÃO SEXUAL INTEGRADA Fonte: Adaptado de UNESCO, 2018 A ideia é que os temas se repitam muitas vezes, com gradual aumento da complexidade de acordo com o aprendizado do jovem, sempre com o objetivo que este desenvolva valores positivos, como o respeito pelos direitos humanos e igualdade de gênero, e atitudes e habilidades para construir relações seguras, saudáveis e positivas (UNESCO, 2018). Considerações finais O uso de drogas, as ISTs, a gravidez indesejada, a violência de gênero, a homofobia, a transfobia e a violência sexual representam fatores de risco que são frequentes entre os jovens, representando temas que precisam ser visibilizados, debatidos e prevenidos. É necessário que os profissionais da saúde estejam cientes dessa realidade do adolescente brasileiro, e que haja a clareza de que é necessário abordar esses fatores com naturalidade a partir de estratégias baseadas em evidências. É importante que os profissionais se sintam preparados para trabalhar com os jovens a mudança de perspectiva de expectativas positivas dos efeitos das substâncias e do sexo sem camisinha para uma visão clara de que existe um aumento de risco real dessas práticas, principalmente quando ambas estão presentes. CAPÍTULO 11 MULHERES Alessandra Diehl Apesar das conquistasdas mulheres em relação à sua emancipação e inserção em outros espaços sociais, políticos e culturais outrora ocupados exclusivamente por homens, uma colocação básica em qualquer estudo sobre gênero é a desvantagem social da mulher devido à vivência cultural enraizada de uma sociedade ainda muito machista e pautada em conceitos patriarcais. Revisão produzida por um grupo de pesquisadores da Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e outras Drogas (ABEAD) em 2014, sob o título “Mulheres e Drogas”, mostra que essa questão em relação à mulher usuária de álcool e outras drogas não poderia ser diferente. Ainda que o homem usuário sofra preconceitos e seja marginalizado socialmente pelo seu consumo de drogas, o gênero feminino sofre muito mais estigma e julgamentos morais. Isso decorre de valores como “a mulher deve ser feminina, cuidar de seus filhos, do marido e da casa” e “a mulher não pode se intoxicar”, pois esses conceitos estão atrelados à moral dela (ABEAD, 2014). Várias são as consequências dessa cultura sobre a mulher em relação ao seu consumo de drogas: (1) um número muito menor de estudos científicos envolvendo a questão do gênero e uso de drogas; (2) segredo quanto ao consumo de drogas; (3) demora na busca por ajuda especializada; (4) medos em relação à perda de seu papel de mãe e esposa; (5) falta de apoio do cônjuge para o início de um tratamento; (6) abandono da família; (7) número reduzido de serviços especializados que ofertem vagas para mulheres; (8) poucos serviços proporcionam atividades direcionadas especificamente para as demandas desse grupo; entre outras (ABEAD, 2014). Violências contra a mulher Uma das principais vulnerabilidades da mulher é a violência doméstica, sendo que 43,1% das mulheres brasileiras já sofreram violência doméstica, enquanto apenas 12,3% dos homens sofreram a mesma agressão. A outra é envolver-se em relacionamentos abusivos, o que será abordado em detalhes em outro capítulo desta obra. Mas a autora deste capítulo escreveu como colunista de um blog de uma outra editora sobre esse tema, e daí vale lembrar que relacionamentos abusivos, relacionamentos tóxicos, relacionamentos controladores ou relacionamentos destrutivos são todos praticamente sinônimos de um tipo de vinculação afetiva que acaba por minar a sanidade mental de uma relação, a qual poderia ser saudável e de fato amorosa, mas que culmina para um tipo de afetividade doentia, corrosiva e até mesmo chegando ao extremo de morte e assassinato. Cerca de metade dos americanos já relataram viver esse tipo de relacionamento em suas vidas. No Brasil, não temos dados ou evidências numéricas tão precisas assim. No entanto dados revelam que 30.4% das mulheres sofrem violência psicológica, 7.3% sofrem violência moral, 4.8% sofrem violência sexual, 2.1% sofrem violência patrimonial e 1.7% sofrem ou já sofreram o cárcere privado (PAHO, 2009; ONU, 2018). Outros dados mais assustadores são com relação à violência física e o feminicídio, os quais colocam o Brasil entre a vergonhosa posição de um dos países mais violentos contra as mulheres do mundo. Em 2018, 16 milhões de mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência no último ano, sendo que 58% da população relataram já ter visto uma mulher ter sido agredida física ou verbalmente no mesmo ano. No início deste ano de 2019, as violências contra a mulher mostradas por diversas mídias nacionais têm dado visibilidade a algo que já ocorre há muitos anos, mas que de certa forma ficava silenciado assim como a violência por elas sofrida. Na prática diária de consultórios de psicólogos, sexólogos, terapeutas, psiquiatras e espaços de tratamento para a dependência química essas taxas são ainda mais visíveis e bastante prevalentes. Em geral, a pessoa controladora e abusiva é inicialmente descrita pela vítima como bastante gentil, sedutora, galanteadora, costuma presentear, fazer elogios e mostra-se como um personagem tal como um verdadeiro cavalheiro dos contos de fadas. Progressivamente, o controle vai aparecendo cada dia mais. A mulher inicialmente pensa que aquele ciúme é amor. Ou que aquele controle é uma forma de cuidado e não percebe que de fato está tendo sua vida invadida e sua identidade e autonomia “roubadas”. A pessoa controladora começa a solicitar que a mulher envie mensagens de texto para saber onde ela está ou se ela já chegou em sua casa; controlando até mesmo os likes que faz nas redes sociais, com quem ela conversa nas redes sociais e até mesmo o que ela posta. Ele também convence a mulher a deixar de usar determinada roupa ou maquiagem, passa a controlar com quem ela conversa e como ela conversa com as outras pessoas. Gradativamente o abusador limita o acesso aos amigos da mulher, fazendo por vezes críticas deles. Na frente de outras pessoas, em geral, mostra-se sempre um sujeito “pró-feminista”, que encoraja o empoderamento feminino e a diversidade sexual, mas que na vida privada comporta-se de maneira completamente oposta: machista, agressivo, violento, por vezes até mesmo homofóbico e muitas vezes pensa viver no regime patriarcal o qual foi educado. Alguns autores de obras sobre o tema têm apontado alguns sinais, tais como: você já esteve (ou está) em uma relação em que é sempre a pessoa a se desculpar? Ou seja, pede desculpas a todo o momento por algo que julga ter sido a culpada pelo fato? Com certa frequência o abusador/controlador diz: “ah, isso é coisa da sua cabeça”; “pare de ficar vendo problema onde não tem”; “deixa de surtar ou ser louca por besteira, parece que quer me enlouquecer com essas manias neuróticas”; “você é muito louca”. É como se você nunca pudesse ter razão ou sentisse que suas necessidades nunca fossem reconhecidas. O abusador com muita frequência inverte as situações ou os discursos manipulando as situações para que você acredite que ele “só quer cuidar de você e te proteger!”, que ele “te ama”! O termo em inglês para descrever esse tipo de comportamento chama-se gaslighting. Trata-se de um termo usado com frequência para descrever comportamento manipulador usado para induzir pessoas (em geral as mulheres) a pensarem que suas reações são tão insanas que só podem estar “malucas”. Ele é capaz de chorar copiosamente vitimando-se perante determinada situação? E não importam quantas vezes a mulher fale ou tente mostrar o que está errado, a outra pessoa sempre consegue distorcer (manipular) a situação e é como se o problema estivesse na sua insegurança ou no seu descontrole (“destempero”) emocional ou na sua limitação de compreensão? Todos esses são indícios de que a mulher muito provavelmente está vivendo um relacionamento abusivo ou tóxico. O mais importante é saber reconhecer esse tipo de condição, o qual muitas vezes pode levar muito tempo para “saltar aos olhos”, e, sobretudo, o mais importante é a mulher saber como superar esse tipo de vinculação e talvez abandonar essa situação que muito fortemente pode lhe trazer inúmeros riscos. Em geral, esses riscos aumentam quando a mulher tenta sair da situação ou terminar a relação. Nesse momento, o abusador pode começar a fazer ameaças, perseguir a mulher em lugares ou nas próprias redes sociais e fazer ligações. Isso se chama stalking, outro termo inglês que quer dizer perseguição persistente. É uma forma de violência na qual o homem em questão invade repetidamente a privacidade da namorada, companheira, empregando formas diversas de perseguição e também por meios diversos, até podendo avançar ao feminicídio (Diehl, 2019, Matéria para o Blog do SECAD, em março de 2019). A relação de gênero, violência doméstica e drogas também é estreita. Nesse cenário feminino, há ainda que se considerar outras vulnerabilidades, que incluem a violência doméstica associada ao consumo de álcool, que no Brasil segue em dados alarmantes (ABEAD, 2014). O uso de álcool tem relação com agressão/violência sexual dirigida a parceiros íntimos. Sabe-se que a violência doméstica é maior em cenários em que está presente o álcool ou droga, e a maior vítima é a mulher. A violência domésticapode representar um importante fator de risco para o início do consumo problemático de álcool ou drogas, principalmente entre adolescentes e mulheres, como no caso do abuso físico e sexual. No caso das mulheres dependentes de álcool e outras drogas, estudos mostram que muitas se relacionam com homens também usuários, aumentando o risco de conflitos e violência, podendo muitas vezes o próprio cônjuge ser o fornecedor da droga, ou utilizar a mulher como moeda de troca com traficantes. Ou ainda, os cônjuges e outros familiares, muitas vezes, não toleram a condição de dependência da mulher e agridem-na (ABEAD, 2014). Dados provenientes do I Levantamento Nacional do Consumo de Álcool na população Brasileira, com uma amostra probabilística de múltiplos estágios composta por 1.445 homens e mulheres, casados ou vivendo em união estável, representativa de toda a população brasileira, entrevistados entre novembro de 2005 e abril de 2006, mostra que os homens consumiam álcool em 38,1% dos casos de violência entre parceiros íntimos (VPI) e as mulheres em 9,2%. Com relação à percepção de consumo de álcool pelo/a companheiro/a, o homem informou consumo de álcool pela parceira em 30,8% dos episódios de VPI, e a mulher informou que o seu parceiro ingeriu álcool em 44,6% desses episódios (Zaleski, 2009). Epidemiologia do consumo entre mulheres Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD, 2012) apontam as seguintes prevalências do uso em binge e abuso/dependência, conforme gráfico 1 e gráfico 2. GRÁFICO 1 - EPIDEMIOLOGIA DO BEBER EM BINGE ENTRE MULHERES NO BRASIL Fonte: II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012. Ronaldo Laranjeira (supervisão) [et al.]. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD): UNIFESP, 2014 FIGURA 2 - EPIDEMIOLOGIA DO BEBER EM PADRÃO DE ABUSO E DEPENDÊNCIA ENTRE MULHERES NO BRASIL Fonte: II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012. Ronaldo Laranjeira (supervisão) [et al.]. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD): UNIFESP, 2014 Dados americanos mostram de forma alarmante as mortes por overdose em mulheres devido ao consumo de heroína, conforme ilustra o gráfico 3. GRÁFICO 3 - MORTES POR OVERDOSE DE DROGAS ENTRE MULHERES ENTRE 30 E 64 ANOS - ESTADOS UNIDOS, 1999-2017 Fonte: VanHouten JP, Rudd RA, Ballesteros MF & Mack KA. Drug Overdose Deaths Among Women Aged 30-64 Years - United States, 1999-2017. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2019 Jan 11; 68(1):1-5 Embora cresça o número de mulheres com uso e dependência de álcool e outras drogas, elas ainda permanecem como alvo não prioritário na tomada de decisão dos gestores de políticas públicas. De longe, a substância mais utilizada por mulheres no mundo todo é o álcool. Ainda que a dependência de álcool seja mais comum entre os homens, a diferença entre os gêneros vem caindo sistematicamente. Ainda com relação às drogas lícitas, principalmente medicamentos como “calmantes” (benzodiazepínicos) e “inibidores do apetite” (anfetaminas), a prevalência, que já era alta, vem se mantendo entre as mulheres, que apresentam números mais elevados de dependência do que os homens (Elbreder et al., 2008; Diehl et al., 2011b). O gráfico 4 ilustra o consumo entre estudantes brasileiros no ano de 2010. GRÁFICO 4 - USO NA VIDA, NOS ÚLTIMOS 12 MESES, E NOS ÚLTIMOS 30 DIAS DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS POR SEXO ENTRE UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS: 2010 Fonte: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, I Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras 2010, Presidência da República. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas: Brasília, DF No que diz respeito às drogas ilícitas, o consumo de cocaína e crack também avançou pelo universo feminino: trata-se de dependência que atinge todas as classes sociais. As complicações clínicas costumam ser também precoces em mulheres, sendo de fundamental importância (e gravidade) a associação de gravidez com o consumo de cocaína/crack. Essas drogas atravessam rapidamente a placenta, exercendo todos os seus efeitos físicos sobre o feto (hipertensão, constrição de vasos sanguíneos), levando à falta de oxigenação e suprimento de sangue adequado (Diehl et al., 2011b). Filhos de gestantes dependentes apresentam diversas complicações, que incluem baixo peso ao nascimento, morte logo após o parto, malformações (genitais, vias urinárias, redução do tamanho do cérebro, entre outras), hemorragia cerebral, alterações de padrão de sono, diminuição de alimentação, aumento de reflexos, várias dificuldades respiratórias e disfunções musculares. Essas últimas podem durar até o terceiro mês após o parto (Diehl et al., 2011b). Veja quadro 5. Anomalias facias fissura palpebral pequena Pitose palpebral hemiface achatada filto liso Restrição de crescimento Baixo peso ao nascer Restrição de crescimento apesar da nutrição adequada Baixo peso relativo à altura Alteração de desenvolvimento do SNC Microcefalia Anormalidades estruturais do cérebro incluindo agenesia do corpo caloso e hipoplasia cerebelar Outros sinais neurológicos como dificuldades motoras finas, perda da audição sensoneural, incoodernação da deambulação e dificuldade da coordenação olho-mão Anormalidades comportamentais inexplicáveis Incapacidade de leitura Fraco desempenho escolar Dificuldade de controle dos impulsos Problemas com a percepeção social Dificuldade de controle dos impulsos Problemas com a percepção social Dificuldade de linguagem Raciocínio abstrato pobre Habilidades prejudicadas Dificuldades de memória e de julgamento Defeitos congênitos (incluídos, mas não específicos) Defeitos cardíacos Deformidades do esqueleto e dos membros Anomalias anatômicas renais Alteração oftalmológicas Perda do ouvido Fenda labial ou do palato QUADRO 5 - ALTERAÇÕES DA SÍNDROME ALCOÓLICA FETAL (SAF) Fonte: Garcia, Roberta, Rossi, Natalia Freitas, & Giacheti, Célia Maria. (2007). Perfil de habilidades de comunicação de dois irmãos com a Síndrome Alcoólica Fetal. Revista CEFAC, 9(4), 461-468. