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Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
D559d
2019
Diehl, Alessandra
Dependência química e sexualidade: um guia para profissionais
que atuam em serviços de tratamento / Alessandra Diehl. - 1.
ed. – Curitiba: Appris, 2019.
 267 p. ; 27 cm (Saúde e humanidade)
Inclui bibliografias
ISBN 978-85-473-3544-1
1. Educação sexual. 2. Dependência quimica. I. Título. II. Série.
CDD – 362.293
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT.
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570
http://www.editoraappris.com.br/
http://www.editoraappris.com.br/
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a
Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus
organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs
10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
 
FICHA TÉCNICA
EDITORIAL
Augusto V. de A. Coelho
Marli Caetano
Sara C. de Andrade Coelho
COMITÊ EDITORIAL
Andréa Barbosa Gouveia - UFPR
Edmeire C. Pereira - UFPR
Iraneide da Silva - UFC
Jacques de Lima Ferreira - UP
Marilda Aparecida Behrens - PUCPR
EDITORAÇÃO Lucas Andrade
ASSESSORIA EDITORIAL Alana Cabral
DIAGRAMAÇÃO Suzana vd Tempel
 CAPA Lucielli Trevizan
REVISÃO Bruna Fernanda Martins
GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle 
COMUNICAÇÃO
Carlos Eduardo Pereira
Débora Nazário
Karla Pipolo Olegário
LIVRARIAS E EVENTOS Milene Salles | Estevão Misael
CONVERSÃO PARA E-PUB Carlos Eduardo H. Pereira
 
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E
HUMANIDADES
 
DIREÇÃO CIENTIFICA Dra. Doutora Márcia Gonçalves - UNITAU
CONSULTORES Lilian Dias Bernardo – IFRJ
Taiuani Marquine Raymundo - UFPR
Janaína Doria Líbano Soares - IFRJ
Rubens Reimao – USP
Edson Marques – Unioeste
Maria Cristina Marcucci Ribeiro – UNIAN-SP
Maria Helena Zamora – PUC-Rio
Aidecivaldo Fernandes de Jesus – FEPI
Zaida Aurora Geraldes – FAMERP
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, eu gostaria de agradecer à Editora Appris, pela oportunidade
de escrever uma obra sobre um tema que para mim é muito valioso, rico e
interessante, bem como pela abertura a inovações criativas de temas
complexos e tabus, mas ao mesmo tempo extremamente necessários.
Agradecer também a toda sua equipe de editoração, pela dedicação e
profissionalismo na condução desta obra.
Igualmente agradeço aos nossos colaboradores, porque sem eles/elas/elxs nada
disto poderia ser possível. Pessoas amigas que dedicaram o seu precioso tempo
e aceitaram prontamente minha solicitação e meu convite para escrever
capítulos com muito preciosismo e empenho.
Agradeço a todos os meus mestres e às minhas equipes de trabalho por onde
estive, a contar pelo Departamento de Saúde Mental (DSM) da Universidade
Federal de Pelotas (UFPEL); Hospital Espírita de Pelotas (HEP); à Clínica
Olivé Leite (COL), em Pelotas; à Unidade Comunitária em Álcool e outras
Drogas, do Jardim Ângela (UCAD); à enfermaria de psiquiatria do Hospital M’
Boi Mirim; à enfermaria de dependência química de São Bernardo do Campo;
à enfermaria Ônix do Hospital João Evangelista; ao Mirante e ao Espaço
Girassol do Instituto de Psiquiatria Américo Bairral (IPB); ao Centro de
Estudos Psiquiátricos Américo Bairral (CEBAP), uma das federadas paulistas
da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), da qual tive a honra de ser
presidente em duas gestões; às unidades básicas de saúde (UBS) Jardim
Maringá, Patriarca e Jardim Itapema; aos colegas e professores da Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto (UP),
em Portugal; à Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas
(ABEAD) e minha gestão do “Nós da ABEAD”, da qual sou atual vice-
presidente (2017-2019); ao Geneve Foundation for Medical Education and
Research (GFMER), em Genebra, na Suíça; ao Centro Universitário Salesiano
(UNISAL); ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP); ao Centro Brasileiro de Pós-Graduações (CENBRAP); à
Vida Mental; ao CAPS-AD Sé; ao Instituto Paulista de Sexualidade (Inpasex); à
Unidade de Aperfeiçoamento Psiquiátrico e Psicológico (UPPSI), pelo apoio,
pelo incentivo, pela parceria e por eu ter tido a grande oportunidade de viver
uma história muito bonita junto a todos os colegas que estiveram dedicando
seus afetos para cuidar dos dependentes químicos e seus familiares, da saúde
mental e de questões sexuais desses serviços. Essa não foi uma história de
paixão, e sim de amor, pois histórias de paixão passam, são fugazes e efêmeras,
enquanto histórias de amor perduram. Essa nossa história, portanto, segue
viva.
Ao meu colega de residência, o psiquiatra surfista, Dr. Eduardo Mylius
Pimentel, com o qual tenho uma longa e profícua amizade, e além de ser
generoso, líder, “cool”, “irado” e muito querido é também um dos meus amigos
e colegas mais “gatos”!
Gratidão também à Dr.ª Ângela Kretschmann, pelo nosso encontro em 2018.
Com sua forma mansa, delicada, mas extremamente criteriosa e enérgica, foi
capaz de ser o apoio e um alicerce amoroso muito importante para o meu
crescimento pessoal, profissional e espiritual nesta vida.
Em especial, à Dr.ª Sandra Cristina Pillon, pessoa humilde, inteligente,
dedicada, acolhedora e humana. Sou grata pela parceria que entrou na minha
vida para produzirmos muitos e muitos trabalhos juntas.
Às vezes, perder o equilíbrio por amor faz parte de viver a vida em equilíbrio.
(Personagem Ketut, em filme Comer, Rezar e Amar. Autora Elizabeth Gilbert, EUA,
2010)
https://www.google.com/search?rlz=1C1FERN_pt-BRBR794BR794&q=comer,+rezar,+amar+elizabeth+gilbert&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgE-LSz9U3MM9OyU7LUuIEsdPzLHIttISzk6300zJzcsGEVXFJflHlIlaV5Pzc1CIdhaLUqkQglZibWKSQmpNZlZiUWpKhkJ6Zk5RaVAIAsdAwY1UAAAA&sa=X&ved=2ahUKEwicl_Gr8J_gAhWTJrkGHckpAFEQmxMoATAjegQIBxAP
APRESENTAÇÃO
Nestes vinte e poucos anos que venho trabalhando com pessoas com
problemas pelo uso de substâncias e seus familiares, sempre notei uma lacuna
imensa na abordagem de questões relativas à dimensão sexual desses pacientes
nos contextos de tratamento em que já trabalhei. À medida que comecei a
estudar mais o universo da dependência química, mais eu sentia a necessidade
de aprofundar-me no universo da sexualidade humana, pois já percebia que
existia uma associação estreita entre esses dois mundos.
No entanto, quando quis me apropriar desses conhecimentos, tive
bastantes dificuldades de encontrar material compilado ou até mesmo de obter
experiências de outras pessoas que trabalhavam com a dependência química
em estruturação de programas e ações voltadas às questões relativas à
dimensão sexual. Também percebi barreiras em fazer com que essas duas áreas
do conhecimento começassem a dialogar de forma assertiva e distante de
ideologias, “achismos” ou dogmas pré-estabelecidos pelas esferas de cuidados
vigentes.
E por acreditar que a sexualidade não pode mais seguir sendo invisível,
periférica ou delegada a um segundo plano nos inúmeros locais disponíveis
para o tratamento de pessoas com transtornos decorrentes do uso de
substâncias é que vim desenvolvendo trabalhos e estudos nessa interface do
conhecimento. É urgente a necessidade de aumentar a compreensão dos
profissionais da saúde, em especial daqueles que lidam diretamente com
comportamentos adictivos, sobre a sexualidade, a saúde sexual, a diversidade
sexual, os comportamentos sexuais de risco e a disfunção sexual entre usuários
de álcool e outras drogas. Além disso, é fundamental compreender a
necessidade de se avaliar o histórico de trauma sexual, abuso sexual, aborto,
estupro e a necessidade de incorporar a avaliação de fatores de risco e do
estímulo a práticas sexuais mais seguras na rotina dos tratamentos atualmente
disponíveis para a dependência química.
Também é igualmenteurgente que a abordagem seja respeitosa, inclusiva,
ética, numa atmosfera de não julgamento e com mais acolhimento para que as
pessoas possam sentir-se abertas a falar sobre sua sexualidade, seus vínculos,
seus problemas sexuais, seus afetos e desafetos.
Embora a mudança de comportamento individual seja fundamental para
melhorar a saúde sexual, também são necessários esforços para lidar com os
determinantes mais amplos de comportamento sexual, particularmente
aqueles que se relacionam com o contexto social. Intervenções
comportamentais abrangentes são necessárias e devem considerar o contexto
social na estruturação de seus programas em nível individual, assim como
tentar modificar as normas sociais que apoiam a manutenção de mudança de
comportamento, e trabalhar as competências de forma assertiva e os fatores
que contribuem para determinado comportamento sexual de risco, por
exemplo. Incluir a dimensão sexual nos tratamentos de usuários de substâncias
é compreender que estamos respeitando tudo aquilo que nos torna mais
humanos e nos realiza enquanto pessoas no sentido mais profundo dessa
compreensão. Como bem escreveu o Dr. Ronaldo Zacharias:
[...] A ética do cuidado se caracteriza por um estilo de presença que põe no
centro a pessoa mais frágil e vulnerável. A prevenção e o tratamento da
dependência implicam o combate a toda forma de desigualdade,
discriminação, indiferença, exclusão e injustiça (Zacharias, 2019, p. 45).
Nesse contexto, os leitores encontrarão algumas das interfaces da
associação entre dependência química e sexualidade humana. Convidei mais
alguns colegas para ampliar e compor aquilo que já havia escrito, a fim de
enrriquecer ainda mais esta obra, dividindo-a em três eixos principais, a saber:
“Sexualidade, comportamentos e práticas sexuais associadas ao uso de
substâncias”, “Sexualidade e dependência química em populações específicas” e,
finalmente, “Intervenções e recuperação”.
Assim espero, sobretudo, que sobre muito espaço para ser preenchido;
desejo que tenhamos dúvidas e algumas poucas certezas, porque o importante
é estarmos sempre em movimento para que possamos ampliar o olhar para o
tema e estabelecer nos nossos cotidianos de trabalho práticas que consigam
abarcar a melhoria desse cuidado.
Alessandra Diehl
PREFÁCIO I
A sexualidade é uma faceta inerente ao ser humano. Considerada uma
dimensão central da vida do indivíduo, deve ser entendida em sua
multidimensionalidade frente à complexidade e à importância de sua presença
em todas as dimensões do desenvolvimento humano. Trata-se, portanto, de
um tema de interesse multidisciplinar, cuja abordagem é influenciada pelas
múltiplas interações existentes entre fatores biológicos, psicológicos, sociais,
históricos, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, religiosos e
espirituais.
Tratar da sexualidade não é uma tarefa fácil, pois a abrangência dessa
esfera da vida humana e toda a estratificação de sentidos que historicamente se
sedimentaram em torno dela terminaram produzindo certo desconhecimento
do ser humano com relação à sua própria sexualidade. Frequentemente os
aspectos relacionados às vivências sexuais se veem submersos em um espectro
de valores morais, demarcados e demarcadores de condutas, usos e hábitos
sociais que remetem a mais de um sujeito. Com o recrudescimento atual de
crenças obscurantistas dentro de um preocupante cenário neoconservador, o
qual evidencia retrocessos em relação às políticas públicas arduamente
conquistadas nas últimas décadas, é urgente e necessário fomentar uma
reflexão sobre a sexualidade humana pautada em evidências científicas e
focada na atuação dos profissionais de saúde.
Por essas razões, as questões relacionadas à sexualidade têm sido alvo de
acalorados debates e inúmeros questionamentos nos dias atuais. Algo
semelhante ocorre com a abordagem de pessoas que fazem uso de álcool e
outras drogas e, eventualmente, sofrem com a dependência química. Uma das
crenças mais comumente observadas em profissionais de saúde é a de que
dependentes químicos não são merecedores de cuidados. O estigma e a
discriminação estão entre os principais obstáculos para a prevenção, o
tratamento e o cuidado em relação à pessoa com transtornos relacionados ao
uso de substâncias. A dupla discriminação que existe em torno da relação entre
sexualidade e uso de substâncias (outro assunto polêmico) tem sido tema
propulsor de inúmeras controvérsias que atualmente agitam a sociedade,
requerendo o posicionamento urgente da Academia e do conhecimento
científico.
Assim, esta obra traz um apelo aos profissionais para reexaminarem suas
percepções, atitudes e comportamentos, com vistas a auxiliar na construção de
uma visão de mundo mais inclusiva e pluralista. Também contribui para
estimular a estruturação da identidade dos usuários de substâncias, tornando-
os mais fortalecidos. Este livro estimula a reflexão sobre como prevenir o
aparecimento e desenvolvimento de problemas relativos à sexualidade
humana e, sobretudo, a compreender os papéis desempenhados por vários
atores nessa interface (sexualidade e drogas) que merecem acesso a recursos
diversos em suas comunidades.
Partindo das evidências científicas disponíveis, esta obra discute
amplamente alguns aspectos que orbitam em torno dessa temática instigante,
contribuindo para desmistificar a sexualidade e combater preconceitos e
estigmas relacionados a esse campo, com foco na saúde e no bem-estar
coletivo.
O arcabouço que sustenta este livro está dividido em três partes. Na
primeira, são descritas as bases teóricas, seguidas por dados históricos e
resultados de estudos epidemiológicos relacionados aos temas investigados.
Essas contribuições delineiam e fundamentam os enlaces e entrelaçamentos
entre a sexualidade, comportamentos e práticas sexuais associadas ao uso de
substâncias que influenciam comportamentos sexuais e de risco, disfunção
sexual, dependência de sexo e envolvimento em situações de violência,
infração e crime.
A segunda parte está dedicada a temas que associam sexualidade e
dependência química em populações específicas, considerando suas
peculiaridades, como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis,
Intersexuais, Queer, Assexuais, plus (LGBTTQIA+), adolescentes, mulheres,
idosos, homens, profissionais do sexo e presidiários ou pessoas em situação de
encarceramento. A terceira parte segue detalhando uma combinação de ações
e propostas de intervenções empregadas no processo de recuperação e
reabilitação psicossocial. Assim, os capítulos abordam elementos fundamentais
para realizar uma abordagem humanizada e estruturar uma intervenção em
saúde sexual para dependentes químicos em tratamento, com ênfase na prática
clínica, mostrando as contribuições das teorias complementares, da
espiritualidade e da abordagem motivacional, salientando o valor da
perspectiva do modelo de redução de danos no processo de recuperação do
usuário de substâncais. Assim, o presente livro envolve uma investigação com
interface entre uso de drogas e comportamento sexual e de risco em adultos de
ambos os sexos e vários gêneros, oferecendo subsídios para a sistematização
do cuidado a essa população altamente vulnerável. A contribuição oferecida é
de extrema atualidade, tendo em vista a premente necessidade de ampliar os
investimentos em capacitação para profissionais de saúde da rede de serviços,
sensibilizando-os para identificar o entrelaçamento entre as questões da
sexualidade e a prevenção e o tratamento do uso de substâncias. Também pelo
seu ineditismo e criatividade tanto na área da dependência química quanto da
sexualidade, uma vez que se desconhece outra obra que aborde tal temática em
tamanha profundidade. Dessa forma, espera-se que os leitores possam
aproveitar o material para aperfeiçoar conhecimentos, expandir suas práticas,
mudar atitudes e colocar em prática em seus serviços de atenção os
aprendizados aqui adquiridos. Boa leitura!
Prof.ª Dr.ª Sandra Cristina Pillon
Enfermeira. Especialista em Dependência Química pela Universidade Federalde São Paulo
(UNIFESP). Professora titular. Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências
Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro
Colaborador para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem da Organização Mundial
de Saúde (OMS)
PREFÁCIO II
Tive (Neliana Figlie) o privilégio de coorientar Alessandra Diehl em sua
tese de doutorado “Disfunção sexual, aborto, diversidade sexual,
comportamento sexual de risco e crime em uma amostra de usuários de drogas
não injetáveis”, na qual a inquieta Dr.ª Alessandra fez um aprofundado estudo
sobre dependência química e sexualidade humana de modo a preencher uma
lacuna existente no cenário nacional no que tange a referida temática e suas
implicações no tratamento da saúde mental.
De um lado, um transtorno psiquiátrico e, do outro, uma condição
humana, ambos os conceitos carregados de significados, recheados de ideias
pré-concebidas, rótulos, que dificultam a visão tanto do Transtorno por Uso
de Substâncias (TUS) quanto da sexualidade, de forma objetiva e realista, por
parte tanto da população geral quanto dos profissionais da área da saúde e
afins. O profissional como uma peça-chave no desfecho clínico de serviços de
saúde tem, no presente guia, uma obra com diretrizes importantes para que
todos aqueles envolvidos no tratamento do TUS possam responder de forma
efetiva às necessidades dessas pessoas, com ética, aceitação, respeito e respaldo
científico, de modo a motivá-los e engajá-los nos tratamentos oferecidos, dada
a alta prevalência de consequências relacionadas a comportamentos sexuais e
aspectos da sexualidade associada ao consumo de substâncias.
O fornecimento de informações baseadas em evidências tem, nesta obra, o
objetivo de ampliar a flexibilidade cognitiva dos profissionais que acolhem
pacientes que com TUS têm desdobramentos na área da sexualidade, muitas
vezes comprometendo a saúde mental e física de um modo geral.
Afinal, faz-se necessário preparo e capacitação, além de uma visão realista
e humanista dos fenômenos, destituída de julgamentos e preconceitos, para
abordar dois comportamentos que geram um imenso prazer, mas que ao
mesmo tempo podem colocar em risco o bem-estar e a integridade física e
mental. Daí a necessidade de estarmos preparados e capacitados,
reconhecendo fatores de risco e de proteção associados de modo a oferecer
uma resposta efetiva para a população acometida.
Neliana Buzi Figlie
Psicóloga. Especialista em Dependência Química. Mestre em Saúde Mental. Doutora em
Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Associada ao Motivational Interviewing Network of Trainers (MINT). Formação em
Entrevista Motivacional pela University of New México – Center on Alcoholism, Substance
Abuse and Addictions (CASAA). Coordenadora e docente na Unidade de Aperfeiçoamento
Profissional em Psicologia e Psiquiatria (UPPSI)
Neide Zanelatto
Psicóloga. Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Mestre em Psicologia da
Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Coordenadora e docente da
Unidade de Aperfeiçoamento Profissional em Psicologia e Psiquiatria (UPPSI)
SUMÁRIO
PARTE 1 – Sexualidade, comportamentos e práticas
sexuais associadas ao uso de substâncias
Saúde sexual, uso de drogas e saúde pública 
Alessandra Diehl
Estigma e discriminação. Ética e direitos humanos 
Alessandra Diehl
Fatos e contextos que fundamentam a interface do uso de substâncias com a
sexualidade 
Alessandra Diehl
Drogas de uso e sua relação com a sexualidade 
Alessandra Diehl
Comportamentos sexuais de risco entre usuários de drogas 
Alessandra Diehl
Disfunção sexual em dependentes de substâncias 
Alessandra Diehl
Dependência de sexo, parafilias e dependência de drogas 
Alessandra Diehl
Crime, violência e comportamentos sexuais em usuários de substâncias 
Alessandra Diehl
PARTE 2 – Sexualidade e dependência química em
populações especí�cas
LGBTTQIA+ 
Alessandra Diehl
Adolescentes 
Ana Carolina Schmidt de Oliveira, Hewdy Lobo Ribeiro
Mulheres 
Alessandra Diehl
Envelhecimento, sexualidade e uso de substâncias 
Manoel Antônio dos Santos, Carolina de Souza, Wanderlei Abadio de Oliveira, Eduardo
Name Risk, Carolina Leonidas, Adriana Inocenti Miasso, Kelly Graziani Giacchero Vedana,
Jacqueline de Souza, Sandra Cristina Pillon, Erika Arantes de Oliveira-Cardoso
Homens 
Alessandra Diehl, Sandra Cristina Pillon, Manoel Antonio dos Santos
Profissionais do sexo 
Alessandra Diehl ,Rogério Bosso
Presidiários ou pessoas em situação de encarceramento 
Alessandra Diehl
PARTE 3 – Intervenções e recuperação
Saúde sexual e reprodutiva de usuários de substâncias 
Alessandra Diehl
Como eu abordo a sexualidade de usuários de substâncias na perspectiva da
terapia 
cognitiva sexual? 
Aline Sardinha
Sexualidade e recuperação 
Luiz Guilherme Pinto
Sexualidade e espiritualidade 
Leonardo Afonso dos Santos
Relacionamentos abusivos e a dinâmica da dependência química 
Raquel Constantino Nogueira, Raphael Mestres, Sabrina Presman
Redução de danos na perspectiva da saúde sexual e do uso de substâncias 
Maria Carolina Pedalino Pinheiro, Ísis Marafanti, Alessandra Diehl
Estruturação de uma intervenção em saúde sexual para dependentes químicos
em tratamento 
Alessandra Diehl
Referências 
Sobre os Colaboradores 
Parte 1
Sexualidade, 
comportamentos
e praticas sexuais
associadas ao uso
de substancias
CAPÍTULO 1
SAÚDE SEXUAL, USO DE DROGAS E
SAÚDE PÚBLICA
Alessandra Diehl
Saúde sexual é um direito fundamental e extremamente importante para os
indivíduos, casais e famílias, e ao mesmo tempo para o desenvolvimento social
e econômico de comunidades e de países (WHO, 2010; Temmerman et al.,
2014). Em 2006, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ampliou o conceito
de saúde apresentado em 1948, ao declarar que a saúde sexual não é apenas “o
completo bem-estar emocional, físico e mental dos indivíduos e ausência de
doenças ou enfermidades”, mas também engloba o entendimento de elementos
como identidade sexual e de gênero, expressão sexual, relacionamento e prazer
(WHO, 2006, 2010). A OMS também incluiu condições ou consequências
negativas, tais como: infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), vírus da
imunodeficiência humana (HIV), infecções do trato reprodutivo, infertilidade,
gestação não planejada, aborto, disfunções sexuais, violência sexual e práticas
nocivas ou ditas nefastas, tais como a mutilação genital feminina (MGF),
praticada em alguns países da África e Oriente Médio por razões não médicas
(Banks et al., 2006; Victora et al., 2011; Temmerman et al., 2014; Pistani,
Ceccato, 2014).
A saúde sexual deve abranger os direitos de todas as pessoas a terem o
conhecimento e as oportunidades para alcançar uma vida sexual segura e
prazerosa. Entretanto as habilidades de homens e mulheres de atingirem a
saúde sexual e o bem-estar dependem do seu acesso à compreensão completa e
adequada de informações sobre sexualidade e do conhecimento sobre os riscos
que podem enfrentar suas vulnerabilidades e as consequências adversas da
atividade sexual (WHO, 2010). Além disso, as pessoas devem ter acesso tanto a
cuidados em saúde sexual de boa qualidade e a um ambiente que promova a
saúde sexual de forma holística e afirmativa como também a serviços de saúde
sexual que incluam programas de contracepção, atenção a apectos da saúde
mental relacionados a condições sexuais, tratamento de ISTs e câncer cervical,
aconselhamento quanto à violência contra mulheres e meninas e acolhimento
das necessidades de saúde sexual e reprodutiva de adolescentes. O acesso
universal à saúde sexual e reprodutiva é essencial não só para alcançar o
desenvolvimento sustentável, mas também para garantir que esse paradigma
atenda às necessidades e aspirações das pessoas ao redor do mundo e as levem à
realização de sua saúde e de seus direitos humanos fundamentais (WHO,2010;
Temmerman et al., 2014).
Entre os principais elementos conceituais de saúde sexual estão aqueles que
valorizama segurança e a liberdade de opinião e expressão, sem discriminação,
coerção, tortura, crueldade e violência, respeitando os direitos humanos e o
direito à privacidade. A saúde sexual é relevante ao longo da vida, não somente
para aqueles em idade reprodutiva, mas também para jovens e idosos. Além
disso, outro elemento importante é o fato de a saúde sexual poder ser
expressada de diversas formas, sendo criticamente influenciada por normas de
gênero, papéis de gênero, expectativas e dinâmicas de poder, além de que ela
deve ser compreendida dentro de contextos sociais, culturais, econômicos e
políticos específicos (WHO, 2010).
Saúde sexual não pode ser entendida e definida sem uma ampla
consideração do que vem a ser de fato a sexualidade, a qual assinala importantes
comportamentos e desfechos relacionados à saúde sexual:
[...] um aspecto central do ser humano através da vida que engloba sexo,
gênero, identidade e papéis, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e
reprodução. Sexualidade é experimentada e expressa em pensamentos,
fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis
e relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas estas
dimensões, nem todas elas são sempre experienciadas e expressadas.
Sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos,
sociais, econômicos, políticos, históricos, religiosos e espirituais (WHO,
2006, p. 4).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, as principais preocupações com
a saúde sexual são:
1. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à integridade corporal e à segurança
sexual:
Necessidade de comportamentos promotores de saúde para a identificação
precoce de problemas sexuais (por exemplo, check-ups regulares e exames
de saúde).
Necessidade de abolir todas as formas de coerção sexual e violência sexual
(incluindo estupro, abuso sexual e assédio).
Necessidade de extinção de mutilações corporais (por exemplo, mutilação
genital feminina).
2. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao erotismo
Necessidade de conhecimento sobre o corpo, relacionada à resposta sexual e
ao prazer.
Necessidade de reconhecimento do valor do prazer sexual desfrutado ao
longo da vida de maneiras seguras e responsáveis dentro de uma estrutura
de valores que respeite os direitos dos outros.
Necessidade de promoção de relações sexuais praticadas de maneira segura e
responsável.
Necessidade de promover a prática e o prazer de relacionamentos
consensuais, não exploradores, honestos e mutuamente agradáveis.
3. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao gênero
Necessidade de igualdade de gênero.
Necessidade de combate a todas as formas de discriminação baseadas no
gênero.
Necessidade de respeito e aceitação das diferenças de gênero.
4. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à orientação sexual
Necessidade de livre orientação sexual sem discriminação.
Necessidade de liberdade para expressar orientação sexual de maneira segura
e responsável dentro de uma estrutura de valores respeitosa dos direitos dos
outros.
5. Preocupações com a saúde sexual relacionadas ao apego emocional
Necessidade de interropção de relações exploratórias, coercivas, violentas ou
manipuladoras.
Necessidade de informações sobre as escolhas/possibilidades de suas
configurações familiares.
Necessidade de desenvolver habilidades tais como: tomada de decisão,
comunicação, assertividade e negociação, que melhorem os relacionamentos
pessoais.
Necessidade de expressão respeitosa e responsável de amor e
separação/divórcio.
6. Preocupações com a saúde sexual relacionadas à reprodução
Necessidade de fazer escolhas informadas e responsáveis sobre a
reprodução.
Necessidade de tomar decisões e práticas responsáveis em relação ao
comportamento reprodutivo, independentemente de idade, sexo, gênero e
estado civil.
Acesso aos cuidados de saúde reprodutiva.
Acesso à maternidade segura.
Prevenção e tratamento da infertilidade.
Entende-se por comportamento sexual uma gama de possibilidades de
expressão da sexualidade e de práticas sexuais. Trata-se de um conjunto
complexo de atitudes e posicionamentos que vão muito além da atividade
sexual, a qual, em geral, não se limita ao intercurso sexual (WHO, 2006).
Saúde sexual e políticas públicas devem caminhar lado a lado, uma vez que
muitas das questões envolvidas com a sexualidade podem ter profundas
implicações para a saúde pública. Convencionalmente, a saúde pública tem
focado nos efeitos adversos do comportamento sexual (Wellings et al., 2006).
Uma delas, a questão do HIV/AIDS, por exemplo, teve um grande impacto na
sociedade, uma vez que mudou conceitos, pesquisas e políticas em matéria de
saúde e sexualidade, trazendo também grande ônus de morbidade para as
sociedades ao redor do mundo (Wellings et al., 2006; Global Burden of
Desease, 2015).
Quando o primeiro caso sintomático de AIDS (síndrome da
imunodeficiência adquirida) apareceu, no início dos anos 80, ter o vírus HIV
foi considerado como uma “sentença de morte”. Apesar de ainda ser uma
questão de saúde muito grave em nível mundial, mais de 30 anos depois do seu
surgimento esse não é mais o caso em muitos países onde há políticas de saúde
e acesso ao tratamento. Em todo o mundo, 61% das pessoas soropositivas para
o HIV de países de baixa e média renda recebem terapia antirretroviral
(UNAIDS, 2014).
Segundo os dados da UNIAIDS, em 2017, cerca de 58% de todas as novas
infecções pelo HIV entre adultos com mais de 15 anos de idade ocorreram em
mulheres. A cada semana, 6.600 jovens mulheres de 15 a 24 anos adquiriram
HIV no ano passado. O aumento da vulnerabilidade ao HIV tem sido associado
à violência. Mais de uma em cada três mulheres em todo o mundo sofreram
violência física ou sexual, muitas vezes nas mãos de seus parceiros íntimos.
O panorama mais atual fornecido pela mesma organização revela que
atualmente temos 36,9 milhões [31,1 milhões – 43,9 milhões] de pessoas em
todo o mundo vivendo com HIV; 21,7 milhões [19,1 milhões – 22,6 milhões]
de pessoas têm acesso ao tratamento;1,8 milhão [1,4 milhão – 2,4 milhões] de
novas infecções por HIV e 940.000 [670.000–1,3 milhão] de pessoas morreram
por causas relacionadas à AIDS em 2017 no mundo.
As autoridades alertam que apesar das taxas de mortalidade devido ao
HIV/AIDS terem caído em média 50% em países como o Brasil, por exemplo, e
a sobrevida ter aumentado cinco vezes nacionalmente, ainda há muito para ser
trabalhado. Muitos fatores contribuíram para a obtenção desses resultados,
entre os quais o movimento da reforma sanitária, o contexto sociocultural de
ativismo e de estratégias adotadas para a mobilização social, a solidariedade e o
processo de democratização do país (Silva et al., 2014; Granjeiro et al., 2012).
A epidemia de HIV/AIDS é um fenômeno global, dinâmico e instável,
constituindo um mosaico de sub-epidemias regionais (Brito et al., 2001). Como
consequência das profundas desigualdades que existem na sociedade brasileira,
a propagação da infecção pelo HIV revelou uma epidemia de múltiplas
dimensões, que vem sofrendo transformações epidemiológicas significativas.
Inicialmente restrita aos grandes centros urbanos (São Paulo e Rio de Janeiro) e
com predomínio do sexo masculino, a epidemia de HIV/AIDS está, atualmente,
caracterizada pela heterossexualização, feminização, interiorização e
pauperização (Silva et al., 2014).
A evolução do perfil da AIDS no Brasil dá-se, acima de tudo, devido à
difusão geográfica da doença a partir dos grandes centros urbanos em direção
aos médios e pequenos municípios no interior do país, devido ao aumento da
transmissão heterossexual e ao persistente crescimento dos casos entre
dependentes de substâncias (Malta et al., 2010; Silva et al., 2014; UNAIDS,
2014).
Segundo os dados do site do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre
HIV/AIDS (UNIADS, 2019), nota-se que:
[...] A tuberculose continua a ser a principal causa de morte entre pessoas
vivendo com HIV A tuberculose é responsável por cerca de uma a cada três
mortespor causas relacionadas à AIDS. Em 2016, 10,4 milhões de pessoas
desenvolveram tuberculose (TB), incluindo 1,2 milhão de pessoas vivendo
com HIV. Pessoas vivendo com HIV sem sintomas de TB precisam de terapia
preventiva contra TB, que contribui para diminuir o risco de desenvolver TB
e reduz as taxas de mortalidade por TB/HIV em cerca de 40%. Estima-se que
49% das pessoas que vivem com HIV e tuberculose desconhecem sua
coinfecção e, portanto, não estão recebendo cuidados (UNIADS, 2019, s/p).
A associação do consumo de crack em pacientes portadores do vírus HIV e
com TB representam um desafio triplo e requer medidas de saúde públicas
triplicadas. Na verdade, entre os dependentes de substâncias, a questão é
bastante relevante do ponto de vista de saúde pública, uma vez que o contexto
epidemiológico e sociocultural do país revela níveis crescentes de consumo de
muitas substâncias, associados a elevadas taxas de preconceito com relação a
usuários de drogas e estigmas somados quando se analisam outras populações
igualmente vulneráveis, como as profissionais do sexo femininas, moradores de
rua e travestis, por exemplo (Venturi, 2009; Granjeiro et al., 2012;
LENAD/INPAD, 2012).
Aviltados e criminalizados por décadas, usuários de substâncias têm sido
relegados às margens da sociedade, assediados, presos, torturados, com serviços
de saúde e sociais muitas vezes negados e, em alguns países, até mesmo
sumariamente executados. Em meio a crescentes apelos populares, da saúde
pública e de esforços humanitários, os Estados-Membros das Organizações das
Nações Unidas (ONU) chamaram a sociedade/governantes para tomarem
medidas eficazes de saúde pública a fim de melhorarem os resultados de saúde
das pessoas que usam drogas, incluindo programas que reduzem o impacto dos
danos associados ao uso de substâncias (UNIADS, 2019).
O aumento de vulnerabilidades predispõe dependentes de substâncias a
diversos desfechos negativos com relação ao comportamento sexual, fazendo
com que a saúde sexual dessa população seja de interesse da saúde pública
(Harvey, 2009).
Esses danos vão além de sua redução para a busca do resgate de vidas e
fomentos para que o processo atinja a abstinência e, posteriormente, a
recuperação. Em fevereiro de 2019, a Coordenação Geral de Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde (MS) lançou uma
nota técnica com esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de
Saúde Mental (PNSM) e nas diretrizes da Política Nacional sobre Drogas
(PNAD). As mudanças na PNAD constituem a chamada “Nova Política sobre
Drogas no Brasil”. Uma das primeiras e importantes mudanças nessa nova
política é a redefinição e inclusão de serviços e dispositivos de saúde que
passam a integrar a chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que vão
desde a prevenção primária às intervenções complexas em unidades de
internação e pós tratamento, com reinserção social, incluindo a presença de
comunidades terapêuticas. Em razão da imensa diversidade de questões
envolvendo a dependência química, o tratamento exige múltiplas abordagens
contemplando diferentes ambientes terapêuticos. Assim, devem estar
disponíveis as mais variadas modalidades de tratamento em um processo
continuum de cuidados, mediante as necessidades de cada paciente naquele
momento, respeitando-se uma trajetória de cuidados, segundo a evolução da
gravidade da doença. Recursos que vão desde a prevenção primária até
intervenções complexas em unidades de internação devem estar integrados,
para uma política de assistência eficaz (PNAD, 2019).
CAPÍTULO 2
ESTIGMA E DISCRIMINAÇÃO. ÉTICA
E DIREITOS HUMANOS
Alessandra Diehl
Cerca de 275 milhões de pessoas em todo o mundo, o que equivale a 5,6%
da população mundial, entre 15 e 64 anos de idade, fizeram uso drogas pelo
menos uma vez durante o último ano pesquisado segundo dados do relatório
da World Drug Report publicado em 2018. Cerca de 31 milhões de pessoas
que usam drogas sofrem transtornos por uso de substâncias, o que significa
que seu uso de drogas é prejudicial ao ponto de necessitarem de tratamento.
Além disso, cerca de 450.000 pessoas morreram como resultado do uso de
drogas em 2015. Dessas mortes, 167.750 estavam diretamente associadas a
transtornos relacionados ao uso de drogas (principalmente overdoses). O
restante foi indiretamente atribuível ao uso de drogas e incluiu mortes
relacionadas ao HIV e hepatite C adquiridas por meio de práticas de uso de
drogas injetáveis de forma não segura (World Drug Report, 2018).
A variedade de substâncias e combinações disponíveis para os usuários
nunca foi tão ampla. Assim como o estigma e a discriminação, os quais podem
estar entre os principais obstáculos para a prevenção, tratamento e cuidados
dirigidos a pessoas com transtornos relacionados ao uso de substâncias.
Quando somamos ao uso de substâncias às questões sexuais, o estigma tende a
ser muito maior. Esse preconceito faz com que os usuários de substâncias
sejam vistos como “perigosos”, “violentos” e plenamente responsáveis pela sua
condição. Os usuários de crack, por exemplo, podem ser rotulados como
pessoas que não “encaixam-se no ideário da sociedade” por muitas vezes não
possuírem vínculos familiares, emprego formal e moradia e acabam por serem
ainda mais excluídos. Outras crenças são de que usuários de crack apresentam
“comportamento indisciplinado” e, por isso, são discriminados, sujeitos
“marginais e criminosos”, abolindo sua singularidade, potencializando
situações de vulnerabilidade (Bard et al., 2016).
Já pessoas portadoras de HIV, por exemplo, são vistas ainda nos dias atuais
como pessoas “promíscuas”, “sujas” ou “contaminantes”, apesar de inúmeras
campanhas e ações, tais como “Getting to Zero”, para zerar novas infecções
pelo HIV, zerar mortes relacionadas à AIDS e zerar a discriminação (Krishan
et al., 2018). O estigma não é um conceito novo. No entanto ele permanece
altamente significativo no contexto do HIV/AIDS. Existe um amplo consenso
de que o estigma relacionado ao HIV/AIDS compromete o bem-estar das
pessoas que vivem com a doença.
Estudo conduzido por Gilbert e Walker (2010) na África do Sul revela que
o nível de estigma percebido é intenso e afeta várias dimensões da vida dos
portadores de HIV/AIDS, particularmente na divulgação (revelação do seu
status sorológico) e no tratamento. O estigma também permeia a experiência
de pessoas HIV positivas em relação ao uso de terapia antirretroviral (TARV).
A intensidade do estigma relacionado ao HIV/AIDS pode ser uma ameaça e
comprometer o valor atribuído ao uso do medicamento, impactando, assim,
na vida diária das pessoas que convivem com HIV/AIDS. Esse estudo sugere
que, após três décadas da epidemia, a estigmatização continua a ser uma
característica central da experiência do paciente com HIV/AIDS. Na clínica
em que essa pesquisa foi conduzida, o HIV/AIDS foi considerado uma
condição crônica cada vez mais gerenciável pelo acesso contínuo à TARV. No
entanto essa abordagem não foi compartilhada por muitos membros da
família, vizinhos e empregadores, os quais tinham pontos de vista altamente
estigmatizadores (Gilbert & Walker, 2010).
O relatório do UNAIDS publicado em março de 2019 destaca a urgência de
alcançar pessoas que usam drogas para reduzir infecções por HIV. Embora
exista o argumento de que a descriminalização do uso e posse de drogas para
uso pessoal tende a aumentar o acesso e a vinculação a serviços de saúde e
serviços de assistência social para práticas de redução de danos, as
criminalizações e punições severas, em alguns lugares do mundo, continuam
sendo comuns. A descriminalização da posse de drogas, o cultivo para uso
pessoal e o veto a medidas de compulsoriedade mencionados no relatório são
todos temas polêmicos e podem ter diferentes realidades em diferentes países.
O relatório também menciona que uma em cada cinco pessoas presas em todo
o mundo estão em situação de encarceramento no sistema prisional por
delitos relacionados às substâncias; cerca de 80% dos quais estão na prisão por
posse para usopessoal. Além disso, o relatório lista 35 países que ainda pena
de morte por delitos relacionados a drogas. “[...] O uso de centros de detenção
compulsória para pessoas que usam drogas deve cessar, e os centros existentes
devem ser fechados” (UNIADS, 2019, p. 8).
Outro aspecto de preconceito nessa interface também pode ser dirigido a
homens, em geral, os quais sentem muita dificuldade para partilhar seus
problemas de disfunção erétil (DE) causada pelo longo consumo de álcool ou
de revelar a um profissional de saúde essa sua queixa por temer que sua
virilidade e masculinidade possam ser motivos de piadas jocosas. Além disso,
recaídas e lapsos no consumo de substâncias para quem encontra-se em
recuperação podem ocorrer por questões ligadas a conflitivas conjugais, por
exemplo.
Gustavo Venturi e colegas, em 2009, realizaram uma pesquisa com o apoio
da Fundação Perseu Abramo e revelaram que ao se perguntar para os
entrevistados por quais pessoas eles tinham sentimentos de raiva, ódio ou
repulsa, apareceu em primeiro lugar “pessoas que não acreditam em Deus”, e
em segundo lugar “os usuários de substâncias”. Também obtiveram
pontuações os portadores de HIV e as travestis (Venturi et al., 2009). Os dados
revelam que 41% da população brasileira tem “ódio e antipatia” de conviver
com os usuários de drogas, 22% relata o mesmo sentimento para com
profissionais do sexo, 19% para com gays e bissexuais e 22% para com as
travestis (Venturi, 2009).
Podemos entender o preconceito, nesse contexto, como um julgamento
prematuro e inadequado sobre o uso de substâncias e/ou sobre determinado
comportamento sexual. Trata-se do ato de definir alguém ou algo,
construindo-se uma ideia sem conhecimentos prévios. Já o preconceito é a
valorização negativa/depreciativa que atribui às características da alteridade;
implica a negação do outro diferente e a afirmação da própria identidade como
dominante (Bandeira & Batista, 2002).
No Brasil, há a necessidade ainda de superar o grande preconceito e o
estigma que envolve as populações mais vulneráveis com o aumento da
incidência de HIV/AIDS notificadas pela UNIADS. Além disso, a inclusão de
minorias e dos membros mais vulneráveis da população nos serviços de saúde
do país ainda é um desafio para os planejadores de saúde (Brito et al., 2001).
Como mencionado no resumo do artigo de Krishan et al. (2018, s/p):
[...] Na maioria das vezes, a prevenção do HIV / AIDS é discutida em termos
de fidelidade à parceria, uso de dispositivos de proteção como preservativos,
profilaxia pré e pós-exposição, uso de terapias anti-retrovirais e uso de
microbicidas, mudança de comportamento, etc. As questões relacionadas ao
HIV são, no entanto, uma das questões pertinentes que precisam ser
efetivamente abordadas na comunidade LGBTQIA+.
Diversas razões podem justificar o estigma do uso de substâncias por parte
dos profissionais de saúde, incluindo o fato de que, muitas vezes, o consumo
de drogas não é visto como um problema de saúde, mas como falha de caráter,
com forte apelo moral a essa questão, fazendo com que seja atribuída ao
usuário de substâncias a total responsabilidade pelo seu consumo e
manutenção deste. As consequências desse estigma acabam por restringir as
possibilidades de acesso a serviços para dependentes químicos e acesso a
serviços de triagem e tratamento para HIV/AIDS, por exemplo. O estigma e a
discriminação afetam negativamente a qualidade dos serviços prestados,
podendo constituir uma barreira para a busca por ajuda (Silveira et al., 2010),
sendo extremamente necessário o desenvolvimento de políticas públicas com
ações de educação em saúde, prevenção, informação e combate ao estigma por
parte de profissionais da saúde e de toda a sociedade.
Novos avanços no tratamento de pessoas portadoras de transtornos por
uso de substâncias (TUS) têm sido observados nas últimas décadas, como, por
exemplo, um maior conhecimento dos mecanismos de neurotransmissão
cerebral, a descoberta do sistema endocanabinoide e novas terapias
psicológicas sendo reformuladas para melhor atender a essa crescente
demanda de novos usuários de álcool e outras drogas. No entanto cada
descoberta traz novos desafios às principais obrigações éticas de honrar o
consentimento informado, proteger a confidencialidade e respeitar a justiça,
ao mesmo tempo protegendo essas pessoas de danos e assegurando o bem do
paciente individualmente e coletivamente. O tratamento de indivíduos com
transtornos por uso de substâncias e questões relativas às suas sexualidades
também está associado a muitos dilemas éticos. O corpo crescente de
evidências neurobiológicas que contesta as suposições tradicionais sobre o
“livre-arbítrio” e a “responsabilidade” evoca abordagens mais deliberadas e
com nuances para o consentimento informado e a participação das políticas
públicas sobre as drogas e da psiquiatria forense no âmbito da prestação de
cuidados (Geppert & Bogenschutz, 2009).
Portanto, muitos profissionais da saúde e da saúde mental que trabalham
na área da adicção enfrentam vários dilemas éticos, os quais têm muitas
dificuldades de solucionar ao tentar equacionar as suas tomadas de decisões
dentro dos quatro princípios éticos – autonomia, beneficência, não
maleficência e justiça. Ao discutirmos os transtornos por uso de substâncias e
suas questões sexuais, deve-se ter em mente que existem diferenças
importantes entre os países em termos de aspectos sociais e culturais, bem
como o quadro legislativo e o sistema de prestação de cuidados de saúde em
cada local (Parmar et al., 2017).