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462007000400005 Uma parcela das mulheres dependentes de cocaína/crack engaja-se em prostituição como forma de obtenção de droga (Moreira et al., 2014). Problemas relacionados à impulsividade, às dificuldades interpessoais e à dificuldade no julgamento foram associadas às dependentes de cocaína. Porém não se conseguiu definir se essas características eram anteriores ou consequências do consumo da droga. Algumas necessidades adicionais, relativas ao tratamento de mulheres dependentes, devem ser enfatizadas, com a finalidade de possibilitar melhores resultados terapêuticos, entre eles a necessidade de ter enfermarias, ambulatórios e comunidades terapêuticas especialmente destinados para o tratamento de mulheres com problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas (Diehl et al., 2011b). A AIDS é certamente um problema de saúde cada vez mais crítico e dispendioso entre mulheres em todo o mundo, sendo que o uso de substâncias psicoativas desempenha um importante papel na disseminação do vírus da imunodeficiência humana (HIV) entre mulheres (Nappo et al., 2011). Gestantes usuárias de drogas são uma população alvo que, indubitavelmente, merece atenção especial em programas de tratamento e prevenção, devido à prevalência de comportamentos de risco nessa população e o risco adicional de transmissão perinatal do HIV (Ramsey et al., 2010; Marshal et al., 2009). No entanto tem-se percebido que o tratamento do abuso de álcool e drogas tem tido um impacto ainda bastante limitado sobre o comportamento de risco em usuárias de substâncias psicoativas do gênero feminino. QUADRO 1 – RECOMENDAÇÕES PARA O TRATAMENTO DE MULHERES USUÁRIAS DE SUBSTÂNCIAS Fonte: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R. Particularidades da Dependência de Drogas ilícitas na Mulher. IN: Rennó Jr J & Ribeiro HL. Tratado de SaúdeMental da Mulher. Editora Atheneu, São Paulo 2012.pp. 113-122 QUADRO 2 – OUTRAS RECOMENDAÇÕES PARA O TRATAMENTO DE MULHERES USUÁRIAS DE SUBSTÂNCIAS Fonte: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R. Particularidades da Dependência de Drogas ilícitas na Mulher. IN: Rennó Jr J & Ribeiro HL. Tratado de Saúde Mental da Mulher. Editora Atheneu, São Paulo 2012.pp. 113-122 “Medicalização” da Sexualidade Feminina?1 Tive a oportunidade de assistir uma palestra da ativista Leonore Tiefer em um simpósio na Universidade do Porto (UP) sobre um tema ainda bastante polêmico e controverso no nosso meio: a medicalização da sexualidade feminina. Fiquei bastante intrigada e curiosa para saber mais sobre o conteúdo, questionando-me sobre diversos assuntos que a professora de certa forma desconstruiu e me fez refletir. Pois bem! Eu convido vocês a refletirem também. Não precisamos sair daqui com uma posição e nem com respostas definidas. Para que o leitor possa saber quem é a Leonore Tiefer: americana, PhD, autora de um livro bastante conhecido e crítico intitulado Sex is not a natural Act (Sexo não é um ato natural). Ela também é educadora, pesquisadora, terapeuta e ativista contra a medicalização da sexualidade, principalmente da feminina. Especializou-se em diversas áreas da sexualidade, respondendo ao apelo das necessidades do movimento feminista e do mundo da sexologia. Posteriormente, qualificou-se em psicologia clínica com foco em gênero. Aqui, talvez possamos entender que o termo medicalização não é redutível à instituição médica. Seu aparecimento tem registros no desenvolvimento das chamadas “tecnologias de poder”, conforme proposto por Michel Foucault, o qual construiu uma hipótese sobre a medicalização da sexualidade a partir da origem religiosa e sua interferência nas sexualidades, na compleição dos saberes psiquiátricos e na biopolítica como forma de arranjo político de regulação/controle das comunidades. Uma das grandes polêmicas tem sido o advento de uma medicação para tratar a falta de desejo sexual feminino e sua analogia à descoberta dos inibidores da fosfodiesterase (PDE-5) para os homens como a “nova revolução sexual feminina”. Uma das preocupações é de uma dessexualização do desejo com a possibilidade de permitir desvincular desejo de ato ou prazer sexual por trás de uma indústria ligada à saúde sexual, que investe muito dinheiro na pesquisa e no marketing com promessas nem sempre realistas. Já ouvi relatos de que a nova pílula “salvou o casamento” de alguém. Ou reportagens dizendo que, em países conservadores, a pílula ajudaria a diminuir os divórcios causados pelas queixas sexuais das esposas. Será mesmo que uma substância salva casamentos/relacionamentos? Será mesmo que os relacionamentos ruins que cursam com disfunções sexuais das mulheres serão melhorados por causa de um remédio? A responsabilidade de o relacionamento funcionar é somente de um dos lados? Estão aí questões para refletirmos. A outra polêmica – que também podemos chamar de preocupação – está focada no crescente e talvez excessivo interesse por cirurgias estéticas da genitália feminina com o objetivo de torná-la “mais clara”, “mais jovem” e “mais virgem”. Certamente, há casos em que os procedimentos são extremamente necessários e auxiliam na reconstrução e outras situações que causam sofrimento. Mas a preocupação está centrada nos casos em que existe a busca para ter a genitália igual à de alguma famosa, por exemplo. É realista essa meta ou objetivo? Assim, parece-nos que atualizar a centralidade ou as influências da construção social/cultural na sexualidade, a saturação da mídia sobre a atividade sexual e a medicalização da sexualidade parecem ser temas urgentes a serem revisitados constantemente. CAPÍTULO 12 ENVELHECIMENTO, SEXUALIDADE E USO DE SUBSTÂNCIAS Manoel Antônio dos Santos Carolina de Souza Wanderlei Abadio de Oliveira Eduardo Name Risk Carolina Leonidas Adriana Inocenti Miasso Kelly Graziani Giacchero Vedana Jacqueline de Souza Sandra Cristina Pillon Erika Arantes de Oliveira-Cardoso * Apoio: CNPq, FAPESP Neste capítulo abordaremos aspectos da sexualidade do idoso em sua interface com o uso de substâncias. Reunimos informações atualizadas que possibilitam uma abordagem dessa interface, incluindo como identificar e lidar com essa questão que tende a permanecer invisibilizada nos cuidados em saúde, de modo que os profissionais possam construir uma prática mais qualificada nesse campo e seus temas correlatos. Assim, abordaremos como o idoso vivencia sua sexualidade, como os profissionais da saúde em geral lidam ou não com esses aspectos, incluindo a tendência à negação e/ou à infantilização das pessoas mais velhas nos serviços de saúde, entre outras facetas relevantes da prática assistencial (Marson & Powell, 2014). Conceitualizando e contextualizando a questão do envelhecimento na contemporaneidade A redução da mortalidade, incluindo a de idosos, a diminuição da taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares, câncer e outras condições crônicas, as quais até há poucas décadas eram difíceis de serem tratadas, e a melhoria das condições sanitárias acabaram contribuindo para incrementar o envelhecimento da população global (Organização das Nações Unidas - ONU, 2017). Os desafios trazidos por essa situação demográfica são inúmeros, como as demandas para o setor de saúde, tendo em vista a necessidade de ampliar o acesso a serviços, além das questões relacionadas a outros setores, como seguridade social, educação e oportunidades de lazer. Considera-se que o Brasil, na década de 1970, passou por uma verdadeira revolução demográfica. Os indicadores de natalidade, fecundidade e mortalidade tiveram seus níveis enormemente reduzidos, o que se refletiria na década seguinte. A mortalidade infantil também foi reduzida, a esperança de vida ultrapassou os 60 anos de idade e houve uma redução do número de filhos por mulher (Vasconcelos & Gomes, 2012). Nas décadas seguintes a estrutura etária da população também começou a se modificar, especialmente na quantidade de idosos. A estrutura etária do país seguiu com o seu processo de envelhecimento, com aumento crescente da idade mediana e o índice de envelhecimento em ritmo crescente (Vasconcelos & Gomes, 2012; Rede Interagencial de Informações para a Saúde, 2012). Entre 1991 e 2010 os níveis de mortalidade, natalidade e fecundidade foram bastante reduzidos e a esperança de vida ao nascer era maior do que 70 anos. Com isso houve uma desaceleração do ritmo de crescimento demográfico, o que continuou influenciando a estrutura etária da população, que foi se tornando progressivamente mais velha. Em 2010, a idade mediana era de 27 anos, 10,8% da população tinha 60 anos ou mais, o índice de envelhecimento aumentou para 44,8% e o componente idoso subiu para 16,6% da população (Vasconcelos & Gomes, 2012; Rede Interagencial de Informações para a Saúde, 2012). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), na última década o Brasil agregou à sua população 8,5 milhões de cidadãos acima dos 60 anos. Essa parcela da população deve chegar a 38 milhões em 2027. O processo de transição demográfica no país ocorre em ritmo acelerado e impõe um desafio considerável para o Estado em termos de assistência em saúde e previdência social, de modo a assegurar a dignidade da pessoa idosa. Ainda existem preconceitos e discriminação contra pessoas idosas, muitas vezes relacionados à representação estereotipada da velhice. Um dos preconceitos mais recorrentes é considerar que o idoso via de regra não tem memória, não consegue se lembrar dos fatos. O que acontece, na verdade, é que os idosos têm mais memória do que os jovens, justamente por terem vivido mais e, portanto, armazenado maior quantidade de informações e lembranças. Suas histórias de vida muitas vezes podem ser consideradas fontes orais riquíssimas para as mais diversas pesquisas. Os estudos evidenciam que o idoso tem sido intensamente desrespeitado nas cidades, cujos espaços públicos não são adequadosàs suas necessidades de caminhar; nas filas dos bancos, cujos lucros não geraram conforto para seus usuários que envelhecem; no acesso ao sistema de saúde, cujas burocracias muitas vezes não estão adaptadas às suas necessidades, transformando-se em barreiras; no sistema de promoção social, cuja ideia ainda é a de que conceder benefícios, garantidos por direito, significa tratar o idoso como se ele estivesse pedindo esmola (Areosa, Benitez & Wichmann, 2012; Daniel, Antunes & Amaral, 2015; Santos et al., 2016; Whitaker, 2010). Por isso é urgente refletir e pesquisar continuamente sobre as concepções e atitudes que estão subjacentes às normatizações que prejudicam a promoção do bem-estar dos mais velhos, para que o campo representacional das “velhices” também possa ser substancialmente modificado, acompanhando as novas exigências impostas pela transição demográfica. Para os profissionais da saúde seria importante iniciar a compreensão do processo de envelhecimento o quanto antes, de preferência durante a graduação, o que pode favorecer a dissipação de preconceitos e estereótipos em relação a essa fase da vida (Daniel, Antunes & Amaral, 2015; Santos, 2017; Santos et al., 2016; Whitaker, 2010). No entanto, infelizmente, disciplinas relacionadas a desenvolvimento, geriatria e gerontologia ainda não recebem a atenção que merecem nas grades curriculares nos cursos da área de saúde e nas ciências humanas. Refletindo sobre a interface entre envelhecimento e sexualidade Um campo que ainda permanece nebuloso nos estudos sobre o envelhecimento é a questão da sexualidade, que é vista e entendida muitas vezes de maneira empobrecida e estereotipada. Em uma concepção informada fortemente pelo viés biologicista, o padrão eleito como “normal” para apreciar essa questão é a sexualidade dos jovens, o que faz com que seja difícil para os idosos se autorizarem a exercer sua sexualidade plenamente. É pouco comum encontrarmos na literatura ou em filmes, novelas, propagandas, casais de pessoas idosas mantendo relações sexuais ou vivenciando relacionamento afetivo satisfatório, o que faz pensar na existência de uma rejeição em compreendê-los como sujeitos desejantes. No entanto muitas pessoas idosas desfrutam de uma vida sexual ativa, mesmo que possam ter algumas limitações decorrentes do processo de envelhecimento (Haesler, Bauer & Fetherstonhaugh, 2016; Mesquita, 2011; Taylor & Gosney, 2011). Grande número de mulheres mais velhas, por exemplo, atualmente não enxergam a velhice como o fim da linha, mas sim como a porta de entrada para seguirem em frente e se engajarem em novos projetos, como buscar viver um relacionamento romântico diferente daqueles vividos anteriormente. Já está bem documentada na literatura a associação positiva entre exercício da sexualidade e qualidade de vida (Buttaro, Koeniger-Donohue & Hawkins, 2014). Um número crescente de idosos mantem uma vida sexual ativa. Cada vez mais é comum vermos que as pessoas mais velhas buscam ter relações sexuais, casuais ou comprometidas, e se engajam em relacionamentos românticos, inclusive normalizando o uso da internet e os aplicativos de relacionamento como meio de encontrar e selecionar potenciais parceiros(as) (Wada et al., 2015). Estudos focados no namoro online observaram que encontrar um par no ambiente virtual muitas vezes resultava em engajamento sexual, o que desafiava os estereótipos que fixam os adultos mais velhos como seres não sexuais ou pós-sexuais (Lolli & Maio, 2015; Wada et al., 2015). A despeito dessas evidências, ainda há barreiras consideráveis que impedem a percepção social do idoso como um ser que mantém viva sua sexualidade. O que acontece com frequência é que o ambiente de cuidado do idoso – seja no contexto familiar ou institucional – não é amistoso nem se presta a discussões sobre sexualidade. Filhos e netos ainda sentem dificuldades de admitirem que seus pais e avós continuam sendo seres com necessidades sexuais e apelo erótico. No contexto da saúde muitos pacientes acham difícil e embaraçoso conversar com profissionais sobre seus desejos e eventuais problemas sexuais. E os profissionais, por sua vez, tendem a acreditar que seus pacientes mais velhos não são (ou não deveriam ser) sexualmente ativos. É necessário investir mais em treinamento especificamente voltado para essas reflexões para que se possa sensibilizar os profissionais de saúde que trabalham com pessoas idosas, tanto para transmitir conhecimento sobre a sexualidade nessa faixa etária quanto para desenvolver as habilidades de escuta necessárias para acolher e discutir tais questões com sensibilidade (Haesler et al., 2016; Mesquita, 2011; Taylor & Gosney, 2011). A literatura sobre casais que permanecem engajados em casamentos por várias décadas mostra que eles vivenciam uma mudança progressiva de foco em suas preocupações conjugais. Depois de um elevado investimento dedicado ao casamento o sexo deixa de ser um elemento central na hierarquia das necessidades do casal, cedendo sua vez à valorização da amizade e do companheirismo (Polizzi & Arias, 2014). Os casais tendem a avaliar como mais relevantes na vida a dois o apoio e a assistência mútua, o compartilhamento da rotina doméstica e das atividades diárias (Arias & Polizzi, 2013). O amor e a sexualidade se transformam junto ao processo de envelhecer e, no decorrer dos anos, tendem a ser percebidos com um outro olhar, com a ressignificação do afeto e da importância atribuída à companhia e à presença constante do outro, que frequentemente passam a ser mais valorizadas do que as relações sexuais (Arias & Polizzi, 2013). Nos casais de idosos o exercício da sexualidade tende a ser influenciado pelas singularidades do processo de envelhecimento e do declínio da condição de saúde dos cônjuges. As relações sexuais ocorrem com menor frequência – o que não é necessariamente negativo porque muitas vezes significa priorizar a qualidade em detrimento da quantidade, ao passo que outros aspectos do relacionamento passam a ser mais valorizados. Também ocorre de os cônjuges não conversarem mais sobre essas questões, envolvendo-as em um manto de silêncio. Na atualidade, os idosos também estão convivendo com diversas tecnologias do mundo contemporâneo e muitos, inclusive, relatam ter interesse e afinidade com dispositivos eletrônicos como micro computador, tablets e celular, e têm se exercitado no uso de ferramentas disponibilizadas na internet, sendo sua maior motivação a vontade de estarem atualizados e afinados com as demandas dos tempos atuais. Poder se comunicar com amigos e familiares por meio da internet, obter informação e adquirir conhecimento em tempo real, interagir com outras pessoas, enviar e receber e-mails, entreter-se com jogos eletrônicos, navegar em diferentes websites, acompanhar questões relacionadas à política, encontrar remédios caseiros e práticas integrativas e complementares (“medicinas alternativas”), pagar contas e realizar outros serviços bancários, procurar receitas culinárias, assistir a vídeos, ouvir música, enfim, preencher o tempo livre com atividades diversificadas, faz com que o idoso consiga não apenas se atualizar constantemente como também reconhecer suas capacidades, mantendo-se sintonizado com o que se passa ao seu redor, o que pode contribuir para a melhoria sua qualidade de vida. Além disso, essa população tem usado cada vez mais a internet para tomar decisões sobre várias necessidades relacionadas à saúde, uma preocupação crucial nesse estágio da vida (Cresci & Novak, 2012; Lolli & Maio, 2015). A dimensão relacional e compartilhada, subjacente a essas tarefas e habilidades que acabamos de elencar, também deve ser vista como um aspecto mais amplo que perpassa a sexualidade da pessoa idosa. As novas tecnologias de informação permitem ao idoso expandir suas capacidades sensoriais e estender os limites de seu corpo, compensando eventuais deficiências ou insuficiências, potencializando recursos, estreitando laços sociais, rompendo barreiras, dissolvendo fronteiras e reduzindo o isolamentoe a distância entre as pessoas. As necessidades relacionadas à saúde cobrem um leque amplo de interesses do idoso, que vão desde a compreensão do processo de envelhecimento até as atividades de promoção de saúde relacionadas a essa fase da vida, ou informações que indicam quando um prestador de serviços de saúde deve ser visto e até que ponto se deve questionar o plano de tratamento. Por outro lado, muitos idosos também ficam receosos e desconfiam da confiabilidade e privacidade da internet, ou apresentam dificuldades para usar as ferramentas, que exigem uma destreza específica para o seu uso correto, e/ou não tiveram oportunidade de aprenderem sobre o funcionamento de algumas delas. Pensando nisso, é possível que os idosos consigam usar melhor essas ferramentas e tecnologias de informação disponíveis na contemporaneidade se fossem disponibilizados cursos sobre a temática ou treinamentos específicos voltados às particularidades dessa população (Cresci & Novak, 2012; Lolli & Maio, 2015). Considerando a relevância que as necessidades relacionadas à saúde assumem na vida dos indivíduos que vivenciam o processo de envelhecimento (Cresci & Novak, 2012; Lolli & Maio, 2015), uma preocupação que emerge nesse campo é o uso crescente de substâncias pelas pessoas idosas com o intuito de superar o declínio funcional e as limitações acarretadas pelo avanço da idade, de modo a compensar eventuais deficiências ou insuficiências em sua performance sexual ou mesmo incrementar sua vida sexual. Assim, diante do panorama traçado, considera-se relevante fomentar a discussão científica sobre possíveis relações entre as vivências da sexualidade e o uso de substâncias e medicamentos por idosos. Explorando a relação entre envelhecimento e uso de substâncias por idosos Considerando-se as questões associadas às exigências e aos padrões sociais que afetam a velhice, um dos problemas candentes e de grande complexidade envolve o uso de substâncias. Estudos têm identificado a prática da polifarmácia e as interações e reações adversas no uso de medicamentos pela população idosa (Oliveira & Santos, 2016; Secoli, 2010). O uso de medicamentos tem se configurado como uma verdadeira epidemia entre idosos, associado a diversos fatores, tais como o aumento da prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) nesse grupo populacional; altos níveis de medicalização da saúde, impulsionada pelo extraordinário poder econômico da indústria farmacêutica; estímulo crescente à prescrição de medicamentos observado na formação e na prática dos profissionais da área da saúde (Secoli, 2010). O processo de envelhecimento per se já oferece riscos específicos para prejuízos decorrentes do uso, inclusive de quantidades mínimas, de substâncias pela população idosa. Cada organismo em processo de envelhecer apresenta variações farmacocinéticas individuais, com diferenças em termos de absorção, distribuição, metabolismo e excreção das drogas (Oliveira & Santos, 2016). Os fatores de risco podem variar consideravelmente de acordo com a substância e a frequência do consumo, bem como a apresentação clínica específica de um paciente (por exemplo, idade, sexo, comorbidades médicas, uso atual de medicamentos e histórico de saúde). Entender os riscos específicos relacionados ao uso de substâncias pode auxiliar os profissionais a reconhecer e responder ao uso não saudável, que não necessariamente se classifica como uso problemático (Han, Gfroerer, Colliver & Penne, 2009; Kuerbis, Sacco, Blazer & Moore, 2014). A identificação do tipo de uso entre os idosos não depende apenas da quantidade e da frequência, mas do contexto em que as substâncias são consumidas. Por exemplo, adultos mais velhos podem vivenciar problemas extremos com o álcool, mesmo quando ingerem níveis mínimos, devido a condições médicas específicas, como gota ou pancreatite. Portanto, de maneira gentil e respeitosa, perguntas detalhadas sobre quantidade e frequência de uso de bebida alcoólica, medicamentos (prescrição e balcão) e drogas ilícitas (especialmente maconha) devem ser formuladas pelo profissional de saúde, com a suposição de que essa informação é relevante, independentemente de o uso pelas pessoas mais velhas ser um problema ou não. Isso inclusive contribui para reduzir o estigma, normalizando o comportamento sem, no entanto, endossá-lo. Assim, é importante a implementação de políticas públicas que aloquem recursos e desenvolvam abordagens de prevenção e tratamento para atender às necessidades futuras do segmento da população idosa que possa vir a desenvolver futuramente um transtorno por uso de substâncias (Han et al., 2009; Kuerbis et al., 2014). Os problemas de saúde mental têm assumido importância crescente na atenção à saúde das populações, evidenciando a necessidade premente de adotar medidas para minimizar os efeitos deletérios da morbidade e ampliar o uso racional do grupo de medicamentos psicotrópicos utilizados no contexto da atenção primária à saúde (Prado, Francisco & Barros, 2017). Em 2004, houve a implementação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, que resultou em uma ampliação no acesso a medicamentos, ao mesmo tempo que houve um esforço para assegurar seu uso racional (Brasil, 2004). Drogas psicotrópicas (ou psicofármacos) são substâncias que atuam de forma seletiva no sistema nervoso central (SNC). As substâncias psicotrópicas têm seu uso relacionado ao fato de que são reconhecidas como agentes psicoativos que podem ter efeitos psicoterapêuticos. Podemos incluir nessa classe os psicofármacos que têm propriedades depressoras ou que estimulam seletivamente as ações do Sistema Nervoso Central (SNC). Com o advento dessas substâncias reduziu-se de forma considerável o número de internações em hospitais psiquiátricos (Prado et al., 2017). A Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1976 dividiu os psicofármacos segundo dois critérios: de acordo com a farmacologia e em relação à ação terapêutica. Com base na classificação farmacológica, os fármacos são divididos em sedativos ansiolíticos, antipsicóticos (neurolépticos), antidepressivos, liberadores indiretos de catecolaminas, alucinógenos, metabólitos do sistema nervoso central e antagonistas da serotonina. Com base na classificação terapêutica, os fármacos se distribuem entre sedativos ansiolíticos, antipsicóticos (neurolépticos), antidepressivos, psicotogênicos e substâncias para sintomas de doenças neurodegenerativas (Prado et al., 2017). Não há dúvidas de que os medicamentos psicotrópicos são recursos valiosos no manejo do sofrimento humano, todavia seu uso não deve ser exclusivo e sim integrado a um cuidado mais amplo, com maior interface entre farmacoterapia e psicoterapia, para garantir uma assistência mais efetiva (Arrais, Barreto & Coelho, 2007; Prado et al., 2017), indo ao encontro do que está preconizado na Política Nacional de Medicamentos (Brasil, 2001) e dos parâmetros internacionais da área (Carreta, Eichler & Rasi, 2012). Considerando os diversos grupos de psicotrópicos, os antidepressivos são os mais utilizados. Estudo realizado em Pelotas no Rio Grande do Sul, com 1.327 indivíduos a partir de 40 anos, constatou que a proporção de uso de antidepressivos foi de 60,2% (Garcias, Pinheiro, Garcias, Horta & Blum, 2008). Ainda no município de Pelotas foi verificado percentual de consumo dos antidepressivos de 31,6% para o ano de 2003 (Loyola Filho, Castro-Costa, Firmo & Peixoto, 2014). O estudo com idosos em Bambuí em Minas Gerais realizado a partir de dados de 1997 (n = 351) e 2012 (n = 462) constatou uma tendência de aumento no uso de antidepressivos, com maior proporção dos inibidores seletivos de serotonina (Loyola Filho et al., 2014). O abuso de prescrições de antidepressivos, como o cloridrato de fluoxetina, constitui um grave problema de Saúde Pública, especialmente entre os idosos (Wagner, 2015). https://www.infoescola.com/saude/organizacao-mundial-de-saude-oms/ https://www.infoescola.com/drogas/ansioliticos/ https://www.infoescola.com/neurologia/serotonina/ https://www.infoescola.com/doencas/doencas-neurodegenerativas/O tratamento para transtorno depressivo em idosos é centrado no uso de medicamentos, reforçamento de modos de enfrentamento positivo de adversidades psicossociais, redução da deficiência de suporte social e de acesso a serviços de saúde adequados na idade mais avançada (Wagner, 2015). Essas estratégias nem sempre são oferecidas de forma combinada a fim de maximizar seus potenciais benefícios para essa população, embora se reconheça atualmente que o cuidado deveria envolver uma combinação de medidas não medicamentosas e medicamentosas. Os transtornos de ansiedade são muito prevalentes na idade adulta e na velhice, com sintomas somáticos, cognitivos, comportamentais, emocionais e perceptivos, além da presença de sintomas físicos, acompanhados de pensamentos catastróficos associados a alterações disfuncionais do comportamento (Prado et al., 2017). A maioria dos transtornos de ansiedade pode ser tratada com medicamento, dependendo da gravidade e da interferência dos sintomas nas atividades sociais e ocupacionais. Entre os fármacos ansiolíticos, os mais utilizados são os benzodiazepínicos (Lima et al., 2008). Um dos graves problemas associados ao uso contínuo dessas substâncias é a dependência que elas acarretam. Apesar de ter seu uso controlado, observa-se uma tendência a aumento dos índices de dependência. Como grande parte do atual modelo de tratamento do abuso de substâncias encontra-se separado dos cuidados primários e focado em pacientes mais jovens, a disponibilidade de tratamento e a necessidade de abordagens mais integradas são cada vez mais necessárias para equacionar os problemas de abuso de substâncias entre os idosos “de amanhã”. Por outro lado, apesar dos termos em risco e uso problemático serem extremamente úteis em contextos como os cuidados de saúde na atenção primária, eles podem aumentar as dificuldades que os idosos encontram para terem acesso a um tratamento mais formalizado, pois geralmente são exigidos diagnósticos formais de transtorno por uso de substâncias para justificar a indicação de tratamentos intensivos ou por tempo prolongado (Han et al., 2009; Kuerbis et al., 2014). Estudo que examinou a produção científica sobre uso de substâncias psicoativas em idosos, focalizando suas condições sociodemográficas e clínicas, constatou que os usuários de substâncias psicoativas se caracterizam, predominantemente, por serem homens, com baixos níveis de escolaridade e renda, alta taxa de desocupação laboral, não casados e que moravam sozinhos, além de apresentarem comorbidades orgânicas e psíquicas. O álcool mostrou ser a droga mais prevalente, seguido do abuso de medicamentos. No entanto o uso de substâncias ilícitas tem aumentado progressivamente nas últimas décadas (Diniz et al., 2017). Em relação ao uso de álcool, cabe aqui fazer um parêntesis e considerar esse problema de enorme impacto na saúde do idoso, que está relacionado ao consumo de substâncias lícitas. Embora as taxas de transtorno por uso de substâncias e uso de drogas e álcool sejam geralmente mais baixas entre os idosos do que na população geral, espera-se que o número de pessoas com idades entre 60 e 69 anos que estejam vulneráveis ao transtorno chegue a 1,9 milhão até o ano de 2020. Essa estimativa indica uma necessidade urgente de expandir a disponibilidade de serviços de tratamento para abuso de substâncias especialmente voltados para os idosos (Han et al., 2009; Kuerbis et al., 2014). Dadas as contínuas altas taxas de uso de drogas ilícitas nessa população, espera-se que os aumentos na necessidade de tratamento continuem ascendentes para além de 2020. Outro estudo recente de revisão indicou as tendências que têm caracterizado o uso de medicamentos pela população idosa, destacando-se o uso de psicotrópicos, a polifarmácia, a necessidade de maior atenção à prevenção de eventos adversos e a adoção de tecnologias que facilitem a administração controlada dos medicamentos pelo idoso (Oliveira & Santos, 2016). O uso frequente de medicamentos pela população idosa decorre não somente de uma tentativa de tratar as comorbidades comuns nessa etapa do ciclo vital, mas, sobretudo, como uma maneira de amenizar situações comuns do envelhecimento, o que é preocupante (Farias & Santos, 2012). A utilização de psicofármacos, combinado ou não com outros fármacos e formas complementares de tratamento, é reconhecida como uma prática comum entre idosos. Quando não monitorado adequadamente pode se configurar em um problema de saúde importante, dadas as inúmeras intercorrências que podem advir de reações adversas aos medicamentos, com graves repercussões para os indivíduos, além de custos elevados para o sistema de saúde (Oliveira & Santos, 2016). Os psicotrópicos são mais utilizados por mulheres, pessoas de cor da pele branca, com pior percepção da saúde, transtornos mentais comuns e problemas emocionais; esses resultados obtidos com a população de Campinas em São Paulo sugerem que é necessário lançar um olhar diferenciado para os subgrupos populacionais com maior prevalência de uso de psicotrópicos (Prado et al., 2017). Segundo essas autoras, considerando-se que o uso desses medicamentos impõe efeitos adversos e pode elevar os riscos de dependência e intoxicações, o profissional precisa redobrar a atenção para garantir o uso racional desse grupo de fármacos. Estudo de revisão da literatura apontou para os riscos aos quais os idosos estão expostos devido às mudanças na metabolização das substâncias, causadas pelo processo de envelhecimento e também pelo uso concomitante de vários medicamentos. Os estudos da área têm identificado uma forte preocupação com a melhora da comunicação entre profissionais de saúde e as pessoas idosas, estimulando a troca de informações sobre os riscos de possíveis consequências do mau uso das terapias medicamentosas, com vistas a evitar as complicações à saúde comuns a essa população (Oliveira & Santos, 2016). Um olhar, mesmo que de relance, para a literatura produzida nas últimas duas décadas permite vislumbrar algumas mudanças nas pautas e tendências das agendas de pesquisa no campo interdisciplinar da gerontologia. Pode-se dizer que o tabu da velhice não tem mais aparecido com tanta frequência nos estudos dedicados a essa área, porém, considerando o que foi exposto anteriormente, ainda existem preconceitos persistentes quando o assunto é a sexualidade dessa população (Mesquita, 2011). Mais nebuloso ainda – porque pouco investigado – é o tema da sexualidade do idoso na interface com o uso de substâncias. Sabe-se que, na atualidade, existe ampla disponibilidade de medicamentos indicados para reverter a disfunção erétil masculina, com vistas a melhorar o desempenho sexual, o que tem revitalizado o relacionamento afetivo de homens que até há pouco tempo consideravam que tinham encerrado sua vida sexual ativa (Alves, Neves & Medina, 2010; Barnett, Robleda-Gomez & Pachana, 2012; Barros, 2014; Marshall, 2010). Outras substâncias de uso controlado, como os antidepressivos e ansiolíticos, analgésicos, anfetaminas e barbitúricos, também são maciçamente consumidas pelas pessoas idosas, com impactos nem sempre bem compreendidos na qualidade da vida sexual (Costa et al., 2011). Uma atenção especial deve ser dada à prescrição e ao consequente uso indiscriminado de benzodiazepínicos. Sem falar na escassez de pesquisas voltadas ao consumo ascendente de substâncias de uso proscrito por lei, como maconha, cocaína e crack. Por outro lado, hoje já sabemos que há muito a se fazer em termos de promoção das condições objetivas para transformar a percepção social da velhice, por exemplo, atacando a tendência à infantilização dos idosos no contexto da família e nos serviços de saúde. Também é necessário levantar o véu que mantém a invisibilidade da sexualidade dos idosos e com isso reconhecer os desafios enfrentados pelo fato de eles estarem vivendo mais, podendo usufruir das conquistas da modernidade e, ao mesmo tempo, terem de se adaptar às novas tecnologias, que favorecem a comunicação, indo desde a ampliação deredes de sociabilidade até o uso de aplicativos de encontros. Nesse torvelinho que o mundo contemporâneo se transformou, os idosos estão cada vez mais expostos às substâncias, desde aquelas fabricadas com finalidade medicamentosa, como hormônios sintéticos, estimulantes sexuais, benzodiazepínicos, analgésicos e anfetaminas, até outras drogas de uso, tais como: álcool, tabaco, maconha e cocaína. CAPÍTULO 13 HOMENS Alessandra Diehl Sandra Cristina Pillon Manoel Antonio dos Santos A saúde sexual de homens usuários de substâncias é um tema relevante do ponto de vista da saúde pública, uma vez que o contexto epidemiológico e sociocultural do país revela níveis crescentes de consumo, ao mesmo tempo que tem aumentado exponencialmente as manifestações de violência, preconceito e intolerância em relação aos usuários de drogas. Esse segmento social está sujeito à estigmatização, especialmente quando se analisam as interseccionalidades com outros marcadores sociais da diferença que atravessam as populações igualmente vulneráveis do ponto de vista psicossocial, como as/os profissionais do sexo, “andarilhos” de estrada e pessoas que vivem em situação de rua (Diehl, Pillon, dos Santos & Laranjeira, 2018). Cabe mencionar também que homens em geral têm muitas dificuldades para falar de sua saúde. Buscam menos ajuda que as mulheres e tendem a ter mais tabus e preconceitos para falar de sentimentos ou fazer um simples exame de próstata, por exemplo (Hankivsky, 2012). O grupo deste capítulo desenvolveu pesquisas e analisou resultados extraídos de três bases de dados, sendo duas provenientes de amostras clínicas de pacientes internados e ambulatoriais, e uma derivada de um estudo de base populacional a fim de avaliar a prevalência do consumo de substâncias, condições de saúde e comportamento sexual em homens. Os resultados mostram que houve maior prevalência de indivíduos fumantes, usuários de álcool, cocaína e crack nos serviços