O uso de medidas coercivas no cuidado ao dependente químico, por
exemplo, mudou muito nos últimos 30 anos, uma vez que as leis que adotaram
o critério de “periculosidade”, a fim de garantir os direitos dos pacientes à não
intervenção, estão cada vez mais sujeitas à crítica, já que muitos autores
defendem critérios mais amplos de periculosidade. A UNIADS em seu último
relatório em 2019 recomenda que “O uso de centros de detenção compulsória
para pessoas que usam drogas deve cessar, e os centros existentes devem ser
fechados” (UNIAIDS, 2019, p. 8). Uma das questões morais mais importantes
em debate atual, por exemplo, é se os pacientes dependentes químicos que
correm o risco de causar perigo a si mesmos (risco de suicídio, por exemplo)
devem ser admitidos e/ou tratados involuntariamente, ou uma gestante
usuária de crack e/ou opioide, que não aceita ou não adere ao tratamento
ambulatorial, deveria ser internada involuntariamente, por exemplo. A
ambiguidade que essas noções carregam na prática do cuidado indica que o
conflito entre a prevenção do perigo e o respeito pela autonomia não é tão
nítido quanto os sistemas jurídicos parecem estar implicados. Algumas
medidas compulsórias e involuntárias não precisam ser interpretadas como
uma violação da autonomia – em vez disso, elas devem ser interpretadas como
uma forma de fornecer melhores e adequados cuidados ao indivíduo e à sua
família, que dele necessita (Janssens et al., 2004).
Existe uma necessidade urgente de sensibilizar os profissionais para a
importância de dar a devida consideração aos aspectos éticos e de direitos
humanos em seu trabalho clínico com essa população e, sobretudo, reafirmar
essa necessidade para a interface dependência química e sexualidade (Geppert
& Bogenschutz, 2009; UNIADS, 2019).
Também é urgente considerar a busca pela equidade de gênero em
diversos setores da sociedade. Coe e colaboradores (2019) escreveram algo
muito importante e interessante sobre esse tema em um artigo intitulado
“Organisational best practices towards gender equality in science and
medicine”, publicado na renomada revista Lancet, e alertam no resumo do
artigo que:
[...] Em agosto de 2018, o presidente do Banco Mundial observou que o
‘capital humano’ – o potencial dos indivíduos – será o investimento de longo
prazo mais importante que qualquer país pode fazer para a prosperidade e a
qualidade de vida de seu povo”. No entanto, líderes e profissionais da ciência
acadêmica e da medicina continuam desconhecidose pouco instruídos sobre
a natureza, a extensão e o impacto das barreiras à plena participação de
mulheres e minorias na ciência e medicina em todo o mundo. Essa falta de
conscientização e educação resulta em falhas para mobilizar totalmente o
capital humano de metade da população e limita os avanços tecnológicos e
médicos globais. A falta crônica de recrutamento, promoção e retenção de
mulheres na ciência e na medicina deve-se às barreiras sistêmicas,
estruturais, organizacionais, institucionais, culturais e sociais à equidade e à
inclusão. Essas barreiras devem ser identificadas e removidas por meio do
aumento da conscientização sobre os desafios combinados com abordagens
baseadas em evidências e baseadas em dados, que levam a metas e resultados
mensuráveis (Coe, Wiley & Bekker, 2019, p.587).
Os autores pesquisaram as abordagens e insights que podem ajudar a
identificar e remover preconceitos e barreiras sistêmicas na ciência e na
medicina, e propõem ferramentas que podem ajudar na mudança
organizacional em direção à igualdade de gênero. Entre elas incluem legislação
formal e cotas obrigatórias em níveis nacionais ou de grande escala (por
exemplo, paridade de gênero), técnicas que aumentam a equidade (por
exemplo, equidade de gênero) por meio de mudanças culturais organizacionais
facilitadas em níveis institucionais e desenvolvimento profissional de
competências essenciais tantos em níveis individuais quanto coletivos (Coe et
al., 2019).
Em 2019 o príncipe Willian, o Duque de Cambridge, participou pela BBC
One, onde falou especialmente sobre a dor do luto da perda da mãe ainda
quando criança e estimulou, sobretudo, os homens britânicos a falarem mais
sobre seus próprios sentimentos sem medo ou vergonha. O intuito é falar
sobre o estigma, preconceito e tabus com relação aos transtornos mentais e a
dependência química e, por conseguinte, ajudar as pessoas a buscarem ajuda
para si e para seus entes queridos, os quais por ventura podem estar sofrendo
com alguma questão relacionada a esse tema. Quando uma pessoa pública,
carismática e tão querida pela população como o Príncipe Willian mostra-se
publicamente um encorajador da saúde mental isso tende a diminuir a
psicofobia, ou seja, o preconceito e a discriminação contra as pessoas que têm
transtornos mentais. Muitas pessoas com doença mental lutam todos os dias
contra o estigma social e o estigma internalizado (o seu próprio estigma e a
sua auto aceitação). Isso porque o estigma é uma importante barreira para a
busca de tratamento e pode causar ainda mais comprometimentos sociais e
ocupacionais. Ser visto como “louco”, “maluco”, “doido”, “pirado” e outras
tantas terminologias pejorativas é parte do dia a dia dessas pessoas que, por
sua vez, tentam esconder suas dores e seus afetos ou desafetos.
O estigma afeta a qualidade de vida dos doentes mentais, assim como está
associado a um pior prognóstico e até mesmo a maiores tendências suicidas
em seus portadores, assim como baixa autoestima, menor taxa de recuperação.
Pessoas com transtornos mentais experimentam taxas desproporcionalmente
mais altas de incapacidade e mortalidade. Por exemplo, pessoas com depressão
maior e esquizofrenia têm uma chance 40% a 60% maior de morrer
prematuramente do que a população geral.
A saúde mental é parte integrante da saúde e do bem-estar, uma vez que a
saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doença ou enfermidade. A saúde mental, como outros aspectos da
saúde, pode ser afetada por uma série de fatores socioeconômicos que
precisam ser abordados por meio de estratégias abrangentes de promoção,
prevenção, tratamento e recuperação em uma abordagem por todos os
gestores de governos (WHO, 2013).
Segundo dados da OMS, somente a depressão é responsável por 4,3% da
carga global de doenças e está entre as maiores causas de incapacidade em todo
o mundo [11% de todos os anos vividos com incapacidade globalmente],
particularmente para as mulheres. As consequências econômicas dessas perdas
de saúde são igualmente grandes. Por exemplo, o impacto global cumulativo
dos distúrbios mentais em termos de perda de produção econômica será de US
$ 16,3 milhões entre 2011 e 2030. A OMS também nos informa que o número
de profissionais de saúde especializados para lidar com a saúde mental em
países de baixa e média renda é extremamente insuficiente. Quase metade da
população mundial vive em países onde, em média, há um psiquiatra para
atender 200 mil pessoas ou mais. Da mesma forma, uma proporção muito
maior de países de alta renda do que países de baixa renda informa que possui
uma política, um plano e uma legislação sobre saúde mental. Por exemplo,
apenas 36% das pessoas que vivem em países de baixa renda são cobertas pela
legislação de saúde mental, em comparação com 92% em países de alta renda
(World Health Organization, 2013).
Queremos um mundo no qual a saúde mental seja valorizada, promovida e
protegida. Assim como os transtornos mentais possam ser evitados e as
pessoas afetadas por esses transtornos possam ser capazes de exercer toda a
gama de direitos humanos e acessar saúde de alta qualidade e culturalmente
apropriada para elas com assistência social de forma oportuna para promover
a recuperação, a fim de atingir o nível mais alto possível de saúde e participar
plenamente na sociedade e no trabalho, livre de estigmatização e
discriminação (World Health Organization, 2013).
Nesse contexto, julgo oportuno reconhecer dois fatos importantes, os
quais podem somar para esta discussão. O primeiro deles diz respeito ao artigo
dois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual afirma que “não
deverá existir nenhum tipo de distinção entre seres humanos e que todos
devem ser atendidos quando solicitarem e que os seus direitos sejam
cumpridos independente de sua cor, sexo, religião ou qualquer outro tipo de
opinião, ou outra particularidade” (UNIC, 2009, s/p). Esses direitos, ligados à
igualdade, obrigam os Estados (governos) a promoverem políticas públicas
que proporcionem condições necessárias de existência também para as pessoas
que não podem pagar por esses serviços. É por isso que também já existe uma
política de drogas cujo conjunto de normas e ações estabelecidas pelo poder
público na Lei de Drogas (Lei nº11.343/2006) trata não somente da justiça
criminal, mas também de uma série de princípios e objetivos no âmbito das
políticas públicas que abordam as questões relacionadas às drogas. Prevê ações
nas áreas de prevenção, da reinserção social do usuário em situação de
vulnerabilidade social e da repressão ao comércio ilícito. Todos esses,
portanto, são direitos dos usuários de substâncias.
O segundo fato importante é reconhecer o papel de um movimento social
que começou nos Estados Unidos da América (EUA) chamado “Faces and
Voices of Recovery”, o qual foi fundado em 2001 em St. Paul, Minnesota. Eles
acreditam que eliminando o estigma e a discriminação e removendo barreiras
à recuperação mais pessoas levarão uma vida saudável em recuperação de
longo prazo. Recuperação em longo prazo no idioma inglês a gente conhece
como “long term recovery”. São aquelas pessoas que achamos que não existem,
porém elas estão há mais de 15, 20, 30, 40 anos em recuperação. Só nos
Estados Unidos da América (EUA), acredita-se que existam mais de 23
milhões de pessoas em recuperação. Isso significa dizer também que elas estão
todo esse tempo sem fazer uso de álcool ou outras drogas, mas, sobretudo,
vivendo de fato em recuperação. Em outras palavras, elas estão voltando a ter
uma vida produtiva, como um membro da família, como um membro da
sociedade, integradas com maior qualidade de vida. É claro que isso para nós
que trabalhamos com dependência química é um grande alento e, sobretudo,
muita esperança. A pergunta que não quer calar é: como esses milhares e
milhões de pessoas conseguiram?
Bem, certamente o caminho é longo para manter-se longamente em
recuperação. Os programas de mútua ajuda baseados nas intervenções na
comunidade, como os AlcoólicosAnônimos (AA) e Narcóticos Anônimos
(NA), podem fornecer alguns dos incentivos que tornam a recuperação
sustentada ou a recuperação em longo prazo muito mais atraente. Eles
incluem maior autoaceitação e esperança de uma vida melhor, e a capacidade
de conectar o indivíduo a uma rede de pessoas que oferecem suporte para o
outro de várias maneiras, as quais podem incluir amizades, relacionamentos
românticos, atividades recreativas e ajudam com questões como emprego e
habitação. Além disso, programas de mútua ajuda dão aos participantes a
oportunidade de ajudar os outros, o que pode ser altamente recompensador.
No entanto, como tem sido amplamente notado, a maioria dos indivíduos com
transtornos por uso de substâncias não se envolve em programas de mútua
ajuda, o que destaca a necessidade de uma variedade de incentivos de
recuperação na comunidade. A primeira recomendação diz respeito aos
tratamentos, os quais devem ir além do foco na redução ou eliminação do uso
de substâncias, visando ao maior acesso e a mais tempo gasto em experiências
que serão agradáveis ou gratificantes para os pacientes. Em segundo lugar,
deve haver incentivos suficientes no ambiente para justificar o esforço
necessário para manter a abstinência em longo prazo para indivíduos que
frequentemente têm acesso limitado a esses incentivos prazerosos para além
do consumo de drogas (Diehl, Cordeiro, Laranjeira, 2019).
O Faces and Voices of Recovery acreditam que juntos podem promover
políticas que reduzem a discriminação e buscam soluções que promovam o
acesso aos serviços de suporte de tratamento e recuperação necessários para
levar uma vida em recuperação. Principalmente, mostrando suas Faces e suas
Vozes em prol disso. Essas vidas importam! Suas Faces e suas Vozes são
poderosas! Eles têm trabalhado para garantir que as políticas federais e
estaduais reflitam a esperança e a resiliência encontradas nas comunidades de
recuperação trabalhando para ajudar os outros por meio de uma abordagem
abrangente/holística para solucionar a crise da dependência nos EUA e outros
locais do mundo, os quais também já aderiram ao mesmo movimento,
incluindo o Brasil (site URL: https://facesevozes.org.br/). Que bom que o
preconceito parece ter cura!
CAPÍTULO 3
FATOS E CONTEXTOS QUE
FUNDAMENTAM A INTERFACE DO
USO DE SUBSTÂNCIAS COM A
SEXUALIDADE
Alessandra Diehl
A imortalizada citação “Sexo, Drogas & Rock and Roll”, advinda dos anos
60 e 70, remete-nos a um período de extrema “curtição” – termo que emergiu
do lendário festival de música de Woodstock e que tem, até os dias atuais, os
seus eternos ícones: Janis Joplin, Santana, Jimi Hendrix, entre outros, como
símbolos da contracultura, contestação e da liberdade aspirada daquela época.
Certamente, esse período da história foi uma das “grandes ondas” de drogas
mais comentadas da mundialmente, uma vez que maconha, haxixe, mescalina,
heroína e o famoso “ácido azul”, como era conhecido também o alucinógeno
dietilamida do ácido lisérgico (LSD), circulavam livremente entre um milhão
de pessoas nos três dias mais popularizados da história dos festivais musicais
(Gibson, 2001; Mariuzzo, 2009). Na mesma época, o movimento musical
brasileiro tinha o cantor “maluco beleza”, Raul Seixas, por exemplo, como um
rito da mesma geração instrumental que tinha essa relação de busca de êxtase,
inspiração poética e promoção de liberação sexual e sentidos por meio das
drogas (Nery, 2009; Diehl, Vieira, 2013).
A busca de um elixir afrodisíaco não é algo novo na história da
humanidade; tampouco apenas produto das famosas gerações Rock & Roll, paz
e amor, Coca-Cola, tribalistas, rave, pagodeiros, sertanejos e de funkeiros dos
dias de hoje. A tão almejada combinação de prazer sexual e diversão também
aparecia na antiga medicina chinesa e hindu mediante utilização de preparados
para ajudar a melhorar a vida sexual de seus povos (Stearns, 2010).
O escritor Vatsyayana, no século II, já mencionava em sua obra mais
famosa, o Kama Sutra, uma série de meios para excitar ou aumentar o desejo
sexual. Para isso, utilizam unguentos e poções derivados de ervas e raízes, as
quais são cultivadas e praticadas pelos mágicos e cientistas do Veda (quatro
textos sagrados escritos em sânscrito por volta de 1500 anos antes de Cristo)
para ajudar no equilíbrio daquele que, pela prática do Dharma, Artha e Kama,
poderá gozar de felicidade neste mundo e no mundo vindouro (Vatsyayana,
2012).
Na concepção hinduísta, o Senhor dos Seres criou homens e mulheres sob
a forma de mandamentos, os quais deveriam respeitar a regulação e harmonia
entre três pilares: O Dharma, o Artha e o Kama. O primeiro refere-se à
aquisição do mérito religioso, é a virtude dos seres. O segundo refere-se à
aquisição de riqueza e de propriedades. Finalmente, o Kama – que significa
amor, prazer e gratificação sexual. Assim, em outras palavras, Kama é a
fruição dos objetos apropriados pelos cinco sentidos (audição, tato, visão,
paladar e olfato) amparados pela mente e em conjunto com a alma. Kama é a
consciência do prazer oriunda do contato entre o órgão do sentido e seu
objeto. Sutra significa aforismos, relatos ou transcrições. De tal modo, Kama
Sutra são os “Aforismos do Amor” (Vatsyayana, 2012).
A cidade de Khajuraho, na Índia, abriga belíssimos templos do Hinduísmo
medieval, construídos ao longo de cem anos (950 até o ano de 1050) em
referência à obra Kama Sutra. Atualmente, os templos são considerados
patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Várias das posições sexuais foram
retratadas por meio de delicadas e pequenas esculturas nas paredes dos
templos. São um exemplo da ligação entre a religião e o erotismo, sendo
excelentes demonstrações dos estilos arquitetônicos da Índia. Os templos
ganharam popularidade e se tornaram alguns dos pontos turísticos mais
visitados da Índia devido à representação do Kama Sutra e de alguns aspectos
da forma de vida tradicional durante a época medieval naquela região. A obra
já recebeu vários rótulos e críticas, incluindo de “pornográfica” e “erótica”, já
foi reduzida a um “manual de posições sexuais” e acabou caindo no jargão
popular entre aqueles livros que todos comentam, mas que de fato poucos
leram. O Kama Sutra está muito longe de ser um simples “manual sexual”. Isso
http://pt.wikipedia.org/wiki/950
http://pt.wikipedia.org/wiki/1050
http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o
http://pt.wikipedia.org/wiki/Erotismo
porque a obra fala muito mais de comportamentos, costumes de cidadãos,
práticas e da cultura oriental do que propriamente apenas o intercurso sexual.
Kama Sutra é – em síntese – um tratado, sobre homens e mulheres, sua
relação e sua união mútua (Khandelwal, 1987; Vatsyayana, 2012).
A Figura 1 ilustra uma das esculturas dos templos.
FIGURA 1 - ESCULTURAS DO KAMA SUTRA DO TEMPLO DE KHAJURAHO, NA
ÍNDIA
Fonte: Arquivo pessoal da autora
Outras combinações de nutrientes e especiarias também já ganharam
popularidade nos dias atuais. Elas representam uma “ajuda extra” para o
desempenho sexual e auxiliam na produção hormonal, na formação de
espermatozoides ou no envolvimento emocional nas relações envolvendo
amor, sexo e prazer. São substâncias tais como o chocolate, a pimenta, o
gengibre, o amendoim, a catuaba e o ovo de codorna (Stearns, 2010).
A noção de união sexual como um momento para o casal expressar o amor
e explorar o prazer parece ter-se perdido ao longo dos séculos em uma cultura
que delibera sexualidade apenas como penetração. A sexualidade no século
XXI parecer ter como meta o ideal da perfeição. Muitos homens e mulheres
desejam ter corpos perfeitos e uma performance sexual irreal e
exageradamente satisfatória na cama. Frequentemente, buscam uma vida
sexual inatingível e acabam frustrados. Além disso, há uma forte cultura da
“potencialização da atividade sexual” com o recurso de medicamentos e drogas,
advindos de uma sociedade que busca constantemente aquilo que pode ser
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Khandelwal%20S%5Bauth%5D
“mais”como fonte de felicidade: mais libido, mais energia, maior excitação,
mais desinibição e mais prolongada ereção. A primazia do princípio do prazer
sobre o da realidade, o risco como ponto central na vida recreativa de jovens e
de usuários de substâncias, o significado desafiador e de “emancipação” que
eles atribuem às experiências sensoriais são fatores reforçados pelas
características sociais e culturais também da atual “geração millenium” (Diehl
et al., 2014a; Tavares et al., 2014).
O aprendizado da sexualidade – como um todo – está cada vez menos
focada no desempenho e mais na busca do prazer imediato. O exercício da
sexualidade pode ser manifestado como uma forma de energia que influencia
tanto os pensamentos quanto a saúde física e mental dos indivíduos. Sua
prática, tão necessária para a saúde quanto comer, dormir e fazer exercícios
físicos, é, portanto, um dos pilares fundamentais dos indicadores de qualidade
de vida (Lins, 2007; WHO, 2010; Diehl, Vieira, 2013). Compreendida a partir
de um enfoque extremamente abrangente, manifestando-se em todas as fases
da vida do ser humano (desde a infância até a senilidade), a sexualidade, ao
contrário do imaginário popular, tem na genitalidade apenas um de seus
aspectos, como mencionado inicialmente na própria definição de sexualidade
(Lins, Braga, 2005; WHO, 2006, 2010; Diehl, Vieira, 2013).
Vivemos num mundo em que o álcool e as drogas estão muito presentes
no universo que engloba questões relacionadas ao “ser e estar sexual” dos seres
humanos. Em outras palavras, as drogas estão fortemente associadas a
experiências e práticas sexuais diversas, à iniciação sexual precoce, a
comportamentos sexuais de risco, à gravidez indesejada, à violência sexual, ao
aborto e às disfunções sexuais, que podem ser causadas pelo uso crônico de
substâncias (Vieira, Diehl, 2011; McNaughton Reyes et al., 2014).
Existe uma incessante busca, principalmente entre os adolescentes e
adultos jovens, por substâncias capazes de aumentar a libido e o prazer,
facilitar a aproximação entre as pessoas, prolongar o orgasmo e auxiliar a
ereção. Nesse contexto, já existe evidência científica acumulada da estreita
associação entre o uso de álcool, tabaco e outras drogas, o exercício da
sexualidade e a prática de comportamentos sexuais de risco (Eaton et al., 2012;
Berhan et al., 2013; Li et al., 2013; Oshri et al., 2013; Wood, 2010), os quais
podem contribuir para as principais causas de morbidade e mortalidade entre
os adultos e adultos jovens, com elevados custos sociais e financeiros para a
sociedade (Koniak, Brecht, 1995; Cohen et al., 2002). Isso porque o álcool e
outras substâncias, como a maconha, a cocaína e o ecstasy, tendem a reduzir a
capacidade de tomada de decisão e aumentar o risco de sexo não protegido,
exposição à violência sexual, maior violência no namoro, causando maiores
possibilidades de gravidez não planejada, aborto, infecções sexualmente
transmissíveis (IST)/Vírus da Imunodeficiência Humana/transmissão do HIV
e prática de sexo com múltiplas parcerias sexuais (Andrade et al., 2013;
Sanchez et al., 2013; Teitelman et al., 2013; Temple et al., 2013; Thurstone et
al., 2013).
Para termos uma ideia da dimensão dessa interface em números, podemos
observar os dados provenientes do relatório de 2013 do Sistema de Vigilância
de Comportamento de Risco da Juventude, que tem monitorado, todos os
anos, os principais comportamentos em jovens de 10 a 24 anos nos Estados
Unidos da América (EUA). O estudo revela que muitos estudantes do ensino
médio estão envolvidos em comportamentos de risco à saúde associados às
principais causas de morte entre as pessoas dessa faixa etária que têm sido
estudadas naquele país. Destaca-se que nos 30 dias anteriores à pesquisa, 4%
dos estudantes tinham fumado cigarros de nicotina; 34,9% dos estudantes
tinham consumido pelo menos um tipo de bebida alcoólica em pelo menos um
dia durante os 30 dias anteriores à pesquisa; 40,7% dos estudantes haviam
usado maconha uma ou mais vezes durante a sua vida; 23,4% dos estudantes
haviam usado maconha uma ou mais vezes durante os 30 dias anteriores à
pesquisa; 5,5% dos estudantes tinham usado qualquer forma de cocaína; 7,1%
dos estudantes haviam usado drogas alucinógenas na vida; 8,9% já tinham
cheirado cola ou inalado quaisquer tintas ou sprays para obter intoxicação uma
ou mais vezes durante a sua vida; 6,6% dos estudantes haviam usado ecstasy.
Quase metade (46,8%) dos estudantes já tiveram relação sexual; 34% haviam
tido relações sexuais durante os três meses anteriores à pesquisa; 15% já
haviam tido relações sexuais com quatro ou mais pessoas durante a sua vida;
5,6% dos estudantes tinham tido relações sexuais pela primeira vez antes dos
13 anos.
Entre os estudantes atualmente sexualmente ativos, 59,1% haviam usado
preservativo na última relação sexual. Em nível nacional, 7,3% dos estudantes
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Koniak-Griffin%20D%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=7501487
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Brecht%20ML%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=7501487
já tinham sido fisicamente forçados a ter relações sexuais quando eles não
queriam. A prevalência de ter sido forçado a ter relação sexual foi maior no
gênero feminino (10,5%) do que em homens (4,2%). Entre os 73,9% dos alunos
de todo o país que namorou ou saiu com alguém durante os 12 meses que
antecederam a pesquisa,10,3% tinham sido atingidos, batido em alguma coisa,
ou se ferido com um objeto ou arma de propósito por alguém com quem eles
estavam namorando ou “ficando” (termo utilizado para sair com alguém sem
necessariamente o compromisso de namoro) por uma ou mais vezes durante
os 12 meses que antecederam a pesquisa. A prevalência da violência física no
namoro foi maior no gênero feminino (13%) do que em homens (7,4%) (Kann
et al., 2014).
No Brasil, dados semelhantes aos americanos foram conduzidos pelo
Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias para Políticas Públicas para o
Álcool e as Drogas (INPAD) com o II Levantamento Nacional do Consumo de
Álcool e Drogas (LENAD) sobre comportamentos de risco com informações
preliminares fornecidas em 2014. Os dados revelam que de uma amostra de
1.742 adolescentes e jovens de 14 a 25 anos, sendo que 1.157 dos adolescentes
tinham de 14 a 17 anos, cerca de 4,8% haviam usado maconha no último ano,
3,4% haviam usado cocaína no último ano e 43% dos jovens entre 14 e 17 anos
também usou cocaína. Enquanto que 55% dos jovens de 18 a 21 anos e 61%
dos de 22 a 25 anos beberam num padrão de binge (4 doses para as meninas e
5 para os meninos, em 2 horas, em uma única ocasião) (LENAD/INPAD,
2012). Quanto à prática de sexo seguro, 34,1% relataram que nunca, ou quase
nunca, usavam preservativo (camisinha) nas relações sexuais, sendo que o não
uso foi maior entre as meninas, com 38,2% dos casos, e 29,6% dos casos em
meninos. O aborto provocado e/ou espontâneo ocorreu em 12,4% das jovens
de 14 a 20 anos, e 14,8% entre as de 20 a 25 anos (LENAD/INPAD, 2012).
A famosa “primeira vez” – a primeira experiência sexual – costuma ser uma
situação que, em geral, causa bastante ansiedade e medo para a maioria das
pessoas. Embora não existam muitas estatísticas sobre a prevalência e
incidência dessa associação, o relato do uso de substâncias para facilitar a
iniciação sexual não parece ser raro (Waylen & Wolke, 2004). Um estudo
escocês revelou que 50% dos meninos da amostra estudada relataram ter
ingerido bebida alcoólica antes da primeira relação sexual (Hooke et al., 2000).
Estudo de coorte longitudinal com 21.616 estudantes mexicanos com quatro
anos de seguimento mostrou uma incidência de 7% dos jovens relatando o
abuso de substâncias na iniciação sexual (Bojorquez et al., 2010). Também é
fato que jovens que consomem álcool e drogas estão mais predispostos a ter
início precoce da vida sexual e comportamentos sexuais de risco (Scivoletto et
al., 1999; Baldwin et al., 2013).
Faz parte do imaginário popular a expectativa sobre o efeito da substância
em causar desinibição, facilitar aaproximação e o encontro sexual ou
aumentar o desejo e o prazer. Tanto que parece que as palavras drogas e sexo
“imploram” por um “e” entre elas. Entretanto as substâncias agem de formas
diferentes no organismo e seus efeitos dependem de vários fatores, dentre eles
citam-se: o tipo de droga e a quantidade da droga utilizada, o mecanismo de
ação da substância no sistema nervoso central, a qualidade da droga, o
ambiente, o gênero, além da crença e expectativa que se tem em relação aos
efeitos dela (Tuchman, 2010; Tyler & Melander, 2010; Vieira & Diehl, 2011).
Muitos desses jovens e adultos jovens que combinam o consumo de
substâncias com seu comportamento sexual certamente terão problemas num
futuro próximo, principalmente no que concerne ao desenvolvimento de um
padrão de dependência de álcool e drogas. Eles correrão maior risco de
praticar sexo desprotegido, de desenvolver disfunções sexuais associadas ao
consumo de substâncias, o que favorece processos de recaída em dependentes
químicos, tendendo a piorar o prognóstico e a recuperação destes (Vieira,
Diehl, 2011; Harvey, 2009).
Dentro desse contexto, os dependentes de substâncias constituem uma
população bastante interessante e particularmente complexa para o
desenvolvimento de estudos, intervenções terapêuticas, prevenção e
promoção de saúde com relação à associação de uma ampla gama de
possibilidades de expressão de comportamentos sexuais, que incluem risco
sexual, vulnerabilidades, disfunções sexuais, comportamento hiperssexual e
violência, por exemplo (Timpson et al., 2010; Jakubczyk et al., 2013; Shoptaw
et al., 2013; Wechsberg et al., 2013).
Apesar da abundante literatura internacional sobre comportamentos
sexuais e uso de drogas, poucos estudos, principalmente no Brasil, têm
explorado a prevalência de relações sexuais desprotegidas em usuários de
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Tyler%20K%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Melander%20L%22%5BAuthor%5D
drogas não injetáveis e os seus comportamentos sexuais, tanto em contextos
epidemiológicos quanto em ambientes clínicos, como de outreach treatment,
ou em locais de “bolsões e cenas” de maior concentração de uso de drogas em
grandes centros urbanos, os quais muitas vezes não são captados por
levantamentos domiciliares. Os locais de tratamento tradicionais, em geral,
captam apenas uma parte dessa população, ou apenas os mais motivados (de
Souza et al., 2002; Nunes et al., 2007; Barbosa Júnior et al., 2009; Bassols et al.,
2010; Malta et al., 2010; Cortez et al., 2011).
Estudos e programas de prevenção da transmissão do vírus da
imunodeficiência humana – ou, no idioma inglês, Human Immunodeficiency
Virus (HIV) – entre dependentes químicos têm focado principalmente em
usuários de drogas injetáveis (Wellings et al., 2006; Chikovani et al., 2013;
Shoptaw et al., 2013). Hoje, no mundo, existem 35 milhões de pessoas vivendo
com o HIV. Destas, pelo menos 3 milhões são usuárias de drogas injetáveis
(WHO, 2014). Esses programas auxiliaram a reduzir a incidência e prevalência
de HIV (Suohu et al., 2012; Mishra et al., 2014). No entanto a maioria dos
abusadores de substâncias em todo o mundo não são usuários de drogas
injetáveis, sendo que houve uma escassez de intervenções de prevenção do
HIV visando a esse público que não usa droga injetável (Shoptaw et al., 2013).
Essa realidade deve tornar-se um crescente e novo foco de pesquisa devido
ao papel que a atividade sexual desprotegida desempenha na transmissão do
HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST) em usuários de
drogas não injetáveis (Brewer et al., 2007; Atkinson et al., 2010; Dickson-
Gomez et al., 2012).
Um dos motivos está relacionado ao fato de que a taxa de novos infectados
pelo vírus HIV no Brasil cresceu 11% entre 2005 e 2013; ao contrário dos
números de tendências globais, os quais mostraram um declínio em todo o
mundo (diminuição global de 27,5%), conforme os dados recentemente
divulgados pela UNAIDS, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre
HIV/AIDS (UNAIDS, 2014). Os dados evidenciam que no Brasil uma nova
epidemia tem altas taxas de infecção entre três populações mais vulneráveis: os
homens que fazem sexo com homens (HSH), cujo tamanho relativo
corresponde a 3,1% da população; as profissionais do sexo femininas (1,2%); e
os usuários de drogas. Dentre os usuários de drogas, aqueles que fazem uso da
forma injetável correspondem a apenas 0,5% (Brasil, 2011).
Estima-se que no Brasil cerca de 540 mil indivíduos entre 15 e 49 anos
vivam com o HIV/AIDS (Brasil, 2013). Trinta anos depois do início e
conhecimento da epidemia de AIDS, a relação atual entre sexualidade e
HIV/AIDS sofreu mudanças profundas. Isso porque a epidemia de HIV abriu
uma ampla gama de abordagens e metodologias na pesquisa sobre esse tema,
levando a uma abertura maior na discussão e no debate sobre sexualidade,
valores sexuais, preconceitos, práticas e comportamentos sexuais. A
sexualidade tornou-se um dos principais espaços contestados no discurso
público, de maneira antes inconcebível, e forças conservadoras e progressistas
entraram no debate de tal maneira que tiveram um profundo impacto sobre
políticas sexuais nas duas últimas décadas no Brasil e no mundo (Diehl, Vieira,
2013; Silva et al., 2014).
Em termos da cobertura de teste de HIV, apenas 36,5% da população
sexualmente ativa no Brasil entre 15 e 64 anos realizou o teste de HIV alguma
vez na sua vida (Brasil, 2011). Entre os usuários de drogas do Brasil nos dias
atuais, destaca-se o aumento das taxas de consumo de cocaína associadas à
“epidemia do crack” vivenciada pelo país nos últimos 25 anos ou mais. Isso
porque, com o advento do crack fumado no início dos anos 1990, houve uma
mudança da via de administração da cocaína entre usuários em muitos países
do mundo, incluindo no Brasil (Dunn & Laranjeira, 1999; Brewer et al., 2007;
Nappo et al, 2011; Dickson-Gomez et al., 2012; Rodrigues et al., 2012). Cabe
salientar que o Brasil também não tem propriamente uma “cultura de
injetáveis” atualmente, isso porque o crack invadiu esse cenário em várias
camadas sociais. Além de ser uma droga considerada barata, está amplamente
disponível, inclusive nas zonas rurais do país. Nunca houve, de fato, uma
tradição do uso de heroína e metanfetamina injetáveis, como vivenciada em
outros países do mundo (Rondinelli et al., 2009; Eskandarieh et al., 2013;
Bertoni et al., 2014).
Estudo conduzido por de Azevedo e colegas (2007) comparando usuários
de cocaína fumada na forma de crack (n=132) com cocaína injetável (n=119) já
sinalizava que os usuários de crack apresentavam menor tempo de consumo
de drogas quando comparados com os usuários de cocaína injetável. No
entanto eles tiveram maiores taxas de atividade sexual de risco e diferenças no
consumo de múltiplas drogas. Embora a soroprevalência do HIV entre
usuários de crack tenha se mostrado inferior aos usuários de cocaína injetável
(7% versus 33%), essa taxa é elevada quando comparada com a população geral
da mesma idade. Da mesma forma que a população geral brasileira, em que
mais de 95% das pessoas sabem que o preservativo é a melhor maneira de se
evitar a infecção pelo HIV (Brasil, 2011), sabe-se também que os usuários de
crack têm acesso à informação sobre o HIV/AIDS, mas não fazem uso desse
conhecimento para mudar comportamentos de risco que os expõem à infecção
pelo HIV e à transmissão deste para outras parcerias sexuais (Azevedo et al.,
2007).
Entre mulheres usuárias de crack no Brasil, por exemplo, o crescente
número de casos registrados de infecção pelo HIV pode ser associado com o
desenvolvimento de comportamentos sexuais de risco que envolvem a troca
de favores sexuais por drogas ou dinheiro, ou com o fato de essas mulheres
estarem na atividade de mendicância (Nappo et al., 2011). Essas usuárias,
geralmente, utilizam a atividade sexual como moeda de troca quando o desejo
por drogas é intenso e não há mais dinheiro para novas aquisições. Elas
acabam deixando de usar o preservativo, participando de várias atividadessexuais por dia em locais não seguros – visto que muitas não têm habitação
estável; as taxas de desemprego entre mulheres são maiores que entre os
homens. Além disso, frequentemente se envolvem em atividades com
múltiplas parcerias sexuais (Brewer et al., 2007; Willians et al., 2008; Bungay
et al., 2010; Nappo et al., 2011; Bertoni et al., 2014).
Essa relativa carência de dados sobre comportamentos sexuais em usuários
de drogas não injetáveis justifica a necessidade de expansão da evidência
nacional disponível. Tais estudos são muito necessários, devido às
características e práticas sexuais de risco entre homens e mulheres com
transtornos relacionados ao consumo de substâncias (Nappo et al., 2011;
Wechsberg et al., 2010; Dickson-Gomez et al., 2012); além das disfunções
sexuais causadas pelo uso crônico de álcool e outras drogas, que
comprometem a autoestima, a qualidade de vida e predispõem a recaídas, as
quais merecem ser adequadamente exploradas e tratadas (Fahrner, 1987;
Tuchman, 2010).
CAPÍTULO 4
DROGAS DE USO E SUA RELAÇÃO
COM A SEXUALIDADE
Alessandra Diehl
O álcool é presença quase que obrigatória em contextos sociais, sendo
conhecido por seu efeito de desinibição; seja para tomar mais coragem para se
aproximar de alguém, seja para relaxar ou “baixar a guarda”. Esse ditado
também nos remete à associação de álcool e violência de gênero (no geral, os
homens parecem ficar mais intolerantes e “valentes” sob seu efeito, haja vista a
frequência de brigas quando há consumo exagerado de álcool) (Zaleski, 2009).
As mulheres, por sua vez, ficam mais vulneráveis a agressões sexuais (Kingree
et al., 2014).
Acredita-se que uma em cada quatro universitárias já sofreu estupro
durante a sua vida acadêmica nas faculdades norte-americanas (Starfelt et al.,
2015); esse dado oficial ainda é raro no Brasil, muito embora saibamos que de
fato ocorrem (Diehl, 2014). Considerando que as agressões sexuais entre
mulheres em idade universitária não têm diminuído nos últimos 50 anos e o
consumo de álcool está presente em mais de 50% de todos os assaltos sexuais
contra as mulheres, é fundamental que os pesquisadores, gestores de políticas
públicas e professores universitários continuem a esmiuçar essa complexa
relação e reformular a nossa forma de olhar a violência sexual e o papel da
ampla disponibilidade do álcool nesse processo (Diehl, 2014; Starfelt et al.,
2015).
Crenças e equívocos sobre atividade sexual, gênero e estupro têm sido
explorados extensivamente para tentar explicar as atribuições relativas ao
envolvimento do álcool nos casos de violência sexual. Já se tem sólida
evidência científica mostrando que o beber em binge é um fator de risco para
o envolvimento do álcool nos episódios de agressão sexual. Os efeitos
fisiológicos diretos do álcool no sistema nervoso central (SNC); atitudes de
hostilidade em relação às mulheres; a aceitação de mitos de estupro (Ex.
“mulher na balada bebendo certamente quer transar” ou “se estivesse em casa
não seria estuprada”); influências de pares, com pressão dos colegas para ter
atividade sexual; a aprovação pelos pares da prática de atividade sexual
forçada/coagida ou sem consentimento; e comportamentos de risco que
incluem grande número de parcerias sexuais, são alguns dos possíveis
mediadores da associação entre universitários, álcool e a agressão sexual
(Kingree et al., 2014; Starfelt et al., 2015).
Em doses baixas, o álcool pode aumentar o desejo sexual; porém, se o
consumo for mais alto, há prejuízo da ereção e ejaculação (Rosen, 1991). O
álcool, muito embora tenha efeito no processo de desinibição quando utilizado
em baixas doses e, consequentemente, ajude na facilitação inicial ao encontro
sexual, tem efeitos tóxicos diretos sobre as gônadas (testículos e ovários) e o
fígado (aumenta o catabolismo de testosterona e sua transformação em
estrogênios), levando a disfunções sexuais após exposição e abuso crônico
(Saso, 2002). Nas mulheres, o álcool pode interferir na lubrificação vaginal e
na capacidade de atingir o orgasmo (Saso, 2002). A ação depressora do álcool
também pode causar sonolência e diminuir o desejo sexual (O’Farrel et al.,
1991; Rosen, 1991; Saso, 2002; Vieira, Diehl, 2011).
Popularmente conhecido como “bala” ou “E”, o ecstasy invadiu o cenário
das “baladas” de música eletrônica mundiais nos anos 80, com a promessa de
ser a “pílula do amor”, capaz de aumentar o interesse sexual, assim como a
sensação de proximidade e intimidade com terceiros (Zuckerman & Boyer,
2012). Muitos usuários de ecstasy dizem que sentem muita vontade de tocar,
abraçar as pessoas, e que o efeito da droga é mais sensorial que propriamente
sexual (McElrath, 2005; Vieira & Diehl, 2011; Nguyen et al., 2014).
É comum o relato de que o consumo de cocaína, assim como o de ecstasy,
aumenta o desejo sexual. Há relatos de aumento da autoestima e bem-estar, as
pessoas sentem-se mais atraentes e atraídas, sensuais, sem que,
necessariamente, o objetivo seja a relação sexual ou a melhora do
desempenho, pois muitas vezes o consumo dessas substâncias impede a ereção
e o orgasmo (Vieira & Diehl, 2011; Nguyen et al., 2014).
Em relação à cocaína, os efeitos na atividade sexual são dose-dependentes e
podem tanto acarretar em aumento do prazer e da intensidade do orgasmo
quanto também podem piorar o desempenho sexual (Palha & Esteves, 2008).
Várias linhas de pesquisa têm sugerido que a facilitação do comportamento
sexual durante a intoxicação por cocaína pode ser causada pelos efeitos
farmacológicos diretos dessa droga de abuso no sistema nervoso central (por
exemplo, aumento do desejo sexual), enquanto outros pesquisadores têm
apontado mais para a importância dos fatores relacionados com o contexto do
uso dessa droga (por exemplo, as oportunidades para o comportamento sexual
e as expectativas sobre os efeitos da droga) do que propriamente os efeitos
farmacológicos da cocaína (Saso, 2002; Celentano et al., 2008; Palha & Esteves,
2008). Resultados preliminares de estudos sugerem que a relação entre cocaína
e comportamentos sexuais – especialmente entre usuários de cocaína em
longo prazo – pode ser facilitada por novas oportunidades para a atividade
sexual que existem no contexto de uso de cocaína, e não somente pela busca
dos efeitos farmacológicos da droga de abuso (Saso, 2002; Celentano et al.,
2008; Wright, 2012).
Existe uma associação entre uso compulsivo de crack e troca de favores
sexuais pela droga, em que os usuários de crack, motivados pela fissura ou pela
urgência em consumir a substância, “vendem” o corpo para a obtenção da
droga (Nappo et al., 2011; Bertoni et al., 2014; Pallonen et al., 2009). A
atividade sexual como moeda de troca para conseguir o crack envolve diversos
fatores de risco e pode ser uma combinação muito perigosa. Muitas vezes, o
usuário, “desesperado” para usar a droga, aumenta o número de parcerias
sexuais e aceita manter relação sexual sem o uso de preservativos ou por
pagamentos irrisórios, contribuindo assim para a repetição desse
comportamento (Brewer et al., 2007; MacMaster et al., 2009; Bungay et al.,
2010; Nappo et al., 2011).
A maconha segue sendo uma droga que gera debates acalorados e
polêmicos sobre seus vários aspectos, desde questões ligadas a discussões de
legalização, do uso medicinal de canabinoides para tratamento de epilepsias
refratárias, até questões de saúde mental no que concerne ao desenvolvimento
de psicoses e sua relação com a esquizofrenia (Diehl et al., 2010a; Diehl et al.,
2014b; Crocker & Tibbo, 2015). Não poderia ser diferente a presença de
contendas em relação a sua participação nos efeitos sobre a esfera sexual
(Smith et al., 2010). Os apaixonados pela “erva” a glorificam e os pesquisadores
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Palha%20AP%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Esteves%20M%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlushttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Tibbo%20PG%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=25704358
ainda estão em busca de mais evidências científicas (Shamloul & Bella, 2011;
Diehl et al., 2014b).
Estudo de revisão conduzido por Shamloul e Bella (2011) sobre o impacto
da maconha na saúde sexual masculina mostra que os estudos que examinaram
os efeitos do uso da maconha sobre a função sexual dos homens têm sido
limitados tanto no aspecto qualitativo quanto quantitativo, principalmente
por questões metodológicas relacionadas, por exemplo, ao pequeno número
das amostras estudadas e aos diferentes métodos de medir os desfechos
avaliados. A maioria dos resultados provenientes dos estudos dessa revisão é
conflitante e contraditória. Isso porque existem alguns estudos apontando
efeitos benéficos da cannabis na melhora da função erétil; outros estudos já
não encontraram os mesmos resultados. Um exemplo é o estudo italiano
conduzido por Aversa e colegas (2008), o qual avaliou os homens que faziam
uso crônico de maconha e os comparou com controles; eles mostram que o
uso crônico da maconha pode estar envolvido no início de dano endotelial de
artérias penianas, as quais predispõem à disfunção erétil.
As recentes pesquisas realizadas com animais in vitro identificaram
possíveis ligações entre cannabis e saúde sexual masculina, uma vez que a
droga parece ter ação de antagonismo periférico sobre a função erétil,
estimulando receptores específicos no tecido cavernoso peniano (Shamloul &
Bella, 2011).
Alguns poucos relatos também estão associados à capacidade da maconha
de aumentar a libido, prolongar o orgasmo e favorecer o encontro sexual. No
entanto pouca literatura científica tem sido produzida envolvendo a associação
do uso/abuso e dependência de maconha com temas vinculados à sexualidade
humana. Alguns estudos que avaliaram a associação da maconha com questões
ligadas à sexualidade revelaram que existe associação do uso dessa droga e
aumento do número de parcerias sexuais (principalmente entre adolescentes),
dificuldade de atingir o orgasmo no gênero masculino, dificuldades de ereção e
comportamentos sexuais de risco em poli usuários de drogas em tratamento
(Aversa et al., 2008; Diehl et al., 2014b). Outros estudos têm apontado a
relação da maconha com alteração do eixo hipotálamo-pituitário gonadal
(HPG) e desenvolvimento de infertilidade (Bryan et al., 2012; Andrade et al.,
2013; Diehl, Vieira, 2013).
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Shamloul%20R%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Bella%20AJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21269404
Estudo conduzido por Smith e colaboradores (2010) avaliou uma amostra
de 8.650 pessoas que responderam perguntas sobre o uso de cannabis, sendo
que 754 (8,7%) relataram uso de maconha no ano anterior, 126 (1,5%)
relataram o uso diário, 126 (1,5%) relataram uso semanal e 502 (5,8%)
relataram uso menos frequentemente do que semanalmente. Após ajustes para
fatores sociodemográficos, o uso de cannabis diário em comparação com a não
utilização da droga esteve associado a uma maior probabilidade de relatar duas
ou mais parcerias sexuais no ano anterior, tanto em homens (odds ratio
ajustado de 2,08, 95% intervalo de confiança 1,11-3,89; p = 0,02) quanto em
mulheres (2,58, 1,08-6,18; p = 0,03). O uso diário de cannabis também esteve
associado com o autorrelato de diagnóstico prévio de infecção sexualmente
transmissível em mulheres, mas não nos homens (7,19, 1,28-40,31; p = 0,02 e
1,45, 0,17-12,42; p= 0,74, respectivamente). A frequência de consumo de
maconha não esteve relacionada a problemas sexuais em mulheres. Porém o
uso diário versus não uso esteve associado, entre os homens, com o aumento
da incapacidade de atingir o orgasmo (3,94, 1,71-9,07; p<0,01), ou com atingir
o orgasmo precocemente, sem controle deste (2,68, 1,41-5,08; p<0,01), ou
ainda, com retardo ejaculatório (2,05, 1,02-4,12; p = 0,4) (Smith et al., 2010).
Por outro lado, existe uma ampla gama de estudos avaliando amostras de
adolescentes que relacionam a maconha com diversos desfechos na esfera de
comportamento sexual e sexualidade (De Genna et al., 2007; Callahan et al.,
2013; Assis et al., 2014; McNaughton et al., 2014). Entre eles a associação de
um efeito resposta do uso precoce e atual de maconha com infecções
sexualmente transmissíveis (ISTs) na idade adulta jovem. Uso de maconha
precoce e atual também foi preditor de um maior número de parcerias sexuais
durante a vida (De Genna et al., 2007).
Outro estudo conduzido por Callahan e colaboradores (2013) examinou as
relações entre dependência de maconha e o modelo teórico de intenção de uso
do preservativo em adolescentes envolvidos com a justiça. Cerca de 720
participantes preencheram medidas iniciais de comportamento sexual e uso de
substâncias; destes, 649 (90,13%) foram reavaliados seis meses depois. Houve
altos níveis de uso de maconha (58,7% preencheram critérios para
dependência) e comportamento sexual de risco entre os participantes. No
entanto a dependência de maconha não influenciou, significativamente, as
relações entre os constructos do modelo de intenção de usar preservativo
inicial nem no seguimento de 6 meses (Callahan et al., 2013).
Já em usuários de heroína, observa-se que, durante o período de uso
crônico, a frequência de relações sexuais, masturbação e poluções noturnas
está diminuída. Além disso, tanto a qualidade quanto a frequência de orgasmos
estão reduzidas (Palha & Esteves, 2008; Diehl & Vieira, 2013).
Frequentemente, o uso, o abuso e a dependência de heroína têm sido
associados a comportamentos sexuais de risco que incluem aumento de
vulnerabilidades para aquisição do vírus HIV, hepatite B e C e outras infecções
sexualmente transmissíveis (ISTs) pelo sexo desprotegido e compartilhamento
de seringas, apesar de ter havido uma dramática redução dessa via de uso
injetável em muitos países do mundo (Napoli et al., 2010).
O uso de metanfetamina (Crystal, meth) está também altamente associado
à atividade sexual, sendo bastante popular nas festas onde homens que fazem
sexo com homens (HSH) festejam, dançam e também buscam por parcerias
sexuais (Wechsberg et al., 2010; Zuckerman & Boyer, 2012). O apelo de
aumento da sensação de prazer sexual gerada por essa droga talvez seja o mote
para ter se popularizado entre aqueles que buscam por esse efeito da
metanfetamina. O uso dessa droga também está claramente associado ao risco
de infecção por HIV, ao aumento do número de casos de AIDS e à
disseminação de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), uma vez
que aumenta as chances de intercurso desprotegido (Roll et al., 2009; Bao et
al., 2015).
O Gama-Hidroxi-Butirato (GHB) foi muito utilizado como suplemento
alimentar entre fisiculturistas e adeptos de exercício físico na década de 80, e
desde os anos 90 tem sido muito apreciado pelos jovens frequentadores de
boates e danceterias como uma club drug (Diehl, 2010; Zuckerman, Boyer,
2012). A droga foi desenvolvida em 1961, chegando ao mercado americano
como um suplemento dietético destinado a aumentar massa muscular, bem
como aumentar a libido. O GHB também está entre as “date rape drugs”
(drogas do estupro) (Diehl et al., 2010; Zuckerman & Boyer, 2012; Diehl &
Vieira 2013).
O GHB, apesar de ser bastante comum nos Estados Unidos da América
(EUA) e na Europa, é ainda uma substância relativamente nova no Brasil.
Também pode ser encontrado nas danceterias das grandes cidades, tendo
como alvo o público jovem e os gays, com o apelo de “ecstasy líquido”; em uma
analogia ao ecstasy como uma estratégia de marketing que pretende
conquistaro mesmo público da “pílula do amor”, muito embora as drogas não
produzam efeitos semelhantes, uma vez que o GHB é depressor do sistema
nervoso central (SNC), enquanto o ecstasy é um estimulante (Diehl, 2010;
Brennan et al., 2014).
O oxido nitroso foi preparado pela primeira vez em 1772. Também
chamado de “gás hilariante”, é um gás incolor, não inflamável e de odor
ligeiramente doce. Está classificado entre os solventes voláteis. Pode ser
encontrado em frascos ou na forma de ampolas, sendo consumido geralmente
por inalação. Popularmente conhecidos como “Popper”, o nitrato (óxido
nitroso) é uma substância que emergiu em ambientes de sex shop, associado à
suposta capacidade de aumentar o desejo e o prazer sexual (Diehl, 2010;
Zuckerman & Boyer, 2012).
Outra droga que merece destaque nesse contexto da sexualidade é a
cetamina (um anestésico veterinário); o uso recreativo e o desenvolvimento de
dependência dessa droga vêm sendo documentados desde o início dos anos 70.
A sua popularidade tem aumentado principalmente entre os adolescentes (16 a
24 anos) e homens que fazem sexo com homens (HSH), sobretudo envolvidos
em eventos de grandes festas de música eletrônica, onde é mais conhecida por
meio das gírias K ou Special K (Diehl, 2010; Zuckerman & Boyer, 2012).
Apesar de estar relacionada ao aumento da excitação sexual e diminuição de
inibição, há relatos de retardo ejaculatório após o uso dessa substância. Pode
também ser utilizada com a finalidade de relaxar os músculos do ânus,
diminuindo dor durante a penetração anal. A diminuição da inibição associada
a sexo desprotegido (sem preservativo) aumenta os riscos de exposição a
infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e Hepatites (Diehl, 2010; Pinto et
al., 2014).
A cetamina vem sendo estudada atualmente para o tratamento da
depressão grave refratária e com risco de suicídio importante. Para depressão,
é mais comumente administrada como uma infusão intravenosa lenta em
doses subanestésicas (geralmente 0,5 mg / kg). Como antidepressivo, é
notavelmente diferente dos antidepressivos convencionais, pois acarreta
atenuação rápida e acentuada dos sintomas depressivos, mesmo em pacientes
com depressão refratária. Não se sabe ainda o seu efeito em longo prazo e
riscos de desenvolvimento de dependência (Ghosh & Viswanath, 2019).
O uso recreativo dos inibidores da fosfodiesterase tipo 5 (PDE5i) (ex:
Viagra®, Cialis®, Levitra®, Eleva®), que são utilizados eficazmente para o
tratamento da disfunção erétil (DE), por jovens saudáveis sem DE, tem
chamado a atenção da mídia, assim como de pesquisadores, uma vez que, nas
raves, o “comprimido azul” é apenas mais um dos ingredientes dos coquetéis
que embalam as festas eletrônicas. Muitos jovens, saudáveis e sem disfunção
erétil associam o medicamento a outras drogas de abuso, tais como o ecstasy,
numa tentativa de aumentar a autoconfiança, prolongar o estado de excitação
e melhorar o desempenho sexual. Estudos têm encontrado associação de até
59% de uso dos inibidores de fosfodiesterase 5 (PDE5) e abuso de substâncias
(Horvarth et al., 2007; Diehl & Vieira, 2013).
Pouco ainda se sabe sobre os possíveis efeitos danosos à saúde,
principalmente em longo prazo, advindos exatamente desse tipo de associação.
No entanto acredita-se que possa haver aumento de batimentos cardíacos,
com desenvolvimento de arritmias e surgimento de quadros semelhantes a
uma crise de pânico (Halkitis & Green, 2007; Horvarth et al., 2007; Diehl &
Vieira, 2013).
Finalmente, porém não menos importante, está o consumo de nicotina e
desenvolvimento da dependência de tabagismo na questão da sexualidade (Zil-
A- Rubab et al., 2013). Em homens, a associação com disfunção erétil devido
ao uso crônico já vem sendo bem documentada na literatura (Tostes et al.,
2008). De qualquer forma, os supostos benefícios de algumas dessas drogas de
uso aqui descritas na questão da sexualidade não parecem justificar o seu uso
para nenhuma dessas finalidades (Diehl & Vieira, 2013).
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Halkitis%20PN%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19482790
CAPÍTULO 5
COMPORTAMENTOS SEXUAIS DE
RISCO ENTRE USUÁRIOS DE DROGAS
Alessandra Diehl
O termo risco pode ser entendido como a chance ou a probabilidade da
ocorrência de algum evento cujas consequências constituem oportunidades
para se obter vantagens ou então ameaças ao sucesso. A maioria das decisões
tomadas em situações da vida real é arriscada, porque estão associadas a
possíveis consequências negativas. O risco na verdade existe quando a
imprevisibilidade pode causar uma perda potencial de recursos próprios
limitados, energéticos, sociais, financeiros e assim por diante. Dessa forma, o
risco também pode estar ligado ao contexto social em que uma rede de fatores
e interesses culturais, históricos, políticos, socioeconômicos e ambientais estão
envolvidos (Anselme, 2014). Tais fatores relacionam-se à saúde integral, que
se caracteriza como um processo dinâmico de responsabilidade pessoal e
coletiva relacionada à qualidade e ao modo de vida cotidiana, inseridos no
contexto global (Celentano et al., 2008; Brodish et al., 2011; Anselme, 2014).
Assim sendo, o comportamento sexual de risco entre dependentes de
substâncias pode variar de acordo com o tipo de droga utilizada, a via de
administração, o contexto social, gênero, a faixa etária, orientação sexual e o
tipo de interação sexual (Celentano et al., 2008; Tyler et al., 2010; Varma et al.,
2010; Sherman et al., 2011; Wechsberg et al., 2013). A grande maioria das
substâncias tende a causar prejuízo do funcionamento cognitivo, com
diminuição da capacidade de tomada de decisão, diminuição da capacidade de
julgamento crítico e a percepção de prejuízos, o que aumenta a
susceptibilidade de engajar-se em comportamentos sexuais de risco (Kopetz et
al., 2010). Muitos estudos clínicos, incluindo alguns estudos brasileiros, têm
consistentemente relatado taxas elevadas de relações sexuais desprotegidas
nessa população e maior número de parcerias sexuais (Malta et al., 2010;
Nappo et al., 2011; Remy et al., 2013).
Entende-se por atividade sexual desprotegido a prática de sexo não seguro
durante aquela relação sexual que acontece sem o uso do preservativo. Inclui-
se o intercurso vaginal, tanto para a vulnerabilidade da ocorrência de gravidez
não desejada quanto para a contaminação por IST/AIDS, somando as práticas
de intercurso anal e oral. O risco da transmissão do vírus HIV após uma única
exposição de contato sexual pode ser considerado baixo no intercurso anal
receptivo (0,8 a 3%), intercurso pênis na vagina de homem para mulher (0,05
a 0,15%), intercurso pênis na vagina de mulher para homem (0,03 a 0,09%),
sendo que o risco no intercurso oral não é certo, mas se acredita que seja dez
vezes menor do que o intercurso vaginal (Royce et al., 1997).
Entretanto esse risco de contaminação tende a aumentar devido à
importante presença dos chamados cofatores para a transmissão do vírus HIV.
Entre esses cofatores, um dos principais é a presença de uma IST não tratada;
uma vez que, em geral, nessas situações existe uma destruição da barreira
epitelial normal, um aumento do pool de linfócitos e macrófagos e o processo
inflamatório gerado pelas ISTs pode aumentar a carga viral do HIV nas
secreções genitais. Principalmente em países de baixa renda, o risco de
transmissão do vírus HIV 1 pode ser maior devido à alta prevalência de ISTs
(WHO, 2007; Boily et al., 2009).
A relação sexual anal representa o mais alto risco de transmissão para a
infecção do HIV, mas muito do que se sabe sobre sexo anal ainda é baseado em
estudos de homens que fazem sexo com homens (HSH). Poucos estudos têm
avaliado a questão do sexo anal entre adultos heterossexuais, especialmente
aqueles que podem estar em risco para o HIV, como usuários de substâncias
(Ibañez et al., 2010).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem informado que a forma mais
eficiente de prevenção contra a AIDS e outras infecções sexualmente
transmissíveis é o uso da camisinha em todas as relações sexuais.A pesquisa de
conhecimento, atitudes e práticas na população brasileira conduzida pelo
Ministério da Saúde com 8 mil pessoas entre 15 e 64 anos, realizada no ano de
2008 e publicada em 2011, mostra que 45,7% dos entrevistados fizeram uso de
preservativo em todas as relações sexuais com parcerias ocasionais nos últimos
12 meses da pesquisa. Além disso, 77,3% foram sexualmente ativos nos
últimos 12 meses, 8,8% tiveram mais de cinco parcerias sexuais nos últimos 12
meses da pesquisa, 17% dos homens e 9,5% das mulheres já tiveram alguma
IST na vida, 26,8% tiveram sua primeira relação sexual antes dos 15 anos. Os
jovens são os que mais fazem sexo protegido em relação aos mais velhos
(Brasil, 2011).
Entre os preservativos disponíveis no mercado temos basicamente dois
tipos: o feminino e o masculino. O preservativo feminino é uma bolsa
cilíndrica de poliuretano que apresenta dois anéis flexíveis. O menor anel é
colocado no fundo da vagina e recobre o colo uterino, enquanto a bolsa
recobre a vagina, e o segundo anel protege parte da vulva. Os aspectos
positivos desse método incluem: prevenção das ISTs, se usado corretamente;
bom custo-benefício; facilidade de ser inserido previamente à relação sexual,
sem haver necessidade de parar as preliminares para ele ser colocado; uso está
no controle da mulher; não havendo, portanto, a necessidade de negociação
com a outra pessoa.
Entre os aspectos negativos encontrados, citam-se: a baixa adesão das
usuárias; o fato de não estar integralmente disponível nas redes públicas de
todo o Brasil e de outros locais do mundo (Dowdy et al., 2006); muitas
mulheres que nunca desenvolveram o hábito de se tocarem intimamente em
seus genitais anteriormente ao uso desse método, em geral, têm receios, tabus,
medos, preconceitos de utilizá-lo. Alguns casais também se queixam de ser
pouco prático, e outros de que pode ser barulhento durante o ato sexual
(Wang et al., 2014; Beksinska et al., 2015). Entre outras queixas de falha no
uso do preservativo feminino estão as de rompimento, deslizamento,
invaginação e pouca educação sexual e/ou orientação de como utilizá-lo.
Estudo conduzido por Beksinska et al. (2015) mostra que as falhas de
utilização tendem a diminuir quando a mulher começa a se apropriar mais
dessa prática e tentar utilizar o preservativo feminino mais vezes (Beksinska et
al., 2015).
Já o preservativo masculino é um dos métodos mais acessíveis, por estar
amplamente disponível na maioria das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do
país ou outros serviços governamentais, sendo que apenas 27,2% dos
indivíduos entre 15 a 64 anos de idade relataram ter retirado esse insumo de
prevenção. Além disso, ele é considerado pela OMS como o método de escolha
para a prevenção das ISTs, entre elas o HIV, devendo ser indicado em
conjunto com outros métodos (Brasil, 2011).
O preservativo masculino está indicado que seja usado em todas as relações
sexuais (sexo oral, sexo vaginal e sexo anal), colocando-o antes do contato do
pênis com a vagina ou com o ânus ou a boca. Deve-se desenrolá-lo sobre o
pênis ereto, deixando um espaço na extremidade para armazenar o ejaculado;
por fim, retirar o pênis ainda ereto da vagina/do ânus/da boca e, logo após,
desprezar o preservativo.
Existe disponível também, no mercado erótico, a calcinha protetora para a
prática de sexo oral feito na mulher. A calcinha íntima possui uma camada fina
de látex que protege e permite passar o calor e a percepção da sensibilidade do
toque da língua, proporcionando o prazer e a prática do sexo oral mais seguro,
sem contato com secreções na área genital.
O uso do preservativo é um importante método de planejamento familiar
e, como já mencionado, é também um extraordinário aliado na prevenção de
ISTs, especialmente o HIV/AIDS. No entanto o uso do preservativo envolve
normas sociais complexas e dinâmicas interpessoais influenciadas pela cultura,
por cognições sociais, por questões de poder de gênero e pelo estabelecimento
de limites para a autonomia que fazem com que exista uma escolha irracional
ou racional de usar ou não usar preservativos (Miranda et al., 2011; Norman
et al., 2011; Ober et al., 2011; Maticka-Tyndale, 2012).
Há diferenças distintas entre as estruturas cognitivas subjacentes do uso do
preservativo para o gênero masculino e o feminino (Barkley & Burns, 2000;
Sterk et al., 2004; Silva & Vargens, 2009). O aumento da incidência de
HIV/AIDS em mulheres nos remete para as questões de gênero que
construíram os papéis sociais de homens e mulheres, cuja assimetria provoca
aumento da vulnerabilidade das mulheres à infecção (Montoya, 1998; Diehl et
al., 2014a). Embora a geração atual de adolescentes e adultos jovens seja sem
dúvida mais autônoma (Silva et al., 1988), receberam, no entanto, como
herança cultural, a ideia de que as mulheres têm menor liberdade em sua vida
sexual e menos poder de decisão sobre o sexo protegido. A desigualdade entre
os gêneros produz uma ideia de submissão e interiorização e mantém a crença
de que a mulher se faz alguém a partir do homem, tornando-a dependente
afetivamente, carente e crente no romantismo (Gonçalves Canosa, 2006;
Diehl et al., 2014a). Espera-se da mulher um papel passivo. Assim, preparar-se
para uma atitude contraceptiva ou de prevenção de saúde é assumir papel
ativo, o qual ainda, nas relações de gênero, é delegado ao homem. Mesmo que
a virgindade não seja mais tão importante para a maior parte da sociedade, a
vivência da sexualidade para os mais jovens ainda é considerada socialmente
aceitável se for inocente, movida pela paixão, sem premeditação, e por
condução masculina. Ou seja, trocou-se um valor (o da virgindade) por seu
significado (passividade) (Gonçalves Canosa, 2006; Diehl et al., 2014a). Em
contrapartida, não se reforça aos meninos a importância da sua
responsabilidade na contracepção e nos cuidados com a sua saúde e da sua
parceria sexual (Zuilkowski & Jukes, 2012).
A distribuição de preservativos e as campanhas preventivas no Brasil não
conseguem ainda atingir boa camada da população (Brasil, 2011), até porque
não é fácil lidar com as questões subjetivas que envolvem gênero e relações
amorosas. Por outro lado, sabe-se que apenas a informação por si só não é
capaz de mudar comportamentos (Azevedo et al., 2007; Diehl et al., 2014a).
Historicamente, o uso do preservativo traz a ideia de comportamento
desviante. Por isso, mesmo na atualidade, se a mulher não estiver consciente
de seu desejo pela relação sexual, fatalmente abrirá mão de negociá-lo, por ter
medo de ser mal interpretada ou porque – na verdade – aquela relação sexual é
entendida por ela como mais comum e esperada do homem. A recusa dos
homens em usar o preservativo é o foco do problema, já que a maioria não
gosta de usar a camisinha por acreditar que não sentirá o orgasmo da parceira,
nem o seu próprio, com tanta intensidade (Siegler et al., 2012; Zou et al.,
2012). O medo de perder o parceiro é, sem dúvida, uma das grandes causas
para se “abrir mão” da camisinha para as mulheres (Diehl et al., 2014a).
O comportamento pessoal de uso de preservativo de forma responsável
tem relação direta, nos homens, com o grau de intenção de uso de
preservativo com a sua última parceria sexual (Brafford & Beck, 1991). Já nas
mulheres, a intenção de uso está ainda fortemente influenciada por normas
subjetivas pessoais e sociais; em gays, o não uso do preservativo pode estar
relacionado ao desejo de atingir intimidade ou à crença de que, estando em um
relacionamento monogâmico, não há necessidade de usar preservativo. O uso
incorreto e inconsistente de preservativos tende a limitar o sucesso de
programas de prevenção a ISTs e ao HIV em todo o mundo, especialmente em
populações vulneráveis, como os usuários de drogas (Ross et al., 2003; Sanders
et al., 2012; Zou et al., 2012).
Compreender os padrões de uso de preservativos e as razões de ambos os
gêneros – masculino e feminino – para fazerem escolhas em usar preservativo
com suas parcerias sexuais (fixa ou ocasional) e as atitudes gerais em relação aouso do preservativo é importante tanto para o desenvolvimento quanto para a
implementação de intervenções adequadas, as quais podem aumentar a
promoção do uso do preservativo entre usuários de drogas.
Para aumentar o uso de preservativos, os programas de tratamento devem
considerar a segmentação específica do gênero no que tange a atitudes
específicas em relação ao uso do preservativo nessas populações (Niv & Hser,
2007; Miranda et al., 2011). Deve-se prestar especial atenção ao usuário de
crack, porque alguns estudos têm mostrado que o risco sexual associado ao uso
de crack varia de acordo com os diferentes contextos em que o crack é usado
(ex.: econômicos, sociais, fissura, locais de uso etc.) (Montoya, 1998; Ross et
al., 2003; Schönnesson et al., 2008). A vulnerabilidade para as práticas sexuais
de risco, tais como trocas de atividade sexual por dinheiro ou drogas, e a
vitimização sexual são, provavelmente, mais elevadas nessa população, pelas
características farmacológicas, sociais e culturais atreladas a essa droga de
escolha (Kang et al., 2005; Brewer et al., 2007; Ober et al., 2011; Dickson-
Gomez et al., 2012).
Como mostra, por exemplo, o estudo de Nunes e colaboradores (2007),
que avaliou uma amostra de 125 mulheres usuárias de crack provenientes de
comunidades carentes em Salvador, Brasil, com 90% delas tendo baixo nível de
escolaridade e elevada taxa de desemprego. Ainda, 37% das mulheres relataram
atividade sexual por dinheiro ou drogas e 58% relataram que não usaram
preservativos durante as relações sexuais nos últimos 30 dias. O estudo reforça
que mulheres usuárias de crack são um grupo de vulnerabilidade importante
no que diz respeito à transmissão de ISTs (Nunes et al., 2007).
Outros estudos a respeito do não uso de preservativos no gênero feminino
têm mostrado outras razões, as quais incluem: achar que conhece bem a
parceria sexual; ter uma “antipatia” geral para o uso de preservativos; ter
atitudes e conceitos negativos relacionados ao preservativo (Ex. diminui
sensibilidade); não ter fácil acesso e disponibilidade de preservativos no
momento da relação sexual; questões conjugais (ser casado versus outra
classificação estado civil); religiosidade (menor); ter problemas com drogas
(quanto maior o problema com drogas maiores foram as atitudes negativas
com relação ao uso de preservativos); finalmente, não há a percepção de que
existe a necessidade de uso de preservativos naquela relação sexual (Sterk et
al., 2004; Bungay et al., 2010; Miranda et al., 2011; Norman et al., 2011).
Outras razões comuns para usuários de drogas não usarem o preservativo são:
uma menor percepção do risco de contrair o HIV /IST; atitudes negativas em
relação aos efeitos de preservativos no prazer e no desejo sexual; alta excitação
sexual quando sob a influência de drogas; e dificuldade em convencer as
parcerias sexuais a usarem preservativos (Weinstock et al., 1993; Mitchell &
Latimer, 2009).
Vinte e nove estudos de amostras provenientes de pacientes dependentes
de substâncias foram identificados em uma revisão sistemática e meta-análise
realizada por Malta et al. (2010), com 13.063 participantes no Brasil entre
1999 a 2009. Esses estudos, consistentemente, têm reconhecido que o usuário
de drogas injetáveis (UDI) e o compartilhamento de agulhas e seringas estão
entre os preditores-chave da infecção pelo HIV, bem como a mulher
profissional do sexo e homens que fazem sexo com homens (HSH). Os
resultados mostraram que a prevalência do HIV combinado por meio dos
estudos destinados a usuários de drogas, tanto injetáveis quanto não injetáveis,
foi de 23,1% (intervalo de confiança de 95% (CI): 16,7-30,2) e 38,3% nos
indivíduos que relataram que nunca usam ou quase nunca usam preservativos
com parcerias sexuais ocasionais (Malta et al., 2010).
Estudo conduzido pela Fundação Fio Cruz, no final de 2011 a junho de
2013, com 7.381 usuários de crack no Brasil, mostrou que 39,5% dos
entrevistados relataram não ter usado preservativo nas relações sexuais
vaginais no último mês da pesquisa e 53,9% nunca realizaram na vida testagem
para HIV. Nessa amostra, os usuários de crack têm prevalência oito vezes
maior que a população geral para ser portador do vírus HIV (5% versus 0,6%).
Além disso, 2,9% dos usuários de crack que vivem nas capitais do país têm
Hepatite C (FIOCRUZ, 2013).
Outros estudos também têm sinalizado a vulnerabilidade de outras
infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis, Human Papiloma Virus
(HPV), Hepatite B e C em usuárias de drogas (Judd et al., 2005; Islam et al.,
2013; Nguyen et al., 2014; Pinto et al., 2014). Estudo conduzido por Pinto e
colaboradores (2014) apresentou a amostra de 598 mulheres provenientes do
Centro de Referência e Treinamento (CRT) da AIDS na cidade de São Paulo
mostrando prevalência de sífilis prévia de 6,2% (IC 95% 4,3-8,1). Observou-se
que o crack foi identificado entre os principais fatores de risco associados à alta
prevalência de sífilis prévia [Odds Ratio = 6,8 (IC 95% 1,7-27,5)].
Usuários de club drugs (Ex. Ecstasy, GHB) compõem outra população que
aumentou dramaticamente ao longo das últimas duas décadas, segundo o
último Relatório de Drogas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime (UNODC, 2013). Alguns estudos têm documentado uma maior
prevalência do uso inconsistente do preservativo e de múltiplas parcerias
sexuais entre os usuários de club drugs em comparação com a população geral
(Ibañez et al., 2010; Zuckerman, Boyer, 2012). Em um estudo nacional
realizado por Remy et al. (2013) com 240 usuários de club drugs, 80%
relataram ter usado álcool/drogas para fazer com que a relação sexual pudesse
durar mais tempo, 52,5% relataram ter tido relações sexuais desprotegidas,
63% relataram ter mais de duas parcerias sexuais, 40% relataram ter tido sexo
anal, e 15% haviam trocado dinheiro por sexo ou sexo por dinheiro (trading
sex) nos 12 meses anteriores à entrevista. Finalmente, 84% relataram ter tido
relações sexuais com um homem que provavelmente tinha tido relações
sexuais com outro homem nos 12 meses anteriores à entrevista (Remy et al.,
2013).
Evidências recentes sugerem uma associação entre o uso de maconha e
comportamentos sexuais de risco, tais como iniciação sexual precoce, não uso
de preservativo e aumento do número de parcerias sexuais em homens e
mulheres (Saso, 2002; Eloi-Stiven et al., 2007; Aversa et al., 2008; Hendershot
et al., 2010). Importante também na questão do comportamento sexual de
risco é o número de parcerias sexuais, tipo ou padrão de relacionamento
amoroso (monogâmico, não monogâmico) ou arranjos sexuais (casual ou
fixo), tipo de intercurso sexual (anal, vaginal, oral), práticas sexuais variantes,
uso de “brinquedos sexuais” e o uso de álcool e drogas, os quais podem estar
mais ou menos propensos a riscos de contaminação se não houver uso de
preservativo (Li & McDaid, 2014; El-Bassel et al., 2014; Parsons & Starks,
2014).
Infelizmente, as tentativas de mudar os comportamentos sexuais de risco
nas mulheres que são usuárias de cocaína na forma de crack têm tido menos
sucesso do que os esforços para mudar o comportamento de risco com
compartilhamento de agulhas e seringas em usuários de drogas injetáveis
(Montoya, 1998; Nunes et al., 2007; Malchy et al., 2011). Intervenções breves
em grupo, tais como escolhas positivas, intervenções educativas ou
motivacionais já foram avaliadas com algum sucesso para aumentar o uso de
preservativos, da intenção de usar o preservativo, para mudar as atitudes do
uso do preservativo e crenças entre os fumantes de crack e outras drogas
(Harris et al., 2010; Williams et al., 2012; Fischer et al., 2015).
Revisão de Cochrane, conduzida por Meader et al. (2010), avaliou um total
de 35 estudos com 11867 participantes afim de avaliar a eficácia de
intervenções psicossociais do tipo multisessão, em comparação com a
educação padrão e controles de intervenção mínimas para a redução do uso de
seringas e de comportamento sexual de risco, tanto em usuários de cocaína
injetável quanto na forma decrack. Os resultados mostram que todos os
grupos foram eficazes em promover alguma redução do comportamento de
risco. Além disso, houve alguma evidência de benefício para intervenções
psicossociais multisessão quando comparadas com os controles mínimos. As
análises de subgrupos sugerem que as pessoas em tratamento formal são
propensas a responder a intervenções psicossociais multisessão. Parece
também que grupos de gênero único (somente mulheres ou somente homens)
podem estar associados a um maior benefício (Meader et al., 2010).
Cabe finalmente mencionarmos um fenômeno mundial relativamente
recente chamado de “chemsex”, do inglês chemical sex (sexo químico), ou seja,
festas com convidados que irão usar drogas, fazer atividade sexual sob o efeito
delas e com sérios riscos de não usarem preservativos. Em Londres, o
fenômeno já vem sendo considerado uma questão de saúde pública pelas
autoridades e especialistas. O termo “chemsex” foi cunhado para indicar a
ingestão voluntária de drogas psicoativas e não psicoativas no contexto de
ambientes recreativos para facilitar e/ou melhorar as relações sexuais
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Li%20J%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24345556
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=McDaid%20LM%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24345556
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Parsons%20JT%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24322670
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Starks%20TJ%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24322670
principalmente entre homens que fazem sexo com outros homens (HSH)
(Giorgetti et al., 2017).
Os tipos de drogas ofertadas são das mais variadas, no entanto uma
bandeja com speed e cetamina parece ser um dos “menus principais”. Mas
mefedrona, metanfetamina e GHB estão na lista a fim de fazerem com que o
participante da festa possa suportar sessões de atividade sexual por mais
tempo, as quais podem durar vários dias. As atividades envolvem um claro
perigo, emoções e sensações intensas e uma oportunidade para exercitar
habilidades especializadas (Hickson et al., 2018).
Um dos principais problemas para estabelecer intervenções prioritárias de
políticas de saúde para chemsex é a falta de dados epidemiológicos disponíveis
sobre a questão. Ações sociais devem ser tomadas a fim de derrubar as
barreiras que atualmente existem entre usuários de drogas no acesso a
serviços, incluindo a vergonha e o estigma frequentemente associados ao uso
de substâncias. São necessários recursos mais específicos para enfrentar altos
riscos de infecções e transmissão do HIV (Giorgetti et al., 2017).
CAPÍTULO 6
DISFUNÇÃO SEXUAL EM
DEPENDENTES DE SUBSTÂNCIAS
Alessandra Diehl
Para falarmos sobre disfunções sexuais, é preciso entender as fases da
resposta sexual humana. Os pioneiros nesse campo de pesquisa sobre as
respostas da sexualidade humana foram William Masters e Virginia Johnson
(1966), que descreveram o ciclo de resposta sexual nas seguintes fases:
excitação, platô, orgasmo e resolução. Ilustrado pela Figura1.
FIGURA 1 - CICLO DE RESPOSTA SEXUAL
Fonte: Adaptada de Masters e Johnson, 1966
Algum tempo mais tarde, em 1974, Helen Kaplan propôs a importância do
estágio do desejo para que haja engajamento sexual no seguinte esquema:
desejo, excitação, orgasmo e resolução (Kaplan, 1974). Enquanto que os
sexólogos brasileiros Mabel e Ricardo Cavalcanti propuseram (Cavalcanti, M.
& Cavalcanti, R., 2012):
Apetência: fase subjetiva, em que há resposta a um estímulo, caracterizando-se
pelo desejo ou apetência sexual.
Excitação: resposta fisiológica (ereção no homem e tumescência e lubrificação na
mulher).
Orgasmo: contrações musculares reflexas e sensação de clímax do prazer sexual.
Relaxamento: retorno progressivo do organismo às condições basais com
relaxamento muscular e de congestão sanguínea.
Cabe mencionar também que, para a pesquisadora canadense Rosemary
Basson, o ciclo de resposta sexual na mulher deve ser compreendido
diferentemente do modelo dos homens, uma vez que nas mulheres a
intimidade emocional é extremamente relevante, podendo sair do estágio de
neutralidade sexual para então, sob estímulos, engajar-se na atividade sexual
(Basson, 2011).
A busca de um modelo de resposta sexual mais flexível
para as mulheres
Há ainda um debate na literatura científica sobre qual modelo de resposta
sexual humano pode de fato melhor representar a resposta sexual de mulheres
(Hayes et al., 2011). Tradicionalmente, a pesquisa sexual tem sido conduzida
dentro do modelo de resposta sexual linear proposto por Masters e Johnson
(1966), modificado por Kaplan (1979), com a introdução da dimensão do
desejo sexual. A crítica aos modelos lineares levou ao desenvolvimento de um
modelo circular específico para a resposta sexual feminina idealizado por
Basson (2000). No entanto esse modelo de resposta para as mulheres também
tem sido alvo de críticas, uma vez que parece se adequar e melhor representar
apenas aquelas mulheres com alguma disfunção sexual. Os pontos-chave do
modelo da canadense Rosemary Basson incluem o fato de que o desejo sexual
não é obrigatório para que a resposta sexual seja iniciada, embora possa se
seguir de estímulos sexuais prazerosos. A ênfase está na motivação da mulher
para se envolver na atividade sexual. O modelo é circular, porque as emoções
positivas ou negativas experimentadas durante cada atividade sexual tendem a
influenciar subsequentemente a motivação da mulher para participar de
encontros sexuais posteriores.
O artigo de Ferenidou e seus colegas gregos, publicado em 2016 no Journal
of Sexual Medicine, observou uma interessante lacuna na literatura científica,
uma vez que os estudos publicados até o momento abordaram mulheres
solicitando para que elas escolhessem entre um ou outro modelo que melhor
se “encaixa” com o seu contexto sexual (ou linear ou circular). Apenas um
estudo conduzido por Nowosielski, Wrobel e Kowalczyk (2016) na Polônia
com 100 mulheres deu a opção para a amostra de mulheres incluídas
escolhessem um ou outro, ou ambos. Entre as limitações desse estudo estão o
fato de a amostra ser relativamente pequena, o que impede generalizações,
assim como o fato de haver uma proporção semelhante de mulheres com e
sem disfunção sexual.
Dentro desse cenário, o artigo de Ferenidou et al. (2016) teve como
objetivos saber qual modelo de resposta sexual humano melhor representa e
ajusta-se às experiências sexuais das mulheres, e também conhecer os fatores
que poderiam explicar a variação da escolha de um ou outro modelo (linear ou
circular, ambos ou nenhum) de resposta sexual humano nas mulheres
baseados na dimensão do conceito de motivação sexual proposto no modelo
circular de Basson.
Para tanto, os autores recrutaram de forma aleatória e randômica 205
mulheres trabalhadoras de um hospital na Grécia. Destas, 172 (76.2%)
responderam ao inquérito voluntário, anônimo, sem identificação, cuja
resposta era depositada em uma urna. No entanto a amostra final foi composta
por 157 mulheres, uma vez que 15 tiveram que ser excluídas por não
completarem todo o questionário de forma adequada. Os critérios de inclusão
eram apenas a voluntariedade em participar e ser maior de 18 anos. A média
de idade dessa amostra (variando entre 21 a 58 anos) foi de 34 anos. Os
instrumentos utilizados foram:
1. A criação de uma pergunta formulada para que as mulheres fossem convidadas a
escolher qual dos modelos descreve sua atual experiência sexual. As mulheres
também tiveram oportunidade de escolher os dois modelos e, em seguida, indicar
quantas vezes cada modelo descreveu melhor sua experiência sexual numa escala
de frequência.
2. O Índice de funcionamento Sexual Feminino (FSFI) é um instrumento de
autorrelato com 19 itens para avaliar as principais dimensões da função sexual em
mulheres, o qual foi validado e adaptado culturalmente em pelo menos 15 países,
inclusive na Grécia. Uma pontuação total não superior a 26.55 é sugerida como o
ponto de corte para distinguir mulheres com aquelas sem uma disfunção sexual.
Os autores usaramuma versão adaptada do instrumento com back translation
feita por intermédio de grupos focais anteriormente à pesquisa.
3. A Brief Sexual Symptom Checklist for Women (BSSC-W) é uma lista de
verificação de autorrelato com quatro itens simples sobre a percepção e a
satisfação das mulheres em relação à função sexual desenvolvida pela Consulta
Internacional sobre Medicina Sexual. A lista de verificação de sintomas breves é
adequada para uso em ambientes de atenção primária e aborda o nível de
satisfação com a função sexual usando uma única pergunta: “Você está satisfeita
com sua função sexual (sim ou não)?” Para uma resposta negativa, três perguntas
adicionais se seguem as quais avaliam a duração da insatisfação de uma paciente
com sua função sexual, o(s) tipo(s) de problemas sexuais vivenciados e a
disposição da paciente em discutir o problema com um profissional de saúde.
4. Reasons for Having Sex Questionnaire (YSEX): é um instrumento que consiste em
142 razões pelas quais as pessoas fazem sexo, divididas em quatro fatores gerais e
13 subfatores. Os participantes pontuam de 1 a 5 na frequência com cada razão
que os leva a ter atividade sexual. Nesse estudo, foram utilizadas 13 frases
representando os 13 subfatores do questionário principal (versão curta).
Os resultados gerais mostram que 64.3% das mulheres escolheram o
modelo linear (Master, Johnson, & Kaplan), 14.6% escolheram o modelo
circular da Basson e 20% escolheram os dois modelos. Não houve diferenças
estatísticas dessa correlação. Quanto à motivação das mulheres para se
engajarem em atividade sexual estão 36.5% por prazer, 31.4% para expressar
sentimentos em relação ao parceiro e 27.2% por amor e compromisso. Quanto
maior o índice de FSF maior a satisfação sexual e maior a probabilidade de ter
escolhido os dois modelos. Mulheres com disfunção sexual tenderam a ter
escolhido o modelo da Basson, circular.
Os autores apontaram as limitações desse estudo, que incluem os possíveis
vieses de seleção e aferição dos dados. Soma-se o fato de ser uma amostra
pequena e daí a necessidade de se ter cautela com generalizações. Os autores
também apontaram que as escalas utilizadas não são validadas naquele país,
assim como o contexto em que as perguntas foram feitas, num ambiente de
trabalho, pois todas essas questões podem ter influenciado os resultados. No
entanto o aspecto positivo a ressaltar desse estudo e com possíveis implicações
para a prática clínica foi o fato de a discussão os autores proporem que os
terapeutas e profissionais de saúde que trabalham na área com os modelos de
resposta sexual para mulheres não fiquem “engessados” ou que
necessariamente o profissional tenha que escolher um ou outro para trabalhar
com suas pacientes. Mais da metade das mulheres endossou os dois modelos,
embora em dois terços do tempo o modelo linear fosse o preferido. Esses
achados sugerem heterogeneidade e flexibilidade na resposta sexual,
dependendo das circunstâncias. A adoção de um ou outro modelo não é
necessariamente uma escolha vitalícia. As mulheres podem caracterizar seu
estilo de resposta sexual como um modelo mais próximo em uma determinada
vez e outro modelo em um momento diferente, retratando a variabilidade do
comprometimento com um ou outro modelo ao longo do ciclo de vida.
Esse artigo recebeu comentário de crítica em cartas ao editor escrito por de
Driscoll M, Basson R, Brotto L, Correia S, Goldmeier D, Laan E, Luria M,
Shultz W, Tiefer L, Toates F, intitulado “Empirically Supported Incentive
Model of Sexual Response Ignored” e publicado no J Sex Med (2017 May; 14
(5): 758-759. doi: 10.1016/j.jsxm.2017.03.248). Segundo Driscoll e colegas
(2017), o círculo representado nesse estudo por Ferenidou et al. (2016) não
reflete o modelo de Rosemary Basson e não deve ser rotulado dessa forma. O
modelo de Basson (subsequente ao seu modelo parcial inicial em 2000, que
introduziu a ideia de reconhecer o desejo que era responsivo aos estímulos,
uma vez que a atividade sexual já tenha começado), foi representado a partir
de 2001 como um composto – permitindo o comportamento sexual
decorrente de um senso de desejo sexual já presente e/ou de outras
motivações. Basson observou que muitas dessas outras motivações têm relação
com aumentar ou promover a intimidade, como mais tarde confirmado por
grandes estudos e por pequenos, como o de Ferenidou et al. (2016). Outras
motivações dizem respeito à expectativa ou à antecipação do prazer sexual,
embora no momento da oferta do convite sexual, ou da sua iniciação, a pessoa
é sexualmente “neutra”, mas está “aberta” ou querendo se excitar e sentir o
desejo “em breve”. A observação de que a maioria das mulheres endossou os
dois modelos que foram oferecidos sugere fortemente que o modelo composto
de Basson (em oposição ao círculo descrito por Ferenidou et al., 2016)
refletiria melhor sua variável, diversa, e as experiências sexuais fluidas. A
segunda crítica foi relativa ao fato de que quando a disfunção sexual é
identificada ou definida por baixos níveis de desejo aparentemente não
provocado ou “espontâneo”, como em instrumentos e discussões que assumem
apenas o desejo espontâneo como “normal”, então as mulheres mais
familiarizadas com o desejo desencadeado a partir de estímulos sexuais serão
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Brotto%20L%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Goldmeier%20D%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Laan%20E%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Shultz%20W%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Tiefer%20L%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Toates%20F%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=28499526
automaticamente consideradas disfuncional. Não há reconhecimento ou
mensuração de sua maior parte responsiva – ou nos termos “extrínsecos” da
Kaplan – ao usar esses instrumentos.
As questões que os autores não contextualizaram na discussão e que
acredito que caberia ainda discutir de forma breve são: (1) o contexto cultural.
Será que esses achados são particulares dessa amostra e têm uma questão
cultural envolvida? Daí a recomendação para replicação em outros contextos,
não só de locais de saúde, como foram coletados esses dados, mas também
outras amostras para verificar se os achados se repetem com maior
diversificação de mulheres. Também (2) não foi contextualizado o fato de a
amostra ser constituída somente por mulheres heterossexuais e cisgêneras. Já
que os autores chamam a atenção para a flexibilidade do modelo e a
heterogeneidade das vivências sexuais de mulheres e a fluidez delas, também
fica a curiosidade para saber se essa flexibilidade reflete-se em diferentes
grupos de mulheres, como em negras e lésbicas, transexuais, por exemplo, o
que não foi sequer discutido ou aventado.