especializados. Menos da metade usava preservativos nas relações sexuais e em torno de um terço relatou ter tido três ou mais parcerias sexuais nos últimos anos. Nas amostras clínicas, cerca de um terço dos homens apresentava algum tipo de dificuldade sexual. Com relação ao comportamento sexual, a maioria dos homens que compuseram as três amostras declarou ser heterossexual e tinha vida sexual ativa. Dois a cada dez sujeitos haviam vivenciado experiências homossexuais e, em menor proporção, haviam se engajado em sexo em troca de favores. Histórico de ISTs apresentou maior prevalência na amostra de indivíduos internados; nessa amostra um terço já havia realizado teste de HIV. Constatou-se baixa prevalência de portadores do vírus HIV entre os pacientes que se encontravam em regime ambulatorial e entre os homens da população geral. Além disso, menos da metade dos participantes relatou que usava preservativos nas relações sexuais. Por fim, nas duas amostras de dependentes em tratamento, em torno de um terço dos participantes havia tido três ou mais parcerias sexuais no último ano. Total 508 (100%) Total 102 (100%) Total 2070 (100%) n (%) n (%) n (%) Atividade sexual nos últimos 12 meses Sim 367 (72,2) 79 (77,5) NI Não 141 (27,8) 3 (2,9) - Orientação sexual Heterossexual 485 (95,5) 68 (84,0) 1840 (96,2) Homossexual 16 (3,1) 8 (9,9) 59 (3,1) Bissexual 7 (1,4) 4 (4,9) 14 (0,7) Não sente atração sexual NI 1 (1,2) NI Experiência homossexual Não 409 (80,5) 64 (79,0) NI Sim 99 (19,5) 17 (21,0) - Sexo em troca de favores Total 508 (100%) Total 102 (100%) Total 2070 (100%) n (%) n (%) n (%) Sim 62 (12,2) 7 (8,3) NI Não 158 (83,6) 77 (91,7) - Histórico de ISTs Sim 125 (24,6) 14 (13,7) 17 (0,8) Não 383 (75,4) 88 (86,2) 2053 (99,2) Teste de HIV Sim 339 (66,7) NI NI Não 169 (33,3) - - Portador do vírus HIV Sim NI 6 (6,9) 4 (0,2) Não - 81 (93,1) 1872 (90,4) Uso de preservativos Usa 227 (44,7) 31 (36,5) 824 (45,3) Não usa ou quase nunca 281 (55,3) 54 (63,5) 993 (54,6) Número de parcerias sexuais Até 2 parceiros no último ano 331 (65,2) 47 (65,2) NI 3 ou + parceiros no último ano 177 (34,8) 25 (34,8) - Disfunção sexual Sim 33 (32,4) 189 (37,2) NI Não 69 (67,6) 319 (62,8) - TABELA 1 - COMPORTAMENTO SEXUAL DE HOMENS ENTREVISTADOS EM ENFERMARIA, AMBULATÓRIO E POPULAÇÃO GERAL Fonte: Diehl, Pillon, dos santos, Laranjeira, 2018 Dependentes de substâncias exibem comportamentos sexuais diversos de elevado risco, prevalências de disfunção sexual relacionadas ao nível de dependência e ao consumo crônico de álcool e/ou outras drogas. Dependência de substâncias e disfunções sexuais são áreas abrangentes que cobrem uma diversidade de problemas e desafios inter-relacionados. Homens que sofrem de dificuldades sexuais podem também recorrer ao consumo de substâncias como um modo de lidar com esses problemas. Futuras pesquisas nacionais de base populacional sobre o uso de substâncias devem incluir a avaliação de problemas de disfunção sexual e outras condições relacionadas ao comportamento sexual. A identificação acurada e a caracterização dos fatores de risco são estratégias cruciais para concentrar esforços para incrementar a prevenção, manejo e controle de agravos à saúde na população vulnerável. CAPÍTULO 14 PROFISSIONAIS DO SEXO Alessandra Diehl Rogério Bosso Entre profissionais do sexo masculinos e femininos, a associação entre comportamento sexual de risco e consumo de substâncias também está presente. Essa população, muitas vezes, expõe-se a diversos riscos e violências para manter o comportamento do consumo de drogas, por meio da atividade sexual sem proteção, troca da atividade sexual pela droga, criminalização, abuso por parte dos clientes e outros fatores de vulnerabilidade, como a vitimização do gênero feminino e de travestis profissionais do sexo, a pobreza e baixa disponibilidade ao tratamento da dependência (Shannon, 2009). Como observado por Alessandra Diehl, Ana Carolina Schmidt de Oliveira e Marina Rodrigues em capítulo intitulado “Sexo à Venda: Prostituição, Pornografia e a Indústria do Sexo”, do livro Sexualidade: do prazer ao sofrer (Editora Roca, São Paulo, 2013), [...] A prostituição masculina aumentou, tornando-se uma das profissões que mais cresce no mundo. Até então, esse tipo de prostituição estava geralmente ligado a espaços fechados, por exemplo, no interior de cinemas, sanitários ou saunas. Hoje, os profissionais do sexo masculino disputam os melhores pontos com mulheres profissionais do sexo pelas ruas, avenidas e praças da cidade] (Diehl, Oliveira & Rodrigues, 2013, p. 300). [...] O fato, na verdade, é que não é um dinheiro “mais fácil”, mas talvez apenas mais rápido. A vida de muitas profissionais do sexo não é nada repleta de glamour e de muito dinheiro. O outro lado desta história é que ainda existem muitas vulnerabilidades associadas a esta atividade, entre estas o estigma de ser profissional do sexo, o qual pode acompanhar esta pessoa para o resto da vida. Nem sempre será como no filme “Uma linda mulher”, em que a personagem de Julia Roberts tem a feliz oportunidade de encontrar um sujeito rico, interessante e apaixonado por ela, que a convida para sair das ruas e casar-se com ele. Entre outras vulnerabilidades, podemos citar a rejeição familiar, o abuso e a dependência de substâncias psicoativas, os riscos de relações sexuais desprotegidas, o maior risco e a maior exposição à violência sexual, riscos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) / HIV, maiores chances de burnout (stress atrelado ao trabalho)). Muitas vezes, o uso da substância implica em reduzir o desconforto do profissional frente às situações de risco a qual é exposto] (Diehl, Oliveira & Rodrigues, 2013, p. 298). Estudo conduzido por Fernandes e colaboradores (2014), com 402 mulheres profissionais do sexo na cidade de Campo Grande, identificou que a grande maioria (88,5%) relatou uso de álcool na forma de binge, 45,1% tinham mais de sete clientes por semana, apenas 32,9% relataram o uso de preservativo com parcerias sexuais que não as pagaramno último contato sexual que tiveram, sendo que a prevalência da infecção por HIV nessa amostra foi de 1,0% (IC 95%: 0,1-2,6%) (Fernandes et al., 2014). Outros estudos têm sinalizado que, entre as mulheres profissionais do sexo, existem diferentes contextos de não uso de preservativo com clientes fixos, clientes eventuais e parcerias sexuais que não pagam, uma vez que elas tendem a não usar o preservativo quando existe envolvimento emocional e amoroso com o cliente. Tais contextos socioculturais devem fazer parte das estratégias de prevenção de políticas dirigidas a este público (Lippman et al., 2012; Ngugi et al., 2012). Em 2018, Alessandra Diehl, uma das autoras deste capítulo, teve a oportunidade de ter tido uma aula bastante transformadora com a professora Alexandra Oliveira, na Faculdade de Psicologia e Ciência da Educação (FPCE) da Universidade do Porto (UP), em Portugal, que em 2008 realizou uma tese intitulada “O mundo da prostituição de rua: trajetórias, discursos e práticas: um estudo etnográfico”. A experiência foi transformadora, pois ela foi capaz de entrar em contato com outra realidade da qual a psicologia e pesquisadora soube mostrar com arte da verdade, do pluralismo e da quebra de muitas “hipocrisias” que ainda de certa forma permeiam esse universo. Nessa aula conseguiu ver as mulheres além da meramente profissional do sexo, ou a “puta”, como muito comumente elas são conhecidas. Pôde, assim, ampliar a visão de quem são essas mulheres de fato, que não apenas as profissionais do sexo, mas as mães, as avós, as filhas, as tias, as amantes e as esposas que muitas delas também o são. Expandir esse olhar para essas mulheres quando elas possuem problemas com substâncias é essencial para reconhecermos as suas trajetórias, os seus discursos e suas práticas. Novamente o julgamento ou o estigma afastam essas mulheres da busca de ajuda e acabam por vitimá-las duplamente. Daí a importância da criação de espaços de cuidados que possam ser exclusivos para mulheres e, melhor ainda, exclusivos para os cuidados de profissionais do sexo. Local esse onde elas possam partilhar suas vivências, seus desejos, seus projetos de vida ou a falta deles em um ambiente seguro. Já um estudo de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, fez um levantamento de marcadores sociais dos profissionais do sexo masculino. Em relação à caracterização, 90,6% tinham entre 18 a 24 anos; 70,8% se declararam brancos; 38,7% apresentavam o ensino médio completo. Em relação ao tempo na prostituição, 44,3% tinham de 1 a 5 anos de atividade. No que diz respeito aos clientes, foi percebido que 67,9% tinham idade entre 31 e 50 anos; 73,1% eram brancos 38,5% tinham ensino médio completo e 41% ensino superior completo (Hamann et al., 2017). Rogério Bosso, também autor deste capítulo, atuou como supervisor técnico dos programas de recuperação de uma Comunidade Terapêutica (CT) reconhecida nacional e internacionalmente e em sua experiência, pôde perceber algumas facetas da condição da atividade remunerada por meio da venda do corpo para a prática sexual do público masculino. Em geral, inicialmente, a atividade é velada pelo paciente que busca por tratamento para a dependência química. Na triagem desses pacientes, por vezes, são identificados pelo profissional da enfermagem sinais no pênis ou em outro local de sua genitália, os quais sugerem uma infecção sexualmente transmissível, e ao realizar um questionário para uma investigação mais apurada das práticas sexuais o paciente geralmente fica constrangido em relatar sobre a situação, porém expõe o sexo desprotegido em troca de sua substância de preferência ou de escolha, como costumeiramente se refere a essa terminologia. Posteriormente, o paciente é encaminhado ao serviço de saúde da cidade responsável pelo tratamento de ISTs/HIV para o teste rápido e acompanhamento, o que se faz extremamente necessário. Existe uma alta prevalência entre uso indevido de drogas lícitas e ilícitas, bem como maior prevalência de infecção pelo HIV, entre profissionais do sexo. Segundo estudos de Moró, Simon e Sárosi (2013), as substâncias mais utilizadas entre os profissionais do sexo são álcool: uso abusivo/nocivo em 89%, uso regular: 48%, uso ocasional: 29%; tabaco: uso abusivo 86%, uso regular: 62%, uso ocasional: 2%, e a prevalência ao longo da vida do uso de drogas ilícitas entre profissionais do sexo foi de 84,3%, sendo maconha 75,2%, speed (um tipo de aneftamina) 62,0%, ecstasy 59,5%, e cocaína 54,5%. Taxas atuais de uso de outras substâncias, como, por exemplo, GHB, heroína, medicamentos sem receita médica, inalantes etc. variou entre 1 e 4% (Moró, Simon & Sárosi, 2013). Conforme os vínculos vão se fortalecendo com os profissionais do serviço onde o paciente encontra-se em tratamento, ele sente-se seguro e confiável para relatar sobre suas experiências com a atividade do sexo profissional, experiência na qual, em nome exclusivamente do dinheiro, desrespeitam sua orientação sexual e sua segurança pessoal com a saúde, praticando sexo com homens, mulheres e transgêneros, por vezes, a gosto do cliente, ou por estar sob efeito de substâncias, de forma desprotegida. Mendieta-Izquierdo (2016) discorre sobre os espaços geográficos utilizados para a prostituição masculina que é, em grande parte, vinculada ao cenário gay, como bares, baladas, saunas, cinema pornô, estabelecimentos privados, apartamentos e clubes; e se denominam como strippers ou massagistas. Mendieta-Izquierdo (2016) anuncia ainda que esses profissionais também se utilizam de anúncios em jornais, internet e lugares públicos, como como parques, praças e ruas, para a venda de sexo. Exclusivamente, no tratamento da dependência química em CT, percebe- se enorme preconceito em relação à prática de sexo profissional do paciente, notada de duas formas: 1. em discussão de caso entre profissionais, o preconceito era velado, aparecendo em forma de piadas sobre o assunto, o que era necessário ser apontado e discutido para que o paciente não ficasse estigmatizado e fosse respeitado em suas trajetórias de vida; 2. diretamente entre o profissional de referência e o paciente, o preconceito aparecia de forma explícita, em que o paciente era condenado ao pecado pela atividade do sexo profissional e estimulado de forma enfática a mudar seu estilo de vida e escolha da atividade profissional. Essas experiências deixam explícita a necessidade de capacitação continuada em relação à sexualidade humana, pois a noção básica é que os profissionais possam ser capazes de realizar os melhores encaminhamentos ao paciente, independentemente de sua história de vida e atividade profissional, e não apresentem uma atitude de condenação, pois essas atitudes podem levar o paciente a ser mais menosprezado, com sentimentos de menos valia, podendo chegar a desistir do tratamento e retornar ao uso de sua substância e, concomitantemente, à exposição a riscos e vulnerabilidades, situação que era notada em alguns casos. Já no processo de reinserção, o desejo de abandonar a vida de atividade da prática de sexo profissional aparece acompanhado de ambivalência entre buscar uma recolocação profissional formal baseado no que ouvia de seu profissional de referência na Comunidade Terapêutica, mas não por vontade própria, ou continuar com as atividades da prática do sexo profissional. A segunda opção vinha sempre acompanhada do fantasma da recaída, pois nos relatos dos pacientes, em suas práticas sexuais, o uso de substâncias estava diretamente ligado às práticas e, sendo assim, percebiam a recaída como uma possibilidade. Moró, Simon e Sárosi (2013) apresenta dados de que 66% dos profissionais do sexo relataram usar drogas com seus clientes, sendo 13% frequentemente, 50% raramente, e as substâncias de uso durante as relações são geralmente cocaína 29%, maconha 19%, álcool 16% e anfetaminas 14%. May e Hunter (2006) apontam que ser adotado, “sem-teto”/em situação de rua, ter um histórico familiar instável, apresentar evasão escolar e baixa autoestima podem estar relacionados aos riscospara o desenvolvimento do uso problemático de drogas e do trabalho sexual. Para alguns a prostituição faz com que eles se sintam como “lixo”, socialmente estigmatizados e com baixa autoestima (Mendieta-Izquierdo, 2016). Rogério Bosso pode perceber que nesse âmbito a recuperação se tornava frouxa e com tendências maiores à recaída, ao invés de caminhar para uma recuperação consistente, devido à forte conexão anterior que o paciente associava entre a prática da atividade sexual e o uso de substância. Talvez essa prática para a pessoa com dependência química não seja o melhor caminho, devido a seu histórico de uso de substâncias e a sua associação com a prática sexual. Isso porque as técnicas de prevenção à recaída muito utilizadas no tratamento da dependência química sugerem ao paciente, para que tenha mais chance de sucesso em sua recuperação, que evite hábitos, pessoas e lugares que possam ser considerados espaços com potencial de risco para violação da abstinência (Knappand Beck, 2008). Outro desfecho percebido para o público masculino que utiliza a atividade sexual como uma forma de sustento é que eles tentam uma forma de ressignificação do ato sexual, na tentativa de vinculação com o afeto, porém consideram nessa tentativa o sexo com pessoas com alto poder aquisitivo, mantendo o viés de tirar algum proveito da situação, mesmo sendo ela uma situação afetiva. A análise da experiência da atividade sexual lucrativa da prostituição masculina pode ser entendida por meio da necessidade de sobrevivência, em que se troca a atividade sexual, seja por dinheiro ou por favores. O trabalho dos profissionais do sexo na Hungria é descrito como “quase- legal”. Dessa forma governos locais têm a autoridade para determinar locais que denominam zonas de tolerância onde os profissionais do sexo podem trabalhar, desde que possuam uma espécie de “cartão de higiene” com validade de três meses. Para se obter esse cartão, os profissionais precisam apresentar resultados de testes negativos de infecção sexualmente transmissível e uma licença de empreendedor privado, que se faz necessária para a tributação. Os profissionais do sexo que circulam ou prestam serviços fora das denominadas “zonas de tolerância” são considerados como transgressores, portanto podem ser presos e até mesmo multados (CEEHRN, 2005). No Brasil, ainda não temos tributação para pessoas que se denominam profissionais do sexo. Especificamente sobre o uso do sexo de forma comercial, temos o Art. 230 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40CP – Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que dita algumas diretrizes: Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227: Pena - reclusão, de três a seis anos, além da multa. § 2º - Se há emprego de violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de dois a oito anos, além da multa e sem prejuízo da pena correspondente à violência. § 1o Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime for cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). § 2o Se o crime for cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Tráfico de mulheres - Tráfico internacional de pessoas (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005). São bastante escassos os estudos científicos que abordam exclusivamente a prostituição masculina, comparado ao número de estudos que abordam especificamente a prostituição feminina. E, falando-se em Brasil e nos países latinos, esses estudos tornam-se defasados. Qual seria a razão do baixo interesse em pesquisar esse público em específico? Poderíamos, talvez, partir da ideia de vivermos em um país considerado machista, onde a masculinidade não poderia ser escancarada em forma de uma possibilidade de prostituição, como acontece com o público feminino? Sabemos que os profissionais do sexo masculino existem, mas também sabemos os quão discretos precisam ser para que consigam manter-se, sem serem excluídos socialmente pelo trabalho oferecido. Enquanto não nos debruçarmos em estudos exclusivos para essa fatia da população, ficaremos a mercê de políticas públicas “cegas” e ineficazes para o atendimento inclusivo e preventivo dessa demanda, e da mesma forma carentes de cartilhas e profissionais especializados no assunto para que possam orientar e assistir essas pessoas em suas necessidades, diminuindo assim os riscos de contaminação de doenças e de fato promovendo a recuperação dos transtornos relacionados ao uso de substâncias. Quando alterado o foco do gênero masculino para os transgêneros, mudamos os atores envolvidos, porém não mudamos, necessariamente, o cenário apresentado ao abordarmos a questão da prostituição. Os profissionais do sexo masculinos e as travestis englobam a mesma gama de preconceito e exclusão. O Brasil é o país que lidera o índice de vitimar pessoas LGBT+, estando à frente de países onde, por exemplo, ser homossexual é crime. O Brasil é um dos países que mais se mata pessoas trans no mundo, totalizando por volta de 40% das mortes em todo o mundo. Exclusivamente em 2017, foram assassinadas 179 pessoas trans, 20% a mais, em relação a 2016 (ANTRA, 2018). Podemos falar em algumas particularidades vivenciadas pelas denominadas travestis. As travestis – as quais atualmente acoplaram ao termo “travesti” um teor político de ressignificação de um termo historicamente utilizado de forma pejorativa (Definição da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais, aprovada pelo coletivo de participantes, Rio de Janeiro, 2008; com colaboração adicional do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais, Negras e Negros; e adaptações de ABGLT, 2010; e Caderno, 2017) – foram apontadas por décadas como um mero transtorno psiquiátrico fetichista. No CID-10, aprovada em 1990, essas categorias são reconhecidas como distúrbios de identidade de gênero e são incluídas no capítulo sobre Transtornos Mentais e Comportamentais (Drescher, 2010; Meyer-Bahlburg, 2010). No entanto o estigma associado a ambos os status – transgênero e transtornos mentais – contribuiu para violações dos direitos humanos e precária assistência médica a pessoas transexuais. No CID-11, a categoria é realocada dos transtornos mentais na tentativa de diminuir estigma e colaborar para a noção que identidade de gênero não é doença (United Nations High Commissioner for Human Rights, 2011; WHO, 2015). Dentro do contexto das políticas públicas sociais, a grande queixa, carregada de sofrimento nas travestis quando chegam ao tratamento para o uso de álcool e outras drogas, é a vivência do preconceito por toda a população, inclusive em suas necessidades no uso do sistema único de saúde (SUS). Para elas fica explícito o descaso pela condição de gênero. É necessário mudar essa realidade, uma vez que falamos em pessoas transgêneros que sofrem estigma, discriminação e abusos ao longo da vida. São deixadas às margens da sociedade com maior envolvimento em situações de risco e comportamentos de risco. Globalmente falando, elas enfrentam um pesado fardo de violência, bem como exposição ao risco de HIV (Winter et al., 2016). Entre 1983 e junho de 2017 foram registrados 882.810 casos de AIDS no Brasil, sendo 65,3% em homens e 34,7% em mulheres, com maior concentração em indivíduos com idade entre 25 e 39 anos de ambos os sexos (Brasil, 2017). Entretanto,em uma amostra da concentração da epidemia brasileira, as taxas de AIDS têm se mostrado relativamente maiores em grupos populacionais específicos, como: homens que fazem sexo com homens (HSH), usuários de drogas, transexuais e travestis e profissionais do sexo (Malta et al., 2010). Fica claro também na experiência com as travestis convivendo no mesmo ambiente de tratamento da Comunidade Terapêutica citado anteriormente que o próprio reconhecimento da sua identidade de gênero é fragmentado e frouxo, até mesmo o quanto esse reconhecimento representa para elas mesmas. Talvez por esse motivo pessoas trans podem se autodenominar travestis ou evitar se autodenominar dessa maneira dependendo da barreira que tenham que enfrentar na sociedade. Algumas assim o fazem por uma questão de solidariedade e empoderamento de pares. Existe uma generalização que ocorre na sociedade em relação às travestis, uma vez que elas parecem não ter identidade, sendo sempre avaliadas como “o grupo” a que pertencem e não como indivíduos únicos que carregam suas próprias histórias, acarretadas de vivências únicas e vistas de forma individualizada com um olhar diferente, e, portanto, tendo suas próprias opiniões a respeito de cada assunto abordado no meio social, vivências e necessidades. Em 2011, em resolução unânime, o Parlamento Europeu apelou à Organização Mundial da Saúde (OMS) para que retirassem o gênero dos transtornos de identidade da lista de transtornos mentais e comportamentais, e para que garantissem uma reclassificação como parte do desenvolvimento da CID-11 (European Parliament, 2016). As categorias relacionadas ao status de transgênero se mantiveram na classificação mais recente do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013). O DSM5 renomeou o então chamado transtorno de identidade de gênero como disforia de gênero, definido por acentuada incongruência entre o sexo biológico e o sexo expresso atribuído por pelo menos 6 meses de duração e sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo nas escolas ou outras áreas importantes de funcionamento (Robles et. al., 2016). Cabe ainda mencionar que os discursos das travestis em tratamento para dependência química são carregados de estigma que sofrem, com relatos de dificuldades em assumir sua identidade e orientação sexual no núcleo familiar, porém não deixando de esperar da família um apoio, aceitação e empatia, o que na grande maioria não são o que recebem, optando muitas vezes por saírem de casa, mesmo que o preço seja viver a triste realidade da situação de rua. CAPÍTULO 15 PRESIDIÁRIOS OU PESSOAS EM SITUAÇÃO DE ENCARCERAMENTO Alessandra Diehl Doenças infecciosas, dependências de substâncias e doenças dentárias são os problemas de saúde mais importantes que afetam as pessoas encarceradas. Os resultados de vários estudos mostram inequivocamente que a prestação de tratamento para o uso de substâncias para pessoas com envolvimento com a criminalidade e/ou que estão dentro do sistema carcerário reduz tanto o uso de álcool e outras drogas quanto a reincidência criminal (NIDA, 2014; Diehl & Cordeiro, 2019). Atualmente a população prisional com envolvimento em infrações relacionadas a substâncias é volumosa em vários países do mundo, como Estados Unidos e também no nosso país. O Brasil é hoje um dos países com o maior número de pessoas em situação de encarceramento por envolvimento em atividades criminais. São 726 mil presos, sendo a terceira maior população carcerária do mundo. Isso nos revela uma taxa de que no país existem em média 288 presos/100.000 mil habitantes com uma ocupação de 184% (site da Agência Brasil, 2017). A prevalência de transtornos mentais na população prisional de São Paulo, por exemplo, é de 61,7%, com pelo menos uma ocorrência de transtorno mental ao longo da vida. Aproximadamente 25% daqueles que estão em regime fechado preenchem critérios diagnósticos para pelo menos um transtorno mental no ano anterior ao estudo, sendo que 11,2% dos detentos são homens e 25,5% são mulheres que apresentam transtornos mentais graves, e dentre esses transtornos mentais uma parcela possui transtornos por uso de álcool e outras drogas. A projeção desses números para o território nacional corresponde a cerca de 60 mil prisioneiros com transtornos mentais graves (Andreoli et al., 2012). O uso de drogas dentro das unidades prisionais brasileiras é uma realidade e está intimamente associado, também, à criminalidade. É comum o indivíduo envolvido com o ato infrator ser ao mesmo tempo agente e usuário de substâncias. É comum também que esses indivíduos desenvolvam síndrome de abstinência durante o período de detenção. Muitas das pessoas em reclusão carcerária são dependentes químicas e sofrem com síndrome de abstinência, fissura e outras complicações. Em geral, as drogas mais comumente citadas nas unidades prisionais são maconha, crack, cocaína, álcool e tabaco. Portanto, os transtornos mentais são comuns nas prisões, havendo grande dificuldade no manejo dos casos mais severos, sendo comum a violação dos direitos humanos dos detentos (Damas & Oliveira, 2013). Muitos dos detentos também participam de uma série de comportamentos de risco que podem levar à transmissão de infecções virais, como HIV, hepatite B e hepatite C. As prisões são sobrecarregadas com uma alta prevalência de doenças infecciosas e comportamentos de risco para a transmissão dessas doenças e, comumente, uma notável falta de medidas continuadas de controle dessas infecções; mesmo quando tais medidas estão disponíveis na comunidade não são efetivadas a contento. É desejável que grande parte dos reclusos regresse para as suas comunidades após comprimir suas penas mediante as ordenações jurídicas determinadas de forma reabilitada e que possa cumprir com suas penas de forma que seus direitos de saúde posam ser garantidos. No país, a ressocialização dos detentos deve ser indissociável das condições de saúde nas prisões. No modelo atual, as prisões funcionam como unidades centralizadoras do crime dos detentos, com pouco acesso às possibilidades de recuperação do transtorno pelo uso de substâncias e acesso a tratamento adequado para todos esses transtornos mentais. Até o presente momento desconhecem-se medidas para promoção de saúde e real tratamento da dependência química e suas comorbidades nesses ambientes com respostas eficazes e de forma continuada. Têm-se notícias anedóticas de iniciativas isoladas de setores/unidades prisionais que permitem que seus presos possam sair para fazer “tratamento com o chá de Santo Daime”, por exemplo, conforme reportagem exibida no programa do Fantástico da Rede Globo ano passado. Temos notícias também do valioso trabalho de grupos de mútua ajuda, tais como Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), os quais exercem atividades voluntárias em prisões do Brasil. Medidas de redução de danos para uso de injetáveis parecem ter sido desativadas pelo advento do crack e mudança da rota de uso da cocaína. Tampouco, temos resultados claramente demonstráveis das atividades de educação sexual e de redução de danos com relação aos aspectos sexuais dentro das unidades prisionais no Brasil. Entre os presos da Alemanha, por exemplo, aproximadamente 20% consomem heroína, 20-50% sofrem dependência e uso de álcool e 70-85% fumam nicotina. A prevalência de tuberculose nas prisões alemãs em 2002 foi de 0,1%. A provisão de agulhas para pessoas encarceradas tem um efeito preventivo na infecção por hepatite C, hepatite B e HIV, mas programas desse tipo foram descontinuados na maioria das instalações penais. Em uma revisão sistemática, os transtornos psicóticos foram encontrados em 3,6% (intervalo de confiança de 95% [IC]: [3,1; 4,2]) dos presos do sexo masculino e 3,9% [IC 95%: 2,7; 5.0] de mulheres presas. Vinte e cinco por cento das pessoas encarceradas sofrem de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Pessoas recentemente libertadas da prisão têm uma mortalidade acima da média, em grande partedevido à intoxicação por drogas (Opitz-Welke et al., 2018). Os programas de tratamento para pessoas que usam drogas injetáveis, como os prisioneiros, também são importantes para atingir as metas de eliminação da hepatite C. Existem várias barreiras ao tratamento da hepatite C nas prisões, incluindo o acesso a médicos especialistas, a testagem e a terapia antirretroviral, sentenças de prisão curtas e transferências frequentes entre presídios. Um programa estadual de avaliação e manejo da hepatite C foi desenvolvido em Victoria, na Austrália, para melhorar o acesso aos cuidados para os prisioneiros. Esse modelo de cuidado liderado por enfermeiros é apoiado pela telemedicina para fornecer atendimento descentralizado dentro de todas as prisões do estado com respostas favoráveis naquele estado (Papaluca et al., 2019). O quadro 1 resume as principais recomendações para a prestação de cuidados para indivíduos do sistema prisional. - A oferta da possibilidade de tratamento para indivíduos do sistema carcerário é uma das melhores alternativas para interromper o ciclo do uso de drogas e crimes. - Os desfechos são melhorados quando os profissionais da saúde e os da justiça trabalham de forma harmônica e conjunta. - Advogados de defesa, promotores e juízes precisam trabalhar juntos durante o processo penal e de condenação a fim de determinarem programas de tratamento adequados que atendam às necessidades desta população através por exemplo de tribunais de drogas, programas de tratamento condicionais ou compulsórios com participação em programas comunitários de tratamento da dependência química sob supervisão da justiça criminal. Em alguns casos, os juízes podem também recomendar que o infrator participe do tratamento durante o período que estiver preso e exigir que ele faça parte de um programa de continuidade com supervisão correcional após a liberação do sistema prisional. - Baixa motivação para participar do tratamento ou para interromper o consumo de substâncias não devem impedir o acesso ao tratamento. A pressão legal que incentiva a abstinência e a participação no tratamento também podem ajudar esses indivíduos a melhorar a retenção e estimula a permanência em programas mais prolongados. - As intervenções motivacionais podem ser úteis nestes casos e as técnicas de manejo de contingência as quais muitas vezes proporcionam recompensas para cumprir os objetivos do programa. Terapia cognitiva comportamental e manejo de contingências estão entre as técnicas sugeridas para serem aplicadas nesta população - As estratégias de manejo de contingência, comprovadamente eficazes em contextos comunitários, utilizam incentivos ou recompensas baseados em vouchers, como fichas de ônibus, para reforçar a abstinência (medida por testes de drogas negativos) ou para moldar o progresso em direção a outros objetivos de tratamento. O manejo de contingência é mais eficaz quando a recompensa contingente segue próximo ao comportamento monitorado. - A pressão legal pode aumentar o comparecimento ao tratamento e melhorar a retenção. - Medicações são elementos essenciais e deveriam ser oferecidos mediante avaliação clínica e psiquiátrica adequada. - Em geral, a duração mínima do tratamento deve ser superior a 90 dias. - Se o paciente retornar para os ambientes associados com o uso de drogas pode desencadear cravings e resultar em recaídas. QUADRO 1 - PRINCIPAIS RECOMENDAÇÕES PARA A PRESTAÇÃO DE CUIDADOS PARA INDIVÍDUOS NO SISTEMA PRISIONAL Fonte: NIDA, 2014 Trata-se, portanto, de uma dupla questão: saúde pública e de segurança. Assim é uma questão importante e crítica atual reduzir a criminalidade global a fim de se evitar tantos prejuízos associados a essa prática, como homicídios, perdas de produtividade no trabalho, a desintegração familiar e prejuízos econômicos para os países. Em especial, sobre este último tópico, vale a pena ressaltar que o tratamento tende a sair mais barato para os cofres públicos. O custo médio do tratamento com metadona é cerca de US$ 5.000 por ano nos Estados Unidos, em comparação a US$ 24.000 para prisões estaduais e federais manterem pessoas encarceradas. Reduzir o número de pessoas encarcerados por uso de drogas pode poupar enormes custos econômicos e sociais (NIDA, 2014). As pesquisas científicas mostram também que o tratamento da dependência química pode funcionar, mesmo quando um indivíduo entra sob mandato legal e não motivado. Contudo apenas uma pequena parcela dos que necessitam de tratamento o recebem, e muitas vezes, quando recebem tratamento, este é fornecido de forma inadequada. Para ser eficaz, o tratamento deve começar na prisão e ser mantido por meio da participação em programas de tratamento comunitário e com o envolvimento em um processo terapêutico contínuo que lidam com prevenção de recaída e trabalham a reinserção social para o afastamento de uma vida de crime (NIDA, 2014; Diehl & Cordeiro, 2019). A