A Função Sexual
A função sexual baseia-se em uma complexa rede de vias neurais
periféricas e centrais (Wu et al., 2009). Classicamente, os receptores externos
do corpo transmitem informações a partir do ambiente para o córtex cerebral,
por meio do tálamo. De tal modo que a resposta sexual humana envolve a
participação de múltiplos tipos de estímulos (psicológicos, biológicos,
ambientais) e o processamento do entendimento do controle sexual e da
resposta sexual supõe a integração entre os mecanismos fisiológicos clássicos
com os processos mais complexos da mente humana (Motofei & Rowland,
2014). Assim, a cognição e a sexualidade são duas funções relacionais
dependentes de todos esses estímulos (Heaton & Adams, 2003). Estudos de
imagem funcional cerebral em humanos têm indicado o papel essencial das
regiões corticais, como o córtex cingulado anterior, na participação da função
sexual e do amor romântico. No entanto pode-se dizer que ainda se sabe
muito pouco sobre os substratos neurais envolvidos em evocar estados
afetivos do amor romântico (Bartels & Zeki,2000).
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Rowland%20DL%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=24053436
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Heaton%20JP%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=14551574
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=Zeki%20S%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=11117499
O desejo sexual desperta nos seres humanos o estímulo para buscar
experiências sexuais ou tornar-se receptivo a elas. A percepção de um estímulo
positivo desencadeia uma ativação em centros específicos localizados em áreas
cerebrais conhecidas como centros de recompensas cerebrais ou centro do
prazer. A ativação biológica ocorre em linhas gerais por ação tanto de
hormônios quanto de neurotransmissores. Os ritmos sexuais biológicos nos
homens e nas mulheres são modulados pelos hormônios sexuais por meio da
sua ação sobre os centros sexuais do cérebro. Assim, homens e mulheres
podem controlar esses estímulos, modificá-los ou submetê-los à sua vontade.
Pode-se dizer que o cérebro é o órgão sexual mais importante no ser humano
e que a regulação fisiológica da função sexual ocorre pelo envolvimento de
várias regiões encefálicas. Destaca-se o hipotálamo na área pré-óptica medial,
que determina a regulação excitação/inibição e é considerado decisivo no
comportamento sexual. Também merece destaque o papel do sistema límbico,
da amígdala ou corpo amigdaloide situado no lobo temporal, que atua na
modulação do comportamento erótico e emocional. No ser humano, o córtex
tem grande importância na regulação sexual, pois define a modulação psíquica
e de aprendizagem, definindo, portanto, a ação de ser inibidor ou facilitador
desse processo (Pereira, 2013).
Quanto aos hormônios, o papel da testosterona é o mais significativo,
sendo considerado para ambos os sexos o “hormônio do desejo”. Outro
hormônio que atua nos centros sexuais do cérebro é o fator liberador do
hormônio luteinizante (LH-RF), que pode “incrementar” o desejo sexual,
mesmo na ausência da testosterona. O papel desses hormônios influencia o
comportamento sexual por meio de sua interação com neurotransmissores
que modulam os impulsos neurais dentro dos circuitos sexuais. As bases
neurofisiológicas e neuroanatômicas do desejo sexual não foram tão bem
delineadas como outros impulsos como a fome, a sede ou a necessidade de
dormir. No entanto sabe-se que dois neurotransmissores estão bastante
envolvidos na fase de desejo: a dopamina e a serotonina. A dopamina estimula
o desejo sexual e a serotonina atua como inibidora dele (Pereira, 2013).
Disfunção sexual é definida por Cavalcanti e Cavalcanti como um “bloqueio”
parcial ou total da resposta psicofisiológica, ou seja, entre uma fase e outra
(Cavalcanti & Cavalcanti, 2012). Se o bloqueio ocorre entre o estímulo e a
apetência/desejo, caracteriza-se disfunção de apetência ou desejo hipoativo.
Disfunção de excitação ocorre quando existe um bloqueio entre a apetência e
a excitação (disfunção erétil no homem e alterações na lubrificação vaginal
na mulher). Disfunção orgástica é a ausência do orgasmo ou anorgasmia. É
importante ressaltar que, no homem, o orgasmo geralmente coincide com a
ejaculação e, assim, tem-se as disfunções ejaculatórias (ejaculação rápida ou
precoce, e ejaculação bloqueada ou retardada). Outras disfunções são a
dispareunia (dor na relação sexual) e vaginismo (contração involuntária da
vagina, que impede a penetração). Vale lembrar que para ser considerada de
fato uma síndrome clínica de disfunção sexual, os sintomas devem estar
presentes por um período igual ou superior a seis meses.
Essas terminologias estão em processo de modificação, sendo que algumas
já foram incorporadas na nova Diagnostic Statistc of Mental Disorders (DSM)
V e algumas outras serão incluídas na Classificação Internacional das Doenças
(CID) 11, na qual está sendo proposta uma categoria única para as disfunções
sexuais, ou seja, uma classificação unificada de disfunções sexuais sem o
subitem orgânico e não orgânico, eliminando assim a falsa dicotomia entre
mente e corpo. Também existe a tentativa de unificar as disfunções sexuais
masculinas e femininas, quando possível. Acredita-se que isso possa reduzir o
estigma e incentivar a busca pelo tratamento. Assim, a categoria requer um
novo capítulo que provavelmente sairá do capítulo V, de transtornos mentais.
Está sendo sugerido um novo capítulo para questões da saúde sexual e
condições relacionadas. Também está sendo proposta a remoção das
categorias “aversão sexual” e “falta de prazer sexual”, as quais estão amarradas a
velhas noções de “frigidez” feminina (Waldinger & Schweitzer, 2006;
Perelman, 2011; Clayton et al., 2012).
A disfunção sexual é um problema que pode se tornar crônico, muito
comum e prevalente na população geral (Abdo, 2004; Hayes et al., 2006; Burri
& Spector, 2011; Lewis, 2011) e em especial entre as pessoas que usam drogas
em todo o mundo (Lemere & Smith,1973; Rosen, 1991; Okulate et al., 2003;
Cheng et al., 2007; Palha & Esteves, 2008), estando associada à baixa
autoestima, a sintomas de depressão, ao prejuízo na qualidade de vida e na
saúde física, os quais podem ser um gatilho para a recaída da droga, percebida,
muitas vezes, como benéfica pelo usuário para a sua resposta sexual (Okulate
et al., 2003; Bang-Ping, 2009; Mialon et al., 2012; Cioe et al., 2013).
No entanto a maioria dos psicólogos, clínicos e psiquiatras que atuam na
área do tratamento das dependências de substâncias raramente realizam uma
anamnese sexual sumária nas consultas de rotina que incluem diretrizes sobre
as disfunções sexuais em pacientes dependentes de drogas. Portanto essa
conduta ainda não é uma prática generalizada em ambientes clínicos e, como
resultado, a disfunção sexual é ainda muitas vezes negligenciada e inexplorada
em atendimento clínico de rotina de pacientes dependentes de drogas (Harvey,
2009, 2010; Diehl et al., 2011a; Zaazaa et al., 2013). A identificação da
magnitude desses transtornos e a gestão de questões relacionadas com a saúde
sexual nessa população podem ter impacto significativo na promoção da saúde
desses indivíduos (Vieira & Diehl, 2011; Harvey, 2010).
Gerenciar os problemas sexuais e o uso de drogas é especialmente
importante para a melhora dos sintomas relacionados à disfunção sexual, já
que sua resolução não pode acarretar uma busca de alívio no uso de drogas,
em resposta à frustração de não atingir o prazer sexual (Harvey, 2009).
Acredita-se que a percepção desses problemas por parte dos profissionais de
saúde tende a contribuir para uma atenção integral e mais humanizada (Worly
et al., 2010).
Portanto, a disfunção sexual em pacientes com transtornos por uso de
substâncias é uma questão a ser considerada no campo da medicina sexual
(Zaazaa et al., 2013), mas ainda com sub-representação nos estudos científicos
sobre esse assunto no cenário acadêmico (Cheng et al., 2007; Chew et al.,
2009), uma vez que há uma falta de estudos descritivos com foco na disfunção
sexual em homens e mulheres dependentes de álcool e outras drogas, e isso
inclui os estudos brasileiros.
Muitos dos estudos sobre esse tema presentes na literatura científica
internacional têm sido realizados principalmente com usuários de opioides ou
avaliando os efeitos de medicamentos (metadona e buprenorfina), usados para
tratar usuários de heroína, sobre a resposta sexual (Diehl et al., 2010;
Babakhanian et al., 2012; Cioe et al., 2013). Os relatos são provenientes de
adultos jovens do sexo masculino dependentes de opioide, com idade média
variando de 28 a 49 anos, cujas taxas de prevalência de disfunção erétil
variaram em média de 21-52% (Hallinan et al., 2008; Babakhanian et al., 2012;
Cioe et al., 2013). A prevalência de ejaculação precoce em dependentes de
opioides tem sido referida como sendo quase três vezes maior do que o
relatado na população geral (um em cada quatro homens pode sofrer de
ejaculação precoce) (Abdo, 2004; Chekuri et al., 2012). Em longo prazo, os
opioides afetam o eixo hipotalâmico-pituitário-gonadal (HPG) e interferem na
produção de hormônios sexuais,o que contribui para a disfunção erétil. Além
disso, os opioides exógenos se ligam a receptores µ (mu) no hipotálamo,
diminuindo a liberação do hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH). Os
opioides também aumentam a liberação de prolactina pela hipófise e
modificam a produção de hidroepiandrosterona (DHEA) nas glândulas
suprarrenais, o que afeta tanto a produção quanto a liberação de testosterona.
Isso leva à diminuição na liberação de hormônio luteinizante, do hormônio
folículo-estimulante da hipófise e a uma queda na produção gonadal de
esteroides (testosterona e estradiol) (Cicero et al., 1979).
Existe relato de que o consumo sistemático e em longo prazo de altas
quantidades de álcool pode acarretar disfunção sexual em homens, uma vez
que se acredita que o álcool pode causar danos neurológicos (Pandey et al.,
2012). Estudo sobre esse tema na década de 70 mostra que a prevalência de
disfunção sexual na população dependente de álcool era em torno de 8%, e
persistindo em 50%, mesmo após longa abstinência de álcool (Lemere &
Smith, 1973). Outros autores encontraram taxas de disfunção sexual variando
de 40 a 95% em pacientes dependentes de álcool. As disfunções sexuais
comumente relatadas foram a disfunção erétil, seguida de ejaculação precoce,
ejaculação retardada e diminuição do desejo sexual entre os homens. Entre as
mulheres dependentes de álcool, observa-se a presença de dispareunia e secura
vaginal. Outra correlação consistente de disfunção sexual relatada em
pacientes dependentes de álcool é o avanço da idade. Outros correspondentes
de disfunção sexual incluem a idade de início de consumo de álcool, a duração
do alcoolismo (quanto mais crônico, maior a presença de disfunção sexual), a
presença de doença hepática, o uso de cigarro, o baixo nível de escolaridade e
o desemprego (Arackal & Benegal, 2007; Krupnov et al., 2011; Vieira & Diehl,
2011; Zaazaa et al., 2013).
A principal limitação dos dados existentes é a maneira pela qual a
disfunção sexual foi avaliada em estudos com indivíduos dependentes de
álcool. Alguns estudos têm avaliado a disfunção sexual usando a notificação
espontânea ou questões abertas, que podem ser interpretadas de forma
diferente por diferentes pacientes e, portanto, os resultados podem não ser
comparáveis. Outros estudos usaram medidas inconsistentes e não validadas
de disfunção sexual. Além disso, os grupos foram mistos de homens e
mulheres, não avaliaram outros fatores contextuais que podem contribuir para
a disfunção sexual ou, em sua grande maioria, não utilizaram controles
pareados (Fahrner, 1987; O’Farrell et al., 1991; Rosen, 1991; Okulate et al.,
2003; Cheng et al., 2007; Chew et al., 2009).
Apesar de a disfunção sexual feminina ter sido investigada em grupos de
mulheres com vários problemas de saúde, como as portadoras de síndrome
dos ovários policísticos, diabetes, HIV e câncer de mama, as mulheres com
transtorno por uso de substâncias têm sido pouco estudadas com relação à
disfunção sexual. Mulheres dependentes de álcool e outras drogas representam
uma população única para fatores de vulnerabilidade e que continuam a sofrer
baixas taxas de detecção e acesso limitado ao tratamento para questões
relacionadas às disfunções sexuais (Lau et al., 2005; Hayes et al., 2006; Niv &
Hser, 2007). Fatores sociodemográficos como idade, estado civil, renda e
educação têm sido fortemente preditivas de sintomas de disfunção sexual nas
mulheres, cujas taxas de prevalência de sintomas de disfunção sexual variam
de 12 a 63% (Burri et al., 2011; Lewis, 2011; Worly et al., 2010).
O manejo das disfunções sexuais em dependentes químicos nem sempre é
uma tarefa fácil. No entanto ela é possível à medida que a droga de uso seja
removida e os outros fatores de risco possíveis causadores e o tipo de
disfunção sexual sejam identificados e trabalhados (ex. obesidade, tabagismo,
dislipidemia, sedentarismo, entre outros).
Por exemplo, nas últimas décadas, a disseminação de opioides nos EUA
tornou-se uma epidemia, em grande parte estimulada pelo aumento do uso de
analgésicos prescritos. Com a epidemia veio um aumento concomitante na
incidência de deficiência de androgênio induzida por opioides. Embora a
deficiência de androgênios possa afetar significativamente a função sexual
masculina e a qualidade de vida, é uma entidade clínica negligenciada e pouco
entendida que requer mais atenção dos profissionais de saúde. Como a
deficiência de androgênios causadas por opioides é uma consequência
subestimada e subdiagnosticada do uso crônico de opioides, os profissionais de
saúde devem estar particularmente atentos a sinais de hipogonadismo nessa
população de pacientes. É razoável que especialistas em dor, urologistas e
médicos da atenção primária acompanhem de perto os pacientes com opioides
prescritos e discutam as opções disponíveis para o tratamento do
hipogonadismo. Deve haver a solicitação de estudos laboratoriais
(testosterona, hormônio luteinizante [LH], hormônio folículo estimulante
[FSH]) em pacientes sintomáticos que têm uma história de uso crônico de
opioides. As opções de tratamento incluem cessação de opioides, opioides de
ação curta e terapia de reposição de testosterona (TRT). O paciente e o
médico devem pesar os riscos e benefícios do TRT contra abordagens mais
conservadoras (Hsieh et al., 2018).
Para ejaculadores precoces o uso de antidepressivos inibidores da
recaptação da serotonina (IRSS) continua sendo uma boa possibilidade, tal
como paroxetina 20 mg/dia, fluoxetina 20 mg/dia, sertralina 50 mg/dia entre
outros. Para a disfunção erétil (DE) pode avaliar riscos e benefícios, assim
como contraindicações para o uso dos inibidores da fosfodiesterase -5 (PDE-5)
(Diehl & Vieira, 2017).
A população de mulheres com diagnóstico de dependência de álcool entra
na fase da menopausa na mesma idade que a população de mulheres não
bebedoras. O tempo de uso de álcool é um fator importante que afeta tanto o
curso da menopausa quanto a dinâmica do período da perimenopausa,
levando à escalada dos sintomas. Identificar o alcoolismo e tratar os sintomas
da menopausa tende a trazer maior qualidade de vida, já que o alcoolismo
prejudica as funções sexuais femininas (diminuição do desejo sexual, redução
do fluido vaginal, dificuldade para sentir o orgasmo). Daí a importância de
avaliar o estágio e sintomas menopausais e tratá-los conjuntamente quando
possível (Jenczura et al., 2018). A idade precoce do início da menopausa tem
sido associada ao aumento dos riscos de todas as causas, cardiovasculares e de
mortalidade por câncer. O risco da idade precoce na menopausa associada à
exposição primária e secundária ao álcool e ao tabaco são também importantes
a serem consideradas em mulheres dependentes dessas duas substâncias
(Fleming et al., 2008).
CAPÍTULO 7
DEPENDÊNCIA DE SEXO, PARAFILIAS
E DEPENDÊNCIA DE DROGAS
Alessandra Diehl
A dependência de sexo é discutivelmente uma questão ainda controversa,
mas isso não retira o fato de que alguns indivíduos buscam ajuda profissional
para sexo excessivamente problemático, independentemente de como o
comportamento é conceituado (Dhuffar & Griffiths, 2016).
Há certa inconsistência entre os pesquisadores não somente quanto ao
conceito, mas também quanto à definição de dependência de sexo. Goodman
(1993) definiu a dependência sexual como uma falha em resistir aos impulsos
sexuais, com frequente ocupação com atividades sexuais, as quais são
preferidas em detrimento a outras atividades, inquietação quando não é
possível realizar atividade sexual e tolerância a esse comportamento. Já Mick e
Hollander (2006) definiram dependência de sexo como um comportamento
sexual compulsivo e impulsivo, enquanto Kafka (2010) definiu como
hiperssexualidade, que é o comportamento sexual acima da média, o qual é
caracterizado por falha em interromper o comportamento sexual com
consequências ocupacionais.
Em vista das várias definições de dependência de sexo, um dos desafios é
determinar o que constitui de fato essa condição. A quinta edição do Manual
Diagnóstico eEstatístico de Transtorno Mental (DSM-5) usa o termo
hiperssexualidade como um sintoma (American Psychiatric Association,
2013), mas esse termo é problemático, pois a maioria dos pacientes não sente
que sua atividade ou impulsos estão acima da média. Além disso, o DSM-5 não
usa o termo hiperssexualidade como transtorno mental. Em segundo lugar, o
termo é enganoso, uma vez que a dependência de sexo é resultado de um
impulso ou desejo sexual e não de desejo sexual excepcional e, finalmente, a
dependência de sexo pode se manifestar de maneiras diferentes que não
necessariamente encaixam-se nessa definição (Dhuffar & Griffiths, 2016).
De acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID-11) da
Organização Mundial da Saúde (2018), o transtorno de comportamento sexual
compulsivo é caracterizado por um padrão persistente de falha no controle de
impulsos sexuais repetitivos e intensos, resultando em comportamento sexual
repetitivo. Consequentemente, os sintomas desse transtorno incluem
atividades sexuais repetitivas que induzem sofrimento mental significativo e
eventualmente prejudicam a saúde física e mental do indivíduo, apesar do
esforço malsucedido de reduzir os impulsos e comportamentos sexuais
repetitivos (Dhuffar & Griffiths, 2016).
O transtorno hiperssexual tem íntima relação com o fenômeno do prazer e
com a gratificação cerebral (Vieira Jr. & Bizeto, 2006; Kaplan & Krueger,
2010; Berner & Briken, 2012). Tratam-se de comportamentos sexuais
compulsivos e impulsivos que incluem atos sexuais repetitivos, busca
compulsiva por parcerias sexuais, masturbação excessiva, consumo exagerado
de filmes pornográficos, literatura erótica e/ou profissionais do sexo, uso
compulsivo da internet para excitação sexual ou pensamentos sexuais
compulsivos que, de tão frequentes e intensos, acabam por interferir na
intimidade interpessoal e sexual, bem como com o funcionamento laboral e
profissional, gerando vergonha, culpa e stress pessoal (Black et al., 1997; Abdo
& Scanavino, 2008; Garcia & Thibaut, 2010; Levine, 2010).
Portanto é uma síndrome clínica reconhecida atualmente apenas na CID e
não no DSM V (Walters et al., 2011), subdiagnosticada tanto na população em
geral quanto em amostras clínicas. Entre os norte-americanos, atinge 5% a 6%
da população. Dados populacionais brasileiros sobre esta condição ainda são
inexistentes (Abdo & Scanavino, 2008; Kuzma & Black, 2008; Levine, 2010). O
quadro clínico, em geral, ocorre no final da adolescência ou início da vida
adulta, sendo que a busca por tratamento costuma ser tardia, geralmente
coincide com algum problema de ordem judicial, legal, ocupacional ou familiar
por conta do comportamento disfuncional ou “fora de controle” (Weissberg &
Levay, 1986; Abdo & Scanavino, 2008; Garcia & Thibaut, 2010).
Evidências empíricas sugerem que, entre os que buscam tratamento, os
homens são mais propensos do que as mulheres a procurarem ajuda para
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Kaplan%20MS%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Krueger%20RB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Berner%20W%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=22876526
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Briken%20P%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=22876526
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D
dependência de sexo. No entanto barreiras potenciais ao tratamento de
mulheres dependentes do sexo são identificadas para que elas não procurem
por tratamento, citam-se: (a) barreiras individuais, (b) barreiras sociais, (c)
barreiras de pesquisa e (d) barreiras de tratamento (Dhuffar & Griffiths, 2016).
No estudo de Dhuffar e Griffiths (2016) com 267 participantes, os homens
mostraram maiores pontuações de dependência de sexo do que as mulheres,
foram mais abertos a experiências sexuais diversas e mostraram-se menos
neuróticos que as mulheres. Fatores de personalidade contribuíram
significativamente para a variância da dependência de sexo entre os gêneros. A
abertura a experiências e o neuroticismo apresentaram correlações positivas
com os escores da escala de rastreio de sexo. Os traços de personalidade
explicaram 11,7% da variância.
Há cerca de um século, Krafft-Ebbing descreveu um quadro
psicopatológico da sexualidade que resultava em uma sucessão de
envolvimentos em atividades sexuais insaciáveis, nas quais os indivíduos se
engajavam de maneira impulsiva em relações sexuais (Ebbing, 1965). Alguns
autores defendem a sua inclusão na categoria dos transtornos obsessivo-
compulsivos (TOC). Outros autores defendem que tais comportamentos
corresponderiam, mais especificamente, aos critérios diagnósticos dos
transtornos de controle dos impulsos, segundo classificação do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). Finalmente, há os que
considerem esses comportamentos como pertinentes à esfera das
dependências (Quadland, 1985; Abdo & Scanavino, 2008).
Alguns pesquisadores reconhecem que a denominação “sexo compulsivo”
engloba, na verdade, “comportamentos que resultam em prazer imediato a
despeito de consequências danosas”, ou seja, um dos critérios nucleares das
dependências (Carnes, 1983, 1989; Garcia & Thibaut, 2010; Kaplan &
Krueger, 2010; Wöfle, 2010).
Na atualidade, o fenômeno do transtorno hiperssexual tem sido descrito
dentro de um espectro de três clusters de sintomas, os quais incluem:
impulsividade, obsessividade/compulsividade ou, ainda, similar às
dependências por substâncias (Bancroft & Vukadinovic, 2004; Mick &
Hollander, 2006; Stein, 2008; Karila et al., 2014). A questão conceitual ainda
apresenta controvérsias (Steven & Christopher, 1998), sendo que os novos
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Kaplan%20MS%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Krueger%20RB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=20358460
manuais classificatórios podem trazer atualizações, mas estes poderão falhar
devido a grandes diferenças interculturais e individuais na definição de
sexualidade “normal” como o ponto de origem para alterações “patológicas”.
Vale lembrar que, em medicina, o conceito de normalidade tem a conotação
daquilo que é mais frequente ou mais encontradiço, nem sempre não normal
significa doença (Hook et al., 2010; Wölfle, 2010).
Carnes, em 1989, propôs fases de um ciclo de dependência de sexo
caracterizado por quatro estágios, conforme ilustram o Quadro 1 e a Figura 2.
QUADRO 2 - FASES DA DEPENDÊNCIA SEXUAL, SEGUNDO CARNES (1989)
Fonte: Carnes, 1989
FIGURA 2 - CICLO DA ADICÇÃO SEXUAL
Fonte: Adaptado de Carnes, 1989
A pesquisa sugere que há várias semelhanças entre a neuroplasticidade
induzida por recompensas naturais (ex. comida, exercício) e aquelas por
drogas de abuso e que, dependendo da recompensa, a exposição repetida a
recompensas naturais pode induzir a neuroplasticidades que promovem o
comportamento dependente, inclusive o de sexo (Olsen, 2011).
Entre as comorbidades psiquiátricas mais comuns estão: transtornos
ansiosos (50%), transtornos do humor (39%), transtornos pelo uso de
substâncias (24% a 65%), transtorno parafílico (30% exibicionistas) (Black et
al., 1997). O tratamento é em longo prazo e acarreta sofrimento, dificuldade
real à intimidade do seu portador e pode estar associado a uma série de
desfechos negativos, incluindo comportamento de alto risco para aquisição de
HIV/AIDS (Wright, 2010; Diehl et al., 2014c). Trata-se, portanto, de uma
condição de caráter crônico e que cursa com recaídas, necessitando de
abordagens multidisciplinares, as quais incluem terapia medicamentosa,
psicossociais, terapia de casal, terapia cognitivo e comportamental, grupos de
mútua-ajuda, tais como o Dependentes de Amore Sexo Anônimos (DASA)
para seu tratamento (DASA, 2010; Garcia & Thibaut, 2010; Raymond et al.,
2010; Reid et al., 2011).
Kafka (2014), Garcia e Thibaut (2010) e Echeburúa (2012) discutem a
validade do diagnóstico proposto para o DSM sobre hiperssexualidade
enquanto um transtorno e uma nova condição psiquiátrica ou “excessos” de
comportamentos sexuais não parafílicos. Um dos grandes problemas parece
ser a conceitualização do transtorno de hiperssexualidade com base em
modelos de transtorno obsessivo compulsivo, ou de controle de impulso, ou
de dependência (adicção) (Bancroft & Vukadinovic, 2004), uma vez que existe
intersecção com todos esses. Garcia e Thibaut (2010) optam pelo modelo de
transtorno de adicção como modelo base para o transtorno de
hiperssexualidade não parafílica.
A discussão teórica anterior (Bancroft, 2008; Stein, 2008) já privilegiava o
modelo de falta de controle do impulso, compreendendo que seria necessário
desenvolver pesquisas para essa valorização. Bancroft e Vukadinovic (2004),
ao estudarem um grupo autodenominado por comportamentos sexuais
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Wright%20PJ%22%5BAuthor%5D
excessivos, diagnosticaram transtornos de impulso, apontando a associação de
transtornos de humor e sexualidade. Levine (2010), estudando uma amostra
clínica, obteve metade dos sujeitos sem diagnósticos psiquiátricos, 25% com
outras condições psiquiátricas e 25% apresentando comportamentos
parafílicos. Karila et al. (2013) apontam que as pessoas que se categorizam
como tendo transtornos sexuais compulsivos, impulsivos ou adictivos
percebem-se hiperssexuais, apresentam pensamentos, fantasias e
comportamentos obsessivos (Rodrigues Jr. 2009a, 2009b). Além disso,
apontam que essas denominações incluem vários comportamentos que podem
ser problemáticos, incluindo masturbação excessiva, “cybersex”, uso de
pornografia, sexo por telefone, clubes de stripers (Bancroft, 2008).
Essas variações de comportamento, embora possam ocorrer em pessoas
sem essas queixas ou entre adultos de forma consensual, sem que produzam
desconforto a eles ou a outras pessoas, também se associam a comportamentos
parafílicos (Patra et al., 2003). Echeburúa (2012) discute que esses
comportamentos têm a finalidade de reduzir ansiedades e outros efeitos
disfóricos (vergonha e depressão), e que os diagnósticos psiquiátricos do Eixo I
são as comorbidades dessas formas de hiperssexualidade/adicção sexual. Isso
reforça a necessidade de compreender e tratar essas comorbidades.
Reconhecer que um comportamento descrito de excesso de expressões sexuais
diferencia-se de comorbidades, mas pode associar-se a elas, e estas serem de
espectros diferentes permite planejamento de tratamentos diferenciados por
essas comorbidades e, sobretudo, aumenta a complexidade dos casos (Garcia &
Thibaut, 2010; Levine, 2010).
Em estudo desenvolvido por Nelson Antônio Filho e colaboradores em
2015 no Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (CAISM) da Santa Casa
de Misericórdia de São Paulo, a prevalência de dependência de sexo, segundo
rastreados pela escala de severidade de dependência de sexo, em uma amostra
de 149 pacientes usuários de drogas que foram atendidos ambulatoriamente
nesse serviço, foi de 26% (Antonio Filho et al., 2015). Isso sugere a necessidade
de ampliar estudos sobre a sobreposição de dependência de sexo em usuários
de drogas.
Parece existir uma associação entre a busca de drogas que aumentam o
funcionamento sexual nesses indivíduos (Ex. sidelnafila [Viagra®]), sendo
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Garcia%20FD%22%5BAuthor%5D
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Thibaut%20F%22%5BAuthor%5D
uma causa frequente e não reconhecida de recaídas no uso de substâncias
psicoativas (Schneider & Irons, 2001). O interesse da comunidade científica
em compreender os determinados tipos de comportamentos sexuais e o seu
envolvimento com o uso/abuso e dependência de substâncias psicoativas
cresceu nos últimos anos (Zuilkowski & Jukes, 2012; Zaazaa et al., 2013).
Daí a importância de ampliar evidência sobre esse assunto. Estudos
nacionais a respeito dessa temática em amostras específicas de dependentes
químicos têm sido pouco relatados na literatura nacional, o que justifica
ampliar evidência científica com dados brasileiros. Nesse contexto, o impulso
sexual excessivo (dependência de sexo) na população de usuários de drogas e
álcool tem implicações importantes para o planejamento de políticas de saúde,
para adequada condução de pesquisas científicas e oferecimento de serviços
especializados para esse público (Harvey, 2009).
Entre os medicamentos descritos para o tratamento da dependência de
sexo estão: os inibidores de recaptação da serotonina (IRSS) em doses altas,
tais como paroxetina 80 mg/dia, a qual pode auxiliar na diminuição da libido e
ter um efeito colateral desejável para esses casos, que é o retardo ejaculatório.
Também podemos lançar mão do uso de reguladores do humor como o
topiramato, valproato de sódio e carbamazepina para fins de diminuir
impulsividade, com doses terapêuticas usualmente utilizadas para o
tratamento dos transtornos do humor (com o devido cuidado de observar
função hepática). Também pode-se associar o uso de antagonistas opioides
com a naltrexona com IRSS, como o duplo objetivo de diminuir “fissura” pela
vontade de estar engajado em atividade sexual (Diehl & Vieira, 2013).
Parafilias e Transtornos Parafílicos
O Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais da
Associação Americana de Psiquiatria (APA), em sua quinta versão – o DSM-5
– apresenta o termo parafilia como qualquer interesse sexual intenso e
persistente que não seja a estimulação genital ou as carícias entre parcerias
humanas que podem consentir e ter maturidade física, com fenótipo normal.
No conjunto de critérios diagnósticos para cada transtorno parafílico listado, o
Critério A aborda a natureza qualitativa do quadro, como expor a genitália; e o
Critério B as consequências negativas, como prejuízo funcional e sofrimento
(para si ou para o outro). O diagnóstico de transtorno parafílico requer que o
indivíduo atenda a ambos critérios (A e B). Os transtornos tradicionalmente
selecionados para descrição no DSM foram mantidos. Nem toda parafilia é um
transtorno parafílico e a maioria das pessoas com interesses sexuais anômalos
não tem um transtorno mental. Sendo assim, o comportamento parafílico é
uma condição necessária, porém não suficiente para o transtorno parafílico e
por si só não justifica ou supõe necessariamente uma intervenção terapêutica
(Diehl & Vieira, 2017). O quadro 2 ilustra os principais tipos de transtornos
parafílicos listados no manual de critérios diagnósticos americano.
Transtorno voyeurista: espiar outras pessoas em atividades privadas
Transtorno exibicionista: expor os genitais
Transtorno frotteurista: tocar ou esfregar-se em indivíduo que não consentiu
Transtorno do masoquismo sexual: passar por humilhação, submissão ou sofrimento
Transtorno do sadismo sexual: submeter outra pessoa a humilhação, submissão ou
sofrimento
Transtorno pedofílicos: foco sexual em crianças
Transtorno fetichista: usar objetos inanimados ou ter o foco altamente específico em partes
não genitais do corpo
Transtorno transvéstico: vestir roupas do sexo oposto visando excitação sexual
QUADRO 2 - TRANSTORNOS PARAFÍLICOS ESPECÍFICOS DO DSM-5
Fonte: Diehl e Vieira (2017)
Assim como houve mudanças no DSM-5, a Classificação Internacional das
Doenças (CID 11) da Organização Mundial da Saúde (OMS) também
incorpora pontos importantes de mudanças sobre esse diagnóstico dos
transtornos parafílicos, em substituição ao “transtorno de preferência sexual”,
como era chamado na versão anterior, na CID 10. Um transtorno parafílico
envolve um padrão persistente e intenso de excitação sexual atípico, que se
manifesta por pensamentos, fantasias, impulsos e/ou comportamentos
sexuais. Se o foco do padrão de excitação envolve outros cuja idade ou estado
torna-os relutantes ou incapazes de consentir (por exemplo,crianças pré-
púberes, um indivíduo que não desconfia que está sendo visto através de uma
janela, um animal), o diagnóstico de transtorno parafílico deve ser feito apenas
se a pessoa agiu sobre o padrão de excitação e/ou está nitidamente
incomodada com isso. Em padrões de excitação que envolvem adultos com
consentimento ou comportamento solitário, um transtorno parafílico pode ser
diagnosticado somente se 1) a pessoa está nitidamente angustiada com a
natureza do padrão de excitação e o sofrimento não é simplesmente uma
consequência da possível rejeição ou desaprovação da sociedade; ou 2) a
natureza do comportamento parafílico envolve risco significativo de lesão ou
morte (por exemplo, asfixiofilia). Um padrão de excitação que não envolve
indivíduos que são relutantes ou incapazes de consentimento e não está
associada com acentuado sofrimento ou risco significativo de lesão ou morte,
não é considerado um transtorno. A CID-11 inova ao abordar a ausência de
consentimento, angústia e dano como dimensões constitutivas (Diehl &
Vieira, 2017).
Existe sobreposição entre parafilias e transtornos por uso de substâncias
e/ou dependência de sexo. Estudo conduzido por Clemente et al. (2017) teve
por objetivo avaliar a prevalência de pensamentos/comportamentos
parafílicos (incluindo transtornos parafílicos) com e sem dependência de sexo
e condições relacionadas à atividade sexual em uma amostra de pacientes com
transtornos por uso de substâncias. Esse foi um estudo transversal de
indivíduos dependentes de substâncias que procuraram tratamento
ambulatorial em São Paulo, Brasil. Os dados incluíram informações
sociodemográficas, droga de escolha, respostas a perguntas sobre
comportamento sexual e os seguintes questionários padronizados. A amostra
foi composta por 134 pessoas que usam drogas, predominantemente homens
(76,1%), 39,6% tinham idade entre 18 e 29 anos e 54,9% eram solteiras. A
maioria das pessoas que usavam drogas fazia de forma de policonsumo, 73,9%
eram usuários de álcool e cocaína, 63,4% usuários de maconha, 81,1% usuários
de tabaco e 5,2% usuários de esteroides. A prevalência de
pensamentos/comportamentos parafílicos (incluindo transtornos parafílicas)
com e sem dependência sexual foi de 47%. As taxas de HPV/herpes e hepatite
B foram de 7,9% e 6,3%, respectivamente. Os pensamentos/comportamentos
parafílicos e não parafílicos foram associados à presença de negligência física
na infância, baixo nível educacional, heterossexualidade e juventude (idade de
18 a 20 anos). A alta prevalência de pensamentos/comportamentos parafílicos
com ou sem dependência sexual em pessoas que usam drogas pode estar
relacionada à experiência de negligência física e emocional durante a infância,
e essa possibilidade deve ser rotineiramente investigada na prática clínica
(Clemente et al., 2017).
CAPÍTULO 8
CRIME, VIOLÊNCIA E
COMPORTAMENTOS SEXUAIS EM
USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS
Alessandra Diehl
Alguns estudos têm indicado a existência de associação entre
crime/violência e comportamento sexual de risco em usuários de substâncias
(Abdalla-Filho et al., 2010; Bastos, 2012; Zweig et al., 2012; Wechsberg et al.,
2013). As taxas de criminalidade variaram de 23% a 97%, de acordo com o
perfil da população com dependência de substâncias (por exemplo, diferentes
drogas de escolha e diferentes faixas etárias), assim como os tipos de crimes
investigados (Carvalho & Seibel 2009; Fernández-Montalvo et al., 2013;
Johnson et al., 2013; Soyka et al., 2012; Spunt et al., 1990a; Spunt et al.,1990b;
Vaughn et al., 2010).
Durante a última década, cresceu o interesse na relação entre a droga, em
especial o crack, o comportamento sexual de risco e a violência/crime (Fagan,
1993; Souza, 2011; Oliveira & Souza, 2013; Paim Kessler et al., 2012; Narvaez
et al., 2014). Muitos dos estudos na literatura científica sobre esse tema têm
focado mais na relação do consumo de substâncias com violência em
perpetradores sexuais e menos em outros aspectos do comportamento sexual
que podem estar atrelados ao crime, à violência e à droga (Weiner et al., 2005;
Baltieri & Andrade, 2008a, 2008b). Esse é um assunto ainda bastante
complexo, e a associação entre esses três elementos ainda não é bem
compreendida, visto que nem sempre existe uma relação direta e linear entre
as três questões (Collins et al., 2005; Rodrigues et al., 2012; Fernandez-
Montalvo et al., 2013; Frederik et al., 2013).
É necessário considerar, também, nessa questão, os contextos
socioculturais, étnicos, de gênero, o viver em situação de rua, a faixa etária, o
envolvimento em “gangues” e/ou crime organizado, a presença de outras
doenças mentais associadas ao uso de álcool e drogas e a vivência e experiência
do tráfico de drogas (Little, 1981; Meirelles & Minayo Gomez, 2009; Villagra
Lanza et al., 2011; Khowaja et al.,2012; Mukku et al., 2012; Johnson et al.,
2013; Pinchevsky et al., 2013).
Um estudo interessante nessa área foi conduzido por Oteo Pérez et al.
(2014), com uma amostra de 1.039 usuários frequentes de crack, os quais
foram recrutados de três grandes cidades holandesas, com o objetivo de avaliar
fatores associados à criminalidade e ao tráfico de drogas entre esses usuários.
Um total de 431 (41,5%) participantes haviam se envolvido em crime nos
últimos 30 dias da pesquisa, em geral relacionado à venda de drogas (68,9%),
seguido por crimes contra a propriedade (34,4%) e alguns casos de crimes
violentos (9,7%).
O envolvimento com a criminalidade atual dessa amostra esteve associado
a ter pouca idade, falta de moradia, padrões mais pesados de uso de crack e
história prévia de sentença criminal. Aqueles usuários de crack que recebe
benefícios sociais do governo tendem a ser mais propensos a se especializar
apenas em vender drogas e menos em cometer crimes contra a propriedade.
Os autores desse estudo sugerem que a redução do uso de drogas entre os
usuários de crack e a criminalidade envolvida nessas condições poderia ter um
impacto significativo se questões habitacionais fossem minimizadas,
abordando as suas condições de moradia. No entanto advertem que os
benefícios sociais podem agir como fator de proteção contra o cometer crimes
contra a propriedade, mas não contra a venda de drogas (Oteo Pérez et al.,
2014).
Um dos poucos estudos brasileiros que investigaram a violência e os
comportamentos sexuais de risco em usuários de crack foi um estudo de base
populacional com 1.560 participantes com 18-24 anos que mostrou
claramente as chances aumentadas de não usar preservativo, agressão e posse
de arma de fogo nessa população (Navaez et al., 2014). Em geral, os estudos
com usuários de crack têm percebido o aumento dos comportamentos sexuais
de risco (Carvalho & Seibel, 2009; Cortez et al., 2011; Narvaez et al., 2014),
bem como potencial envolvimento em situações predisponentes à violência ou
a problemas legais (Azevedo et al., 2007; Dias et al., 2011). A combinação
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Meirelles%20ZV%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19851592
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Minayo%20Gomez%20C%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=19851592
desses elementos tende a aumentar a complexidade dos casos de pacientes que
procuram tratamento e, portanto, são muitas vezes mais difíceis de gerenciar,
exigindo a inclusão de outras esferas de atenção (legal e forenses) que
transcendem os cuidados tradicionais oferecidos no modelo biomédico
(Abdalla-Filho & Souza, 2010; Bastos, 2012; Silva et al., 2012).
A investigação dessa temática desempenha um papel vital em todo o
processo de recuperação desses usuários, mas principalmente na reinserção
social no pós-tratamento. Esforços de avaliação dessa natureza e da melhor
compreensão da extensão desses problemas são importantes para melhorar as
estratégias de políticas públicas no desenvolvimento de programas de
intervenção para essa população (Bastos, 2012; Zweig et al., 2012).
Histórico de abuso sexual, negligência e maus tratos em usuários de
substâncias
Adultos com transtornos por uso de substâncias relataram taxasmais altas
de abuso e negligência sexual infantil do que os pares sem tais transtornos.
Cerca de 40-90% dos usuários de substâncias relatam histórico de abuso na
infância; indivíduos que sofrem abuso na infância têm duas vezes mais chances
de ter transtornos por uso de substâncias na vida adulta quando comparados à
população geral. Abuso ou negligência física, sexual e emocional foram
identificados como preditores de dependência persistente de álcool e nicotina.
Estima-se que 30% dos transtornos psiquiátricos diagnosticados em adultos
possam ser diretamente ligados a experiências da infância (Banducci et al.,
2014; Diehl et al., 2018).
A relação entre maus tratos na infância, comportamento sexual de alto
risco na idade adulta e uso de drogas não foi extensivamente investigada. Um
modelo conceitual que tenta explicar a conexão entre maus tratos na infância,
comportamento sexual de risco tardio e consumo de álcool está de acordo com
Miller, que formulou a hipótese dos seguintes mecanismos: a) uso de
substâncias para lidar com o trauma inicial da violência (mais estudos com
álcool do que qualquer outra droga); b) má adaptação sexual (sexo
desprotegido, múltiplos parcerias, comércio sexual e revitimização sexual de
adultos; c) doença mental relacionada ao abuso (transtornos parafílicos); e d)
redes sociais mais arriscadas (maior probabilidade de uso de substâncias)
(Diehl et al., 2018; Miller, 1999).
Diehl e colaboradores (2018) conduziram estudo sobre a temática do
histórico de abuso negligência e maus tratos em usuários de substâncias. Os
principais achados do estudo indicam altas taxas de negligência física (78,4%),
negligência emocional (88,1%), abuso emocional (80,6%) e abuso sexual
(31,3%) entre adultos dependentes de substâncias que buscaram cuidados
ambulatoriais. As taxas de maus tratos foram maiores para as mulheres do que
para os homens. As estimativas de maus tratos na população geral indicam que
quase um quarto dos adultos (22,6%) em todo o mundo sofreu abuso físico
durante a infância, 36,3% sofreram abuso emocional e 16,3% sofreram
negligência física, sem diferenças significativas entre homens e mulheres.
Também foi observado uma associação entre maus tratos e probabilidade de
dependência em sexo, pensamentos parafílicos e vitimização sexual na idade
adulta.
Nossos achados também têm implicações para os cenários clínicos
projetados para o tratamento de dependência de substância. Eles podem ajudar
na implementação de estratégias de intervenção por profissionais de saúde;
devido à alta prevalência de maus tratos essas questões precisam ser abordadas
com o objetivo de prevenir recaídas e melhorar o prognóstico. Identificar e
tratar pessoas com históricos de maus tratos pode ter um impacto significativo
na saúde pública. Nossos achados apoiam a noção de que o tratamento dos
transtornos por uso de substâncias deve incluir triagem para maus tratos e
intervenções integradas para tratar sequelas comuns de abuso (por exemplo,
transtorno de estresse pós-traumático e risco de suicídio). Usuários de drogas
com história de maus tratos necessitam de esforços mais intensivos de
prevenção ao suicídio. A integração de intervenções preventivas em
programas frequentemente acessados por usuários de drogas, como clínicas
comunitárias, requer maior atenção, consideração e avaliação (Diehl et al.,
2018).
Parte 2
Sexualidade, 
e dependencia quimica em 
populacoes
especificas
CAPÍTULO 9
LGBTTQIA+
Alessandra Diehl
Eu sou um gay alcoólatra. Estes dois rótulos têm informado a minha vida. Quando eu tinha 15 anos eu fui à
biblioteca da nossa cidade natal e procurei todos e quaisquer catálogos e títulos que forneciam alguma
referência sobre a homossexualidade. E sabem o que eu acabei aprendendo sobre mim? Sim, que eu era
psicologicamente anormal, que eu era ilegal, que eu era imoral e que eu era inaceitável.