adaptação de serviços para atender às necessidades dos indivíduos é um importante componente do tratamento da dependência química eficaz em populações que estão em situação de encarceramento judicial ou respondem a processos penais e criminais. Vale lembrar que esses indivíduos diferem em termos de idade, sexo, etnia e cultura, gravidade do problema, estágio de motivação, nível de supervisão necessário e presença de outros transtornos mentais, tais como psicoses e transtornos de personalidade. Os indivíduos também respondem de forma diferente a diferentes formas de tratamento e abordagens. Em geral, os tratamentos para os problemas com substâncias deveriam abordar questões relativas a motivação, solução de problemas, construir habilidades para resistir às drogas e modificar os comportamentos relacionados à prática de criminalidade. Lições aprendidas com o uso mantido de substâncias e as práticas de atividades criminais com o entendimento das consequências e responsabilidades individuais desses comportamentos de uma forma construtiva também são elementos importantes que devem ser incluídos do processo de abordagem dessa população. Intervenções terapêuticas dirigidas a um público alvo podem facilitar o desenvolvimento de relacionamentos interpessoais mais saudáveis e melhorar a habilidade dos participantes para interagir com a família, seus pares e outros na comunidade (NIDA, 2014). Monitorar o uso de substâncias por intermédio de testes toxicológicos ou de outra forma objetiva deve fazer parte do tratamento ou da supervisão da justiça criminal a fim de servir como um feedback para os participantes do programa. Isso também promove oportunidade de intervir para a mudança dos comportamentos não construtivos estabelecendo recompensas e sansões que visem facilitar a mudança e modificar o plano de tratamento de acordo com o progresso (NIDA, 2014). O tratamento deveria ter como alvo os fatores que estão associados aos comportamentos criminais. O “pensar criminoso” é uma combinação de atitudes e crenças que suportam o estilo de vida e o comportamento criminoso, tais como o sentimento de ter o direito de obter as coisas à sua maneira, sentir que o comportamento criminoso de alguém é justificado, não aceitar a responsabilidade por suas ações e consistentemente falhar em antecipar ou apreciar as consequências de seu comportamento (NIDA, 2014). Além disso, outros elementos importantes que devem ser considerados é a abordagem de tratamento integrar suporte para HIV/AIDS e outras infecções sexualmente transmissíveis visto que a prevalência de HIV em populações carcerárias é cinco vezes maior que a população geral (NIDA, 2014). Em vista do exposto, recomenda-se que os tratamentos sejam baseados em evidências, com equipes multidisciplinares treinadas, com seguimento e avaliação das estratégias implantadas e que estas possam ser uma das prioridades de nossos governantes também para populações carcerárias brasileiras, pois a saúde dos detentos é um problema de saúde pública, o qual também merece atenção e certamente tende a contribuir para diminuir um grande ônus para o indivíduoe toda a sociedade. Para que os cuidados de saúde prisional atinjam os padrões dos cuidados de saúde baseados na comunidade, a vontade política e o investimento financeiro são necessários de organizações governamentais, médicas e humanitárias em todo o mundo (Rich et al., 2016). Parte 3 CAPÍTULO 16 SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DE USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS Alessandra Diehl Grandes avanços têm sido observados nas abordagens psicossociais e farmacológicas do tratamento de homens e mulheres que sofrem por problemas decorrentes da dependência de substâncias, porém a sexualidade como parte integrante do processo de recuperação segue relegada a um segundo plano, muitas vezes na invisibilidade, na maioria dos centros de atenção destinados ao tratamento dos transtornos relacionados ao uso e dependência de álcool e outras drogas (Harvey, 2009, 2010). É como se existisse, nesses espaços, uma chamada “zona livre de sexualidade” e a discussão sobre o assunto não pode vir à tona (ela é muitas vezes silenciada), pois sequer é aventada, por tabu, medo, preconceito, falta de informação adequada sobre a temática e falta de treinamento dos profissionais da área da dependência química sobre a sexualidade e saúde sexual. Até mesmo no programa de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (AA) existe referência à Intervencoes saúde e ao bem-estar, no entanto não se observa qualquer alusão à atividade sexual durante esse processo de recuperação. A sexualidade, portanto, deve ser encarada como uma aliada na arte da recuperação, e não como uma adversária nesse processo (Harvey, 2009; Vieira, Diehl, 2011). Sabe-se que quando a sexualidade não é diretamente e positivamente abordada em centros de tratamento para álcool e outras drogas e de saúde em geral, isso pode contribuir para a falha terapêutica, com lapsos e recaída e, consequentemente, incontáveis custos para as vidas desses pacientes e seus familiares. Saúde sexual em indivíduos em recuperação tem sido fortemente associada à crença de que é possível se manter em sobriedade e ao mesmo tempo ter uma vida sexual prazerosa e emocionalmente satisfatória (Wood et al., 2010; Vieira & Diehl, 2011). Existe tanto evidência clínica quanto científica de que a atividade sexual motivada por situações de uso de drogas pode ser um gatilho para recaídas. Além disso, muitos chegam ao tratamento com sentimento de culpa e vergonha relacionadas ao comportamento sexual. Soma-se o fato de que muitos pacientes têm sobreposição de dependência de substâncias com dependência de sexo e/ou com transtornos parafílicos, os quais, se não trabalhados conjuntamente, também podem ser outro fator de recaída (Diehl et al., 2014c). Portanto, é uma excelente oportunidade para conversar a respeito de sexualidade (Vieira & Diehl, 2011). Outra pergunta que cabe mencionar nesse contexto de tratamento para dependência química e o universo da sexualidade é: o público LGBT necessita de serviços específicos na área de uso e dependência de substâncias? A resposta é: não precisam sempre ou necessariamente. Contudo, como para qualquer outro indivíduo que esteja preocupado com problemas relacionados ao uso de substâncias, quanto mais ampliarmos o “menu” de opções de acesso a cuidados, prevenção e tratamento, melhores chances teremos de lidar efetivamente com a situação apresentada. Isso pode significar a identificação de possíveis vulnerabilidades específicas de estilo de vida, de padrões de uso de drogas, de estigmas, preconceitos, barreiras, dificuldades de acesso e outras questões atreladas à população LGBT e, a partir desse conhecimento, oferecer serviços que respondam a essas necessidades também; “o menu” de opções se amplia, consequentemente, garantido a qualidade dos serviços oferecidos (SAMHSA, 2001). Pesquisas no Reino Unido e nos EUA sugerem que pessoas da comunidade LGBT tendem a acessar com maior frequência serviços especificamente voltados para eles, ao invés de serviços mais genéricos. Experiências anteriores de homofobia ou discriminação, seja por orientação homoafetiva, seja por mudança de gênero etc., informam a percepção de que os serviços disponíveis e gerais não vão atender às suas necessidades (SAMHSA, 2001). Talvez essa realidade europeia e americana não se traduza literalmente aqui no Brasil, mas não podemos negar a existência de que serviços genéricos na área de tratamento, seja ambulatorial, de internação, da rede pública ou privada, poderiam aprimorar, por exemplo, suas equipes de trabalho com capacitações que sensibilizem e tragam um melhor entendimento dos problemas que a população LGBT pode enfrentar no dia a dia de suas vidas (Diehl et al., 2011a). Ao se oferecer um espaço seguro para o público LGBT podemos garantir aos nossos pacientes que foquem nas suas questões em relação ao uso de drogas, álcool ou tabaco – livres de qualquer preocupação de sofrerem preconceitos ou discriminação por conta de suas orientações sexuais ou questões de gênero. Mesmo que tenhamos no país o Sistema Único de Saúde (SUS) – que preconiza seus três princípios: universalidade, equidade, integralidade –, os serviços de saúde e de assistência social em geral (com algumas exceções, como os serviços de DST/AIDS, por exemplo) ainda não estão totalmente preparados para atender às necessidades do público LGBT. Além da homofobia, do heterossexismo, medo, da falta de entendimento das questões LGBT, falta de capacitação e sensibilização, falta de recursos e outras questões, podem sim justificar intervenções que levem em conta as demandas específicas. O público LGBT pode sentir-se desconfortável em serviços primordialmente heterossexuais e temer ser catalogado como “patológico” ou “estereotipado” (SAMHSA, 2001). Segundo Hellman et al. (1989), sobre estudo que avaliou treinamento e atitudes de equipes que lidam com dependência química, ao atender homossexuais, demonstraram-se: Preconceito no tratamento e na avaliação (seja ao focar na orientação sexual quando inapropriado ou ignorar importantes fatos ligados à sexualidade). Ignorância sobre questões LGBT e desconforto em abordar assuntos sobre sexualidade. Ignorância sobre as associações entre sexualidade e abuso de álcool e outras drogas. Neisen e Sandall (1990), SAMSHA (2001) e O’Hanlan et al. (1997) observaram em suas pesquisas que certas circunstâncias podem prejudicar o acesso aos cuidados e tratamento, como: Dificuldade em ser aberto sobre a sua orientação sexual por medo de ser maltratado por funcionários ou clientes. Alguns foram forçados a revelar sua orientação homoafetiva. Logo que a sua sexualidade ficou conhecida, alguns receberam alta dos locais de tratamento. Outros confirmaram que depois de “saírem do armário”, o tratamento que receberam mudou para pior. Alguns temiam que se a sua orientação sexual fosse conhecida, isso acabaria recebendo mais ênfase do que os seus problemas com o uso de substâncias psicoativas. Alguns serviços não gostavam de ter seus parceiros participando dos programas de família ou dos grupos de mútua-ajuda. A maioria dos programas de desintoxicação e programas de reabilitação não era sensível às questões de orientação sexual e gênero e, portanto, não encorajava que isso fosse discutido ou revelado. Não conseguir admitir orientação sexual pode facilitar as recaídas. Redes tradicionais de apoio usadas para apoiar a recuperação – família, igreja, escola, trabalho – podem ser pouco acolhedoras para o público LGBT. Gays “no armário” que frequentam grupos de mútua ajuda como Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA) podem sentir-se constrangidos e não mais retornarem às reuniões por acreditarem estar quebrando a chave da filosofia da sobriedade dessas irmandades, que é “ser honesto e aberto em suas relações com seus pares.” Considerando os estudos já citados e os aspectos culturais, antropológicos e as mudanças sociais, econômicas, políticas e de comunicação dos dias de hoje, ainda podemos afirmar que os serviços de álcool e drogas precisam ser mais acessíveis para o público LGBT. Esses serviçosprecisam ser proativos e explícitos, deixando claro que esse público também é bem-vindo em seus equipamentos de saúde. O que serviços de atendimento para álcool, tabaco e outras drogas podem fazer então para melhorar o acesso do público LGBT? Algumas sugestões (Diehl et al., 2011a): Em primeiro lugar, reconhecer o problema; Oferecer treinamento de avaliação de necessidades; Treinamento sobre conscientização sobre a homofobia; Ter políticas e procedimentos de inclusão e normas de convivência; Profissionais especializados e provisão de serviços especializados; Divulgar amplamente, para o público alvo, o serviço oferecido; Trabalhar em rede com organizações voltadas para as questões LGBT, seja da sociedade civil seja na governamental; Avaliar e monitorar sempre. É importante ressaltar, novamente, que reconhecer as vulnerabilidades e os fatores de risco relacionados especificamente ao público LGBT não significa que os serviços devem ser especialmente criados para atender essa população. Como tudo, temos prós e contras a essa especificidade, mas a realidade informa que precisamos das duas abordagens: serviços específicos e serviços genéricos, ou seja, “o menu” para que cada um possa escolher o que acha melhor pra si. Indivíduos “no armário” (e, portanto, mais vulneráveis) provavelmente não atenderiam um serviço separado para o público LGBT. É crucial termos serviços genéricos acessíveis e versados nas questões LGBT. Um serviço especializado poderia ser, por exemplo, dentro de uma organização LGBT ou um centro de atendimento de álcool, tabaco e outras drogas, com grupos, atividades, períodos e/ou dias específicos de atendimento para o público LGBT (Diehl et al., 2011a). É importante ressaltar ao profissional da saúde que apenas o conhecimento a respeito dos prejuízos que a associação do uso e abuso de álcool e outras drogas exerce na atividade sexual não é capaz, isoladamente, de mudar comportamentos; daí a necessidade de se aumentar intervenções para muito além do caráter informativo do tema (Diehl et al., 2011a). Existe também a necessidade de ampliar pesquisas clínicas, principalmente nacionais, com relação a esse componente da sexualidade ligado ao uso, ao abuso e à dependência de substâncias psicoativas, a fim de gerar mais conhecimento nessa área do saber, a qual possui muitas variantes e complexidades diversas associadas. A melhor compreensão de todos esses aspectos tende a trazer evolução tanto no campo das terapias sexuais quanto nas intervenções para controle e tratamento do uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas (Diehl et al., 2011a). Aborto induzido em usuários de drogas Etimologicamente, do latim, a palavra aborto significa ab de privação e ortus deriva de nascimento. Ou seja, é a privação ou impedimento do nascimento, resultando em morte do embrião ou feto. Entende-se por aborto induzido ou aborto provocado, ou ainda interrupção voluntária da gestação, aquela interrupção do desenvolvimento do embrião ou feto durante a gravidez, que ocorre antes das 20 semanas de gestação (Menezes & Aquino, 2009). Trata-se de um assunto extremamente delicado, polêmico em muitas sociedades, especialmente aquelas de origem cristã; muitas vezes, está associado a tabus, disputas e controvérsias, assim como tem implicações e conexões importantes com aspectos religiosos, psicológicos, legais, sociais, ético e morais, e, especialmente, para a saúde pública (Menezes & Aquino, 2009; Pazol et al., 2014; Pistani & Ceccato, 2014; Sorhaindo et al., 2014). A legislação brasileira proíbe induzir o aborto, exceto quando a gravidez é uma ameaça à vida para a mãe ou foi resultado de violência sexual ou estupro. Mesmo quando há uma malformação fetal grave, como a anencefalia, o aborto só é permitido após autorização judicial (Duarte et al., 2010; Victora et al., 2011). Mesmo sendo uma prática ilegal, portanto, criminalizada no país, isso não tem impedido que o aborto aconteça, o que contribui, em muitos casos, para o uso de técnicas de saúde inseguras, e reduz a confiabilidade das estatísticas sobre esse tipo de prática (Morse et al., 2011). Acredita-se que, todos os anos, cerca de 46 milhões de mulheres recorrem a essa prática em todo o mundo. Desse total, cerca de 20 milhões praticam os chamados abortos inseguros, que envolvem uma série de práticas sujeitas a riscos diversos, inclusive de vida. Isso porque as complicações do aborto estão entre as maiores causas de mortalidade materna (Morse et al., 2011; Victora et al., 2011). Em 2008, houve um aborto para cada quatro gestações no Brasil (25%) (Victora et al., 2011). Muitos métodos têm sido utilizados para induzir o aborto, variando de procedimentos domésticos ou realizados em clínicas de saúde privadas ilegais, expondo as mulheres ao risco de complicações e mortalidade. Devido às desigualdades no país, as mulheres negras têm três vezes mais chances de morrer durante um aborto inseguro do que as mulheres brancas (Barros et al., 2010; Victora et al., 2011). O perfil de vulnerabilidade de morte por aborto inseguro inclui aquelas que são jovens e têm recursos limitados. Em outras palavras, aquelas que podem pagar por um aborto ilegal são menos propensas a terem complicações ou morrerem devido a essa prática (Victora et al., 2011; Fusco et al., 2012). Usuários de substâncias são, também, uma população vulnerável para a gestação não planejada e a prática do aborto induzido (Pedersen, 2007). No entanto poucos estudos, tanto nacionais quanto internacionais sobre esse tema, têm sido conduzidos em usuários de álcool e outras drogas. Entre os poucos estudos encontrados, como, por exemplo, o estudo de Abdala e colegas (2011), a taxa de histórico de aborto induzido em usuários de drogas injetáveis de uma amostra da Rússia foi de 67%, ou seja, pode ser considerada extremamente alta (Abdala et al., 2011). Outros estudos encontrados na literatura sobre o tema versam a respeito do papel do consumo