(SAMHSA, 2012)
A compreensão das variações da orientação sexual humana e as vulnerabilidades individuais e
coletivas que a orientação homoafetiva tem na sociedade em geral são tão importantes quanto
compreender a influência e a relevância da cultura, etnia, idade, genética, nível socioeconômico e a
influência do meio em que as pessoas residem no desenvolvimento de ajustamentos individuais a
diferenças que nem sempre são bem toleradas pela maioria das pessoas (Adams et al., 1996; Cabaj, 2008;
Seidman et al., 2012). O quadro 1 apresenta algumas definições e conceitos úteis para melhor
compreender o universo.
Termo Definição
Sexo Refere-se ao aspecto biológico, ou seja, às características anatomofisiológicas que distinguem machos e
fêmeas
Gênero Trata-se de uma convenção social para o que determinada cultura compreende como o que é masculino
ou feminino
Genderqueer Termo que se refere ao não binarismo de gênero
Gênero fluido, entre os gêneros
Agênero – não pertencer a nenhum gênero
Outro gênero ou “terceiro gênero”
Orientação
sexual
É a direção do desejo erótico, do afeto amoroso e da atração sexual e emocional de uma pessoa pelas
outras. Esse desejo não é algo que pareça ser prontamente mensurado, estático ou que possa ser facilmente
categorizado. De maneira geral:
Heterossexual: quem sente atração por pessoas do sexo oposto
Homossexual: quem sente atração por pessoas do mesmo sexo
Bissexual: quem sente atração por pessoas de ambos os sexos
Assexual: quem não sente atração sexual por outra pessoa. Acredita-se que o conceito seja uma
das orientações sexuais e não apenas uma baixa do desejo sexual
Pansexual: termo controverso, geralmente referente a quem sente atração sexual por outras
pessoas independentemente de sexo, gênero, orientação sexual, identidade ou de expressão de
gênero
LGBTTQQIA
+
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, questionaning, intersexuais e assexuais. O sinal + é
utilizado para representar as diversas identidades que estão emergindo.
Termo Definição
Estar no
armário (estar
dentro do
armário ou
estar trancado
no armário)
Termo coloquial para se referir a um contexto em que um indivíduo LGBT esconde sua orientação ou
identidade sexual ou de gênero das outras pessoas ou de si mesmo
Papéis de
gênero
São constructos culturais e históricos que fazem referência às atribuições sociais do masculino e do
feminino que um indivíduo ocupa na sociedade
Identidade de
gênero
É como uma pessoa mentalmente se percebe, se reconhece, se vê ou se identifica quanto ao gênero (i. e., se
ela se reconhece como homem, mulher ou como alguém fora do binarismo homem e mulher)
Expressão de
gênero
Refere-se à maneira que uma pessoa se apresenta ao se vestir, andar, cortar o cabelo, falar, se comportar,
utilizar acessórios para se apresentar à sociedade, conforme determinada cultura entende os gêneros
feminino e masculino. Em outras palavras, é como as pessoas demonstram o próprio gênero para o
mundo externo
Cisgênero Indivíduo que nasce com um sexo biológico e se reconhece ou se identifica mentalmente com esse sexo de
nascimento. Termo usado na comunidade transamericana para descrever indivíduos não trans
Transgênero Termo “guarda-chuva” para designar pessoas sem conformidade de gênero, que não se identificam com
seu sexo biológico; inclui transexuais, travestis
Transexual Pessoa que nasce com um sexo biológico, no entanto, mentalmente, se identifica com o sexo oposto ao do
nascimento. Em geral, deseja modificar seu corpo para se tornar o mais alinhado possível com o gênero
experienciado, o que pode incluir cirurgia de transgenitalização
Homem trans Alguém que nasceu biologicamente/anatomicamente como mulher, mas se identifica e se apresenta como
homem
Mulher trans Alguém que nasceu homem biologicamente/anatomicamente e se identifica e se apresenta como mulher
Travesti Em teoria, o termo travesti poderia ser usado para a pessoa que nasceu biologicamente de um sexo e se
apresenta como o de outro sem grande desconforto com seus órgãos genitais, ou drásticas mudanças
físicas para alinhamento corporal com o gênero experienciado. Entretanto, no Brasil, há o sensocomum
em empregar o termo travesti para indivíduos que nascem biologicamente homens e desejam se vestir
como mulheres nas suas vidas sociais, representam papel de gênero feminino, apresentam-se com
vestimentas e características secundárias femininas como mamas, sem barba e pelos, mas que não desejam
remover o órgão genital e nem sempre apresentam extremo desconforto ou descontentamento com ele. A
travesti não se apresenta como mulher para fins exclusivos de gratificação sexual, mas para viver e ser
aceita como do gênero feminino
Intersexual Historicamente conhecidos como hermafroditas; o termo intersexual refere-se a diferentes apresentações
de genitais ambíguos ou atípicos. Trata-se de pessoas que têm uma combinação dos dois sexos biológicos
Travestismo
fetichista
Trata-se de uma parafilia (padrão atípico de excitação) em que a pessoa deseja se vestir com peças de
roupas ou um traje completo do sexo/gênero oposto para fins de excitação sexual
Heterossexismo Sistema de crenças que naturaliza e idealiza a heterossexualidade como superior, ao mesmo tempo em que
desvaloriza, estigmatiza, discrimina e nega os não heterossexuais. Também compreendida como uma
vulnerabilidade que contribui para desfechos negativos em saúde.
Homofobia Preconceito geralmente expresso por meio de atitudes e sentimentos negativos, tais como intolerância,
ódio, nojo ou desprezo direcionados a homossexuais
Termo Definição
Transfobia Trata-se de uma série de atitudes e sentimentos negativos, como ódio e ira direcionados a transexuais,
transgêneros, travestis
Simpatizante Trata-se da criação de um ambiente que aceite e seja aberto a pessoas LGBT. O termo pode se referir a
instituições ou pessoas.
Hijras Hijra é um terceiro papel de gênero institucionalizado na Índia. Elas afirmam não serem nem masculinos
nem femininos, mas contêm elementos de ambos. Algumas podem submeter-se a castração do pénis e/ou
testículos sem a criação de uma neovagina
Muxes Elas são um grupo único de indígenas do México nascidos biologicamente homens que abertamente se
vestem de vestuário zapoteca feminino, e tem sido descritas também como um terceiro gênero. Muitos
têm o cabelo longo e algumas podem também se submeter a procedimentos estéticos e cirúrgicos para ter
um fenótipo mais feminino.
Two spirit Também considerado um terceiro gênero entre os nativos indígenas dos Estados Unidos da América
(EUA) nascidos biologicamente homens e que se utilizam de elementos da expressão de gênero tanto do
feminino quanto do masculino.
Disforia
de gênero
Nomenclatura utilizada pela DSM-5 para se referir à condição clínica caracterizada pela incongruência
entre o sexo biológico de nascimento e a identidade de gênero experienciada pelo indivíduo.
QUADRO 1 - TERMOS E DEFINIÇÕES ÚTEIS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL
Fonte: Adaptado de Diehl & Vieira (2017). In Orientação sexual: Lésbica, Gay, Bissexual ou Assexual. Sexualidade do Prazer
ao Sofrer (2a ed). Rio de Janeiro: Editora Roca Grupo Gen. pp.145-164. Diehl, Vieira, Zanetti, Fanganielo, Robles, Sarharan
& Mari et al. (2017), Cabaj (2008) e Cabaj (2001)
Vulnerabilidades variadas, estigmas, preconceitos, comprometimentos físicos, psíquicos, cognitivos
e emocionais, dificuldades sociais, culturais, educacionais, jurídicas e familiares fazem parte da
complexidade vivenciada por usuários de álcool e drogas, tanto da comunidade LGBT como de
qualquer outro segmento da sociedade que procura por serviços de saúde. Entretanto, para muitas
pessoas, a vergonha e o medo do preconceito as afastam da busca de tratamento (Cochran et al., 2000;
Cabaj, 2008; Kecojevic et al., 2012).
A maneira com que o abuso e a dependência de álcool e outras drogas se expressam na população de
lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) vem sendo foco de muitos estudos transculturais na
área da dependência química (Cabaj & Stein, 1996; Bryan et al., 2007).
Especialmente nas últimas duas décadas, tem crescido o interesse de pesquisadores em avaliar
aspectos emocionais, exposição ao vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), comportamentos sexuais,
abordagens clínicas e a epidemia do uso de metanfetamina (Crystal, Meth) correlacionados à extensão
do abuso e dependência de substâncias psicoativas entre indivíduos LGBT (Cabaj, 2008; Halkitis &
Jerome, 2008).
Muitos desses estudos mostram que o uso de substâncias psicoativas, especialmente o álcool e as
“club drugs” – drogas sintéticas obtidas por meio da manipulação laboratorial (particularmente após a
explosão do uso da metanfetamina em meados dos anos 90) –, têm exercido um papel relevante quanto
a prejuízos na vida de muitos gays e lésbicas ao redor do mundo (Halkitis & Jerome, 2008).
Parece existir um “mito cultural” de que gays e lésbicas, por utilizarem drogas recreativas e por
frequentemente estarem em situações sociais, teriam padrão de consumo de álcool e drogas mais
problemático, multifacetado e “desviante” do que indivíduos heterossexuais, dando ênfase a um
comportamento estereotipado que, certamente, não pode ser generalizado (Tucker et al., 2008).
Estudos sobre o uso de álcool e drogas nessa população, historicamente, sempre foram mais escassos
e com limitações metodológicas. Entre estas, cita-se o viés de seleção, uma vez que foram conduzidos
em locais de maior concentração de consumo de álcool e outras drogas como, por exemplo, as boates e
os bares (King et al., 2008).
Habilidades em reconhecer questões pertinentes às vulnerabilidades que atravessam tanto o campo
da dependência química quanto da diversidade sexual são fatores importantes no processo de
acolhimento, de promoção de saúde, prevenção, facilitação do acesso e da disponibilidade de oferta de
tratamento em saúde para esse grupo de pessoas (Hellman et al., 1989; King & Nazareth, 2006; Bryan et
al., 2007; Diehl, 2009; Harvey, 2009).
O quadro 2 apresenta a teoria do estresse das minorias que pode ser uma das possibilidades de
compreensão desses fenômenos de vulnerabilidade.
Esta teoria fundamentada inicialmente por Meyer (1995) entende que o excesso de situações adversas e condições no meio
social, e não somente situações individuais, são motivos de somatórias de estresses, os quais tendem a ser prejudiciais à
saúde física e mental de pessoas pertencentes às minorais, incluindo as minorias sexuais estigmatizadas. A teoria do estresse
minoritário propõe que as disparidades de saúde entre populações como as minorias sexuais podem ser explicadas em
grande parte por estressores induzidos por uma cultura hostil e homofóbica, que muitas vezes resultam em experiências de
preconceito de familiares e terceiros, rejeição e homofobia internalizada e podem afetar o comportamento e o acesso aos
cuidados em saúde. Preconceito externo de terceiros refere-se a qualquer experiência percebida ou real por um indivíduo
com associações estruturais ou institucionais ou relacionado ao preconceito social direto (isto é, ouvir xingamentos e
manifestações de ódio). Também está incluído nesta teoria a expectativa de uma pessoa de sofrer rejeição pela sua
identidade e estigma social contra gays e indivíduos transexuais.
QUADRO 2 - TEORIA DO ESTRESSE DAS MINORIAS
Fonte: Meyer IH. Minority stress and mental health in gay men. Journal of Health and Social Behavior. Mar 1995, p. 36-38;
56
Nesse contexto, a melhor compreensão de questões relativas ao universo LGBT tem implicações
importantes para planejamento de políticas de saúde (tratamento e prevenção) (Drescher, 2001, 2010);
para a adequada condução de pesquisas científicas; e para o treinamento de profissionais nos serviços de
saúde, conforme recomenda o Substance Abuse and Mental Health Services Administration –
SAMHSA (SAMHSA, 2001; Cabaj, 2008).
Muitas vulnerabilidades interagindo entre si podem contribuir para o uso, abuso e consequente
dependência de substâncias em indivíduos LGBT (Hidaka et al., 2006; Parks et al., 2007; Cabaj, 2008).
Entre essas vulnerabilidades, citam-se:
Sociais
Gays e lésbicas continuam a encarar grande sofrimento social proveniente de fatores como adiscriminação, baixa aceitação social, as lutas contínuas para reconhecimento de relacionamentos, o
casamento e a proteção no trabalho. Soma-se o risco de ataques verbais e físicos e o efeito do
diagnóstico do HIV (SAMHSA, 2001; Hequembourg & Brallier, 2009).
Heterossexismo
Trata-se de um sistema ideológico que ignora, deprecia e estigmatiza qualquer forma de expressão
emocional, afetiva, comportamental, qualquer atividade sexual, relacionamento ou identidade social da
comunidade de um não heterossexual (Hyde & DeLamater, 2008).
Homofobia
Trata-se do medo irracional, da aversão ou da discriminação de pessoas com orientação ou
comportamentos homossexuais (Hyde & DeLamater, 2008; McDermott et al., 2008). Preconceito é
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hequembourg%20AL%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Brallier%20SA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
definido como qualquer opinião ou sentimento, quer favorável ou desfavorável, concebidos sem exame
crítico; enquanto fobia é um medo exagerado, falta de tolerância. Partindo-se da definição de fobia, cabe
perguntarmos: do que é que se tem medo em relação à homossexualidade? E, ainda, sendo a
homossexualidade uma expressão natural da sexualidade, qual é a “ameaça” que ela representa? Do que e
por que se tem medo, afinal? Uma das hipóteses que se pode aventar, utilizando um conceito da
psicologia, é a projeção, um mecanismo de defesa psíquico, em que o indivíduo que tem pouca
consciência ou tolerância em relação às próprias características projeta no outro o que não aceita em si
próprio, ou seja: se perturba tanto, pode ser que haja algo “mal resolvido” (Adams et al., 1996; Diehl et
al., 2011a).
As várias faces do preconceito e discriminação contra os homossexuais, muitas vezes, tomam
proporções avassaladoras e chegam ao extremo da violência, resultando em mortes. A homofobia,
definida como rejeição ou aversão a homossexuais e à homossexualidade, é protagonista e mola
propulsora de muitos crimes de ódio. Como a orientação sexual, ou etnia, crença, origem, classe social,
pode “justificar” um crime? Com que direito alguém discrimina, humilha, persegue, agride ou mata
outra pessoa devido à sua orientação sexual? Em nome de quê?
O Brasil tem a vergonhosa liderança internacional em crimes de homofobia: a cada 21 horas, uma
pessoa com orientação sexual não heteronormativa é assassinado no país (Grupo Gay da Bahia, 2013).
Várias são as formas de preconceito que a população LGBT sofre no Brasil. Abaixo, algumas são
relacionadas, segundo documento publicado pelo Grupo Gay da Bahia, intitulado “Violação dos Direitos
Humanos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais no Brasil: 2004”: 1. Agressões e torturas; 2.
Ameaças e golpes; 3. Discriminação em órgãos e por autoridades governamentais; 4. Discriminação
econômica, contra a livre movimentação, privacidade e trabalho; 5. Discriminação familiar, escolar,
científica e religiosa; 6. Difamação e discriminação na mídia; 7. Insulto e preconceito contra
homossexuais; 8. Lesbofobia: violência antilésbica; 9. Travestifobia.
Homofobia internalizada
Refere-se à resistência e à aceitação de si mesmo com relação à própria orientação homossexual.
Relaciona-se com a vergonha e o conceito negativo de si mesmo. Essa negação pode acarretar níveis
diferentes de sofrimento, podendo culminar, muitas vezes, em suicídio (Cabaj, 2008; King et al., 2008).
“Coming out”
Essa expressão em inglês, adaptada para o nosso idioma, quer dizer “sair do armário”. Refere-se à
experiência de alguns, mas não de todos, gays e lésbicas, quando exploram ou assumem o seu status
homossexual atual, tentando conciliá-lo com a socialização anterior (Lins, 2007). Esse parece ser um dos
momentos mais difíceis e propícios ao uso de substâncias psicoativas, com riscos de maior possibilidade
de manutenção desse uso ao longo da vida (SAMHSA, 2001). O uso de drogas pode servir como um
alívio “mais fácil”, provendo aceitação da sexualidade e, mais importante, fornecendo o conforto que
muitas vezes não está presente na família ou na sociedade. O uso de substância psicoativa pode auxiliar
o processo de socialização e a realização daquilo que se acha ser “proibido”. Muitos gays têm suas
primeiras experiências sexuais sob a influência de álcool e outras drogas. Para muitos gays e lésbicas,
essa associação entre abuso de substâncias psicoativas e sexualidade persiste e pode tornar-se parte do
processo de ‘sair do armário” e da formação pessoal e social da identidade (Cabaj, 2008; LeBeau &
Jellison, 2009).
Culturais
Existe uma tendência entre gays e lésbicas de terem maior convivência entre o chamado “gueto gay”,
por questões de autopreservação da comunidade, proteção e suporte dos iguais, e também por
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Jellison%20WA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
apropriação do sentimento de pertencimento (LeBeau & Jellison, 2009). O mundo social de
homossexuais e de heterossexuais é repleto de bares, clubes, boates, turismo gay e saunas, onde o álcool
e outras drogas estão também muito presentes e amplamente disponíveis (Cabaj, 2008; Rosario, 2008).
Ainda podemos incluir outras vulnerabilidades: reconhecer-se como sem valor ou como uma pessoa
má, falta de contato e de relacionamentos de apoio com adultos ou pares, falta de maneiras alternativas
de vivenciar a diferença, falta de acesso a uma modelagem positiva, falta de oportunidade para socializar
com outros gays e lésbicas, exceto em clubes e bares, o risco de contrair HIV (Diehl et al., 2011b).
A despeito das várias limitações metodológicas dos estudos sobre abuso e dependência de
substâncias psicoativas nessa população, pode-se notar que existe uma tendência a encontrarmos
maiores taxas de abuso e dependência de substâncias psicoativas em LGB do que em heterossexuais,
particularmente entre lésbicas e mulheres bissexuais (Cohran & Mays, 2000; Midanik et al., 2007). Este
último grupo possui, em geral, um risco relativo (RR) para dependência de álcool quatro vezes maior, e
3,5 vezes maior para drogas que as mulheres exclusivamente heterossexuais (King et al., 2008).
Diehl (2009) conduziu uma revisão da literatura sobre essa temática e cuja busca de artigos baseou-
se na seleção de estudos de abuso e/ou dependência de álcool e/ou drogas ilícitas na população geral (ex.
estudos de base populacional) ou em amostras selecionadas representativas (ex. todos os estudantes de
uma cidade) na qual a orientação sexual foi relatada. Dos nove estudos incluídos nessa revisão, pelo
menos seis mostraram claramente o risco ou prevalência de maiores taxas de abuso de substâncias,
particularmente o álcool, entre lésbicas e mulheres bissexuais (Cochran & Mays, 2000; King &
Nazareth, 2006; King et al., 2008). Vide Tabela 1.
Esse achado está presente também nos poucos estudos longitudinais entre as adolescentes com
orientação homoafetiva ou bissexual, evidenciando que a problemática tende a se estabelecer em fases
bastante precoces (Ziyadeh, 2007; Tucker et al., 2008). A revisão sistemática conduzida por Marshal et
al. (2008), que avaliou os estudos sobre uso de substâncias em jovens Lésbicas, Gays e Bissexuais (LGB),
mostrou que essa população tem taxas mais altas de uso de álcool e drogas que os jovens heterossexuais
(OR= 2,89). Em outras palavras, as taxas são 190% maiores em jovens LGB quando comparados a
jovens heterossexuais; e substancialmente mais altas em determinados subgrupos de jovens LGB (340%
mais alto para jovens bissexuais, 400% mais alto para lésbicas) (Marshal et al., 2008).
Várias outras pesquisas têm mostrado que lésbicas estão sob risco elevado para o beber nocivo ou
perigoso (Rosario et al., 2009). Comparadasàs mulheres heterossexuais, as lésbicas têm menos
probabilidade de se manter abstinentes do álcool e entrar em processo de recuperação, assim como tem
menos probabilidade de diminuir o consumo de álcool quando envelhecem e são mais propensas a
apresentar problemas relacionados ao consumo dessa substância psicoativa (SAMHSA, 2001).
A tensão e o stress associados à formação da identidade lésbica, somados ao reforço positivo para
beber dos pares em locais de maior socialização, baixa autoeficácia para resistir, questões relativas ao
chamado “gênero atípico” ou à expressão do gênero (ex. butch versus femme) são alguns dos fatores
frequentemente atribuíveis ao maior risco de exposição desse público. Cabe ressaltar, no entanto, que
esses fatores não foram largamente testados ou avaliados cientificamente (Parks et al., 2007; Tucker et
al., 2008; Rosario et al., 2009).
Evidências de estudos de população gerais indicam que padrões de uso de álcool estabelecidos cedo
no curso da vida ou durante transições de vida influenciam tanto o uso de álcool posterior quanto os
problemas relacionados a esse consumo (Vieira et al., 2007). Para mulheres lésbicas e bissexuais, os
dados de outros autores também sugerem que o beber pesado em idades precoces e de contextos que
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22LeBeau%20RT%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Jellison%20WA%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
influenciam o uso de álcool posterior têm implicações importantes para a redução de risco e prevenção
entre esse público (Parks et al., 2007; Rosario et al., 2009).
Os estudos da revisão de Diehl (2009) são muito heterogêneos quanto às medidas de desfechos,
apresentação dos dados, tipos de drogas pesquisadas, pesquisa de orientação sexual, método de avaliação
do abuso e dependência de substâncias; daí a dificuldade de serem agrupados e generalizados (Vide
Tabela 1).
AUTORES
POPULAÇÃO
DO ESTUDO
SUBSTÂNCIA
/USO/
DEPENDÊNCIA
METODOLOGIA
GRUPO DE
COMPARAÇÃO
DESFECHOS COMENTÁRIOS
1. Stall, 
Willey,
1988.
Homens gays
Álcool, cocaína e
maconha.
Estudo de base
populacional (San
Francisco Mens
Health Study)
Homens
heterossexuais
Poucas diferenças
no padrão de
beber.
Importante
prevalência no
uso de drogas
durante os seis
meses de
avaliação, assim
como uso de
drogas pelo
menos uma vez
por semana entre
gays.
2. Skinner,
Otis,1996.
N= 1,067 LG
Seis drogas
ilícitas, quatro
drogas
psicotrópicas e
duas drogas
lícitas (álcool e
tabaco).
Estudo
longitudinal do
The Trilogy
Project
População geral
do National
Household
Survey on Drug
Abuse (NHSDA).
LG têm
significativamente
taxas mais altas de
uso de maconha,
inalantes e álcool
no último ano que
a população geral,
mas não de
cocaína.
LG consumiram
mais álcool no
último mês da
entrevista que a
população geral.
Poucas diferenças
entre as duas
amostras para
consumo de
álcool pesado.
50% de adesão nas
respostas
3. Cohran,
Mays,
2000.
N= 96 gays
N= 96
Lésbicas
Dependência de
álcool (DSM IV).
Estudo de base
populacional
N= 3922
mulheres HT
N= 5792 homens
HT
a) Dependência de
álcool: 10% (G) X
7,6% (Homem
HT)
7% (L) X 2%
Mulher HT
b) Dependência
de drogas: 5,7%
(G) X 2,8%
Homem HT
5% (L) X 1,3%
Mulher HT
LG têm mais
dependência de
álcool e outras
drogas que
indivíduos HT.
AUTORES
POPULAÇÃO
DO ESTUDO
SUBSTÂNCIA
/USO/
DEPENDÊNCIA
METODOLOGIA
GRUPO DE
COMPARAÇÃO
DESFECHOS COMENTÁRIOS
4. King,
Nazareth,
2006.
N= 26 lésbicas
e
N= 85
mulheres
bissexuais;
N= 38 gay e
N= 23 homens
bissexuais
Álcool - CAGE,
tabaco.
Estudo Cross
section controlado
-13 settings de
atenção primária
em Londres
N= 934 mulheres
heterossexuais
N=373Homens
heterossexuais
- Mulheres
bissexuais abusam
mais de álcool
(OR 2,73, 1,70–
4,40);
- Mulheres
bissexuais (OR
2,53, 1,60–4,00) e
lésbicas (OR 3,13,
1,41–6,97) e
homens bissexuais
têm mais chances
de serem
tabagistas que
seus controles
(OR 2,48, 1,04,
5,86).
O estudo também
avaliou outros
comportamentos
de saúde, tais
como número de
parcerias sexuais e
transtornos
psicológicos.
5. Midanik
et al., 2007.
N = 7,612.
O uso de álcool e
problemas
relacionados ao
consumo foram
acessados através
do número de
drinks no último
ano, número de
dias com
consumo de
cinco ou mais
drinks no último
ano.
Dependência do
álcool pelo DSM
IV.
Levantamento
nacional
telefônico de
2000, com
amostra
probabilística de
adultos
americanos
maiores de 18
anos.
HT
Não foi
encontrado
padrão
consistente de uso
ou problemas
relacionados ao
álcool baseado na
orientação sexual
de homens. Para
as mulheres,
orientação
bissexual ou
comportamento
bissexual foi
constantemente
associado com
maior uso e
problemas
relacionados ao
álcool quando
comparada à
orientação e ao
comportamento
HT em mulheres.
Nenhuma
diferença entre
homens; entre
lésbicas e
mulheres
bissexuais,
maiores padrões
de consumo de
álcool.
6. Cochran
et al., 2007.
N= 4,488
Latinos
americanos
adultos
4,8% da
amostra LGB
Álcool
National Latino
and Asian
American Survey
(NLAAS)
HT
Nenhuma
diferença no
consumo de
substâncias.
Mesmo nível de
morbidade
encontrado entre
latinos e
população geral.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22King%20M%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
AUTORES
POPULAÇÃO
DO ESTUDO
SUBSTÂNCIA
/USO/
DEPENDÊNCIA
METODOLOGIA
GRUPO DE
COMPARAÇÃO
DESFECHOS COMENTÁRIOS
7. Tucker
et al., 2008.
N= 1,479 HT
N= 141
bissexuais
femininas
Álcool e drogas
DSM–IV.
Coorte
longitudinal da
costa dos EUA
HT
Durante a
adolescência,
mulheres
bissexuais são
mais prováveis de
serem usuárias
solitárias e
correntes de
álcool. Aos 23
anos, o uso de
droga entre este
grupo aumenta
em frequência,
quantidade e
problemas
relacionados.
Alerta para
enfoque de
prevenção
diferenciada mais
em mulheres
bissexuais.
8. King et
al., 2008.
N= 214,344
HT
N= 11,971 não
HT
Álcool e outras
drogas.
Revisão
Sistemática /
metanálise
HT
LGB têm 1,5
vezes mais
chances de
dependência de
substâncias (RR
1,51–4,00) que
HT.
O risco de
dependência de
álcool no último
ano (RR 4,00, CI
2,85, 5,61; e de
dependência de
drogas: RR 3,50,
CI 1,87, 6,53; ou
de qualquer
substância RR
3,42, CI 1,97–
5,92) foi maior
em lésbicas e
mulheres
bissexuais.
9. Ziyadeh
et al., 2006.
N= 9731
adolescentes
Álcool – beber
em «binge».
Estudo Cross
section do Projeto
Growing Up
Today
Meninas e
meninos HT
Meninas HT e
meninas lésbicas /
bissexuais tiveram
risco elevado
quando
comparadas a
meninas
heterossexuais em
quase todos os
comportamentos
álcool-
relacionados.
Meninos
heterossexuais
também estavam
a risco elevado.
Não foi observada
nenhuma
diferença
significante em
comportamentos
álcool-
relacionados
entre gay /
bissexuais e
meninos HT.
TABELA 1 - REVISÃO DOS ESTUDOS DE DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS EM LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS,
2009
Fonte: Diehl, 2009
Legenda: HT = Heterossexuais, LGB = Lésbicas, gays e bissexuais, LG = lésbicas e gays, OR = Odds Ratio, RR = Risco
Relativo, CAGE = Cut down, Annoyed, Guilty, Eye-opener, DSM = Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
De uma maneira geral, os estudos incluídos na revisão empregam a pesquisa do autorrelato sobre a
orientação sexual em detrimento do comportamento sexual; o que, metodologicamente, parece estar
mais adequado (Seidman et al., 2012). Isso porque se sabe que comportamento sexual não é um
correlato perfeito de orientação sexual (Purdam et al., 2008). Pesquisas de base populacional anteriores
que examinaram padrões de comportamento sexual e autorrelato de orientação sexual encontraram
aproximadamente 2/3 dos indivíduos que relataram ter parcerias sexuais do mesmo gênero no último
ano da pesquisa também se identificaram como LGB. Enquanto que aproximadamente ¼ das lésbicas,
gays e bissexuaisrelataram não ter tido parcerias sexuais do mesmo gênero no último ano da pesquisa
(Cabaj & Stein, 1996; Cochran & Mays, 2000; Seidman et al., 2012;).
Já para a pesquisa do uso e dependência de substâncias, os instrumentos são dos mais diversos e com
graus variados de confiabilidade e especificidade. Por exemplo, o instrumento CAGE (acrônimo de Cut
Down, Annoyed, Guilty, Eye-opener), utilizado por King e Nazareth (2006), não faz diagnóstico,
funciona apenas como seleção de prováveis casos de dependência de álcool. Bem diferente daqueles
instrumentos mais próximos do “padrão ouro”, que é a entrevista realizada baseando-se nos critérios de
dependência do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) ou da Classificação
Internacional das Doenças (CID) ou ainda do Composite International Diagnostic Interview (CIDI)
(Cabaj, 2008).
Diversos são os fatores que colaboram para que os estudos sobre essa temática apresentem
limitações metodológicas. Um desses fatores é o fato de a sexualidade não ser algo estático, mas sim algo
fluido, em processo de desenvolvimento e evolução. Assim sendo, investigadores muitas vezes não
concordam quanto aos critérios de definição de orientação sexual, identidade sexual ou atração sexual.
Consequentemente, algumas pesquisas não têm consenso sobre a definição de critérios e termos
relacionados às questões ligadas ao público LGB (SAMHSA, 2001; Seidman et al., 2007).
Além disso, observa-se falta de informações sobre a dimensão real do tamanho da população LGB
(SAMHSA, 2001). Nos EUA, dados apontam que 10% dos homens e 5% das mulheres sejam
homossexuais (SAMHSA, 2001). No Brasil, o primeiro grande estudo com representatividade das cinco
regiões do país foi conduzido por Abdo (2004) e revelou que, de uma amostra de 7103 pessoas, 6,1% dos
entrevistados do sexo masculino e 2,4% do sexo feminino se definiram homossexuais, e apenas 1,8% se
declarou bissexual (Abdo, 2004).
Outra questão metodológica importante dessas pesquisas é a ausência de questionamento sobre a
orientação afetivo-sexual em grandes levantamentos epidemiológicos sobre abuso e dependência de
substâncias. Isso reflete poucos dados de representatividade populacional. No Brasil, por exemplo, os
grandes levantamentos domiciliares nacionais sobre o uso de substâncias na população brasileira,
realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), não contêm
qualquer dado sobre orientação afetivo-sexual (Carlini et al., 2005). Já o LENAD de 2012 pesquisou
orientação sexual e identidade de gênero em estudo domiciliar e encontrou 3.4% da população brasileira
se identificando enquanto pertencente a uma das minorias sexuais (LENAD, 2012).
Soma-se o fato de que a maioria dos estudos sobre essa temática foi conduzido em amostras de
conveniência, quer seja em amostras clínicas, em que se sabe que a população de Lésbicas, Gays e
Bissexuais (LGB) procura menos tratamento que a população geral; ou, ainda, com representações
extrapoladas de indivíduos com padrões de consumo encontrados em bares e/ou boates de maior
concentração dessa população (Cabaj, 2008).
A maioria dos estudos incluídos na revisão mencionada foi conduzida nos EUA, sendo que seria
interessante que outras pesquisas com metodologia apropriada pudessem verificar como esse fenômeno
do uso e dependência de substâncias entre gays e lésbicas se comporta em outras culturas (Diehl, 2009).
O único estudo da revisão de Diehl (2009) que fez essa relação transcultural foi conduzido por
Cochran et al. (2007) e não encontrou nenhuma diferença no consumo de substâncias entre os latinos e
asiáticos americanos estudados (Cochran et al., 2007). Outro estudo, que não foi incluído na revisão
citada (por não preencher critérios de inclusão), mas que, no entanto, merece ser comentado, por ser
uma variante dos clássicos estudos americanos, foi conduzido por Hidaka et al. (2006). Trata-se de um
estudo de base populacional com 2062 HSH, com 70,5% da amostra identificando-se como gays, que
utilizou recrutamento de 57 web sites da comunidade gay do Japão. Entre os principais achados,
destaca-se que 45% dos respondedores já utilizaram pelo menos uma vez na vida algum tipo de droga e
19,6% já utilizaram mais de um tipo de droga, sendo que as drogas mais utilizadas foram: amylnitrato
(63,2%), ecstasy (9,3%) e maconha (5,7%) (Hidaka et al., 2006; Diehl, 2009).
Não se observou na literatura o desenvolvimento de estudos de base populacionais sobre essa
temática após 2009, uma vez que a maioria dos estudos publicados após esse ano da revisão feita por
Diehl (2009) foram desenvolvidos em amostras de conveniência ou estudos cross section (Kecojevic et
al., 2012).
Os principais achados dessa revisão da literatura sobre dependência química em indivíduos LGB em
2009 têm algumas implicações para a prática clínica, entre eles, citam-se (Diehl, 2009):
(1) A importância de se perguntar sobre a orientação afetiva sexual em serviços de saúde. A maioria
dos programas de tratamento destinados a usuários de substâncias não abordam a orientação afetivo
sexual de seus pacientes, e poucos serviços são especializados para ter esse “olhar diferenciado”.
Programas de tratamento para o uso de substâncias, frequentemente, apresentam falta de recursos
adequados para satisfazer as necessidades dessa população, apesar de muitos deles declararem ter um
enfoque diferenciado. Nos EUA e em Porto Rico, por exemplo, somente 11,8% dos 911 serviços de
tratamento para substâncias psicoativas pesquisados (incluindo internações, tratamento residencial e
ambulatorial) realmente ofereciam tratamento especializado para o público LGBT (Bryan et al., 2007).
Devido à homofobia, principalmente, alguns pacientes poderão apresentar dificuldade ou se sentir
desconfortáveis para aceitar o tratamento. Lidar com essa questão nos grupos, na sala de espera ou no
mesmo espaço de convivência é uma tarefa muitas vezes difícil para um profissional não sensibilizado.
Existe uma ideia errônea de que o uso da substância pode “alterar” a orientação sexual do indivíduo.
Crenças como essas constituem barreiras para o tratamento desse público e devem ser sempre
manejadas (SAMHSA, 2001).
(2) Lésbicas e mulheres bissexuais podem ter necessidades especiais e devem ser alvo de promoção
de saúde, prevenção e tratamentos especializados. Especialmente para aquelas com problemas
relacionados ao álcool. Sabe-se que a intoxicação alcoólica pode aumentar o comportamento sexual de
risco. Além disso, o abuso e a dependência de álcool acarretam dificuldades de aderência para terapias
de HIV, sendo que o álcool pode aumentar a progressão da infecção dessa doença por supressão imune
(Rosario et al., 2009).
Um olhar para a travestilidade
O artigo intitulado “Estigma e resistência entre travestis e mulheres transexuais em Salvador, Bahia,
Brasil” ilustra muito bem o olhar para a travestilidade e o estigma sofrido por essa população. Trata-se
de um estudo qualitativo, chamado de “Estudo PopTrans”, escrito por Laio Magno, Inês Dourado e Luis
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hidaka%20Y%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?Db=pubmed&Cmd=Search&Term=%22Hidaka%20Y%22%5BAuthor%5D&itool=EntrezSystem2.PEntrez.Pubmed.Pubmed_ResultsPanel.Pubmed_DiscoveryPanel.Pubmed_RVAbstractPlus
Augusto Vasconcelos da Silva, da Universidade do Estado da Bahia, conduzido entre 2014 e 2016 com
base na análise de narrativas produzidas por 19 travestis e mulheres transexuais (identidades
autodefinidas por elas) em Salvador, Bahia, e publicado nos Cadernos de Saúde Pública no ano de 2018.
Assim, dentro desse contexto, o objetivo desse estudo foi avaliar as experiências do processo de estigma,
por meio da descrição de fatos, acontecimentos, atores e contextos que marcaram as trajetórias de vida
das travestis e mulheres transexuais entrevistadas, e também tentaram compreender a relação entre oestigma e suas performances femininas.
Os autores fazem uma introdução breve contextualizando a questão do estigma sobre a
travestilidade e do ser uma mulher trans no Brasil. Atribuem tal estigma principalmente ao fato de que
as travestis, ao romperem com a heteronormatividade compulsória da sociedade e ao sustentarem a
“ambiguidade ou duplicidade sexual na própria afirmação indentitária”, tendem a transitarem com
maior fluidez entre os gêneros, e isso por si só tende a gerar repulsa, estigma, violência por parte da
sociedade em vários níveis, que vão desde violações aos direitos humanos, encarceramento policial por
conta da identidade de gênero, criminalização, dificuldade de acesso a serviços de saúde, ausência de
acesso ao uso adequado de hormônios e de procedimentos cirúrgicos para modificação corporal até a
dificuldade em realizar a readequação do nome de registro em consonância com sua identidade de
gênero, entre outras.
O cenário brasileiro atual da transfobia e a morte precoce de travestis no Brasil são assustadores. A
transfobia é um fenômeno social complexo que pode ser definido como a manifestação de medo
irracional, aversão, ódio, discriminação e outras formas de intolerância dirigidas a indivíduos com
identidade trans. A transfobia pode ter consequências negativas para aqueles que a experimentam como
vitimização, uso de substâncias, depressão, suicídio e tentativas de suicídio, deficiências, baixa
autoestima e uma pletora de violações dos direitos humanos que, em muitos casos, podem culminar em
homicídio. Além disso, a transfobia pode estar relacionada ao acesso precário à saúde de pessoas
transexuais devido a uma variedade de fatores, incluindo a falta de conhecimento do médico e de outros
profissionais de saúde e a competência educacional na prestação de cuidados a pessoas transexuais
(Fernandes, 2013). O Brasil tem uma notoriedade lamentável como país mais transfóbico do mundo, já
que foi responsável por 845 casos de homicídio registrados entre janeiro de 2008 e abril de 2016, em
contagem global de homicídios de 2115 em 65 países em todo o mundo. Apesar disso, a homofobia e a
transfobia não são codificadas e reconhecidas com especificadores de crimes no Brasil. O projeto de lei
nº 122/2006 (PL 122), que criminalizaria a homofobia, a transfobia e a lesbofobia, foi apresentado à
Câmara dos Deputados em 2006, mas ainda não se tornou lei (Bernardi, 2006). Em 2019, o
SupremoTribunal Federal decidiu criminalizar a homofobia como forma de racismo, sendo que a
homofobia passa a ser utilizada como qualificadora de motivo torpe no caso de homicídios dolosos
ocorridos contra homossexuais.
Estudo epidemiológico Recrutou travestis ou mulher transexuais, com idade maior ou igual a 15
anos e que estivessem residindo em Salvador ou região metropolitana no período do estudo. A
disposição em contar as histórias de vida também foi levada em consideração no recrutamento para o
estudo qualitativo. As entrevistas foram realizadas em profundidade com base na diversidade
sociodemográfica e nas experiências dessas participantes na tentativa de produzir uma heterogeneidade
de histórias. Tais entrevistas ocorreram em uma sala reservada na sede do PopTrans ou em outro lugar,
de acordo com a indicação da própria participante. O PopTrans é um projeto de pesquisa
interdisciplinar com a participação de uma equipe de pesquisadores de diferentes áreas, os quais tem
como objetivo conhecer as condições e os modos de vida, e ao mesmo tempo investigar fatores
determinantes da infecção pelo HIV, sífilis e hepatites B e C entre travestis e mulheres transexuais em
Salvador-Bahia.
Os autores utilizaram dois conceitos para análise das narrativas. O primeiro deles inspirado no
conceito de gênero de Judith Butler (2003) como uma “estilização repetida do corpo, um conjunto de
atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo
para produzir a aparência de uma substância”. E o segundo conceito de estigma do cientista social
Erving Goffman (1981) “como um atributo profundamente depreciativo identificado nas interações
sociais”. Os pesquisadores de campo buscaram focalizar os processos de construção do ser e das
modificações corporais, formas de interação com outras pessoas, os itinerários de cuidados com a saúde,
incluindo as dificuldades e formas de acesso aos serviços de saúde, as formas de discriminação ou
violência vividas no cotidiano e as expectativas e projetos para o futuro. Todas as participantes do
estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e foram garantidos o
anonimato e a confidencialidade das entrevistas por meio da adoção de nomes fictícios. O projeto de
pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (no
225.943/2012).
Entre os principais resultados destacam-se inicialmente os dados sociodemográficos das 19 pessoas
entrevistadas, os quais revelam uma população jovem de 20 a 40 anos, com baixa escolaridade, a grande
maioria em atividade atual de trabalhadora do sexo, pardas, solteiras e vivendo com uma renda de um a
dois salários mínimos por mês. Quanto ao histórico de discriminação e violência, 36.8% já foram
“forçadas a fazer sexo”, 42.1 % já sofreu agressão por parte da polícia, 52.6% relatou histórico de
discriminação na família, 63.2% já sofreu discriminação pelos vizinhos, 73.7% relataram ter sofrido
agressão física e 78.9% já sofreu agressão verbal. O estigma relacionado à formação da identidade de
gênero e ao constante processo de construção de uma travesti podem ser barreiras importantes para o
acesso delas à escolaridade e ao emprego formal. Essa situação de marginalização socioeconômica
geralmente justifica sua entrada no trabalho sexual. O trabalho sexual muitas vezes é realizado em troca
de poucos recursos financeiros ou como “moeda de troca”. Ainda o trabalho sexual tem relação com a
necessidade de autossustento e a falta de opções laborais no mercado de trabalho, o qual parece não
tolerar a identidade não binária. Esse trabalho também é geralmente feito em condições precárias de
segurança, o que as expõe a uma diversidade de riscos (sexuais, abusos, roubos etc.).
Muitas travestis e mulheres transexuais parecem indicar que a expressão “afeminada” esteve
presente nos seus corpos e nos objetos utilizados por elas desde muito pequenas – já na primeira
infância – como um sinal que as separava das demais crianças. O corpo é performado ainda na infância e
na adolescência por intermédio de trejeitos “de menina”, “boiola”, “viado”, os quais são muitas vezes
reconhecidos por familiares e por outras pessoas próximas. Os objetos (boneca, faz de conta da toalha
como cabelo, assessórios etc.) e roupas (vestidos, saias etc.) utilizados na infância possuem um
agenciamento performático importante. Ambos são classificados como “coisa de mulher” e fazem parte
da infância das travestis e mulheres transexuais. Nesse momento, esses são identificados como
marcadores que distinguem a performance “afeminada” das travestis e mulheres transexuais daquelas
apresentadas pelos meninos, frustrando a expectativa de muitos ao seu redor – a começar pelo primeiro
lugar de pertencimento, que em geral é a família, e pelo segundo lugar de pertencimento que é a escola.
As performances distinguem as travestis e mulheres transexuais de outras pessoas pelo processo de
rotulação e de separação entre grupos reconhecidos como “apropriadamente generificados” daqueles
que não “se encaixam” na divisão binária. Esse atributo também parece impor a impossibilidade de
atenção social e recai sobre elas um grande descrédito ou demérito por serem quem são. Ao contrariar
aquilo que é o socialmente “esperado” num universo de gêneros binários, as travestis e as mulheres
transexuais multiplicam as narrativas sobre discriminação sofrida ao longo de suas trajetórias de vida.
Nesse estudo, as narrativas sobre expulsão de travestis e mulheres transexuais de casa e da escola devido
a sua performance “afeminada” demonstram tantoa estereotipia quanto a separação das travestis e
mulheres transexuais do convívio familiar com aquelas pessoas consideradas “apropriadamente
generificadas”, ao mesmo tempo que reforça um sistema de gênero binário de oposição. A resistência
parece emergir, sobretudo, na formação de alianças com outras travestis e na interação social com elas,
assim como na formação de associações em prol das causas que interessam ao ativismo de transexuais.
Cabe destacar neste artigo os pontos fortes desse estudo, os quais estão centrados no fato de que o
método qualitativo empregado foi capaz de aprofundar a complexidade de fenômenos como a vivência
do estigma dentro do universo da travestilidade das entrevistadas em Salvador, Bahia, assim como
aprofundar fatos e processos particulares desse grupo de 19 travestis e mulheres trans permitindo
experimentar a realidade tal como as entrevistadas a sentem ou vivenciam. Por outro lado, os autores
desse artigo não apontam uma limitação sequer de seu estudo ou mesmo suas potencialidades. Não
contextualizam, por exemplo, as limitações de generalização dos resultados, uma vez que se pode inferir
que esse contexto pode ser particular das travestis e mulheres transexuais de Salvador, mas não se sabe,
por exemplo, se essa narrativa é vivenciada de forma semelhante ou diferente pelas travestis do Rio
Grande do Sul, por exemplo, onde a cultura é completamente distinta daquela observada no nordeste
do Brasil. Também não apresentaram as implicações desses achados para as políticas públicas ou para a
promoção social e educacional, tampouco para futuros estudos.
Entre as possíveis implicações para políticas púbicas nesse contexto estão a capacitação de
profissionais da saúde para melhor atenderem travestis e mulheres transexuais dentro das
especificidades e de suas necessidades numa atmosfera de acolhimento e respeito em serviços de saúde,
já que esse foi um dos temas mais apontados como fatores de estigma e dificuldades de acesso a serviços
de saúde e cuidados em saúde. Isso vale para qualquer serviço, inclusive aqueles de tratamento de
transtornos relacionados ao uso de substâncias que em geral são serviços binários, ou seja, destinado
apenas para homens e/ou mulheres, e não para pessoas que têm gênero em transição ou que transitam
no sentido queer da palavra. A expansão da pesquisa sobre as diversas populações transexuais tende a
ajudar a aumentar a compreensão de como sociedades e culturas lidam com questões de gêneros não
binários. Pesquisas comparativas sobre as características da vivência do estigma de travestis e mulheres
transexuais, das suas performances, bem como dos processos de resistência dessas identidades, tendem a
uma maior compreensão da complexidade da identidade de gênero, o que em última instância pode
contribuir para a redução do estigma associado a identidades de gênero não binárias e à promoção ativa
dos direitos humanos de indivíduos com tais identidades.
Um olhar para os agêneros, não binários, queer
Agêneros são pessoas que, em geral, têm a sua identidade de gênero chamada de neutra, ou, em
outras palavras, elas não querem ter um gênero. Não existe ainda uma “causa” por que as pessoas se
identificam com não pertencentes a nenhum gênero. A tendência atual é acreditarmos que tais
identidades estão dentro do espetro de possibilidades das variações possíveis de gênero.
Elas são assim e ponto! Tais identidades de gênero fora do binário de “mulheres e homens” estão
sendo cada vez mais reconhecidas tanto em sistemas legais quanto médicos de acordo com a presença
emergente delas em espaços públicos e privados antes não reconhecidos e, sobretudo, do advocacy de
grupos de pessoas organizadas para defender suas causas e anseios em nossas sociedades. Tanto que a
cidade de New York recentemente permitiu que documentos de seus cidadãos pudessem conter o
gênero neutro, identificado com um X em respeito e reconhecimento a existência delxs. Na Austrália,
por exemplo, as mudanças legislativas e políticas podem beneficiar pessoas de experiência trans e/ou
não binária (por exemplo, homens designados por mulheres com corpos estereotipados femininos,
mulheres designadas por homens com corpos estereotipados “masculinos” e pessoas que se identificam
como genderqueer, agênero [não tem gênero], bigênero [ter dois gêneros] ou outra possibilidade de
gênero).
O termo utilizado para pessoas não binárias está associado a pessoas cuja identidade ou expressão de
gênero não se limita às categorias únicas de “masculino” ou “feminino”, ou seja, a esses dois polos apenas
de possibilidades de autoidentificar-se. Algumas pessoas não binárias podem sentir que seu gênero está
“em algum lugar entre homem e mulher”. Portanto, podem se sentirem “transitando” entre esses dois
universos e isso ser sua identidade e também sua expressão de gênero. Já algumas pessoas têm um
gênero que não é nem masculino nem feminino e pode se identificar tanto como homem quanto
mulher ao mesmo tempo, ou como gêneros diferentes em momentos diferentes, como nenhum gênero,
ou disputar a própria ideia de apenas dois gêneros. Os termos genéricos para esses gêneros todos são
gêneros “genderqueer” ou “non-binary”, daí a possível relação dessas terminologias.
Na construção do gênero é importante sempre termos em mente que quem se considera algo ou
alguém deve ser a própria pessoa portadora daquela identidade. Por isso é importante lembrar sempre
que essa identidade construída socialmente é atribuída pelo sujeito, e não pelos outros ou por terceiros.
Por isso, quando se pergunta se uma pessoa pode ser considerada transexual, o meu impulso inicial é de
responder “não sei, você tem que perguntar para ela se ela se considera uma pessoa trans!”.
Compreendem? Estamos falando de nomenclaturas muito complexas, porém mais que “nomenclaturas”,
estamos a falar de pessoas, de gente, de seres humanos, ou seja, de gente que se percebe, identifica-se,
reconhece-se como tal.
Embora esses gêneros existam historicamente e globalmente, eles permanecem marginalizados e,
como tal, apesar de não serem “transtornos” ou patológicos em si mesmos, as pessoas com tais
identidades permanecem em alto risco de vitimização e de estresse minoritário ou de marginalização
como resultado da discriminação. Os estudos sobre a temática sim são ainda escassos. Mais dados e
pesquisas são necessários para colmatar as lacunas de conhecimento que existem atualmente e
melhoram o acolhimento e os cuidados para agêneros e para pessoas não binárias em qualquer dos
espaços que frequentem ou necessitem. Os estudos sobre o tema em sua maioria estão mais
preocupados em avaliar questões ligadas a estigmas, a efeitos da patologização, ao stress minoritário e
seus efeitos ou como orientar profissionais da saúde de como lidar com jovens agêneros e não binários
em ambientes de saúde, por exemplo. São escassos talvez porque, apesar de essas pessoas existirem há
muito tempo, o tema tem ganhado maior visibilidade somente nos últimos anos. Acredito que a
crescente visibilidade gere maior interesse dos acadêmicos em melhor conhecê-los e saber de suas
necessidades, anseios e trajetórias. Outra explicação para a escassez de estudos sobre o tema talvez esteja
ligada às dificuldades de recrutar tais indivíduos para pesquisas devido ao número reduzido, daí o
surgimento de pesquisas mais qualitativas do que quantitativas.
Estudos baseados em população mostram uma pequena porcentagem, mas uma proporção
considerável em termos de números brutos – de pessoas que se identificam como não binárias. Os
achados de um estudo piloto, por exemplo, do questionário recém-projetado, o Gender Diversity
Questionnaire, que incluiu perguntas sobre identidade de gênero e expressão de gênero respondidas por
251 adolescentes que compareceram ao Serviço Nacional de Desenvolvimento de Identidade de Gênero
do Reino Unido entre junho de 2016 e fevereiro de 2017, revelou 1.2% de agêneros nessa amostra, o
que coincide com estimativas dimensionadas para a população geral (Twist & Graaf, 2018).
A vida deuma pessoa agênero é como de outra pessoa qualquer. No entanto provavelmente com
mais barreiras ligadas ao preconceito e ao reconhecimento delas como identidades estáveis ou reais. Daí
a importância dos movimentos indentitários na organização de reconhecimento e, principalmente, de
pertencimento. Não se reconhecer como alguém pertencente ao masculino ou ao feminino como a
grande maioria das outras pessoas pode trazer angústia e busca de um lugar de pertencimento. Pode
trazer ansiedade e depressão e até mesmo risco de suicídio. As famílias também podem ter dificuldades
de lidar com essa questão e podem “forçar”/“insistir” para que seu familiar se “encaixe” em um modelo.
Movimentos de familiares como as “Mães pela Diversidade” fazem um trabalho valoroso nesse sentido
de orientar, acolher, partilhar e compartilhar informações, saberes, experiências e trajetórias.
A orientação sexual de uma pessoa agênera pode ser diversa e rica também. Não existe um “padrão”.
Acho que se existir um “critério”, esse talvez seja o amor, o gostar, o se sentir atraído por aquela outra
pessoa ou pessoas. Existe ou não um marcador biológico ou psicológico para isso? Se sim, a resposta é
não, pois não conhecemos ainda se existe essa ou aquela característica. Muito provável que não exista.
É importantíssimo falarmos e, sobretudo, pesquisarmos mais sobre esse tema e discutirmos de uma
forma assertiva, amorosa, ética, baseada em evidências científicas e não apenas em “achismos” e
“ideologismos”, quer sejam religiosos ou dogmáticos, sobre as possibilidades de existência humana num
momento político nacional que pode ser bastante complicado e difícil de dialogar se entendermos que o
mundo é apenas das meninas que “vestem rosa e dos meninos que vestem azul”. Temos que perguntar
para essas pessoas agêneras, binárias, queer o que elas acham disso. Será que de fato mesmo está
existindo uma maior “confusão na cabeça das crianças” com relação à sua criação de uma forma mais
fluida com relação ao seu gênero? Não temos essas respostas prontas! Daí a necessidade de pesquisas,
diálogo informado e de ouvirmos os maiores interessados nesse reconhecimento, que são as pessoas
agêneras e que transitam ou que transgridem as normativas de gêneros binários.
Não pesquiso esse tema em específico, por isso a minha relação com o tema é advinda dos cursos
que tenho frequentado e das palestras e movimentos que tenho contato. Conheço alguns colegas que
estão desenvolvendo debates e estudos sobre o tema dentro da perspectiva da Teoria Queer da Judith
Butler. Recentemente, tive a oportunidade de ir a uma palestra de Paul Preciado, um filósofo trans
feminista, bastante interessante, que fala sobre algo bem complexo que é o “corpo político”. Mas isso já
daria um outro capítulo. Mas vale a pena conferir! Fica a dica!
CAPÍTULO 10
ADOLESCENTES
Ana Carolina Schmidt de Oliveira
Hewdy Lobo Ribeiro
Introdução
Independentemente da complexidade do serviço de saúde que recebe
adolescentes para tratamento, certamente o profissional da saúde irá se
deparar com a temática da sexualidade e uso de drogas, em muitos casos em
um mesmo paciente. É na adolescência que em geral se inicia a descoberta da
sexualidade e que a maioria das pessoas tem a primeira experiência sexual
(UNESCO, 2018). Também é nessa época da vida que a maioria das pessoas
que chegam a experimentar algum tipo de substância irá fazer o primeiro uso
(Instituto Nacional de Pesquisa de Álcool e Drogas – INPAD, 2013).
Apesar de a maioria das pessoas desenvolverem sua sexualidade de forma
saudável e natural e, portanto, não evoluírem para um transtorno relacionado
a substâncias, há uma parcela da população que terá problemas em relação a
uma ou ambas dessas áreas. Por isso, é essencial que profissionais da saúde
tenham conhecimentos para prevenir, rastrear, identificar, acolher, avaliar ou
mesmo tratar questões relacionadas à sexualidade e às drogas na adolescência.
Considera-se que adolescência inicia com a puberdade e termina com a
aquisição das regras sociais do mundo dos adultos (Geier, 2013). Apesar de a
Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019 definir a adolescência como a
fase entre os 10 e os 19 anos, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil,
1990) como a fase entre os 12 e os 18 anos, é importante lembrar que existem
variáveis individuais que marcam em cada sujeito a duração desse período.
Como se sabe, a adolescência é marcada por diversas mudanças:
Físicas, decorrentes da puberdade;
Cognitivas, pela maturação cerebral;
Socioemocional, pelas transformações nos papéis sociais e na dinâmica dos
relacionamentos.
Apesar do aumento das capacidades cognitivas em relação à infância, o
controle cognitivo sobre os comportamentos se desenvolve gradualmente, ou
seja, até a adultez haverá limitações nessa habilidade mental (Geier, 2013).
Além disso, na adolescência é característica a busca por prazer, sensações,
novidades e principalmente por recompensas, o que é entendido como
adaptativo. Essa motivação interna os possibilita conhecer e explorar novos
ambientes e experiências gerando conhecimentos e competências essenciais
para a vida adulta (Geier, 2013).
Porém essa energia direcionada ao novo é acompanhada por uma
dificuldade em manejá-la, podendo levar o jovem a situações de risco à sua
saúde. De fato, o engajamento de adolescentes em comportamentos de risco é
maior do que em qualquer outra fase da vida, e está diretamente relacionado
com a morbidade e a mortalidade nessa população (Geier, 2013).
Aqui cabe um parêntesis para esclarecer o que seria um comportamento de
risco: são aqueles que podem gerar resultados subjetivamente desejados (como
o prazer da relação sem camisinha), porém que também podem causar
consequências negativas e mal adaptativas (como o contágio por infecção
sexualmente transmissível (ISTs) (Geier & Luna, 2009).
Além disso, a capacidade para tomada de decisão – entre outras
importantes funções cognitivas – não está completamente desenvolvida nessa
faixa etária. Influências no desenvolvimento saudável do jovem pode trazer
prejuízos ainda maiores nessa habilidade e gerar comportamentos de risco
(Geier, 2013). Por exemplo, é reconhecido em diversos estudos que
adolescentes usuários de drogas usam menos frequentemente camisinha em
suas relações sexuais. Nesses casos, o reforço do prazer imediato influencia sua
tomada de decisão e consequentemente o comportamento.
Dentro desse contexto, o presente capítulo tem como objetivo justamente
apresentar informações para embasar essas práticas no dia a dia do
atendimento a adolescentes.
Uso de substâncias na adolescência
Apesar da maioria dos adolescentes que experimentam álcool, tabaco e
outras drogas não apresentar nenhum tipo de transtorno ou problema, uma
parcela significativa terá consequências importantes do uso, inclusive o
desenvolvimento de um transtorno relacionado a substância (Geier, 2013).
De acordo com o Ministério da Saúde (2005), o consumo de substâncias é
um dos maiores fatores causadores de vulnerabilidades entre os jovens
brasileiros, como dependência química, gravidez indesejada, doenças
sexualmente transmissíveis, tráfico de drogas, acidentes, violência e morte.
Atualmente no Brasil 25,5% dos adolescentes estudantes da rede pública ou
privada de ensino já tiveram contato com algum tipo de substância, sem levar
em consideração o álcool e o tabaco (Carlini et al., 2010).
De acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II
LENAD), 4% dos jovens já experimentou maconha, 3% usou no último ano,
sendo que entre estes 10% são dependentes da substância (INPAD, 2013). Em
relação à cocaína 3% dos adolescentes já experimentaram na vida alguma
forma dessa substância, sendo que 2% consumiram no último ano (INPAD,
2013; ABDALLA et al., 2013). Quanto à cocaína fumada, 1% dos jovens já
fizeram uso na vida, representando 150 mil jovens, e 0,2% no último ano, que
seriam 18 mil jovens, valendo ressaltar que o Brasil é o maior mercado
consumidor dessa substância no mundo (INPAD, 2013).
O álcool tambémmerece destaque, tendo em vista que mesmo lícito para
adultos, seu consumo é proibido para menores de 18 anos. Ainda assim, o
levantamento realizado por Carlini et al. (2010) mostra que 60% dos jovens
estudantes já beberam na vida, 42,4% no último ano, 21,1% no último mês,
enquanto 2,7% fazem um consumo frequente e 1,6% fazem um consumo
pesado dessa substância.
Sabe-se que a adolescência pode representar um período de
vulnerabilidade para o desenvolvimento da dependência química. Fatores
como conquista da própria identidade sem o devido suporte social, curiosidade
natural pelas drogas, modismos, pressão da turma, exposição a substâncias,
exposição à violência doméstica, violência urbana, falta de recursos
socioeconômicos, envolvimento com a criminalidade, exposição ao uso de
drogas dos pais, entre outros, podem vulnerabilizar o indivíduo para o contato
inicial com a substância e para a persistência nesse consumo (Bessa, Boarati &
Scivoletto, 2011).
Sexualidade na adolescência
Como se sabe, a adolescência é um período de grande descoberta na área
da sexualidade. Com as mudanças que ocorrem com a puberdade, o novo
corpo traz a possibilidade de novas experiências. Desde uma perspectiva
saudável, é o momento em que o jovem irá conhecer seus desejos, o
enamoramento, a masturbação, a busca pelo prazer e de relacionamentos
afetivos sexuais. Aprende-se a partir dessas primeiras experiências o
necessário para estabelecer relações saudáveis (Corona & Funes, 2015).
Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO, 2018), a saúde sexual está relacionada com conhecimentos,
habilidades sociais e valores que possibilitam desenvolver relações sociais e
sexuais respeitosas, escolhas livres e baseadas nos próprios direitos, de
maneira a garantir saúde, bem-estar e dignidade.
Apesar de essa faixa etária estar relacionada com maiores comportamentos
de risco para IST e gestação indesejada, a maioria dos adolescentes consegue
chegar à vida adulta sem ser contaminado, sem filhos ou abortos (Corona &
Funes, 2015).
Porém uma significativa parcela dessa população terá seus direitos
fundamentais violados pela gestação ou aborto, pela contaminação por ISTs
ou mesmo pela violência sexual ou de gênero. Apesar de a violência sexual
poder estar presente em qualquer faixa etária, nesse período pode ser difícil
para o jovem se posicionar contra pressões nessa área. Não é incomum relatos
de jovens que se veem pressionados pelos colegas para terem relações sexuais
com pessoas que não desejam. Infelizmente, o abuso sexual de menores é um
fato alarmante no Brasil (Ministério da Saúde, 2016).
Dados de notificações compulsórias de violências interpessoal e
autoprovocada pelos serviços de saúde públicos e privados revelam que em
2015, 38,5% das notificações eram de vítimas crianças e adolescentes entre
zero e 19 anos. A violência sexual representou 11,3% das notificações. Foram
identificados 56.036 casos de estupro contra meninas dessa faixa etária entre
2011 e 2015, geralmente ocorridos na residência (72%), sendo o autor da
violência, principalmente, amigo, conhecido, pai ou padrasto. Entre 2010 e
2014 houve 5.008 nascimentos de mães nessa faixa etária. Vale destacar que
meninas grávidas com até 12 anos de idade são consideradas vítimas de
violência sexual (Ministério da Saúde, 2016).
Nesse sentido, outro tema de preocupação na adolescência é a gravidez
precoce. No Brasil a taxa de gestações na adolescência é de 68,4 nascimentos
para cada 1 mil adolescentes entre 15 e 19 anos, o que supera a taxa mundial
de 46 nascimentos, e a taxa da américa latina de 65,5 nascimentos. A gestação
nesse período da vida está associada à baixa escolaridade, à pobreza, a ser
indígena ou de região rural (ONUBR, 2018).
Os prejuízos são inúmeros, não só para a jovem como para o bebê, que
pode apresentar maior risco de problemas de saúde e socioeconômicos. A
adolescente possivelmente terá com a gestação ou futuro papel de mãe um
obstáculo para seu desenvolvimento biopsicossocial, como para sua saúde,
educação e para a entrada no mercado de trabalho. Há inclusive maior o risco
de morte materna por complicações na gestação, pré e pós-parto, uma das
principais causas da morte entre adolescentes e jovens de 15 a 24 anos no
Brasil (ONUBR, 2018).
Isso abre a discussão sobre o aborto na adolescência. Segundo as Nações
Unidas (ONUBR, 2014), anualmente ocorrem por volta de 3,2 milhões de
abortos inseguros em jovens entre 15 e 19 anos em países em
desenvolvimento como o Brasil. O país perde mais de 7 bilhões de reais com
gravidez de adolescentes por complicações durante a gravidez ou o parto
(ONUBR, 2014). Esse fenômeno destaca a importância do debate sobre o
tema; sem reservas falar sobre o tema pode prevenir a gestação ou mesmo o
aborto clandestino.
A vergonha de adultos para falar sobre sexualidade representa um fator de
risco para os jovens, que conhecidamente apresentam dúvidas frequentes
sobre temas como (Telma et al., 2005):
Relação sexual, por exemplo, o que é, o que é sexo oral, o que é masturbação, o
que é orgasmo, mitos, entre outros;
Gravidez e anticoncepção, por exemplo, o que é anticoncepção, quais são os
métodos anticoncepcionais, e mitos, como se na primeira relação sexual ou sexo
anal engravida, entre outros;
IST, por exemplo, o que são, como são os sintomas, quais as formas de
transmissão, como se previne, onde se faz o diagnóstico, qual o tempo de
incubação, entre outras;
Orientação sexual, por exemplo, como me definir sexualmente, o que é
bissexualidade, o que é transexualidade, entre outros;
Questões sobre o corpo, a fisiologia, sobre disfunções sexuais, entre outros;
Onde buscar consultas médicas.
O que se observa é que o jovem continua a ter muitas das dúvidas que os jovens
de antigamente tinham, e seguem em muitos casos sem acesso a informações de
qualidade e confiáveis. Ainda é frequente que jovens tenham que lidar sozinhos
com as mudanças corporais da puberdade, ou que descubram sobre a sexualidade
com seus pares. Ainda que tenham a internet com infinitas informações, nem
sempre estas estarão orientadas para a sua idade, além de muitas vezes não serem
confiáveis. Um cenário infeliz é o aprendizado de jovens sobre a sexualidade por
meio da pornografia, de tão fácil acesso no mundo on-line. Por isso, apesar da
grande disponibilidade de informações sobre a sexualidade, é importante que os
adultos de confiança do jovem conversem sobre o tema, para que tenham
critérios e crítica sobre o que recebe de outras fontes (Chandra-Mouli, 2015).
Sexo e drogas na adolescência
No Brasil, poucos estudos verificaram a relação entre uso de substâncias e
comportamento sexual na adolescência.
Miozzo et al. (2013) avaliaram o consumo de substâncias e o padrão de
comportamento sexual em alunos do ensino médio (n=453, ambos sexos) em
uma cidade do Rio Grande do Sul e identificaram um uso na vida de álcool
(82,34%), tabaco (12,58%), maconha (6,62%) e cocaína (5,30%). Entre os 54,5%
dos alunos que referiram já ter tido relação sexual, foi encontrada uma
associação entre já ter utilizado drogas em geral, álcool ou tabaco e já ter tido
relação sexual.
Wendland et al. (2018) investigaram, por meio do Estudo Epidemiológico
sobre a Prevalência Nacional do HPV, o comportamento sexual de jovens na
transição para a vida adulta (n=8562). Identificaram que a maioria dos homens
teve uma iniciação sexual precoce e mais parcerias sexuais quando comparado
com as mulheres, e que estas referiram usar métodos anticoncepcionais mais
frequentemente que os homens. Verificaram que 15,5% das mulheres e 25,3%
dos homens já fizeram uso de drogas antes da relação sexual, e entre eles a
contaminação por ISTs foi mais frequente (em ambos os sexos).
Fica clara a relação entre uso de substâncias e prejuízos na sexualidade na
adolescência. Porém, quando se trata de sexo e drogas, pode-se estabelecer a
relação entre essas áreas desde diferentes direções. O início da vida sexual
pode representar um fator de risco para um uso mal adaptativode substâncias,
como no caso de jovens que sentem necessidade de beber para poder paquerar,
ou aqueles que buscam em substâncias formas de melhorar seu desempenho
sexual. Já o uso de substâncias pode vulnerabilizar o jovem para
comportamentos sexuais de risco, como negligenciar o uso de camisinha, ou
mesmo expor o jovem a situações de violência como estupro ou troca de sexo
por drogas (Sampaio Filho et al., 2010).
O uso de álcool, por exemplo, está consistentemente associado a
comportamentos de risco. Um estudo com 138 universitários verificou que
quanto maior o beber em binge, menor a autoeficácia quanto à prevenção de
ISTs. Um fator de risco nesse sentido é a expectativa positiva da relação sexual
enquanto intoxicado pelo álcool (Johnson et al., 2018).
Desde outra perspectiva, os fatores de risco para comportamentos sexuais
e os transtornos relacionados a substâncias muitas vezes coincidem, sendo que
a vivência deles estaria aumentando as chances do jovem de apresentar
problemas nessas duas áreas. O quadro 1 ilustra os fatores de risco para adoção
de comportamentos sexuais de risco na adolescência:
Pressão social de pares e desejo de pertencimento;
Diversão e festas relacionadas a comportamentos de risco;
Insegurança, baixa autoestima, ansiedade;
Desejo por melhora de performance e pelo corpo socialmente aceito;
Vivência de traumas e maus-tratos;
Vulnerabilidade socioeconômica;
Contextos de violência, como tráfico de pessoas ou prostituição infantil;
Entre outros.
QUADRO 1 - FATORES DE RISCO COMUNS
Fonte: Elaborado pelos autores
A necessidade de aprovação dos pares é evidente na adolescência. Os
comportamentos de risco são muitas vezes motivados por recompensas
sociais. Portanto são mais prováveis de acontecer na presença dos pares
(Albert et al., 2013). Ambrosia et al. (2018) explicam que isso ocorre devido à
combinação de uma maior sensibilidade neural e comportamental ao afeto
positivo dos pares. Nessa fase as mudanças biológicas, afetivas e
comportamentais se dão orientadas ao social, no sentido de priorizar as
amizades, relações sexuais e relacionamentos românticos. Essa dinâmica
esclarece por que a influência dos amigos nessa fase parece ser mais
motivadora que a dos pais (Liao et al., 2013).
Whitton et al. (2018) verificou, por exemplo, que entre adolescentes
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) relacionamentos românticos
podem promover tanto o tabagismo e uso de maconha como um efeito
protetivo contra o uso de álcool e outras drogas ilícitas. Em relação aos jovens
LGBT, infelizmente a literatura demonstra que eles fazem um maior uso de
substâncias que o pares heterossexuais, inclusive apresentam maior uso de
múltiplas substâncias, o que aumenta a probabilidade de prejuízos (Dermody,
2018). Jovens transgêneros, além de mais uso de substâncias, vivenciam ainda
mais histórico de violência, risco de suicídio e comportamentos sexuais de
risco que seus pares cisgêneros (Johns et al., 2019).
Quanto ao histórico de violência, sabe-se que as adolescentes que
apresentam histórico de maus-tratos também têm maior risco para
comportamentos de risco, tanto relacionado ao uso de drogas como sexuais. É
marcada nesses casos a escolha de uma parceria que promove esses
comportamentos e inibe conversas sobre práticas saudáveis (Clark et al.,
2018).
Portanto, entre jovens, evidentemente o uso de substâncias não se dá
apenas com fins recreacionais, mas também como maneira de obter
recompensas sociais e alívio do sofrimento. Nesse ponto, é interessante notar
o uso de substâncias com outros objetivos que não o de efeitos psíquicos, por
exemplo, o consumo de fármacos como laxantes, para obtenção do corpo
magro imposto socialmente, e Sildenafila para garantia de ereção duradoura,
ou seja, a busca por efeitos diretamente relacionados à sexualidade (Diehl &
Schmidt, 2015).
Por fim, destacam-se casos eminentemente graves da associação entre
sexo, drogas e adolescência, como o uso de substâncias na prostituição na
adolescência decorrente da exploração sexual de menores, do turismo sexual,
do tráfico de pessoas, ou mesmo da pornografia digital.
Avaliação e intervenção
Mewton et al. (2019) sinalizam que o uso de álcool, o uso de drogas, o
tabagismo, o sexo sem proteção e sono insuficiente são os comportamentos de
risco de jovens que devem funcionar de alerta para os profissionais da saúde
por representarem fatores de risco preditores de morbidade e mortalidade
nessa população. Desse modo, são comportamentos que exigem políticas
urgentes de prevenção e tratamento.
Campanhas de prevenção de comportamentos de risco na adolescência são
amplamente aplicadas em escolas, Unidades Básicas de Saúde (UBS), entre
outros espaços comunitários. Porém, tendo em vista a alarmante
epidemiologia de uso de substâncias e de prejuízos relacionados à sexualidade
na adolescência, os resultados destas ainda são insuficientes e profissionais da
saúde devem contribuir com novas políticas para uma efetiva prevenção.
Educadores e pais, quando se deparam com o uso de drogas e questões
relacionadas à sexualidade entre seus alunos e filhos, muitas vezes sentem-se
limitados em como ajudar, em como abordar esses temas de maneira
construtiva e protetiva. Assim, uma das vias da prevenção está nas mãos dos
profissionais da saúde ao instrumentalizar a população adulta sobre como lidar
com o uso de drogas e a sexualidade na adolescência (Oliveira, Diehl &
Cordeiro, 2014).
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), em
seu artigo 101 (Medidas Específicas de Proteção), o jovem possui o direito
garantido de receber atendimento para seu uso problemático de substâncias.
Assim, os adolescentes dependentes químicos devem ter à disposição:
“orientação, apoio e acompanhamento temporários; requisição de tratamento
médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial, ou
inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos”.
Em avaliações de adolescentes, profissionais da saúde devem sempre
investigar: o uso de álcool, tabaco ou outras drogas, comportamentos sexuais
de risco e os fatores de risco e proteção presentes em relação a essas duas
áreas. Para tanto, pode ser interessante utilizar escalas como a Drug Use
Screening Inventory (DUSI) (De Micheli, Formigoni, 2000) e a Youth Risk
Behavior Survey (YRBS) (Pinto & Correa, 2010).
Como relatado, esse deve ser um cuidado para toda população adolescente,
mas deve-se estar ainda mais atento para as potenciais vulnerabilidades
apresentadas por meninas vítimas de maus-tratos e jovens LGBT vítimas da
homofobia e da transfobia. Essas violências relacionadas ao gênero e/ou
orientação sexual estão intimamente relacionadas com a construção da
sexualidade e aumentam os riscos para a saúde biopsicossocial (Corona &
Funes, 2015), inclusive podendo resultar em uso de substâncias ou transtornos
mentais (Natarelli et al., 2015).
Em relação a jovens que sofrem maus-tratos pela parceria, intervenções
que podem contribuir são ilustradas no quadro 2:
Promover informações sobre as características de parcerias que promovem comportamentos
de risco e das que estão associadas às relações saudáveis;
Proporcionar informações sobre como a parceria pode influenciar no uso de substâncias;
Conversas sobre sexo seguro;
Prover informações sobre sexo seguro e sobre os riscos do sexo não seguro;
E proporcionar informações sobre os riscos associados com o uso de drogas e prática de sexo
não seguro com a parceria.
QUADRO 2 - INTERVENÇÕES COM JOVENS QUE SOFREM MAUS-TRATOS PELA
PARCERIA
Fonte: Traduzido livremente de Clark et al. (2018)
Quanto aos transtornos relacionados a substâncias, de acordo National
Institute on Drug Abuse (NIDA, 2014) os componentes dos tratamentos para
adolescentes devem compreender uma combinação de terapias e serviços para
atender às necessidades individuais do jovem, como demonstrado na figura 1
abaixo:
FIGURA 1 - COMPONENTES DO TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA PARA
ADOLESCENTES
Fonte:Adaptado de NIDA (2014)
Legenda: SPA= substâncias psicoativas
Ainda de acordo com NIDA (2014), os seguintes 13 princípios são
fundamentais para o tratamento do adolescente dependente de substâncias:
1- O uso de substâncias na adolescência precisa ser identificado e tratado o mais rápido
possível.
2- Os adolescentes usuários de substâncias podem se beneficiar de uma intervenção mesmo
que eles não sejam dependentes ainda.
3- Consultas de rotina podem ser boas oportunidades para rastrear o uso de substâncias.
4- Intervenções judiciais e pressão familiar desempenham importante papel na admissão e na
manutenção do adolescente no tratamento.
5- O tratamento deve ser adaptado às necessidades específicas de cada adolescente.
6- O tratamento deve atender às necessidades integrais dos adolescentes (educação, família,
outras), e não apenas ter foco no uso de substância.
7- Terapia comportamental é eficaz no tratamento do uso de drogas na adolescência.
8- Incluir a família e a comunidade é um aspecto importante do tratamento.
9- Para que o tratamento seja efetivo, é importante identificar e tratar quaisquer outras
condições de saúde mental.
10- Questões sensíveis, como violência, abuso e risco de suicídio, devem ser pesquisadas,
identificadas e tratadas.
11- É importante monitorar o uso de drogas durante o tratamento de adolescentes.
12- Permanecer em tratamento por um período de tempo adequado e manter continuidade
são aspectos importantes.
13- É importante realizar testes para doenças sexualmente transmissíveis, principalmente
HIV, hepatite B e hepatite C.
QUADRO 3 - 13 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PARA O TRATAMENTO DO
ADOLESCENTE DEPENDENTE DE SUBSTÂNCIAS
Fonte: adaptado e traduzido livremente de NIDA (2014)
No Brasil, a rede de tratamento para adolescentes que apresentam o
diagnóstico de dependência química é composta por serviços de diversas
complexidades. Esses jovens devem receber tratamento médico e psicossocial
em regime ambulatorial em sua região de residência, sendo preservando seu
convívio em sociedade, em serviços como UBS, Ambulatórios de
Especialidades, Centro de Apoio Psicossocial Infanto Juvenil (CAPS I) ou
Centro de Apoio Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS AD). Nos casos
considerados graves, a equipe multidisciplinar pode avaliar a necessidade de
internação em enfermaria psiquiátrica especializada em dependência química
(Brasil, 2001; Brasil, 2014). Esses serviços devem estar atentos às questões
relacionadas aos comportamentos sexuais de risco dos jovens usuários e
proporcionar o apoio necessário para o atendimento das necessidades
referentes à sexualidade.
Chandra-Mouli (2015), uma das referências na área da sexualidade na
adolescência, propõe que a educação sexual não deve ocorrer apenas no
âmbito da saúde, mas sim no contexto familiar, escolar, comunitário também.
Apesar de tabu e de existir o mito de que a educação sexual influenciaria o
jovem a iniciar a vida sexual antes de estar preparado, o autor defende a partir
de evidências de que educação sexual em realidade prepara o jovem para uma
vida sexual sadia e feliz. De fato, pode promover mudanças positivas no
comportamento sexual e diminuir consequências à saúde.
De acordo com a Chandra-Mouli (2015), educação sexual não é apenas
ensinar sobre sexo, reprodução ou evitar IST e gravidez indesejada, mas sim
uma abordagem integral apropriada a cada idade e cultura sobre sexualidade e
relacionamentos. Portanto, adultos devem aplicar a educação sexual com o
objetivo de que o jovem possa:
1. Melhorar conhecimentos e compreensão sobre sexualidade e relacionamentos,
por exemplo, sobre como é a menstruação;
2. Promover a autoconsciência e normas sociais equitativas nesses temas, por
exemplo, que tudo bem as meninas também iniciarem paqueras, assim como os
meninos;
3. Desenvolver habilidades sociais para fazer e seguir as próprias escolhas, por
exemplo, para dizer não quando não quer ter relação sexual.
Sabe-se que a falta de informação de qualidade, a falta de uma educação
sexual integral e a dificuldade de acesso a serviços de saúde sexual aumentam
as chances de gravidez na adolescência. Portanto, atuar sobre esses pontos é
fundamental. Para tanto, a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2018,
recomendou:
Implementação de programas intersetoriais de prevenção à gravidez baseados em
evidências;
Aumentar e garantir o acesso ao uso de contraceptivos;
Prevenir as relações sexuais sob coação;
Reduzir significativamente a interrupção de gestações em condições perigosas;
Aumentar o atendimento qualificado antes, durante e depois do parto;
Incluir as jovens no desenho e na implementação dos programas de prevenção da
gravidez adolescente;
Criar e manter um entorno favorável para a igualdade de gênero, a saúde e os
direitos sexuais e reprodutivos.
O Fundo de População das Nações Unidas – Divisão de Informação e
Relações Externas – Setor de Mídia e Comunicação, cuja sigla é UNFPA, em
2013 também propôs ações indiretas, intersetoriais e holísticas que influem
nesse cenário, como manter jovens na escola, prevenir a infecção por HIV e a
formação e empoderamento de meninas para a autonomia. Sobre essa
temática da gravidez na adolescência, é essencial também atuar sobre os papéis
dos meninos e homens na prevenção. A UNFPA também destaca a
importância da implementação de programas de apoio às meninas que
engravidam – tanto as vítimas de abuso sexual ou estupro como as de
relacionamentos consentidos – rompendo com a marginalização dessas jovens.
Uma notícia que traz esperança no Brasil é a que entre 2004 e 2015 houve
uma queda de 17% no número de gestações na adolescência no Brasil,
resultado da expansão do programa Saúde da Família, maior acesso a métodos
anticoncepcionais e do Programa Saúde na Escola, que proporciona educação
em saúde e promove o empoderamento para suas próprias escolhas
(Ministério da Saúde, 2019).
De maneira geral a UNESCO (2018) propõe que os seguintes temas devem
ser abordados em uma educação sexual integrada:
Relacionamentos: família, amizade, relações românticas, entre outros.
Valores, direitos, cultura e sexualidade: valores e sexualidade, direitos humanos, entre
outros.
Como entender o gênero: construção social de gênero, igualdade, violência de gênero, entre
outros.
A violência e a segurança pessoal: consentimento, privacidade, integridade, entre outros.
Habilidades para a saúde e bem-estar: tomada de decisões, comunicação, onde encontrar
apoio, entre outros.
O corpo humano e seu desenvolvimento: anatomia, puberdade, reprodução, entre outros.
Sexualidade e conduta sexual: relações sexuais, ciclo de vida sexual, reposta sexual, entre
outros.
Saúde sexual e reprodutiva: gravidez, anticoncepção, ISTs, tratamentos ISTs, entre outros.
QUADRO 4 - EDUCAÇÃO SEXUAL INTEGRADA
Fonte: Adaptado de UNESCO, 2018
A ideia é que os temas se repitam muitas vezes, com gradual aumento da
complexidade de acordo com o aprendizado do jovem, sempre com o objetivo
que este desenvolva valores positivos, como o respeito pelos direitos humanos
e igualdade de gênero, e atitudes e habilidades para construir relações seguras,
saudáveis e positivas (UNESCO, 2018).
Considerações finais
O uso de drogas, as ISTs, a gravidez indesejada, a violência de gênero, a
homofobia, a transfobia e a violência sexual representam fatores de risco que
são frequentes entre os jovens, representando temas que precisam ser
visibilizados, debatidos e prevenidos. É necessário que os profissionais da
saúde estejam cientes dessa realidade do adolescente brasileiro, e que haja a
clareza de que é necessário abordar esses fatores com naturalidade a partir de
estratégias baseadas em evidências.
É importante que os profissionais se sintam preparados para trabalhar com
os jovens a mudança de perspectiva de expectativas positivas dos efeitos das
substâncias e do sexo sem camisinha para uma visão clara de que existe um
aumento de risco real dessas práticas, principalmente quando ambas estão
presentes.
CAPÍTULO 11
MULHERES
Alessandra Diehl
Apesar das conquistasdas mulheres em relação à sua emancipação e
inserção em outros espaços sociais, políticos e culturais outrora ocupados
exclusivamente por homens, uma colocação básica em qualquer estudo sobre
gênero é a desvantagem social da mulher devido à vivência cultural enraizada
de uma sociedade ainda muito machista e pautada em conceitos patriarcais.
Revisão produzida por um grupo de pesquisadores da Associação
Brasileira de Estudos sobre Álcool e outras Drogas (ABEAD) em 2014, sob o
título “Mulheres e Drogas”, mostra que essa questão em relação à mulher
usuária de álcool e outras drogas não poderia ser diferente. Ainda que o
homem usuário sofra preconceitos e seja marginalizado socialmente pelo seu
consumo de drogas, o gênero feminino sofre muito mais estigma e
julgamentos morais. Isso decorre de valores como “a mulher deve ser
feminina, cuidar de seus filhos, do marido e da casa” e “a mulher não pode se
intoxicar”, pois esses conceitos estão atrelados à moral dela (ABEAD, 2014).
Várias são as consequências dessa cultura sobre a mulher em relação ao seu
consumo de drogas: (1) um número muito menor de estudos científicos
envolvendo a questão do gênero e uso de drogas; (2) segredo quanto ao
consumo de drogas; (3) demora na busca por ajuda especializada; (4) medos
em relação à perda de seu papel de mãe e esposa; (5) falta de apoio do cônjuge
para o início de um tratamento; (6) abandono da família; (7) número reduzido
de serviços especializados que ofertem vagas para mulheres; (8) poucos
serviços proporcionam atividades direcionadas especificamente para as
demandas desse grupo; entre outras (ABEAD, 2014).
Violências contra a mulher
Uma das principais vulnerabilidades da mulher é a violência doméstica,
sendo que 43,1% das mulheres brasileiras já sofreram violência doméstica,
enquanto apenas 12,3% dos homens sofreram a mesma agressão.
A outra é envolver-se em relacionamentos abusivos, o que será abordado
em detalhes em outro capítulo desta obra. Mas a autora deste capítulo
escreveu como colunista de um blog de uma outra editora sobre esse tema, e
daí vale lembrar que relacionamentos abusivos, relacionamentos tóxicos,
relacionamentos controladores ou relacionamentos destrutivos são todos
praticamente sinônimos de um tipo de vinculação afetiva que acaba por minar
a sanidade mental de uma relação, a qual poderia ser saudável e de fato
amorosa, mas que culmina para um tipo de afetividade doentia, corrosiva e até
mesmo chegando ao extremo de morte e assassinato. Cerca de metade dos
americanos já relataram viver esse tipo de relacionamento em suas vidas. No
Brasil, não temos dados ou evidências numéricas tão precisas assim. No
entanto dados revelam que 30.4% das mulheres sofrem violência psicológica,
7.3% sofrem violência moral, 4.8% sofrem violência sexual, 2.1% sofrem
violência patrimonial e 1.7% sofrem ou já sofreram o cárcere privado (PAHO,
2009; ONU, 2018).
Outros dados mais assustadores são com relação à violência física e o
feminicídio, os quais colocam o Brasil entre a vergonhosa posição de um dos
países mais violentos contra as mulheres do mundo. Em 2018, 16 milhões de
mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência no último ano, sendo
que 58% da população relataram já ter visto uma mulher ter sido agredida
física ou verbalmente no mesmo ano. No início deste ano de 2019, as
violências contra a mulher mostradas por diversas mídias nacionais têm dado
visibilidade a algo que já ocorre há muitos anos, mas que de certa forma ficava
silenciado assim como a violência por elas sofrida.
Na prática diária de consultórios de psicólogos, sexólogos, terapeutas,
psiquiatras e espaços de tratamento para a dependência química essas taxas são
ainda mais visíveis e bastante prevalentes. Em geral, a pessoa controladora e
abusiva é inicialmente descrita pela vítima como bastante gentil, sedutora,
galanteadora, costuma presentear, fazer elogios e mostra-se como um
personagem tal como um verdadeiro cavalheiro dos contos de fadas.
Progressivamente, o controle vai aparecendo cada dia mais. A mulher
inicialmente pensa que aquele ciúme é amor. Ou que aquele controle é uma
forma de cuidado e não percebe que de fato está tendo sua vida invadida e sua
identidade e autonomia “roubadas”. A pessoa controladora começa a solicitar
que a mulher envie mensagens de texto para saber onde ela está ou se ela já
chegou em sua casa; controlando até mesmo os likes que faz nas redes sociais,
com quem ela conversa nas redes sociais e até mesmo o que ela posta. Ele
também convence a mulher a deixar de usar determinada roupa ou
maquiagem, passa a controlar com quem ela conversa e como ela conversa
com as outras pessoas. Gradativamente o abusador limita o acesso aos amigos
da mulher, fazendo por vezes críticas deles. Na frente de outras pessoas, em
geral, mostra-se sempre um sujeito “pró-feminista”, que encoraja o
empoderamento feminino e a diversidade sexual, mas que na vida privada
comporta-se de maneira completamente oposta: machista, agressivo, violento,
por vezes até mesmo homofóbico e muitas vezes pensa viver no regime
patriarcal o qual foi educado.
Alguns autores de obras sobre o tema têm apontado alguns sinais, tais
como: você já esteve (ou está) em uma relação em que é sempre a pessoa a se
desculpar? Ou seja, pede desculpas a todo o momento por algo que julga ter
sido a culpada pelo fato? Com certa frequência o abusador/controlador diz:
“ah, isso é coisa da sua cabeça”; “pare de ficar vendo problema onde não tem”;
“deixa de surtar ou ser louca por besteira, parece que quer me enlouquecer
com essas manias neuróticas”; “você é muito louca”. É como se você nunca
pudesse ter razão ou sentisse que suas necessidades nunca fossem
reconhecidas. O abusador com muita frequência inverte as situações ou os
discursos manipulando as situações para que você acredite que ele “só quer
cuidar de você e te proteger!”, que ele “te ama”! O termo em inglês para
descrever esse tipo de comportamento chama-se gaslighting. Trata-se de um
termo usado com frequência para descrever comportamento manipulador
usado para induzir pessoas (em geral as mulheres) a pensarem que suas
reações são tão insanas que só podem estar “malucas”.