de substâncias pós-abortamento (Pedersen, 2007) e outros sobre o uso de substâncias ou a presença de transtornos por uso de substâncias como um dos fatores de aborto, em geral e não somente do aborto induzido (Martino et al., 2006; Coleman et al., 2009; Steinberg & Finer, 2011). Dados do estudo probabilístico domiciliar, com amostra total de uma população de 4.067 brasileiros com 14 anos ou mais, oriundos da Segunda Pesquisa Nacional sobre Álcool e Drogas (2012) cujo objetivo foi avaliar a prevalência de abortamento (espontâneo e induzido) e sua associação com o http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Steinberg%20JR%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21122964 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Finer%20LB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21122964 uso de substâncias e outras afecções sexualmente relacionadas, mostrou que 2.537 mulheres e 400 da amostra (15,8%) relataram história de aborto. O aborto foi estatisticamente associado a beber na gravidez, um padrão de dependência de álcool, consumo excessivo de álcool e fumo nos últimos 12 meses. Houve forte relação entre o aborto e a gestação anterior, ter tido pelo menos um problema em uma gestação anterior, estar grávida antes dos 20 anos, apresentar baixo suporte social, depressão, abuso sexual, falta de uso de preservativo e histórico de aborto. As mulheres em idade reprodutiva estão em maior risco de uso de substâncias e aborto. Há uma necessidade de integrar um cuidado multiprofissional para mulheres em idade reprodutiva que sejam usuários de substâncias (Pillon, Diehl, Madruga, Caetano & Laranjeira, 2019, no prelo). Mais evidências sobre o aborto induzido em usuários de substâncias são necessárias a fim de ajudar os planejadores de programas e formuladores de políticas a identificarem grupos de maior risco para a gravidez indesejada e reduzirem os riscos de saúde relacionados com o aborto entre os usuários de álcool e drogas, ampliando também os esforços de prevenção e promoção da saúde para essa população vulnerável (Gutierres & Barr, 2003; Martino et al., 2006). Estupro e sua associação como uso de substâncias O estupro pode ser definido como uma violência sexual. É um problema de saúde pública global com incontáveis consequências para a saúde física e mental da pessoa acometida, como depressão, suicídio, transtornos de estresse pós-traumático engajamento no uso de substâncias para o enfrentamento, HIV, Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e com altos custos para os sistemas de saúde e criminal. Essa condição também está associada ao tabu e estigma em muitas sociedades ao redor do mundo, com falta de conhecimento ou atitudes de culpar a vítima. Além disso, prejudica a dignidade humana e desrespeita seriamente os direitos humanos. Globalmente, 7% das mulheres são abusadas sexualmente por terceiros que não são seus parceiros íntimos (WHO/UNODC, 2014). Nos Estados Unidos, mais de 12 milhões de adultos sofrem violência por parceiro íntimo http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Gutierres%20SE%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=12646327 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Barr%20A%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=12646327 anualmente. Bolívia e Peru têm as maiores taxas de violência sexual na América Latina, com quase uma em cada três mulheres sofrendo algum tipo de abuso sexual antes dos 18 anos. Dados de um estudo de séries temporais observacionais que analisaram informações de 2009 a 2013 provenientes de um banco de dados secundário do Sistema Nacional de Informações de Doenças Notificáveis (SINAN) mostraram que a taxa de notificação de estupro aumentou em 590%.(Gaspar & Pereira, 2018). Outro estudo realizado por Winzer (2016) sobre estupro e vitimização no Brasil, por meio de 41 estudos a partir de uma revisão da literatura, constatou que 1% a 40% das mulheres e 1% a 35% dos homens relataram alguma forma de vitimização no ano anterior (Winzer, 2016). O levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública é alarmante no relatório, sendo que em 2015 no país estimou-se que cerca de 45.460 pessoas foram violadas. Isso significa que a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada, ou seja, mais de 5 pessoas são estupradas por hora no Brasil. Em 89% das vítimas eram mulheres (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2016). O consumo de álcool está relacionado à violência em praticamente todas as suas formas, inclusive contra as mulheres e nas relações íntimas, e reflete as relações de gênero (desigualdades). As políticas públicas mais eficazes para reduzir o consumo de álcool são políticas que favorecem a equidade de gênero e podem ser eficazes na redução da violência íntima e do estupro. Políticas de equidade de gênero, se não acompanhadas de políticas públicas para controlar o consumo, continuarão perpetuando as relações de poder da sociedade e minando seus ganhos, enquanto os problemas de uso de álcool em homens e mulheres continuarão a crescer – especialmente entre as mulheres e meninas. No entanto as pesquisas sobre os efeitos do álcool e do estupro são ainda menos representativas. Parece que a exposição a estímulos relacionados ao álcool (isto é, a preparação do álcool) pode aumentar os comportamentos associados ao consumo agudo de álcool. Atribuições de responsabilidade a mulheres vítimas em cenários de estupro são afetadas pelo fato de o álcool ter sido consumido ou não por uma vítima e/ou agressor. As vítimas geralmente recebem níveis mais altos de culpa se consomem álcool antes da violência. Um estudo transversal com 816 usuários de crack no sul do Brasil conduzido por Vernaglia e colegas (2017) constatou que 34% relataram abuso sexual, mostrando que as mulheres usuárias de crack tinham maior probabilidade de estar em situações vulneráveis (Vernaglia et al., 2017). Além da questão do uso de álcool e outras substâncias, a violência de gênero continua sendo alarmante e, acima de tudo, parece estar ligada a outras formas de violência que começam cedo na vida e continuam na idade adulta. No Brasil, a taxa de feminicídio é de 4,8 a 100.000 mulheres – a quinta maior do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios na população feminina revelou que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, de 1.864 para 2.875 (Organização das Nações Unidas, Brasil-UNOBr, 2016). Alguns agressores podem decidir ficar intoxicados, porque isso facilita a justificação do comportamento sexualmente agressivo e desinibido. Embora essa causa inicialmente pareça improvável, pois em muitas culturas a intoxicação fornece uma “desculpa” para se envolver em um comportamento tipicamente censurado. Traços de personalidade, como a impulsividade, também têm sido associados ao consumo pesado de álcool e ao enfrentamento sexualmente agressivo. Isso sugere que, para alguns indivíduos, a impulsividade pode ser a causa de seu consumo pesado de álcool e violência/agressão sexual (Abbey, 2011). Algumas precauções, entretanto, devem ser enfatizadas quando observamos esse fenômeno delicado que envolve álcool/drogas e abuso sexual/violência. É fato que não é a “garrafa de álcool” que ataca ou comete violação/estupro, mas o álcool e/ou outras substâncias podem estar frequentemente presentes nesse cenário (Ullman, 2014; Lichty & Gowen, 2018). É fato também que o estupro atinge a coisa mais valiosa: a dignidade humana. Dignidade diz respeito ao que é relativo à honestidade e à nobreza no sentido de valores. Dentro da perspectiva dos direitos humanos, há vários marcos históricos sobre a proteção da questão feminina, sendo que na legislação brasileira, a evolução dos fatos é mais recente, sendo que em 1934 a mulher adquire o direito de voto, e até 1962 ainda havia o estatuto da mulher casada que a considerava relativamente incapaz. Na década de 1980, surgem as questões do estupro versus as chamadas “obrigações conjugais”. Foi somente em 1988 com a Constituição Federal que a igualdade dos cônjuges foi determinada. Em 2006, após a intervenção da organização internacional foi aprovada a Lei Maria da Penha (sobre violência doméstica) e mais recentemente, em 2015, foi a aprovação da Lei do Feminicídio no país (Rodrigues & Cortês, 2006; BRASIL, 2006). Entre os objetivos de Desenvolvimento do Milênio, acordados entre vários países em 2015 com as Organizações das Nações Unidas (ONU) para uma agenda a ser alcançada até 2030, estão a diminuição da violência contra as mulheres e a promoção da igualdade entre os gêneros (ONU, 2015). Muitos fatores ainda constituem barreiras para a manutenção dessa privação de direitos humanos, como o valor desigual atribuído a cada gênero devido ao sexismo, ao machismo, ao poder e às culturas patriarcais (Brasil, 2006). Intervenções de saúde pública que enfocam os profundos rituais de “consumo” de gênero ancorados nas crenças patriarcais, a mercantilização dos corpos das mulheres e as vítimas de estigma do estupro devem ser perseguidas com mais vigor em todos os países do mundo (Dumbili & Williams, 2017). Embora o direito penal possa punir apenas o comportamento agressor, as intervenções sociais, educacionais, econômicas, políticas e de saúde podem usar a estratégia de prevenção mais eficaz para promover comportamentos e relacionamentos positivos (Kaplan, 2017). Por exemplo, a dissertação de mestrado recentemente defendida por Alabarse (2018) na Universidade de Campinas propôs uma breve intervenção de aconselhamento para as vítimas parceiras de estupro que não formam perpetradores de violência. Esse estudo mostrou que essa parece ser uma estratégia custo-benefício positiva, comprovada pelo tempo, no atendimento especializado às vítimas de violência sexual (Alabarse, 2018). O mesmo apoio deve ser oferecido aos perpetradores de estupro. Essa parece ser uma das lacunas da Lei Maria da Penha, uma lei brasileira que representa um marco histórico para o Brasil, mas não conseguiu reduzir as altas taxas de violência de gênero. Uma das críticas é a falta de atendimento/acompanhamento psicológico/psiquiátrico do agressor, além da punição penal (Meneghel, Mueller, Collaziol & De Quadros, 2013). Outro pontoimportante é a capacitação de equipes de profissionais de saúde para atendimento adequado e identificação de casos de estupro para melhor gerenciamento de cada caso, além de campanhas educativas em todos os tipos de mídia para combater e reduzir todas as formas de violência, principalmente contra as mulheres (WHO, 2014). O papel da intervenção de “Bystanders” na prevenção de assédio sexual e estupros O termo em inglês quer dizer mais ou menos “o espectador”, ou ainda “a testemunha”, ou seja, aquela pessoa que pode assistir, presenciar ou perceber o assédio sexual e o estupro em si a terceiros, podendo assim ser um aliado para prevenir/impedir que esses fatos ocorram. A literatura científica associando os “Bystanders” a questões de consumo de álcool e outras drogas é ainda escassa, mas já podemos encontrar algumas pesquisas e iniciativas principalmente em populações de estudantes (Edwards et al., 2019; McMahon, 2010). Os resultados sugerem que os programas podem ser facilmente implementados em diferentes campis e podem surtir efeito para enfatizar estratégias de intervenção eficazes relevantes para situações sociais encontradas por estudantes que costumam beber em binge (Willians et al., 2019). A abordagem de intervenção de Bystander tem ganhando popularidade como um meio de envolver as comunidades na prevenção de agressão sexual, especialmente nos campi universitários. Muitos programas de Bystander têm ensinando os membros da comunidade a intervirem e outros ajudam também a identificarem toda a gama de oportunidades quando podem intervir (McMahon & Banyard, 2012). Em geral, a maior aceitação dos mitos relacionados ao estupro tem sido relatada por homens (aqueles que participam de fraternidades, atletas, aqueles sem educação anterior sobre estupro, e aqueles que não conheciam alguém sexualmente agredido). Por outro lado, a maior disposição para intervir como um bystander tem sido reportada por mulheres, as quais tiveram educação prévia sobre estupro e aquelas que conheciam alguém sexualmente agredida (McMahon, 2010). Um grupo chamado de “Men can stop rape”, cuja sigla é MCSR, usa o seguinte esquema de seis etapas em seu treinamento do Bystander, para preparar melhor os homens para intervirem (recuperado de: https://www.mencanstoprape.org/Theories-that-Shape-Our- Work/bystander-intervention.html): PASSO UM: eventos de aviso. As normas sociais muitas vezes reforçam a normalidade do sexismo e da agressão sexual, de modo que elas escapam à atenção. Portanto, o primeiro passo é perceber quando alguém está “cruzando a linha”. PASSO DOIS: identifique eventos como problemas. Se entendermos o impacto potencial que uma agressão sexual pode ter em um sobrevivente e nos amigos, família e colegas de trabalho do sobrevivente, veremos alguém cruzando a linha como um problema que exige ação. PASSO TRÊS: sinta-se motivado e capaz de encontrar uma solução. Muitas vezes os homens se sentem presos em situações em que podem intervir. Fornecer-lhes quadros como prevenção primária, histórias dominantes/contrárias de masculinidade e intervenção direta pode motivá-los a se soltarem. PASSO QUATRO: adquira habilidades para ação. Esse passo fundamental sublinha a necessidade de ajudar os homens a desenvolverem estratégias que conduzam a uma ação efetiva. O MCSR trabalha com homens para desenvolver um kit de ferramentas de intervenção. PASSO CINCO: ato. Os primeiros quatro passos são muito importantes, mas só surtem efeito se for dada ênfase à ação. Os homens precisam lembrar e usar as estratégias no kit de ferramentas. PASSO SEIS: avalie e revise. Depois de intervir, os homens devem considerar o que funcionou bem, o que não funcionou e o que eles poderiam fazer de forma diferente na próxima vez que surgir uma oportunidade. Mutilação genital feminina (MGF) A mutilação genital feminina (MGF) é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) como “a remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outra lesão dos órgãos genitais femininos por razões não médicas”. Trata-se de uma tradição cultural enraizada em muitas comunidades de 28 países da África e em alguns países da Ásia e do Oriente Médio. Tem sido reconhecida mundialmente como um importante problema de saúde, uma violência interpessoal e uma violação dos direitos humanos, bem como da dignidade de meninas e de mulheres (World Health Organization [WHO], 2011; WHO, 2018). Com a crescente globalização e os recentes movimentos migratórios pode- se afirmar que na verdade a mutilação ou “corte” (cutting no idioma inglês) genital feminino (MTF/C) afeta mulheres em todo o mundo (Pastor-Bravo et al., 2018; Oberreiter, 2008), por essa razão julguei importante abordar essa questão aqui também, apesar de não termos notícias no Brasil e/ou outros países da América Latina sobre essa prática. No entanto, como será visto mais adiante, em outros países de língua portuguesa a prática ainda está bastante arraigada. Como tal, portanto, a sua eliminação passa a ser uma preocupação global. Não se tem notícia na América Latina e seus países sobre essa prática. Estima-se que atualmente existem mais de 200 milhões de mulheres em todo o mundo vivendo com a MGF. Esta pode afetar múltiplos aspectos da sua saúde física e mental (WHO, 2018). As consequências para a saúde incluem: infecções bacterianas e virais, infecções pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), Chlamydia trachomatis, Clostridium tetani, vírus herpes simples (HSV tipo 2), infecções do trato urinário, dor excessiva e hemorragias, complicações obstétricas, problemas psicológicos (ex. depressão, stress pós- traumático, ansiedade, vergonha) (Klein et al., 2018; Pastor-Bravo et al., 2018). Quase metade das meninas e mulheres com MGF vive em apenas dois países: o Egito e a Etiópia. Os países nos quais a MGF foi documentada são: Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Chade, Costa do Marfim, Djibuti, Egito, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Quênia, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Togo, Uganda, República Unida da Tanzânia e Iémen. A prevalência da MGF varia de 0.6% a 98% da população feminina (WHO, 2011). Em 2012, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução que convida a comunidade internacional a intensificar os esforços para acabar com a prática. Em setembro de 2015, a comunidade global concordou com um novo conjunto de metas de desenvolvimento. São os chamados “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS), os quais incluem uma meta específica no objetivo cinco de eliminar todas as práticas prejudiciais e nefastas, como a MGF/C, até o ano de 2030. Tanto as resoluções como as metas do ODS significam que existe uma vontade política da comunidade internacional em trabalhar conjuntamente para acelerar as ações em direção ao fim dessa prática em todos os continentes do mundo. No entanto, como os dados da MGF estão entre os