Ele é capaz de chorar copiosamente vitimando-se perante determinada
situação? E não importam quantas vezes a mulher fale ou tente mostrar o que
está errado, a outra pessoa sempre consegue distorcer (manipular) a situação e
é como se o problema estivesse na sua insegurança ou no seu descontrole
(“destempero”) emocional ou na sua limitação de compreensão? Todos esses
são indícios de que a mulher muito provavelmente está vivendo um
relacionamento abusivo ou tóxico. O mais importante é saber reconhecer esse
tipo de condição, o qual muitas vezes pode levar muito tempo para “saltar aos
olhos”, e, sobretudo, o mais importante é a mulher saber como superar esse
tipo de vinculação e talvez abandonar essa situação que muito fortemente
pode lhe trazer inúmeros riscos. Em geral, esses riscos aumentam quando a
mulher tenta sair da situação ou terminar a relação. Nesse momento, o
abusador pode começar a fazer ameaças, perseguir a mulher em lugares ou nas
próprias redes sociais e fazer ligações. Isso se chama stalking, outro termo
inglês que quer dizer perseguição persistente. É uma forma de violência na
qual o homem em questão invade repetidamente a privacidade da namorada,
companheira, empregando formas diversas de perseguição e também por
meios diversos, até podendo avançar ao feminicídio (Diehl, 2019, Matéria
para o Blog do SECAD, em março de 2019).
A relação de gênero, violência doméstica e drogas também é estreita. Nesse
cenário feminino, há ainda que se considerar outras vulnerabilidades, que
incluem a violência doméstica associada ao consumo de álcool, que no Brasil
segue em dados alarmantes (ABEAD, 2014).
O uso de álcool tem relação com agressão/violência sexual dirigida a
parceiros íntimos. Sabe-se que a violência doméstica é maior em cenários em
que está presente o álcool ou droga, e a maior vítima é a mulher. A violência
domésticapode representar um importante fator de risco para o início do
consumo problemático de álcool ou drogas, principalmente entre adolescentes
e mulheres, como no caso do abuso físico e sexual. No caso das mulheres
dependentes de álcool e outras drogas, estudos mostram que muitas se
relacionam com homens também usuários, aumentando o risco de conflitos e
violência, podendo muitas vezes o próprio cônjuge ser o fornecedor da droga,
ou utilizar a mulher como moeda de troca com traficantes. Ou ainda, os
cônjuges e outros familiares, muitas vezes, não toleram a condição de
dependência da mulher e agridem-na (ABEAD, 2014).
Dados provenientes do I Levantamento Nacional do Consumo de Álcool
na população Brasileira, com uma amostra probabilística de múltiplos estágios
composta por 1.445 homens e mulheres, casados ou vivendo em união estável,
representativa de toda a população brasileira, entrevistados entre novembro
de 2005 e abril de 2006, mostra que os homens consumiam álcool em 38,1%
dos casos de violência entre parceiros íntimos (VPI) e as mulheres em 9,2%.
Com relação à percepção de consumo de álcool pelo/a companheiro/a, o
homem informou consumo de álcool pela parceira em 30,8% dos episódios de
VPI, e a mulher informou que o seu parceiro ingeriu álcool em 44,6% desses
episódios (Zaleski, 2009).
Epidemiologia do consumo entre mulheres
Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD, 2012)
apontam as seguintes prevalências do uso em binge e abuso/dependência,
conforme gráfico 1 e gráfico 2.
GRÁFICO 1 - EPIDEMIOLOGIA DO BEBER EM BINGE ENTRE MULHERES NO BRASIL
Fonte: II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012. Ronaldo Laranjeira
(supervisão) [et al.]. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas
Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD): UNIFESP, 2014
FIGURA 2 - EPIDEMIOLOGIA DO BEBER EM PADRÃO DE ABUSO E DEPENDÊNCIA
ENTRE MULHERES NO BRASIL
Fonte: II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) – 2012. Ronaldo Laranjeira
(supervisão) [et al.]. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas
Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD): UNIFESP, 2014
Dados americanos mostram de forma alarmante as mortes por overdose
em mulheres devido ao consumo de heroína, conforme ilustra o gráfico 3.
GRÁFICO 3 - MORTES POR OVERDOSE DE DROGAS ENTRE MULHERES ENTRE 30 E
64 ANOS - ESTADOS UNIDOS, 1999-2017
Fonte: VanHouten JP, Rudd RA, Ballesteros MF & Mack KA. Drug Overdose Deaths Among
Women Aged 30-64 Years - United States, 1999-2017. MMWR Morb Mortal Wkly Rep.
2019 Jan 11; 68(1):1-5
Embora cresça o número de mulheres com uso e dependência de álcool e
outras drogas, elas ainda permanecem como alvo não prioritário na tomada de
decisão dos gestores de políticas públicas. De longe, a substância mais utilizada
por mulheres no mundo todo é o álcool. Ainda que a dependência de álcool
seja mais comum entre os homens, a diferença entre os gêneros vem caindo
sistematicamente. Ainda com relação às drogas lícitas, principalmente
medicamentos como “calmantes” (benzodiazepínicos) e “inibidores do apetite”
(anfetaminas), a prevalência, que já era alta, vem se mantendo entre as
mulheres, que apresentam números mais elevados de dependência do que os
homens (Elbreder et al., 2008; Diehl et al., 2011b).
O gráfico 4 ilustra o consumo entre estudantes brasileiros no ano de 2010.
GRÁFICO 4 - USO NA VIDA, NOS ÚLTIMOS 12 MESES, E NOS ÚLTIMOS 30 DIAS DE
SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS POR SEXO ENTRE UNIVERSITÁRIOS BRASILEIROS:
2010
Fonte: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, I Levantamento Nacional sobre o Uso de
Álcool, Tabaco e Outras Drogas entre Universitários das 27 Capitais Brasileiras 2010,
Presidência da República. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas: Brasília, DF
No que diz respeito às drogas ilícitas, o consumo de cocaína e crack
também avançou pelo universo feminino: trata-se de dependência que atinge
todas as classes sociais. As complicações clínicas costumam ser também
precoces em mulheres, sendo de fundamental importância (e gravidade) a
associação de gravidez com o consumo de cocaína/crack. Essas drogas
atravessam rapidamente a placenta, exercendo todos os seus efeitos físicos
sobre o feto (hipertensão, constrição de vasos sanguíneos), levando à falta de
oxigenação e suprimento de sangue adequado (Diehl et al., 2011b).
Filhos de gestantes dependentes apresentam diversas complicações, que
incluem baixo peso ao nascimento, morte logo após o parto, malformações
(genitais, vias urinárias, redução do tamanho do cérebro, entre outras),
hemorragia cerebral, alterações de padrão de sono, diminuição de alimentação,
aumento de reflexos, várias dificuldades respiratórias e disfunções musculares.
Essas últimas podem durar até o terceiro mês após o parto (Diehl et al.,
2011b). Veja quadro 5.
Anomalias facias
fissura palpebral pequena
Pitose palpebral
hemiface achatada
filto liso
Restrição de crescimento
Baixo peso ao nascer
Restrição de crescimento apesar da nutrição adequada
Baixo peso relativo à altura
Alteração de desenvolvimento do SNC
Microcefalia
Anormalidades estruturais do cérebro incluindo agenesia do corpo caloso e
hipoplasia cerebelar
Outros sinais neurológicos como dificuldades motoras finas, perda da audição
sensoneural, incoodernação da deambulação e dificuldade da coordenação olho-mão
Anormalidades comportamentais inexplicáveis
Incapacidade de leitura
Fraco desempenho escolar
Dificuldade de controle dos impulsos
Problemas com a percepeção social
Dificuldade de controle dos impulsos
Problemas com a percepção social
Dificuldade de linguagem
Raciocínio abstrato pobre
Habilidades prejudicadas
Dificuldades de memória e de julgamento
Defeitos congênitos (incluídos, mas não específicos)
Defeitos cardíacos
Deformidades do esqueleto e dos membros
Anomalias anatômicas renais
Alteração oftalmológicas
Perda do ouvido
Fenda labial ou do palato
QUADRO 5 - ALTERAÇÕES DA SÍNDROME ALCOÓLICA FETAL (SAF)
Fonte: Garcia, Roberta, Rossi, Natalia Freitas, & Giacheti, Célia Maria. (2007). Perfil de
habilidades de comunicação de dois irmãos com a Síndrome Alcoólica Fetal. Revista
CEFAC, 9(4), 461-468. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462007000400005
Uma parcela das mulheres dependentes de cocaína/crack engaja-se em
prostituição como forma de obtenção de droga (Moreira et al., 2014).
Problemas relacionados à impulsividade, às dificuldades interpessoais e à
dificuldade no julgamento foram associadas às dependentes de cocaína. Porém
não se conseguiu definir se essas características eram anteriores ou
consequências do consumo da droga. Algumas necessidades adicionais,
relativas ao tratamento de mulheres dependentes, devem ser enfatizadas, com
a finalidade de possibilitar melhores resultados terapêuticos, entre eles a
necessidade de ter enfermarias, ambulatórios e comunidades terapêuticas
especialmente destinados para o tratamento de mulheres com problemas
relacionados ao consumo de álcool e outras drogas (Diehl et al., 2011b).
A AIDS é certamente um problema de saúde cada vez mais crítico e
dispendioso entre mulheres em todo o mundo, sendo que o uso de substâncias
psicoativas desempenha um importante papel na disseminação do vírus da
imunodeficiência humana (HIV) entre mulheres (Nappo et al., 2011).
Gestantes usuárias de drogas são uma população alvo que, indubitavelmente,
merece atenção especial em programas de tratamento e prevenção, devido à
prevalência de comportamentos de risco nessa população e o risco adicional de
transmissão perinatal do HIV (Ramsey et al., 2010; Marshal et al., 2009). No
entanto tem-se percebido que o tratamento do abuso de álcool e drogas tem
tido um impacto ainda bastante limitado sobre o comportamento de risco em
usuárias de substâncias psicoativas do gênero feminino.
QUADRO 1 – RECOMENDAÇÕES PARA O TRATAMENTO DE MULHERES USUÁRIAS
DE SUBSTÂNCIAS
Fonte: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R. Particularidades da Dependência de
Drogas ilícitas na Mulher. IN: Rennó Jr J & Ribeiro HL. Tratado de SaúdeMental da Mulher.
Editora Atheneu, São Paulo 2012.pp. 113-122
QUADRO 2 – OUTRAS RECOMENDAÇÕES PARA O TRATAMENTO DE MULHERES
USUÁRIAS DE SUBSTÂNCIAS
Fonte: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R. Particularidades da Dependência de
Drogas ilícitas na Mulher. IN: Rennó Jr J & Ribeiro HL. Tratado de Saúde Mental da Mulher.
Editora Atheneu, São Paulo 2012.pp. 113-122
“Medicalização” da Sexualidade Feminina?1
Tive a oportunidade de assistir uma palestra da ativista Leonore Tiefer em
um simpósio na Universidade do Porto (UP) sobre um tema ainda bastante
polêmico e controverso no nosso meio: a medicalização da sexualidade
feminina. Fiquei bastante intrigada e curiosa para saber mais sobre o
conteúdo, questionando-me sobre diversos assuntos que a professora de certa
forma desconstruiu e me fez refletir. Pois bem! Eu convido vocês a refletirem
também. Não precisamos sair daqui com uma posição e nem com respostas
definidas.
Para que o leitor possa saber quem é a Leonore Tiefer: americana, PhD,
autora de um livro bastante conhecido e crítico intitulado Sex is not a natural
Act (Sexo não é um ato natural). Ela também é educadora, pesquisadora,
terapeuta e ativista contra a medicalização da sexualidade, principalmente da
feminina. Especializou-se em diversas áreas da sexualidade, respondendo ao
apelo das necessidades do movimento feminista e do mundo da sexologia.
Posteriormente, qualificou-se em psicologia clínica com foco em gênero.
Aqui, talvez possamos entender que o termo medicalização não é redutível
à instituição médica. Seu aparecimento tem registros no desenvolvimento das
chamadas “tecnologias de poder”, conforme proposto por Michel Foucault, o
qual construiu uma hipótese sobre a medicalização da sexualidade a partir da
origem religiosa e sua interferência nas sexualidades, na compleição dos
saberes psiquiátricos e na biopolítica como forma de arranjo político de
regulação/controle das comunidades.
Uma das grandes polêmicas tem sido o advento de uma medicação para
tratar a falta de desejo sexual feminino e sua analogia à descoberta dos
inibidores da fosfodiesterase (PDE-5) para os homens como a “nova revolução
sexual feminina”. Uma das preocupações é de uma dessexualização do desejo
com a possibilidade de permitir desvincular desejo de ato ou prazer sexual por
trás de uma indústria ligada à saúde sexual, que investe muito dinheiro na
pesquisa e no marketing com promessas nem sempre realistas. Já ouvi relatos
de que a nova pílula “salvou o casamento” de alguém. Ou reportagens dizendo
que, em países conservadores, a pílula ajudaria a diminuir os divórcios
causados pelas queixas sexuais das esposas. Será mesmo que uma substância
salva casamentos/relacionamentos? Será mesmo que os relacionamentos ruins
que cursam com disfunções sexuais das mulheres serão melhorados por causa
de um remédio? A responsabilidade de o relacionamento funcionar é somente
de um dos lados? Estão aí questões para refletirmos.
A outra polêmica – que também podemos chamar de preocupação – está
focada no crescente e talvez excessivo interesse por cirurgias estéticas da
genitália feminina com o objetivo de torná-la “mais clara”, “mais jovem” e
“mais virgem”. Certamente, há casos em que os procedimentos são
extremamente necessários e auxiliam na reconstrução e outras situações que
causam sofrimento. Mas a preocupação está centrada nos casos em que existe a
busca para ter a genitália igual à de alguma famosa, por exemplo. É realista
essa meta ou objetivo?
Assim, parece-nos que atualizar a centralidade ou as influências da
construção social/cultural na sexualidade, a saturação da mídia sobre a
atividade sexual e a medicalização da sexualidade parecem ser temas urgentes a
serem revisitados constantemente.
CAPÍTULO 12
ENVELHECIMENTO, SEXUALIDADE E
USO DE SUBSTÂNCIAS
Manoel Antônio dos Santos
Carolina de Souza
Wanderlei Abadio de Oliveira 
Eduardo Name Risk
Carolina Leonidas
Adriana Inocenti Miasso
Kelly Graziani Giacchero Vedana
Jacqueline de Souza
Sandra Cristina Pillon
Erika Arantes de Oliveira-Cardoso
* Apoio: CNPq, FAPESP
Neste capítulo abordaremos aspectos da sexualidade do idoso em sua
interface com o uso de substâncias. Reunimos informações atualizadas que
possibilitam uma abordagem dessa interface, incluindo como identificar e lidar
com essa questão que tende a permanecer invisibilizada nos cuidados em
saúde, de modo que os profissionais possam construir uma prática mais
qualificada nesse campo e seus temas correlatos. Assim, abordaremos como o
idoso vivencia sua sexualidade, como os profissionais da saúde em geral lidam
ou não com esses aspectos, incluindo a tendência à negação e/ou à
infantilização das pessoas mais velhas nos serviços de saúde, entre outras
facetas relevantes da prática assistencial (Marson & Powell, 2014).
Conceitualizando e contextualizando a questão do envelhecimento na
contemporaneidade
A redução da mortalidade, incluindo a de idosos, a diminuição da taxa de
mortalidade por doenças cardiovasculares, câncer e outras condições crônicas,
as quais até há poucas décadas eram difíceis de serem tratadas, e a melhoria das
condições sanitárias acabaram contribuindo para incrementar o
envelhecimento da população global (Organização das Nações Unidas - ONU,
2017). Os desafios trazidos por essa situação demográfica são inúmeros, como
as demandas para o setor de saúde, tendo em vista a necessidade de ampliar o
acesso a serviços, além das questões relacionadas a outros setores, como
seguridade social, educação e oportunidades de lazer.
Considera-se que o Brasil, na década de 1970, passou por uma verdadeira
revolução demográfica. Os indicadores de natalidade, fecundidade e
mortalidade tiveram seus níveis enormemente reduzidos, o que se refletiria na
década seguinte. A mortalidade infantil também foi reduzida, a esperança de
vida ultrapassou os 60 anos de idade e houve uma redução do número de
filhos por mulher (Vasconcelos & Gomes, 2012). Nas décadas seguintes a
estrutura etária da população também começou a se modificar, especialmente
na quantidade de idosos. A estrutura etária do país seguiu com o seu processo
de envelhecimento, com aumento crescente da idade mediana e o índice de
envelhecimento em ritmo crescente (Vasconcelos & Gomes, 2012; Rede
Interagencial de Informações para a Saúde, 2012).
Entre 1991 e 2010 os níveis de mortalidade, natalidade e fecundidade
foram bastante reduzidos e a esperança de vida ao nascer era maior do que 70
anos. Com isso houve uma desaceleração do ritmo de crescimento
demográfico, o que continuou influenciando a estrutura etária da população,
que foi se tornando progressivamente mais velha. Em 2010, a idade mediana
era de 27 anos, 10,8% da população tinha 60 anos ou mais, o índice de
envelhecimento aumentou para 44,8% e o componente idoso subiu para 16,6%
da população (Vasconcelos & Gomes, 2012; Rede Interagencial de
Informações para a Saúde, 2012).
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2013), na
última década o Brasil agregou à sua população 8,5 milhões de cidadãos acima
dos 60 anos. Essa parcela da população deve chegar a 38 milhões em 2027. O
processo de transição demográfica no país ocorre em ritmo acelerado e impõe
um desafio considerável para o Estado em termos de assistência em saúde e
previdência social, de modo a assegurar a dignidade da pessoa idosa.
Ainda existem preconceitos e discriminação contra pessoas idosas, muitas
vezes relacionados à representação estereotipada da velhice. Um dos
preconceitos mais recorrentes é considerar que o idoso via de regra não tem
memória, não consegue se lembrar dos fatos. O que acontece, na verdade, é
que os idosos têm mais memória do que os jovens, justamente por terem
vivido mais e, portanto, armazenado maior quantidade de informações e
lembranças. Suas histórias de vida muitas vezes podem ser consideradas fontes
orais riquíssimas para as mais diversas pesquisas. Os estudos evidenciam que o
idoso tem sido intensamente desrespeitado nas cidades, cujos espaços públicos
não são adequadosàs suas necessidades de caminhar; nas filas dos bancos,
cujos lucros não geraram conforto para seus usuários que envelhecem; no
acesso ao sistema de saúde, cujas burocracias muitas vezes não estão adaptadas
às suas necessidades, transformando-se em barreiras; no sistema de promoção
social, cuja ideia ainda é a de que conceder benefícios, garantidos por direito,
significa tratar o idoso como se ele estivesse pedindo esmola (Areosa, Benitez
& Wichmann, 2012; Daniel, Antunes & Amaral, 2015; Santos et al., 2016;
Whitaker, 2010).
Por isso é urgente refletir e pesquisar continuamente sobre as concepções e
atitudes que estão subjacentes às normatizações que prejudicam a promoção
do bem-estar dos mais velhos, para que o campo representacional das
“velhices” também possa ser substancialmente modificado, acompanhando as
novas exigências impostas pela transição demográfica. Para os profissionais da
saúde seria importante iniciar a compreensão do processo de envelhecimento
o quanto antes, de preferência durante a graduação, o que pode favorecer a
dissipação de preconceitos e estereótipos em relação a essa fase da vida
(Daniel, Antunes & Amaral, 2015; Santos, 2017; Santos et al., 2016; Whitaker,
2010). No entanto, infelizmente, disciplinas relacionadas a desenvolvimento,
geriatria e gerontologia ainda não recebem a atenção que merecem nas grades
curriculares nos cursos da área de saúde e nas ciências humanas.
Refletindo sobre a interface entre envelhecimento e
sexualidade
Um campo que ainda permanece nebuloso nos estudos sobre o
envelhecimento é a questão da sexualidade, que é vista e entendida muitas
vezes de maneira empobrecida e estereotipada. Em uma concepção informada
fortemente pelo viés biologicista, o padrão eleito como “normal” para apreciar
essa questão é a sexualidade dos jovens, o que faz com que seja difícil para os
idosos se autorizarem a exercer sua sexualidade plenamente. É pouco comum
encontrarmos na literatura ou em filmes, novelas, propagandas, casais de
pessoas idosas mantendo relações sexuais ou vivenciando relacionamento
afetivo satisfatório, o que faz pensar na existência de uma rejeição em
compreendê-los como sujeitos desejantes. No entanto muitas pessoas idosas
desfrutam de uma vida sexual ativa, mesmo que possam ter algumas limitações
decorrentes do processo de envelhecimento (Haesler, Bauer &
Fetherstonhaugh, 2016; Mesquita, 2011; Taylor & Gosney, 2011). Grande
número de mulheres mais velhas, por exemplo, atualmente não enxergam a
velhice como o fim da linha, mas sim como a porta de entrada para seguirem
em frente e se engajarem em novos projetos, como buscar viver um
relacionamento romântico diferente daqueles vividos anteriormente. Já está
bem documentada na literatura a associação positiva entre exercício da
sexualidade e qualidade de vida (Buttaro, Koeniger-Donohue & Hawkins,
2014).
Um número crescente de idosos mantem uma vida sexual ativa. Cada vez
mais é comum vermos que as pessoas mais velhas buscam ter relações sexuais,
casuais ou comprometidas, e se engajam em relacionamentos românticos,
inclusive normalizando o uso da internet e os aplicativos de relacionamento
como meio de encontrar e selecionar potenciais parceiros(as) (Wada et al.,
2015). Estudos focados no namoro online observaram que encontrar um par
no ambiente virtual muitas vezes resultava em engajamento sexual, o que
desafiava os estereótipos que fixam os adultos mais velhos como seres não
sexuais ou pós-sexuais (Lolli & Maio, 2015; Wada et al., 2015). A despeito
dessas evidências, ainda há barreiras consideráveis que impedem a percepção
social do idoso como um ser que mantém viva sua sexualidade.
O que acontece com frequência é que o ambiente de cuidado do idoso –
seja no contexto familiar ou institucional – não é amistoso nem se presta a
discussões sobre sexualidade. Filhos e netos ainda sentem dificuldades de
admitirem que seus pais e avós continuam sendo seres com necessidades
sexuais e apelo erótico. No contexto da saúde muitos pacientes acham difícil e
embaraçoso conversar com profissionais sobre seus desejos e eventuais
problemas sexuais. E os profissionais, por sua vez, tendem a acreditar que seus
pacientes mais velhos não são (ou não deveriam ser) sexualmente ativos. É
necessário investir mais em treinamento especificamente voltado para essas
reflexões para que se possa sensibilizar os profissionais de saúde que trabalham
com pessoas idosas, tanto para transmitir conhecimento sobre a sexualidade
nessa faixa etária quanto para desenvolver as habilidades de escuta necessárias
para acolher e discutir tais questões com sensibilidade (Haesler et al., 2016;
Mesquita, 2011; Taylor & Gosney, 2011).
A literatura sobre casais que permanecem engajados em casamentos por
várias décadas mostra que eles vivenciam uma mudança progressiva de foco
em suas preocupações conjugais. Depois de um elevado investimento dedicado
ao casamento o sexo deixa de ser um elemento central na hierarquia das
necessidades do casal, cedendo sua vez à valorização da amizade e do
companheirismo (Polizzi & Arias, 2014). Os casais tendem a avaliar como mais
relevantes na vida a dois o apoio e a assistência mútua, o compartilhamento da
rotina doméstica e das atividades diárias (Arias & Polizzi, 2013).
O amor e a sexualidade se transformam junto ao processo de envelhecer e,
no decorrer dos anos, tendem a ser percebidos com um outro olhar, com a
ressignificação do afeto e da importância atribuída à companhia e à presença
constante do outro, que frequentemente passam a ser mais valorizadas do que
as relações sexuais (Arias & Polizzi, 2013). Nos casais de idosos o exercício da
sexualidade tende a ser influenciado pelas singularidades do processo de
envelhecimento e do declínio da condição de saúde dos cônjuges. As relações
sexuais ocorrem com menor frequência – o que não é necessariamente
negativo porque muitas vezes significa priorizar a qualidade em detrimento da
quantidade, ao passo que outros aspectos do relacionamento passam a ser mais
valorizados. Também ocorre de os cônjuges não conversarem mais sobre essas
questões, envolvendo-as em um manto de silêncio.
Na atualidade, os idosos também estão convivendo com diversas
tecnologias do mundo contemporâneo e muitos, inclusive, relatam ter
interesse e afinidade com dispositivos eletrônicos como micro computador,
tablets e celular, e têm se exercitado no uso de ferramentas disponibilizadas na
internet, sendo sua maior motivação a vontade de estarem atualizados e
afinados com as demandas dos tempos atuais. Poder se comunicar com amigos
e familiares por meio da internet, obter informação e adquirir conhecimento
em tempo real, interagir com outras pessoas, enviar e receber e-mails,
entreter-se com jogos eletrônicos, navegar em diferentes websites,
acompanhar questões relacionadas à política, encontrar remédios caseiros e
práticas integrativas e complementares (“medicinas alternativas”), pagar
contas e realizar outros serviços bancários, procurar receitas culinárias, assistir
a vídeos, ouvir música, enfim, preencher o tempo livre com atividades
diversificadas, faz com que o idoso consiga não apenas se atualizar
constantemente como também reconhecer suas capacidades, mantendo-se
sintonizado com o que se passa ao seu redor, o que pode contribuir para a
melhoria sua qualidade de vida. Além disso, essa população tem usado cada vez
mais a internet para tomar decisões sobre várias necessidades relacionadas à
saúde, uma preocupação crucial nesse estágio da vida (Cresci & Novak, 2012;
Lolli & Maio, 2015).
A dimensão relacional e compartilhada, subjacente a essas tarefas e
habilidades que acabamos de elencar, também deve ser vista como um aspecto
mais amplo que perpassa a sexualidade da pessoa idosa. As novas tecnologias
de informação permitem ao idoso expandir suas capacidades sensoriais e
estender os limites de seu corpo, compensando eventuais deficiências ou
insuficiências, potencializando recursos, estreitando laços sociais, rompendo
barreiras, dissolvendo fronteiras e reduzindo o isolamentoe a distância entre
as pessoas.
As necessidades relacionadas à saúde cobrem um leque amplo de interesses
do idoso, que vão desde a compreensão do processo de envelhecimento até as
atividades de promoção de saúde relacionadas a essa fase da vida, ou
informações que indicam quando um prestador de serviços de saúde deve ser
visto e até que ponto se deve questionar o plano de tratamento. Por outro
lado, muitos idosos também ficam receosos e desconfiam da confiabilidade e
privacidade da internet, ou apresentam dificuldades para usar as ferramentas,
que exigem uma destreza específica para o seu uso correto, e/ou não tiveram
oportunidade de aprenderem sobre o funcionamento de algumas delas.
Pensando nisso, é possível que os idosos consigam usar melhor essas
ferramentas e tecnologias de informação disponíveis na contemporaneidade se
fossem disponibilizados cursos sobre a temática ou treinamentos específicos
voltados às particularidades dessa população (Cresci & Novak, 2012; Lolli &
Maio, 2015).
Considerando a relevância que as necessidades relacionadas à saúde
assumem na vida dos indivíduos que vivenciam o processo de envelhecimento
(Cresci & Novak, 2012; Lolli & Maio, 2015), uma preocupação que emerge
nesse campo é o uso crescente de substâncias pelas pessoas idosas com o
intuito de superar o declínio funcional e as limitações acarretadas pelo avanço
da idade, de modo a compensar eventuais deficiências ou insuficiências em sua
performance sexual ou mesmo incrementar sua vida sexual. Assim, diante do
panorama traçado, considera-se relevante fomentar a discussão científica
sobre possíveis relações entre as vivências da sexualidade e o uso de
substâncias e medicamentos por idosos.
Explorando a relação entre envelhecimento e uso de
substâncias por idosos
Considerando-se as questões associadas às exigências e aos padrões sociais
que afetam a velhice, um dos problemas candentes e de grande complexidade
envolve o uso de substâncias.
Estudos têm identificado a prática da polifarmácia e as interações e reações
adversas no uso de medicamentos pela população idosa (Oliveira & Santos,
2016; Secoli, 2010). O uso de medicamentos tem se configurado como uma
verdadeira epidemia entre idosos, associado a diversos fatores, tais como o
aumento da prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT)
nesse grupo populacional; altos níveis de medicalização da saúde,
impulsionada pelo extraordinário poder econômico da indústria farmacêutica;
estímulo crescente à prescrição de medicamentos observado na formação e na
prática dos profissionais da área da saúde (Secoli, 2010).
O processo de envelhecimento per se já oferece riscos específicos para
prejuízos decorrentes do uso, inclusive de quantidades mínimas, de
substâncias pela população idosa. Cada organismo em processo de envelhecer
apresenta variações farmacocinéticas individuais, com diferenças em termos
de absorção, distribuição, metabolismo e excreção das drogas (Oliveira &
Santos, 2016). Os fatores de risco podem variar consideravelmente de acordo
com a substância e a frequência do consumo, bem como a apresentação clínica
específica de um paciente (por exemplo, idade, sexo, comorbidades médicas,
uso atual de medicamentos e histórico de saúde). Entender os riscos
específicos relacionados ao uso de substâncias pode auxiliar os profissionais a
reconhecer e responder ao uso não saudável, que não necessariamente se
classifica como uso problemático (Han, Gfroerer, Colliver & Penne, 2009;
Kuerbis, Sacco, Blazer & Moore, 2014).
A identificação do tipo de uso entre os idosos não depende apenas da
quantidade e da frequência, mas do contexto em que as substâncias são
consumidas. Por exemplo, adultos mais velhos podem vivenciar problemas
extremos com o álcool, mesmo quando ingerem níveis mínimos, devido a
condições médicas específicas, como gota ou pancreatite. Portanto, de maneira
gentil e respeitosa, perguntas detalhadas sobre quantidade e frequência de uso
de bebida alcoólica, medicamentos (prescrição e balcão) e drogas ilícitas
(especialmente maconha) devem ser formuladas pelo profissional de saúde,
com a suposição de que essa informação é relevante, independentemente de o
uso pelas pessoas mais velhas ser um problema ou não. Isso inclusive contribui
para reduzir o estigma, normalizando o comportamento sem, no entanto,
endossá-lo. Assim, é importante a implementação de políticas públicas que
aloquem recursos e desenvolvam abordagens de prevenção e tratamento para
atender às necessidades futuras do segmento da população idosa que possa vir
a desenvolver futuramente um transtorno por uso de substâncias (Han et al.,
2009; Kuerbis et al., 2014).
Os problemas de saúde mental têm assumido importância crescente na
atenção à saúde das populações, evidenciando a necessidade premente de
adotar medidas para minimizar os efeitos deletérios da morbidade e ampliar o
uso racional do grupo de medicamentos psicotrópicos utilizados no contexto
da atenção primária à saúde (Prado, Francisco & Barros, 2017). Em 2004,
houve a implementação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica, que
resultou em uma ampliação no acesso a medicamentos, ao mesmo tempo que
houve um esforço para assegurar seu uso racional (Brasil, 2004). 
Drogas psicotrópicas (ou psicofármacos) são substâncias que atuam de
forma seletiva no sistema nervoso central (SNC). As substâncias psicotrópicas
têm seu uso relacionado ao fato de que são reconhecidas como agentes
psicoativos que podem ter efeitos psicoterapêuticos. Podemos incluir nessa
classe os psicofármacos que têm propriedades depressoras ou que estimulam
seletivamente as ações do Sistema Nervoso Central (SNC). Com o advento
dessas substâncias reduziu-se de forma considerável o número de internações
em hospitais psiquiátricos (Prado et al., 2017).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1976 dividiu os
psicofármacos segundo dois critérios: de acordo com a farmacologia e em
relação à ação terapêutica. Com base na classificação farmacológica, os
fármacos são divididos em sedativos  ansiolíticos, antipsicóticos
(neurolépticos), antidepressivos, liberadores indiretos de catecolaminas,
alucinógenos, metabólitos do sistema nervoso central e antagonistas da
serotonina. Com base na classificação terapêutica, os fármacos se distribuem
entre sedativos ansiolíticos, antipsicóticos (neurolépticos), antidepressivos,
psicotogênicos e substâncias para sintomas de  doenças neurodegenerativas
(Prado et al., 2017).
Não há dúvidas de que os medicamentos psicotrópicos são recursos
valiosos no manejo do sofrimento humano, todavia seu uso não deve ser
exclusivo e sim integrado a um cuidado mais amplo, com maior interface
entre farmacoterapia e psicoterapia, para garantir uma assistência mais efetiva
(Arrais, Barreto & Coelho, 2007; Prado et al., 2017), indo ao encontro do que
está preconizado na Política Nacional de Medicamentos (Brasil, 2001) e dos
parâmetros internacionais da área (Carreta, Eichler & Rasi, 2012).
Considerando os diversos grupos de psicotrópicos, os antidepressivos são
os mais utilizados. Estudo realizado em Pelotas no Rio Grande do Sul, com
1.327 indivíduos a partir de 40 anos, constatou que a proporção de uso de
antidepressivos foi de 60,2% (Garcias, Pinheiro, Garcias, Horta & Blum, 2008).
Ainda no município de Pelotas foi verificado percentual de consumo dos
antidepressivos de 31,6% para o ano de 2003 (Loyola Filho, Castro-Costa,
Firmo & Peixoto, 2014). O estudo com idosos em Bambuí em Minas Gerais
realizado a partir de dados de 1997 (n = 351) e 2012 (n = 462) constatou uma
tendência de aumento no uso de antidepressivos, com maior proporção dos
inibidores seletivos de serotonina (Loyola Filho et al., 2014). O abuso de
prescrições de antidepressivos, como o cloridrato de fluoxetina, constitui um
grave problema de Saúde Pública, especialmente entre os idosos (Wagner,
2015).
https://www.infoescola.com/saude/organizacao-mundial-de-saude-oms/
https://www.infoescola.com/drogas/ansioliticos/
https://www.infoescola.com/neurologia/serotonina/
https://www.infoescola.com/doencas/doencas-neurodegenerativas/O tratamento para transtorno depressivo em idosos é centrado no uso de
medicamentos, reforçamento de modos de enfrentamento positivo de
adversidades psicossociais, redução da deficiência de suporte social e de acesso
a serviços de saúde adequados na idade mais avançada (Wagner, 2015). Essas
estratégias nem sempre são oferecidas de forma combinada a fim de
maximizar seus potenciais benefícios para essa população, embora se
reconheça atualmente que o cuidado deveria envolver uma combinação de
medidas não medicamentosas e medicamentosas.
Os transtornos de ansiedade são muito prevalentes na idade adulta e na
velhice, com sintomas somáticos, cognitivos, comportamentais, emocionais e
perceptivos, além da presença de sintomas físicos, acompanhados de
pensamentos catastróficos associados a alterações disfuncionais do
comportamento (Prado et al., 2017). A maioria dos transtornos de ansiedade
pode ser tratada com medicamento, dependendo da gravidade e da
interferência dos sintomas nas atividades sociais e ocupacionais. Entre os
fármacos ansiolíticos, os mais utilizados são os benzodiazepínicos (Lima et al.,
2008). Um dos graves problemas associados ao uso contínuo dessas
substâncias é a dependência que elas acarretam. Apesar de ter seu uso
controlado, observa-se uma tendência a aumento dos índices de dependência.
Como grande parte do atual modelo de tratamento do abuso de substâncias
encontra-se separado dos cuidados primários e focado em pacientes mais
jovens, a disponibilidade de tratamento e a necessidade de abordagens mais
integradas são cada vez mais necessárias para equacionar os problemas de
abuso de substâncias entre os idosos “de amanhã”. Por outro lado, apesar dos
termos em risco e uso problemático serem extremamente úteis em contextos
como os cuidados de saúde na atenção primária, eles podem aumentar as
dificuldades que os idosos encontram para terem acesso a um tratamento mais
formalizado, pois geralmente são exigidos diagnósticos formais de transtorno
por uso de substâncias para justificar a indicação de tratamentos intensivos ou
por tempo prolongado (Han et al., 2009; Kuerbis et al., 2014).
Estudo que examinou a produção científica sobre uso de substâncias
psicoativas em idosos, focalizando suas condições sociodemográficas e clínicas,
constatou que os usuários de substâncias psicoativas se caracterizam,
predominantemente, por serem homens, com baixos níveis de escolaridade e
renda, alta taxa de desocupação laboral, não casados e que moravam sozinhos,
além de apresentarem comorbidades orgânicas e psíquicas. O álcool mostrou
ser a droga mais prevalente, seguido do abuso de medicamentos. No entanto o
uso de substâncias ilícitas tem aumentado progressivamente nas últimas
décadas (Diniz et al., 2017). Em relação ao uso de álcool, cabe aqui fazer um
parêntesis e considerar esse problema de enorme impacto na saúde do idoso,
que está relacionado ao consumo de substâncias lícitas. Embora as taxas de
transtorno por uso de substâncias e uso de drogas e álcool sejam geralmente
mais baixas entre os idosos do que na população geral, espera-se que o número
de pessoas com idades entre 60 e 69 anos que estejam vulneráveis ao
transtorno chegue a 1,9 milhão até o ano de 2020. Essa estimativa indica uma
necessidade urgente de expandir a disponibilidade de serviços de tratamento
para abuso de substâncias especialmente voltados para os idosos (Han et al.,
2009; Kuerbis et al., 2014). Dadas as contínuas altas taxas de uso de drogas
ilícitas nessa população, espera-se que os aumentos na necessidade de
tratamento continuem ascendentes para além de 2020.
Outro estudo recente de revisão indicou as tendências que têm
caracterizado o uso de medicamentos pela população idosa, destacando-se o
uso de psicotrópicos, a polifarmácia, a necessidade de maior atenção à
prevenção de eventos adversos e a adoção de tecnologias que facilitem a
administração controlada dos medicamentos pelo idoso (Oliveira & Santos,
2016). O uso frequente de medicamentos pela população idosa decorre não
somente de uma tentativa de tratar as comorbidades comuns nessa etapa do
ciclo vital, mas, sobretudo, como uma maneira de amenizar situações comuns
do envelhecimento, o que é preocupante (Farias & Santos, 2012). A utilização
de psicofármacos, combinado ou não com outros fármacos e formas
complementares de tratamento, é reconhecida como uma prática comum
entre idosos. Quando não monitorado adequadamente pode se configurar em
um problema de saúde importante, dadas as inúmeras intercorrências que
podem advir de reações adversas aos medicamentos, com graves repercussões
para os indivíduos, além de custos elevados para o sistema de saúde (Oliveira
& Santos, 2016).
Os psicotrópicos são mais utilizados por mulheres, pessoas de cor da pele
branca, com pior percepção da saúde, transtornos mentais comuns e
problemas emocionais; esses resultados obtidos com a população de Campinas
em São Paulo sugerem que é necessário lançar um olhar diferenciado para os
subgrupos populacionais com maior prevalência de uso de psicotrópicos
(Prado et al., 2017). Segundo essas autoras, considerando-se que o uso desses
medicamentos impõe efeitos adversos e pode elevar os riscos de dependência e
intoxicações, o profissional precisa redobrar a atenção para garantir o uso
racional desse grupo de fármacos.
Estudo de revisão da literatura apontou para os riscos aos quais os idosos
estão expostos devido às mudanças na metabolização das substâncias, causadas
pelo processo de envelhecimento e também pelo uso concomitante de vários
medicamentos. Os estudos da área têm identificado uma forte preocupação
com a melhora da comunicação entre profissionais de saúde e as pessoas
idosas, estimulando a troca de informações sobre os riscos de possíveis
consequências do mau uso das terapias medicamentosas, com vistas a evitar as
complicações à saúde comuns a essa população (Oliveira & Santos, 2016).
Um olhar, mesmo que de relance, para a literatura produzida nas últimas
duas décadas permite vislumbrar algumas mudanças nas pautas e tendências
das agendas de pesquisa no campo interdisciplinar da gerontologia. Pode-se
dizer que o tabu da velhice não tem mais aparecido com tanta frequência nos
estudos dedicados a essa área, porém, considerando o que foi exposto
anteriormente, ainda existem preconceitos persistentes quando o assunto é a
sexualidade dessa população (Mesquita, 2011). Mais nebuloso ainda – porque
pouco investigado – é o tema da sexualidade do idoso na interface com o uso
de substâncias. Sabe-se que, na atualidade, existe ampla disponibilidade de
medicamentos indicados para reverter a disfunção erétil masculina, com vistas
a melhorar o desempenho sexual, o que tem revitalizado o relacionamento
afetivo de homens que até há pouco tempo consideravam que tinham
encerrado sua vida sexual ativa (Alves, Neves & Medina, 2010; Barnett,
Robleda-Gomez & Pachana, 2012; Barros, 2014; Marshall, 2010). Outras
substâncias de uso controlado, como os antidepressivos e ansiolíticos,
analgésicos, anfetaminas e barbitúricos, também são maciçamente consumidas
pelas pessoas idosas, com impactos nem sempre bem compreendidos na
qualidade da vida sexual (Costa et al., 2011). Uma atenção especial deve ser
dada à prescrição e ao consequente uso indiscriminado de benzodiazepínicos.
Sem falar na escassez de pesquisas voltadas ao consumo ascendente de
substâncias de uso proscrito por lei, como maconha, cocaína e crack.
Por outro lado, hoje já sabemos que há muito a se fazer em termos de
promoção das condições objetivas para transformar a percepção social da
velhice, por exemplo, atacando a tendência à infantilização dos idosos no
contexto da família e nos serviços de saúde. Também é necessário levantar o
véu que mantém a invisibilidade da sexualidade dos idosos e com isso
reconhecer os desafios enfrentados pelo fato de eles estarem vivendo mais,
podendo usufruir das conquistas da modernidade e, ao mesmo tempo, terem
de se adaptar às novas tecnologias, que favorecem a comunicação, indo desde a
ampliação deredes de sociabilidade até o uso de aplicativos de encontros.
Nesse torvelinho que o mundo contemporâneo se transformou, os idosos
estão cada vez mais expostos às substâncias, desde aquelas fabricadas com
finalidade medicamentosa, como hormônios sintéticos, estimulantes sexuais,
benzodiazepínicos, analgésicos e anfetaminas, até outras drogas de uso, tais
como: álcool, tabaco, maconha e cocaína.
CAPÍTULO 13
HOMENS
Alessandra Diehl 
Sandra Cristina Pillon
Manoel Antonio dos Santos
A saúde sexual de homens usuários de substâncias é um tema relevante do
ponto de vista da saúde pública, uma vez que o contexto epidemiológico e
sociocultural do país revela níveis crescentes de consumo, ao mesmo tempo
que tem aumentado exponencialmente as manifestações de violência,
preconceito e intolerância em relação aos usuários de drogas. Esse segmento
social está sujeito à estigmatização, especialmente quando se analisam as
interseccionalidades com outros marcadores sociais da diferença que
atravessam as populações igualmente vulneráveis do ponto de vista
psicossocial, como as/os profissionais do sexo, “andarilhos” de estrada e
pessoas que vivem em situação de rua (Diehl, Pillon, dos Santos & Laranjeira,
2018).
Cabe mencionar também que homens em geral têm muitas dificuldades
para falar de sua saúde. Buscam menos ajuda que as mulheres e tendem a ter
mais tabus e preconceitos para falar de sentimentos ou fazer um simples
exame de próstata, por exemplo (Hankivsky, 2012).
O grupo deste capítulo desenvolveu pesquisas e analisou resultados
extraídos de três bases de dados, sendo duas provenientes de amostras clínicas
de pacientes internados e ambulatoriais, e uma derivada de um estudo de base
populacional a fim de avaliar a prevalência do consumo de substâncias,
condições de saúde e comportamento sexual em homens. Os resultados
mostram que houve maior prevalência de indivíduos fumantes, usuários de
álcool, cocaína e crack nos serviços especializados. Menos da metade usava
preservativos nas relações sexuais e em torno de um terço relatou ter tido três
ou mais parcerias sexuais nos últimos anos. Nas amostras clínicas, cerca de um
terço dos homens apresentava algum tipo de dificuldade sexual.
Com relação ao comportamento sexual, a maioria dos homens que
compuseram as três amostras declarou ser heterossexual e tinha vida sexual
ativa. Dois a cada dez sujeitos haviam vivenciado experiências homossexuais e,
em menor proporção, haviam se engajado em sexo em troca de favores.
Histórico de ISTs apresentou maior prevalência na amostra de indivíduos
internados; nessa amostra um terço já havia realizado teste de HIV.
Constatou-se baixa prevalência de portadores do vírus HIV entre os pacientes
que se encontravam em regime ambulatorial e entre os homens da população
geral. Além disso, menos da metade dos participantes relatou que usava
preservativos nas relações sexuais. Por fim, nas duas amostras de dependentes
em tratamento, em torno de um terço dos participantes havia tido três ou
mais parcerias sexuais no último ano.