chamados “cifras negras” (devido às dificuldades de dimensionamento real do fenômeno), ainda são necessários ampliação de dados para medir o progresso em direção a esse objetivo comum (UNICEF, 2016). Apesar de sua alta prevalência em diversos cenários e as consequências para a saúde física e mental das mulheres afetadas, muitos provedores de cuidados em saúde e outras instâncias sociais têm ainda conhecimento limitado sobre todas as esferas que envolvem a prática, sobretudo habilidades de prevenir e gerenciar complicações relacionadas a elas, assim como em lidar com o estigma envolvido (tanto por profissionais da saúde quanto por outros membros das próprias comunidades em que convivem quando imigrantes de outros países, como Portugal, por exemplo) por não se aproximarem diretamente dos contextos culturais e não considerarem o desenvolvimento de competências específicas dessas comunidades para lidar com a prática e suas consequências (Dias, 2006). A despeito de esforços de organizações governamentais e não governamentais para tentar acabarcom essa prática, a questão ainda parece longe de ser solucionada. Houve um declínio nas últimas três décadas em alguns países. No entanto o progresso atual é ainda insuficiente para manter o aumento do crescimento populacional. Se as tendências continuarem a crescer o número de meninas submetidas a essa prática deverá aumentar significativamente nos próximos 15 anos (UNICEF, 2016). Uma das várias questões levantadas por pesquisadores e por líderes comunitários são os aspectos que envolvem a manutenção dessa prática, os quais não são apenas questões religiosas ou ritualísticas, uma vez que vão além, pois parecem envolver uma ampla gama de rotas e contextos sociais, crenças, valores culturais, questões ligadas à formação da identidade de mulheres nessas culturas e aspectos econômicos. Esses aspectos fazem dessas importantes questões a serem trabalhadas dentro das comunidades e com as comunidades para que mudanças possam ser alcançadas num futuro (Abreu & Abreu, 2015; Oberreiter, 2008; Quintaz, 2013). O estudo conduzido por Mohammed e colegas (2018) entrevistou 618 homens e mulheres acima de 18 anos no Egito, e mostra que aproximadamente 56% acreditam que essa prática deve continuar. As mulheres foram mais favoráveis à continuação da MGF do que os homens (60.3% versus 47.9%). A crença de que a MGF é uma “boa prática”, assim como o baixo nível de conhecimento, o status da mulher com MGF naquela sociedade e aspectos religiosos estiveram significativamente associados à disposição das mulheres em sujeitar suas filhas à MGF no futuro. Os autores concluíram que a forte correlação entre a pressão social e as intenções de realizar a MGF significa que a prática da MGF continuará a ser adotada entre as gerações futuras, a menos que políticas sejam postas em prática para erradicar essa prática por meio do empoderamento das mulheres pela educação, pela transformação e geração de renda nessas comunidades (Mohammed et al., 2018). MGF em Guiné-Bissau: aspectos socioculturais Na Guiné-Bissau, a MGF é referida por meio do termo de “fanado”. Muitos dos 30 grupos étnicos fazem a prática do “fanado”, especialmente nas regiões de Gabu e Bafata (leste do país). Existem diferenças consideráveis entre as formas de mutilação realizadas por grupos étnicos, variando desde a excisão do clitóris até a excisão do clitóris mais os pequenos lábios e/ou grandes lábios, outros realizam um ritual de iniciação que envolve tatuagens, mas sem corte (Abreu & Abreu, 2015). A grande maioria das mulheres não reconhece a prática como uma mutilação de fato, então a palavra “mutilação” parece não fazer sentido para muitas delas, uma vez que tal prática está normatizada dentro das culturas. O procedimento é realizado pelas chamadas “fanatecas”. A maioria das “fanatecas” são mulheres já mais velhas ou idosas acreditadas pela comunidade, as quais também vêm de uma família em que gerações de mulheres têm sido praticantes tradicionais como elas. Dependendo da habilidade das “fanatecas”, o procedimento dura cerca de 20 minutos (Oberreiter, 2008). É realizado como uma cerimônia de iniciação tradicional para meninas. Muitas delas já aos 5, 7 ou 12 anos de idade, entre os meses de julho e setembro, como um rito de passagem para a “purificação” ou para se “tornarem mulheres de fato”. Em geral nesse dia as meninas comem bastante o que quiserem. Assim como as outras meninas e mulheres cantam músicas e dançam, e muitas ficam em filas com roupas distintas ou em outras etnias com a cabeça coberta ou ainda raspada. Muitas não sabem sequer o que irá acontecer. As meninas mais velhas cuidam e instruem as mais jovens. Há sempre muitos rituais de transição para o estágio adulto da vida. Mas entre os Balanta pode haver um segundo fanado aos 30 ou 40 anos de idade. Para as meninas, é vergonhoso chorar e todas cantam juntas. Em Oio e Cacheu o fanado pode durar semanas ou meses. As mulheres testemunham o fanado, mas é proibido falar sobre isso, pois segundo elas “não se deve falar sobre o que acontece lá”. Depois do fanado as meninas não podem sair sem roupa; elas “já são mulheres”. Durante a cerimônia, elas aprendem histórias, músicas e conselhos de suas tradições oriundas das mulheres mais velhas. Nas tradições dos Bijagós as meninas cantam, colocam farinha na pele e costumam fazer tatuagens. A prática é um rito de iniciação – a mutilação marca a identidade social da menina. Quando a menina faz o fanado ela se “torna mulher”, “toda a comunidade a vê como mulher”. Se ela for mais velha, ela já pode se casar. Ela se torna “mais responsável”. A prática é um fator de integração social – sua negação implica exclusão do grupo de amigos, meninas da escola, organizações religiosas e outros grupos sociais; a mulher seria, sob essas condições, socialmente impedida de se casar. As mulheres que não fazem o fanado têm problemas com outras pessoas e com os homens. Entre as crenças estão a busca “da pureza” mediante a remoção daquilo que representa “o masculino” nelas. As meninas que fazem o fanado “serão mais respeitadas”, porque “não trairão os maridos”; têm “menos chances de perder sua virgindade antes do casamento”. O aspecto da dor é também um fator que emerge da maturidade social. Ao adquirir o status social, a mulher mostra que adquiriu domínio sobre o próprio corpo, superando a dor resultante da prática. A prática é um ato de virtude e purificação – a mulher está preparada para defender mais facilmente sua virgindade até o casamento e, no contexto familiar, mantendo sua lealdade ao marido; a prática seria, na visão do homem, um fator que impede o adultério e se traduziria em uma demanda menor para mulheres em termos sexuais, pois a mulher não terá prazer com outro homem. Os homens e as mulheres acreditam que as meninas são mais protegidas dessa forma e que muitos homens dão importância a elas. Elas estão aptas a se casar e a servir seus maridos e a procriarem, pois honraram suas crenças. A prática não tem origem religiosa, mas foi inserida na religião como parte dela. Se por ventura alguma criança morre durante os rituais de iniciação, a ninguém é atribuída a culpa. Esse fato é visto como sendo o desejo do espírito guardião, podendo também ser atribuído ao fato da presença de pessoas externas ao lugar sagrado (Abreu & Abreu, 2015; Oberreiter, 2008). As meninas que não fazem o fanado são vistas como “promíscuas, impróprias para casar, prostitutas, vulgares” e não são aceitas pela comunidade. Se estiverem em uma comunidade muçulmana, a menina que não participou no ritual de iniciação não pode entrar na mesquita da vila e é vista como descrente. Às mulheres, mães das meninas, cabe decidir pela prática do fanado ou não. Assim como recai sobre elas a culpa e responsabilidade pelos atos da filha e pelo desprezo da comunidade caso ela não realize o fanado e não venha a se casar no futuro. Assim, existe uma forte pressão da comunidade para que as mulheres e os homens dessa comunidade levem suas filhas para fazerem o fanado, a fim de serem respeitadas dentro dela. Isso parece ocorrer mesmo em outros países onde existe uma comunidade oriunda da Guiné Bissau (Quintas, 2015; Abreu & Abreu, 2015; Oberreiter, 2008; Dias, 2006). Os cortes não são de todo executadas com o cuidado higiênico e obviamente a assistência médica adequada. As vítimas dessa tradição sofrem a dor silenciosa toda de uma infância e inocência que muitas sequer se lembram ou quando se lembram percebem a dor de mulheres que as seguraram pelas pernas (Quintas, 2015). No dia 6 de fevereiro de 2013, Bissau comemorou o “Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina”, condenando a prática e concordando com o seu abandono em prol da saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Mas infelizmente, ao que tudo indica, elas continuam a ocorrer dentro e fora do país! Do ponto de vista sociocultural, se as meninas jovens têm mais educação é porque ainda não estão casadas e, muitas delas, quanto mais acesso têm a informação e educação formal, mais percebem que os rituais e tradições a que estãosubmetidas em seu país ou em sua comunidade, mesmo residindo fora do seu país de origem, são condenáveis e proibidas internacionalmente. Assim, o casamento dentro dessas culturas acaba por implicar que a mulher tenha sido mutilada, deixe os estudos e que procrie (Quintas, 2015). Não são os aspectos religiosos que predominam como fatores explicativos para a manutenção dessa prática, mas sim as interações complexas entre questões sociais e culturais relacionadas à iniciação à feminilidade, ao status da mulher e à necessidade de ser aceita pelos homens. A MGF é sempre feita para beneficiar o marido, para a procriação, e não a favor da mulher, muito embora as crenças presentes e transmitidas às meninas estejam ligadas ao benefício delas. Entre os grupos cristãos e muçulmanos encontram-se pessoas que defendem a prática e outras que a condenam (Abreu & Abreu, 2015). O desejo e a pressão de se casar e a segurança econômica e social que pode vir com o casamento tendem a perpetuar a prática em alguns contextos (WHO, 2018). As razões alegadas para a manutenção da prática observadas nos estudos na Guine Bissau são semelhantes às relatadas pela OMS em outros países onde a prática também permanece: (1) Respeito pela tradição, (2) Rito de passagem, (3) Convenção social, (4) Crença de que a prática aumenta a fertilidade, (5) Para a aquisição do casamento, (6) Assegurar a virgindade, a castidade e a não infidelidade, (7) Limpeza, pureza e beleza, (8) Feminilidade (WHO, 2018). Existe uma necessidade de mais estudos sobre a temática a fim de aprofundar e melhor conhecer as diversas barreiras para a erradicação dessa prática nesse contexto, com possíveis caminhos construídos conjuntamente com as comunidades, além de explorar se existe ou não uma interface com o uso de substâncias. Entre os possíveis caminhos apontados estão a promoção de educação, igualdade de gênero e melhoria das condições socais e econômicas do país, a fim de alavancar mudanças que possam ser duradouras para gerações vindouras (Abreu & Abreu, 2015). Informações sobre ISTs e HIV/AIDS para serem abordadas com os usuários de substâncias Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) É importante que as informações sejam repassadas aos pacientes de forma assertiva e empática, sem usar de “terrorismo” ou do amedrontamento para a abordagem, pois sabidamente o medo por si só não muda comportamentos. Lembrar a eles que uma IST aumenta as chances de contrair o vírus HIV, fenômeno de maior vulnerabilidade a coinfeçcão. Infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) eram antigamente chamadas de “doenças venéreas”. Atualmente esse termo encontra-se em desuso, pois pode estar atrelado a mais preconceito e isso ser mais uma barreira a dificultar o acesso ao diagnóstico e consequentemente o tratamento. São doenças/infecções causadas por várias bactérias e vírus; mais de 20 infecções/doenças sexualmente transmissíveis afetam homens e mulheres, pessoas trans, pessoas que fazem alguma atividade sexual, entre outras. São aquelas infecções que se adquire ao ter contato sexual (vaginal, oral ou anal) com alguém que já tenha alguma IST. Entre as consequências estão: dor na relação sexual ou ao urinar, mal cheiro, corrimento, infertilidade, infecções no bebê, malformações congênitas (ao nascer), aborto (no caso de gestantes), câncer e até mesmo morte. Também não podemos nos esquecer dos efeitos psicológicos causados pelas ISTs, as quais geram vergonha, estigma, diminuição da autoestima, receios de novos relacionamentos e dificuldade de estabelecer intimidade por receios de adquirir novas ISTs. Sífilis É causada pela bactéria treponema pallidum. O primeiro sintoma é o aparecimento de uma lesão em forma de úlcera (7 a 15 dias). Desaparece naturalmente, esse é o chamado de cancro duro. Se não tratado pode evoluir para a sífilis secundária e até sífilis terciaria, que afeta o sistema nervoso central. O risco de transmissão no intercurso sexual das lesões de cancro duro e condiloma plano são de 60% (Gonçalves et al, 2013). Quadro clínico: Sífilis recente – menos de um ano de evolução, sendo dividida em: primária, secundária e latente recente; Sífilis tardia – com mais de um ano de evolução, sendo dividida em: latente tardia e terciária; Sífilis congênita – recente (casos diagnosticados até o segundo ano de vida) e tardia (casos diagnosticados após o segundo ano de vida). Gonorreia É uma das mais comum das ISTs. É causada pela bateria gonococo. O período de incubação geralmente é entre 2 a 5 dias e o período de transmissibilidade pode durar de meses a anos, se o paciente não for tratado. Clinicamente, a gonorreia apresenta-se de forma completamente diferente no homem e na mulher. Há uma proporção maior de casos em homens, sendo que em 70% dos casos femininos a gonorreia é assintomática (Gonçalves et al., 2013). Gonorreia no homem – ocorre mediante um processo inflamatório da uretra anterior, que causa prurido discreto junto ao meato urinário e fossa navicular; eritema localizado; corrimento inicialmente claro que, gradativamente, torna-se purulento; ardor e urgência miccional. Gonorreia na mulher – o quadro é oligossintomático (ou seja, com poucos sintomas), podendo causar: corrimento escasso, leitoso, muitas vezes não percebido pela paciente; aumento da frequência urinária; disúria; secreção vaginal mucoide ou francamente purulenta; colo uterino edemaciado, com ectopia acentuada; edema de grandes e pequenos lábios e, consequentemente, dispareunia. Os recém-nascidos de mães doentes ou portadoras podem apresentar conjuntivite gonocócica por contaminação no canal de parto (Gonçalves et al., 2013). Sintomas: de 2 a 8 dias. Tratamento: ATB (penicilina e penicilina). Recomendação: convocar a parceria sexual para exame. Suspender a atividade sexual durante o tratamento. Chlamydia trachomatis É causada pela bactéria gram-negativa anaeróbia chamada Chlamydia trachomatis. O período de incubação, no homem, varia de 14 a 21 dias, sendo que dois terços das parceiras de homens com uretrite não gonocócica hospedam a C. trachomatis na endocérvix. O quadro clínico é pouco expressivo, podendo variar de leucorreia, disúria ou prurido genital, a pacientes assintomáticas em 70 a 80% dos casos (Gonçalves et al., 2013). Uretrite não gonocócica: Sintomas: corrimento uretral importante de 8 a 10 dias após o contágio Bactérias: clamídia trachomatis, ureaplasma, mycoplasma homini Sintomas: corrimento uretral, necessidade frequente de urinar, dor e ardência ao urinar Tratamento: ATB (ampicilina, penicilina) Recomendação: convocar a parceria sexual para exame. Suspender a atividade sexual durante o tratamento. Orientar uso de preservativo. Vulvovaginites Sintomas: corrimento vaginais malcheiroso, com desconforto e prurido interno e na vulva. Causada por fungos, principalmente o Trichomonas vaginalis ou cândida ambicans. Papilomavírus Humano (HPV) – Condiloma Acumulado O Papilomavírus Humano (HPV) é um DNA-vírus pertencente à família Papilomaviridae, que possui mais de 200 subtipos. Destes cerca de 45 infectam a área anogenital, sendo divididos em dois grandes grupos, os de baixo e os de alto risco oncogênico. Os HPV de baixo risco mais frequentes são 6, 11, 40, 42, 43, 44, 54, 61, 70,72 e 81, e os de alto risco, 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56,58, 66, 73 e 82. Os HPV 6, 11, 16 e 18 são os responsáveis pela maioria das lesões HPV induzidas. O período de incubação varia de 1 a 20 meses, em média 3 meses. As lesões podem ser múltiplas ou únicas, localizadas ou difusas e de tamanho variável. Podem estar localizadas no pênis, sulco bálano- prepucial, região perianal, na vulva, períneo, vagina e colo do útero (Gonçalves et al., 2013). Causado pelo vírus HPV. Período de incubação: do contagio ao sintoma pode variar de 3 semanas a 6 meses. Tratamento: com cauterização com ácido. Prevenção: usar preservativo (camisinha) e fazer Papanicolau. O tratamento visa à remoção das lesões. As recidivas (retorno da doença) podem ocorrer e são frequentes, mesmo com o tratamento