 
Total
508 (100%)
Total
102 (100%)
Total
2070 (100%)
  n (%) n (%) n (%)
Atividade sexual nos últimos 12 meses
Sim 367 (72,2) 79 (77,5) NI
Não 141 (27,8) 3 (2,9) -
Orientação sexual
Heterossexual 485 (95,5) 68 (84,0) 1840 (96,2)
Homossexual 16 (3,1) 8 (9,9) 59 (3,1)
Bissexual 7 (1,4) 4 (4,9) 14 (0,7)
Não sente atração sexual NI 1 (1,2) NI
Experiência homossexual
Não 409 (80,5) 64 (79,0) NI
Sim 99 (19,5) 17 (21,0) -
Sexo em troca de favores
 
Total
508 (100%)
Total
102 (100%)
Total
2070 (100%)
  n (%) n (%) n (%)
Sim 62 (12,2) 7 (8,3) NI
Não 158 (83,6) 77 (91,7) -
Histórico de ISTs
Sim 125 (24,6) 14 (13,7) 17 (0,8)
Não 383 (75,4) 88 (86,2) 2053 (99,2)
Teste de HIV
Sim 339 (66,7) NI NI
Não 169 (33,3) - -
Portador do vírus HIV
Sim NI 6 (6,9) 4 (0,2)
Não - 81 (93,1) 1872 (90,4)
Uso de preservativos
Usa 227 (44,7) 31 (36,5) 824 (45,3)
Não usa ou quase nunca 281 (55,3) 54 (63,5) 993 (54,6)
Número de parcerias sexuais
Até 2 parceiros no último ano 331 (65,2) 47 (65,2) NI
3 ou + parceiros no último ano 177 (34,8) 25 (34,8) -
Disfunção sexual
Sim 33 (32,4) 189 (37,2) NI
Não 69 (67,6) 319 (62,8) -
TABELA 1 - COMPORTAMENTO SEXUAL DE HOMENS ENTREVISTADOS EM
ENFERMARIA, AMBULATÓRIO E POPULAÇÃO GERAL
Fonte: Diehl, Pillon, dos santos, Laranjeira, 2018
Dependentes de substâncias exibem comportamentos sexuais diversos de
elevado risco, prevalências de disfunção sexual relacionadas ao nível de
dependência e ao consumo crônico de álcool e/ou outras drogas.
Dependência de substâncias e disfunções sexuais são áreas abrangentes que
cobrem uma diversidade de problemas e desafios inter-relacionados. Homens
que sofrem de dificuldades sexuais podem também recorrer ao consumo de
substâncias como um modo de lidar com esses problemas. Futuras pesquisas
nacionais de base populacional sobre o uso de substâncias devem incluir a
avaliação de problemas de disfunção sexual e outras condições relacionadas ao
comportamento sexual. A identificação acurada e a caracterização dos fatores
de risco são estratégias cruciais para concentrar esforços para incrementar a
prevenção, manejo e controle de agravos à saúde na população vulnerável.
CAPÍTULO 14
PROFISSIONAIS DO SEXO
Alessandra Diehl 
Rogério Bosso
Entre profissionais do sexo masculinos e femininos, a associação entre
comportamento sexual de risco e consumo de substâncias também está
presente. Essa população, muitas vezes, expõe-se a diversos riscos e violências
para manter o comportamento do consumo de drogas, por meio da atividade
sexual sem proteção, troca da atividade sexual pela droga, criminalização,
abuso por parte dos clientes e outros fatores de vulnerabilidade, como a
vitimização do gênero feminino e de travestis profissionais do sexo, a pobreza
e baixa disponibilidade ao tratamento da dependência (Shannon, 2009). Como
observado por Alessandra Diehl, Ana Carolina Schmidt de Oliveira e Marina
Rodrigues em capítulo intitulado “Sexo à Venda: Prostituição, Pornografia e a
Indústria do Sexo”, do livro Sexualidade: do prazer ao sofrer (Editora Roca,
São Paulo, 2013),
[...] A prostituição masculina aumentou, tornando-se uma das profissões que
mais cresce no mundo. Até então, esse tipo de prostituição estava
geralmente ligado a espaços fechados, por exemplo, no interior de cinemas,
sanitários ou saunas. Hoje, os profissionais do sexo masculino disputam os
melhores pontos com mulheres profissionais do sexo pelas ruas, avenidas e
praças da cidade] (Diehl, Oliveira & Rodrigues, 2013, p. 300).
[...] O fato, na verdade, é que não é um dinheiro “mais fácil”, mas talvez
apenas mais rápido. A vida de muitas profissionais do sexo não é nada
repleta de glamour e de muito dinheiro. O outro lado desta história é que
ainda existem muitas vulnerabilidades associadas a esta atividade, entre estas
o estigma de ser profissional do sexo, o qual pode acompanhar esta pessoa
para o resto da vida. Nem sempre será como no filme “Uma linda mulher”,
em que a personagem de Julia Roberts tem a feliz oportunidade de encontrar
um sujeito rico, interessante e apaixonado por ela, que a convida para sair
das ruas e casar-se com ele. Entre outras vulnerabilidades, podemos citar a
rejeição familiar, o abuso e a dependência de substâncias psicoativas, os
riscos de relações sexuais desprotegidas, o maior risco e a maior exposição à
violência sexual, riscos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) /
HIV, maiores chances de burnout (stress atrelado ao trabalho)). Muitas
vezes, o uso da substância implica em reduzir o desconforto do profissional
frente às situações de risco a qual é exposto] (Diehl, Oliveira & Rodrigues,
2013, p. 298).
Estudo conduzido por Fernandes e colaboradores (2014), com 402
mulheres profissionais do sexo na cidade de Campo Grande, identificou que a
grande maioria (88,5%) relatou uso de álcool na forma de binge, 45,1% tinham
mais de sete clientes por semana, apenas 32,9% relataram o uso de
preservativo com parcerias sexuais que não as pagaramno último contato
sexual que tiveram, sendo que a prevalência da infecção por HIV nessa
amostra foi de 1,0% (IC 95%: 0,1-2,6%) (Fernandes et al., 2014).
Outros estudos têm sinalizado que, entre as mulheres profissionais do
sexo, existem diferentes contextos de não uso de preservativo com clientes
fixos, clientes eventuais e parcerias sexuais que não pagam, uma vez que elas
tendem a não usar o preservativo quando existe envolvimento emocional e
amoroso com o cliente. Tais contextos socioculturais devem fazer parte das
estratégias de prevenção de políticas dirigidas a este público (Lippman et al.,
2012; Ngugi et al., 2012).
Em 2018, Alessandra Diehl, uma das autoras deste capítulo, teve a
oportunidade de ter tido uma aula bastante transformadora com a professora
Alexandra Oliveira, na Faculdade de Psicologia e Ciência da Educação (FPCE)
da Universidade do Porto (UP), em Portugal, que em 2008 realizou uma tese
intitulada “O mundo da prostituição de rua: trajetórias, discursos e práticas:
um estudo etnográfico”. A experiência foi transformadora, pois ela foi capaz
de entrar em contato com outra realidade da qual a psicologia e pesquisadora
soube mostrar com arte da verdade, do pluralismo e da quebra de muitas
“hipocrisias” que ainda de certa forma permeiam esse universo. Nessa aula
conseguiu ver as mulheres além da meramente profissional do sexo, ou a
“puta”, como muito comumente elas são conhecidas. Pôde, assim, ampliar a
visão de quem são essas mulheres de fato, que não apenas as profissionais do
sexo, mas as mães, as avós, as filhas, as tias, as amantes e as esposas que muitas
delas também o são.
Expandir esse olhar para essas mulheres quando elas possuem problemas
com substâncias é essencial para reconhecermos as suas trajetórias, os seus
discursos e suas práticas. Novamente o julgamento ou o estigma afastam essas
mulheres da busca de ajuda e acabam por vitimá-las duplamente. Daí a
importância da criação de espaços de cuidados que possam ser exclusivos para
mulheres e, melhor ainda, exclusivos para os cuidados de profissionais do
sexo. Local esse onde elas possam partilhar suas vivências, seus desejos, seus
projetos de vida ou a falta deles em um ambiente seguro.
Já um estudo de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, fez um levantamento de
marcadores sociais dos profissionais do sexo masculino. Em relação à
caracterização, 90,6% tinham entre 18 a 24 anos; 70,8% se declararam brancos;
38,7% apresentavam o ensino médio completo. Em relação ao tempo na
prostituição, 44,3% tinham de 1 a 5 anos de atividade. No que diz respeito aos
clientes, foi percebido que 67,9% tinham idade entre 31 e 50 anos; 73,1% eram
brancos 38,5% tinham ensino médio completo e 41% ensino superior
completo (Hamann et al., 2017).
Rogério Bosso, também autor deste capítulo, atuou como supervisor
técnico dos programas de recuperação de uma Comunidade Terapêutica (CT)
reconhecida nacional e internacionalmente e em sua experiência, pôde
perceber algumas facetas da condição da atividade remunerada por meio da
venda do corpo para a prática sexual do público masculino. Em geral,
inicialmente, a atividade é velada pelo paciente que busca por tratamento para
a dependência química.
Na triagem desses pacientes, por vezes, são identificados pelo profissional
da enfermagem sinais no pênis ou em outro local de sua genitália, os quais
sugerem uma infecção sexualmente transmissível, e ao realizar um
questionário para uma investigação mais apurada das práticas sexuais o
paciente geralmente fica constrangido em relatar sobre a situação, porém
expõe o sexo desprotegido em troca de sua substância de preferência ou de
escolha, como costumeiramente se refere a essa terminologia. Posteriormente,
o paciente é encaminhado ao serviço de saúde da cidade responsável pelo
tratamento de ISTs/HIV para o teste rápido e acompanhamento, o que se faz
extremamente necessário.
Existe uma alta prevalência entre uso indevido de drogas lícitas e ilícitas,
bem como maior prevalência de infecção pelo HIV, entre profissionais do
sexo. Segundo estudos de Moró, Simon e Sárosi (2013), as substâncias mais
utilizadas entre os profissionais do sexo são álcool: uso abusivo/nocivo em
89%, uso regular: 48%, uso ocasional: 29%; tabaco: uso abusivo 86%, uso
regular: 62%, uso ocasional: 2%, e a prevalência ao longo da vida do uso de
drogas ilícitas entre profissionais do sexo foi de 84,3%, sendo maconha 75,2%,
speed (um tipo de aneftamina) 62,0%, ecstasy 59,5%, e cocaína 54,5%. Taxas
atuais de uso de outras substâncias, como, por exemplo, GHB, heroína,
medicamentos sem receita médica, inalantes etc. variou entre 1 e 4% (Moró,
Simon & Sárosi, 2013).
Conforme os vínculos vão se fortalecendo com os profissionais do serviço
onde o paciente encontra-se em tratamento, ele sente-se seguro e confiável
para relatar sobre suas experiências com a atividade do sexo profissional,
experiência na qual, em nome exclusivamente do dinheiro, desrespeitam sua
orientação sexual e sua segurança pessoal com a saúde, praticando sexo com
homens, mulheres e transgêneros, por vezes, a gosto do cliente, ou por estar
sob efeito de substâncias, de forma desprotegida.
Mendieta-Izquierdo (2016) discorre sobre os espaços geográficos utilizados
para a prostituição masculina que é, em grande parte, vinculada ao cenário
gay, como bares, baladas, saunas, cinema pornô, estabelecimentos privados,
apartamentos e clubes; e se denominam como strippers ou massagistas.
Mendieta-Izquierdo (2016) anuncia ainda que esses profissionais também se
utilizam de anúncios em jornais, internet e lugares públicos, como como
parques, praças e ruas, para a venda de sexo.
Exclusivamente, no tratamento da dependência química em CT, percebe-
se enorme preconceito em relação à prática de sexo profissional do paciente,
notada de duas formas:
1. em discussão de caso entre profissionais, o preconceito era velado, aparecendo
em forma de piadas sobre o assunto, o que era necessário ser apontado e
discutido para que o paciente não ficasse estigmatizado e fosse respeitado em suas
trajetórias de vida;
2. diretamente entre o profissional de referência e o paciente, o preconceito
aparecia de forma explícita, em que o paciente era condenado ao pecado pela
atividade do sexo profissional e estimulado de forma enfática a mudar seu estilo
de vida e escolha da atividade profissional.
Essas experiências deixam explícita a necessidade de capacitação
continuada em relação à sexualidade humana, pois a noção básica é que os
profissionais possam ser capazes de realizar os melhores encaminhamentos ao
paciente, independentemente de sua história de vida e atividade profissional, e
não apresentem uma atitude de condenação, pois essas atitudes podem levar o
paciente a ser mais menosprezado, com sentimentos de menos valia, podendo
chegar a desistir do tratamento e retornar ao uso de sua substância e,
concomitantemente, à exposição a riscos e vulnerabilidades, situação que era
notada em alguns casos.
Já no processo de reinserção, o desejo de abandonar a vida de atividade da
prática de sexo profissional aparece acompanhado de ambivalência entre
buscar uma recolocação profissional formal baseado no que ouvia de seu
profissional de referência na Comunidade Terapêutica, mas não por vontade
própria, ou continuar com as atividades da prática do sexo profissional. A
segunda opção vinha sempre acompanhada do fantasma da recaída, pois nos
relatos dos pacientes, em suas práticas sexuais, o uso de substâncias estava
diretamente ligado às práticas e, sendo assim, percebiam a recaída como uma
possibilidade.
Moró, Simon e Sárosi (2013) apresenta dados de que 66% dos profissionais
do sexo relataram usar drogas com seus clientes, sendo 13% frequentemente,
50% raramente, e as substâncias de uso durante as relações são geralmente
cocaína 29%, maconha 19%, álcool 16% e anfetaminas 14%.
May e Hunter (2006) apontam que ser adotado, “sem-teto”/em situação de
rua, ter um histórico familiar instável, apresentar evasão escolar e baixa
autoestima podem estar relacionados aos riscospara o desenvolvimento do
uso problemático de drogas e do trabalho sexual. Para alguns a prostituição faz
com que eles se sintam como “lixo”, socialmente estigmatizados e com baixa
autoestima (Mendieta-Izquierdo, 2016).
Rogério Bosso pode perceber que nesse âmbito a recuperação se tornava
frouxa e com tendências maiores à recaída, ao invés de caminhar para uma
recuperação consistente, devido à forte conexão anterior que o paciente
associava entre a prática da atividade sexual e o uso de substância. Talvez essa
prática para a pessoa com dependência química não seja o melhor caminho,
devido a seu histórico de uso de substâncias e a sua associação com a prática
sexual. Isso porque as técnicas de prevenção à recaída muito utilizadas no
tratamento da dependência química sugerem ao paciente, para que tenha mais
chance de sucesso em sua recuperação, que evite hábitos, pessoas e lugares que
possam ser considerados espaços com potencial de risco para violação da
abstinência (Knappand Beck, 2008).
Outro desfecho percebido para o público masculino que utiliza a atividade
sexual como uma forma de sustento é que eles tentam uma forma de
ressignificação do ato sexual, na tentativa de vinculação com o afeto, porém
consideram nessa tentativa o sexo com pessoas com alto poder aquisitivo,
mantendo o viés de tirar algum proveito da situação, mesmo sendo ela uma
situação afetiva. A análise da experiência da atividade sexual lucrativa da
prostituição masculina pode ser entendida por meio da necessidade de
sobrevivência, em que se troca a atividade sexual, seja por dinheiro ou por
favores.
O trabalho dos profissionais do sexo na Hungria é descrito como “quase-
legal”. Dessa forma governos locais têm a autoridade para determinar locais
que denominam zonas de tolerância onde os profissionais do sexo podem
trabalhar, desde que possuam uma espécie de “cartão de higiene” com validade
de três meses. Para se obter esse cartão, os profissionais precisam apresentar
resultados de testes negativos de infecção sexualmente transmissível e uma
licença de empreendedor privado, que se faz necessária para a tributação. Os
profissionais do sexo que circulam ou prestam serviços fora das denominadas
“zonas de tolerância” são considerados como transgressores, portanto podem
ser presos e até mesmo multados (CEEHRN, 2005).
No Brasil, ainda não temos tributação para pessoas que se denominam
profissionais do sexo. Especificamente sobre o uso do sexo de forma
comercial, temos o Art. 230 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40CP –
Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que dita algumas diretrizes:
Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de
seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227:
Pena - reclusão, de três a seis anos, além da multa.
§ 2º - Se há emprego de violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, além da multa e sem prejuízo da pena
correspondente à violência.
§ 1o Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o
crime for cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado,
cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da
vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº
12.015, de 2009).
§ 2o  Se o crime for cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou
outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da
vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, sem prejuízo da pena
correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).
Tráfico de mulheres - Tráfico internacional de pessoas (Redação dada pela
Lei nº 11.106, de 2005).
São bastante escassos os estudos científicos que abordam exclusivamente a
prostituição masculina, comparado ao número de estudos que abordam
especificamente a prostituição feminina. E, falando-se em Brasil e nos países
latinos, esses estudos tornam-se defasados. Qual seria a razão do baixo
interesse em pesquisar esse público em específico? Poderíamos, talvez, partir
da ideia de vivermos em um país considerado machista, onde a masculinidade
não poderia ser escancarada em forma de uma possibilidade de prostituição,
como acontece com o público feminino? Sabemos que os profissionais do sexo
masculino existem, mas também sabemos os quão discretos precisam ser para
que consigam manter-se, sem serem excluídos socialmente pelo trabalho
oferecido. Enquanto não nos debruçarmos em estudos exclusivos para essa
fatia da população, ficaremos a mercê de políticas públicas “cegas” e ineficazes
para o atendimento inclusivo e preventivo dessa demanda, e da mesma forma
carentes de cartilhas e profissionais especializados no assunto para que possam
orientar e assistir essas pessoas em suas necessidades, diminuindo assim os
riscos de contaminação de doenças e de fato promovendo a recuperação dos
transtornos relacionados ao uso de substâncias.
Quando alterado o foco do gênero masculino para os transgêneros,
mudamos os atores envolvidos, porém não mudamos, necessariamente, o
cenário apresentado ao abordarmos a questão da prostituição. Os profissionais
do sexo masculinos e as travestis englobam a mesma gama de preconceito e
exclusão. O Brasil é o país que lidera o índice de vitimar pessoas LGBT+,
estando à frente de países onde, por exemplo, ser homossexual é crime. O
Brasil é um dos países que mais se mata pessoas trans no mundo, totalizando
por volta de 40% das mortes em todo o mundo. Exclusivamente em 2017,
foram assassinadas 179 pessoas trans, 20% a mais, em relação a 2016 (ANTRA,
2018).
Podemos falar em algumas particularidades vivenciadas pelas denominadas
travestis. As travestis – as quais atualmente acoplaram ao termo “travesti” um
teor político de ressignificação de um termo historicamente utilizado de forma
pejorativa (Definição da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais,
aprovada pelo coletivo de participantes, Rio de Janeiro, 2008; com colaboração
adicional do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais, Negras e Negros; e
adaptações de ABGLT, 2010; e Caderno, 2017) – foram apontadas por décadas
como um mero transtorno psiquiátrico fetichista. No CID-10, aprovada em
1990, essas categorias são reconhecidas como distúrbios de identidade de
gênero e são incluídas no capítulo sobre Transtornos Mentais e
Comportamentais (Drescher, 2010; Meyer-Bahlburg, 2010). No entanto o
estigma associado a ambos os status – transgênero e transtornos mentais –
contribuiu para violações dos direitos humanos e precária assistência médica a
pessoas transexuais. No CID-11, a categoria é realocada dos transtornos
mentais na tentativa de diminuir estigma e colaborar para a noção que
identidade de gênero não é doença (United Nations High Commissioner for
Human Rights, 2011; WHO, 2015).
Dentro do contexto das políticas públicas sociais, a grande queixa,
carregada de sofrimento nas travestis quando chegam ao tratamento para o
uso de álcool e outras drogas, é a vivência do preconceito por toda a
população, inclusive em suas necessidades no uso do sistema único de saúde
(SUS). Para elas fica explícito o descaso pela condição de gênero. É necessário
mudar essa realidade, uma vez que falamos em pessoas transgêneros que
sofrem estigma, discriminação e abusos ao longo da vida. São deixadas às
margens da sociedade com maior envolvimento em situações de risco e
comportamentos de risco. Globalmente falando, elas enfrentam um pesado
fardo de violência, bem como exposição ao risco de HIV (Winter et al., 2016).
Entre 1983 e junho de 2017 foram registrados 882.810 casos de AIDS no
Brasil, sendo 65,3% em homens e 34,7% em mulheres, com maior
concentração em indivíduos com idade entre 25 e 39 anos de ambos os sexos
(Brasil, 2017). Entretanto,em uma amostra da concentração da epidemia
brasileira, as taxas de AIDS têm se mostrado relativamente maiores em grupos
populacionais específicos, como: homens que fazem sexo com homens (HSH),
usuários de drogas, transexuais e travestis e profissionais do sexo (Malta et al.,
2010).
Fica claro também na experiência com as travestis convivendo no mesmo
ambiente de tratamento da Comunidade Terapêutica citado anteriormente
que o próprio reconhecimento da sua identidade de gênero é fragmentado e
frouxo, até mesmo o quanto esse reconhecimento representa para elas
mesmas. Talvez por esse motivo pessoas trans podem se autodenominar
travestis ou evitar se autodenominar dessa maneira dependendo da barreira
que tenham que enfrentar na sociedade. Algumas assim o fazem por uma
questão de solidariedade e empoderamento de pares. Existe uma generalização
que ocorre na sociedade em relação às travestis, uma vez que elas parecem não
ter identidade, sendo sempre avaliadas como “o grupo” a que pertencem e não
como indivíduos únicos que carregam suas próprias histórias, acarretadas de
vivências únicas e vistas de forma individualizada com um olhar diferente, e,
portanto, tendo suas próprias opiniões a respeito de cada assunto abordado no
meio social, vivências e necessidades.
Em 2011, em resolução unânime, o Parlamento Europeu apelou à
Organização Mundial da Saúde (OMS) para que retirassem o gênero dos
transtornos de identidade da lista de transtornos mentais e comportamentais,
e para que garantissem uma reclassificação como parte do desenvolvimento da
CID-11 (European Parliament, 2016). As categorias relacionadas ao status de
transgênero se mantiveram na classificação mais recente do Manual de
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5 (American
Psychiatric Association, 2013). O DSM5 renomeou o então chamado
transtorno de identidade de gênero como disforia de gênero, definido por
acentuada incongruência entre o sexo biológico e o sexo expresso atribuído
por pelo menos 6 meses de duração e sofrimento clinicamente significativo ou
prejuízo nas escolas ou outras áreas importantes de funcionamento (Robles et.
al., 2016).
Cabe ainda mencionar que os discursos das travestis em tratamento para
dependência química são carregados de estigma que sofrem, com relatos de
dificuldades em assumir sua identidade e orientação sexual no núcleo familiar,
porém não deixando de esperar da família um apoio, aceitação e empatia, o
que na grande maioria não são o que recebem, optando muitas vezes por
saírem de casa, mesmo que o preço seja viver a triste realidade da situação de
rua.
CAPÍTULO 15
PRESIDIÁRIOS OU PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE ENCARCERAMENTO
Alessandra Diehl
Doenças infecciosas, dependências de substâncias e doenças dentárias são
os problemas de saúde mais importantes que afetam as pessoas encarceradas.
Os resultados de vários estudos mostram inequivocamente que a prestação de
tratamento para o uso de substâncias para pessoas com envolvimento com a
criminalidade e/ou que estão dentro do sistema carcerário reduz tanto o uso
de álcool e outras drogas quanto a reincidência criminal (NIDA, 2014; Diehl &
Cordeiro, 2019). Atualmente a população prisional com envolvimento em
infrações relacionadas a substâncias é volumosa em vários países do mundo,
como Estados Unidos e também no nosso país. O Brasil é hoje um dos países
com o maior número de pessoas em situação de encarceramento por
envolvimento em atividades criminais. São 726 mil presos, sendo a terceira
maior população carcerária do mundo. Isso nos revela uma taxa de que no país
existem em média 288 presos/100.000 mil habitantes com uma ocupação de
184% (site da Agência Brasil, 2017).
A prevalência de transtornos mentais na população prisional de São Paulo,
por exemplo, é de 61,7%, com pelo menos uma ocorrência de transtorno
mental ao longo da vida. Aproximadamente 25% daqueles que estão em
regime fechado preenchem critérios diagnósticos para pelo menos um
transtorno mental no ano anterior ao estudo, sendo que 11,2% dos detentos
são homens e 25,5% são mulheres que apresentam transtornos mentais graves,
e dentre esses transtornos mentais uma parcela possui transtornos por uso de
álcool e outras drogas. A projeção desses números para o território nacional
corresponde a cerca de 60 mil prisioneiros com transtornos mentais graves
(Andreoli et al., 2012).
O uso de drogas dentro das unidades prisionais brasileiras é uma realidade
e está intimamente associado, também, à criminalidade. É comum o indivíduo
envolvido com o ato infrator ser ao mesmo tempo agente e usuário de
substâncias. É comum também que esses indivíduos desenvolvam síndrome de
abstinência durante o período de detenção. Muitas das pessoas em reclusão
carcerária são dependentes químicas e sofrem com síndrome de abstinência,
fissura e outras complicações. Em geral, as drogas mais comumente citadas nas
unidades prisionais são maconha, crack, cocaína, álcool e tabaco. Portanto, os
transtornos mentais são comuns nas prisões, havendo grande dificuldade no
manejo dos casos mais severos, sendo comum a violação dos direitos humanos
dos detentos (Damas & Oliveira, 2013).
Muitos dos detentos também participam de uma série de comportamentos
de risco que podem levar à transmissão de infecções virais, como HIV,
hepatite B e hepatite C. As prisões são sobrecarregadas com uma alta
prevalência de doenças infecciosas e comportamentos de risco para a
transmissão dessas doenças e, comumente, uma notável falta de medidas
continuadas de controle dessas infecções; mesmo quando tais medidas estão
disponíveis na comunidade não são efetivadas a contento.
É desejável que grande parte dos reclusos regresse para as suas
comunidades após comprimir suas penas mediante as ordenações jurídicas
determinadas de forma reabilitada e que possa cumprir com suas penas de
forma que seus direitos de saúde posam ser garantidos. No país, a
ressocialização dos detentos deve ser indissociável das condições de saúde nas
prisões. No modelo atual, as prisões funcionam como unidades centralizadoras
do crime dos detentos, com pouco acesso às possibilidades de recuperação do
transtorno pelo uso de substâncias e acesso a tratamento adequado para todos
esses transtornos mentais.
Até o presente momento desconhecem-se medidas para promoção de
saúde e real tratamento da dependência química e suas comorbidades nesses
ambientes com respostas eficazes e de forma continuada. Têm-se notícias
anedóticas de iniciativas isoladas de setores/unidades prisionais que permitem
que seus presos possam sair para fazer “tratamento com o chá de Santo
Daime”, por exemplo, conforme reportagem exibida no programa do
Fantástico da Rede Globo ano passado. Temos notícias também do valioso
trabalho de grupos de mútua ajuda, tais como Alcoólicos Anônimos (AA) e
Narcóticos Anônimos (NA), os quais exercem atividades voluntárias em
prisões do Brasil. Medidas de redução de danos para uso de injetáveis parecem
ter sido desativadas pelo advento do crack e mudança da rota de uso da
cocaína.
Tampouco, temos resultados claramente demonstráveis das atividades de
educação sexual e de redução de danos com relação aos aspectos sexuais dentro
das unidades prisionais no Brasil.
Entre os presos da Alemanha, por exemplo, aproximadamente 20%
consomem heroína, 20-50% sofrem dependência e uso de álcool e 70-85%
fumam nicotina. A prevalência de tuberculose nas prisões alemãs em 2002 foi
de 0,1%. A provisão de agulhas para pessoas encarceradas tem um efeito
preventivo na infecção por hepatite C, hepatite B e HIV, mas programas desse
tipo foram descontinuados na maioria das instalações penais. Em uma revisão
sistemática, os transtornos psicóticos foram encontrados em 3,6% (intervalo
de confiança de 95% [IC]: [3,1; 4,2]) dos presos do sexo masculino e 3,9% [IC
95%: 2,7; 5.0] de mulheres presas. Vinte e cinco por cento das pessoas
encarceradas sofrem de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.
Pessoas recentemente libertadas da prisão têm uma mortalidade acima da
média, em grande partedevido à intoxicação por drogas (Opitz-Welke et al.,
2018).
Os programas de tratamento para pessoas que usam drogas injetáveis,
como os prisioneiros, também são importantes para atingir as metas de
eliminação da hepatite C. Existem várias barreiras ao tratamento da hepatite C
nas prisões, incluindo o acesso a médicos especialistas, a testagem e a terapia
antirretroviral, sentenças de prisão curtas e transferências frequentes entre
presídios. Um programa estadual de avaliação e manejo da hepatite C foi
desenvolvido em Victoria, na Austrália, para melhorar o acesso aos cuidados
para os prisioneiros. Esse modelo de cuidado liderado por enfermeiros é
apoiado pela telemedicina para fornecer atendimento descentralizado dentro
de todas as prisões do estado com respostas favoráveis naquele estado
(Papaluca et al., 2019). O quadro 1 resume as principais recomendações para a
prestação de cuidados para indivíduos do sistema prisional.
- A oferta da possibilidade de tratamento para indivíduos do sistema carcerário é uma das
melhores alternativas para interromper o ciclo do uso de drogas e crimes.
- Os desfechos são melhorados quando os profissionais da saúde e os da justiça trabalham de
forma harmônica e conjunta.
- Advogados de defesa, promotores e juízes precisam trabalhar juntos durante o processo
penal e de condenação a fim de determinarem programas de tratamento adequados que
atendam às necessidades desta população através por exemplo de tribunais de drogas,
programas de tratamento condicionais ou compulsórios com participação em programas
comunitários de tratamento da dependência química sob supervisão da justiça criminal. Em
alguns casos, os juízes podem também recomendar que o infrator participe do tratamento
durante o período que estiver preso e exigir que ele faça parte de um programa de
continuidade com supervisão correcional após a liberação do sistema prisional.
- Baixa motivação para participar do tratamento ou para interromper o consumo de
substâncias não devem impedir o acesso ao tratamento. A pressão legal que incentiva a
abstinência e a participação no tratamento também podem ajudar esses indivíduos a
melhorar a retenção e estimula a permanência em programas mais prolongados.
- As intervenções motivacionais podem ser úteis nestes casos e as técnicas de manejo de
contingência as quais muitas vezes proporcionam recompensas para cumprir os objetivos do
programa. Terapia cognitiva comportamental e manejo de contingências estão entre as
técnicas sugeridas para serem aplicadas nesta população
- As estratégias de manejo de contingência, comprovadamente eficazes em contextos
comunitários, utilizam incentivos ou recompensas baseados em vouchers, como fichas de
ônibus, para reforçar a abstinência (medida por testes de drogas negativos) ou para moldar o
progresso em direção a outros objetivos de tratamento. O manejo de contingência é mais
eficaz quando a recompensa contingente segue próximo ao comportamento monitorado.
- A pressão legal pode aumentar o comparecimento ao tratamento e melhorar a retenção.
- Medicações são elementos essenciais e deveriam ser oferecidos mediante avaliação clínica e
psiquiátrica adequada.
- Em geral, a duração mínima do tratamento deve ser superior a 90 dias.
- Se o paciente retornar para os ambientes associados com o uso de drogas pode desencadear
cravings e resultar em recaídas.
QUADRO 1 - PRINCIPAIS RECOMENDAÇÕES PARA A PRESTAÇÃO DE CUIDADOS
PARA INDIVÍDUOS NO SISTEMA PRISIONAL
Fonte: NIDA, 2014
Trata-se, portanto, de uma dupla questão: saúde pública e de segurança.
Assim é uma questão importante e crítica atual reduzir a criminalidade global
a fim de se evitar tantos prejuízos associados a essa prática, como homicídios,
perdas de produtividade no trabalho, a desintegração familiar e prejuízos
econômicos para os países. Em especial, sobre este último tópico, vale a pena
ressaltar que o tratamento tende a sair mais barato para os cofres públicos. O
custo médio do tratamento com metadona é cerca de US$ 5.000 por ano nos
Estados Unidos, em comparação a US$ 24.000 para prisões estaduais e federais
manterem pessoas encarceradas. Reduzir o número de pessoas encarcerados
por uso de drogas pode poupar enormes custos econômicos e sociais (NIDA,
2014).
As pesquisas científicas mostram também que o tratamento da
dependência química pode funcionar, mesmo quando um indivíduo entra sob
mandato legal e não motivado. Contudo apenas uma pequena parcela dos que
necessitam de tratamento o recebem, e muitas vezes, quando recebem
tratamento, este é fornecido de forma inadequada. Para ser eficaz, o
tratamento deve começar na prisão e ser mantido por meio da participação em
programas de tratamento comunitário e com o envolvimento em um processo
terapêutico contínuo que lidam com prevenção de recaída e trabalham a
reinserção social para o afastamento de uma vida de crime (NIDA, 2014; Diehl
& Cordeiro, 2019).
A adaptação de serviços para atender às necessidades dos indivíduos é um
importante componente do tratamento da dependência química eficaz em
populações que estão em situação de encarceramento judicial ou respondem a
processos penais e criminais. Vale lembrar que esses indivíduos diferem em
termos de idade, sexo, etnia e cultura, gravidade do problema, estágio de
motivação, nível de supervisão necessário e presença de outros transtornos
mentais, tais como psicoses e transtornos de personalidade. Os indivíduos
também respondem de forma diferente a diferentes formas de tratamento e
abordagens. Em geral, os tratamentos para os problemas com substâncias
deveriam abordar questões relativas a motivação, solução de problemas,
construir habilidades para resistir às drogas e modificar os comportamentos
relacionados à prática de criminalidade. Lições aprendidas com o uso mantido
de substâncias e as práticas de atividades criminais com o entendimento das
consequências e responsabilidades individuais desses comportamentos de uma
forma construtiva também são elementos importantes que devem ser
incluídos do processo de abordagem dessa população. Intervenções
terapêuticas dirigidas a um público alvo podem facilitar o desenvolvimento de
relacionamentos interpessoais mais saudáveis e melhorar a habilidade dos
participantes para interagir com a família, seus pares e outros na comunidade
(NIDA, 2014).
Monitorar o uso de substâncias por intermédio de testes toxicológicos ou
de outra forma objetiva deve fazer parte do tratamento ou da supervisão da
justiça criminal a fim de servir como um feedback para os participantes do
programa. Isso também promove oportunidade de intervir para a mudança
dos comportamentos não construtivos estabelecendo recompensas e sansões
que visem facilitar a mudança e modificar o plano de tratamento de acordo
com o progresso (NIDA, 2014).
O tratamento deveria ter como alvo os fatores que estão associados aos
comportamentos criminais. O “pensar criminoso” é uma combinação de
atitudes e crenças que suportam o estilo de vida e o comportamento
criminoso, tais como o sentimento de ter o direito de obter as coisas à sua
maneira, sentir que o comportamento criminoso de alguém é justificado, não
aceitar a responsabilidade por suas ações e consistentemente falhar em
antecipar ou apreciar as consequências de seu comportamento (NIDA, 2014).
Além disso, outros elementos importantes que devem ser considerados é a
abordagem de tratamento integrar suporte para HIV/AIDS e outras infecções
sexualmente transmissíveis visto que a prevalência de HIV em populações
carcerárias é cinco vezes maior que a população geral (NIDA, 2014).
Em vista do exposto, recomenda-se que os tratamentos sejam baseados em
evidências, com equipes multidisciplinares treinadas, com seguimento e
avaliação das estratégias implantadas e que estas possam ser uma das
prioridades de nossos governantes também para populações carcerárias
brasileiras, pois a saúde dos detentos é um problema de saúde pública, o qual
também merece atenção e certamente tende a contribuir para diminuir um
grande ônus para o indivíduoe toda a sociedade. Para que os cuidados de
saúde prisional atinjam os padrões dos cuidados de saúde baseados na
comunidade, a vontade política e o investimento financeiro são necessários de
organizações governamentais, médicas e humanitárias em todo o mundo
(Rich et al., 2016).
Parte 3
CAPÍTULO 16
SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA DE
USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS
Alessandra Diehl
Grandes avanços têm sido observados nas abordagens psicossociais e
farmacológicas do tratamento de homens e mulheres que sofrem por
problemas decorrentes da dependência de substâncias, porém a sexualidade
como parte integrante do processo de recuperação segue relegada a um
segundo plano, muitas vezes na invisibilidade, na maioria dos centros de
atenção destinados ao tratamento dos transtornos relacionados ao uso e
dependência de álcool e outras drogas (Harvey, 2009, 2010).
É como se existisse, nesses espaços, uma chamada “zona livre de
sexualidade” e a discussão sobre o assunto não pode vir à tona (ela é muitas
vezes silenciada), pois sequer é aventada, por tabu, medo, preconceito, falta de
informação adequada sobre a temática e falta de treinamento dos profissionais
da área da dependência química sobre a sexualidade e saúde sexual. Até mesmo
no programa de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (AA) existe referência à
Intervencoes 
saúde e ao bem-estar, no entanto não se observa qualquer alusão à atividade
sexual durante esse processo de recuperação. A sexualidade, portanto, deve ser
encarada como uma aliada na arte da recuperação, e não como uma adversária
nesse processo (Harvey, 2009; Vieira, Diehl, 2011).
Sabe-se que quando a sexualidade não é diretamente e positivamente
abordada em centros de tratamento para álcool e outras drogas e de saúde em
geral, isso pode contribuir para a falha terapêutica, com lapsos e recaída e,
consequentemente, incontáveis custos para as vidas desses pacientes e seus
familiares. Saúde sexual em indivíduos em recuperação tem sido fortemente
associada à crença de que é possível se manter em sobriedade e ao mesmo
tempo ter uma vida sexual prazerosa e emocionalmente satisfatória (Wood et
al., 2010; Vieira & Diehl, 2011).
Existe tanto evidência clínica quanto científica de que a atividade sexual
motivada por situações de uso de drogas pode ser um gatilho para recaídas.
Além disso, muitos chegam ao tratamento com sentimento de culpa e
vergonha relacionadas ao comportamento sexual. Soma-se o fato de que
muitos pacientes têm sobreposição de dependência de substâncias com
dependência de sexo e/ou com transtornos parafílicos, os quais, se não
trabalhados conjuntamente, também podem ser outro fator de recaída (Diehl
et al., 2014c). Portanto, é uma excelente oportunidade para conversar a
respeito de sexualidade (Vieira & Diehl, 2011).
Outra pergunta que cabe mencionar nesse contexto de tratamento para
dependência química e o universo da sexualidade é: o público LGBT necessita
de serviços específicos na área de uso e dependência de substâncias?
A resposta é: não precisam sempre ou necessariamente. Contudo, como
para qualquer outro indivíduo que esteja preocupado com problemas
relacionados ao uso de substâncias, quanto mais ampliarmos o “menu” de
opções de acesso a cuidados, prevenção e tratamento, melhores chances
teremos de lidar efetivamente com a situação apresentada.
Isso pode significar a identificação de possíveis vulnerabilidades específicas
de estilo de vida, de padrões de uso de drogas, de estigmas, preconceitos,
barreiras, dificuldades de acesso e outras questões atreladas à população LGBT
e, a partir desse conhecimento, oferecer serviços que respondam a essas
necessidades também; “o menu” de opções se amplia, consequentemente,
garantido a qualidade dos serviços oferecidos (SAMHSA, 2001).
Pesquisas no Reino Unido e nos EUA sugerem que pessoas da comunidade
LGBT tendem a acessar com maior frequência serviços especificamente
voltados para eles, ao invés de serviços mais genéricos. Experiências anteriores
de homofobia ou discriminação, seja por orientação homoafetiva, seja por
mudança de gênero etc., informam a percepção de que os serviços disponíveis
e gerais não vão atender às suas necessidades (SAMHSA, 2001).
Talvez essa realidade europeia e americana não se traduza literalmente
aqui no Brasil, mas não podemos negar a existência de que serviços genéricos
na área de tratamento, seja ambulatorial, de internação, da rede pública ou
privada, poderiam aprimorar, por exemplo, suas equipes de trabalho com
capacitações que sensibilizem e tragam um melhor entendimento dos
problemas que a população LGBT pode enfrentar no dia a dia de suas vidas
(Diehl et al., 2011a).
Ao se oferecer um espaço seguro para o público LGBT podemos garantir
aos nossos pacientes que foquem nas suas questões em relação ao uso de
drogas, álcool ou tabaco – livres de qualquer preocupação de sofrerem
preconceitos ou discriminação por conta de suas orientações sexuais ou
questões de gênero.
Mesmo que tenhamos no país o Sistema Único de Saúde (SUS) – que
preconiza seus três princípios: universalidade, equidade, integralidade –, os
serviços de saúde e de assistência social em geral (com algumas exceções, como
os serviços de DST/AIDS, por exemplo) ainda não estão totalmente
preparados para atender às necessidades do público LGBT. Além da
homofobia, do heterossexismo, medo, da falta de entendimento das questões
LGBT, falta de capacitação e sensibilização, falta de recursos e outras questões,
podem sim justificar intervenções que levem em conta as demandas
específicas. O público LGBT pode sentir-se desconfortável em serviços
primordialmente heterossexuais e temer ser catalogado como “patológico” ou
“estereotipado” (SAMHSA, 2001).
Segundo Hellman et al. (1989), sobre estudo que avaliou treinamento e
atitudes de equipes que lidam com dependência química, ao atender
homossexuais, demonstraram-se:
Preconceito no tratamento e na avaliação (seja ao focar na orientação sexual
quando inapropriado ou ignorar importantes fatos ligados à sexualidade).
Ignorância sobre questões LGBT e desconforto em abordar assuntos sobre
sexualidade.
Ignorância sobre as associações entre sexualidade e abuso de álcool e outras
drogas.
Neisen e Sandall (1990), SAMSHA (2001) e O’Hanlan et al. (1997) observaram
em suas pesquisas que certas circunstâncias podem prejudicar o acesso aos
cuidados e tratamento, como:
Dificuldade em ser aberto sobre a sua orientação sexual por medo de ser
maltratado por funcionários ou clientes.
Alguns foram forçados a revelar sua orientação homoafetiva.
Logo que a sua sexualidade ficou conhecida, alguns receberam alta dos locais de
tratamento.
Outros confirmaram que depois de “saírem do armário”, o tratamento que
receberam mudou para pior.
Alguns temiam que se a sua orientação sexual fosse conhecida, isso acabaria
recebendo mais ênfase do que os seus problemas com o uso de substâncias
psicoativas.
Alguns serviços não gostavam de ter seus parceiros participando dos programas
de família ou dos grupos de mútua-ajuda.
A maioria dos programas de desintoxicação e programas de reabilitação não era
sensível às questões de orientação sexual e gênero e, portanto, não encorajava
que isso fosse discutido ou revelado.
Não conseguir admitir orientação sexual pode facilitar as recaídas.
Redes tradicionais de apoio usadas para apoiar a recuperação – família, igreja,
escola, trabalho – podem ser pouco acolhedoras para o público LGBT.
Gays “no armário” que frequentam grupos de mútua ajuda como Alcoólicos
Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA) podem sentir-se constrangidos e
não mais retornarem às reuniões por acreditarem estar quebrando a chave da
filosofia da sobriedade dessas irmandades, que é “ser honesto e aberto em suas
relações com seus pares.”
Considerando os estudos já citados e os aspectos culturais, antropológicos
e as mudanças sociais, econômicas, políticas e de comunicação dos dias de
hoje, ainda podemos afirmar que os serviços de álcool e drogas precisam ser
mais acessíveis para o público LGBT. Esses serviçosprecisam ser proativos e
explícitos, deixando claro que esse público também é bem-vindo em seus
equipamentos de saúde. O que serviços de atendimento para álcool, tabaco e
outras drogas podem fazer então para melhorar o acesso do público LGBT?
Algumas sugestões (Diehl et al., 2011a):
Em primeiro lugar, reconhecer o problema;
Oferecer treinamento de avaliação de necessidades;
Treinamento sobre conscientização sobre a homofobia;
Ter políticas e procedimentos de inclusão e normas de convivência;
Profissionais especializados e provisão de serviços especializados;
Divulgar amplamente, para o público alvo, o serviço oferecido;
Trabalhar em rede com organizações voltadas para as questões LGBT, seja da
sociedade civil seja na governamental;
Avaliar e monitorar sempre.
É importante ressaltar, novamente, que reconhecer as vulnerabilidades e
os fatores de risco relacionados especificamente ao público LGBT não
significa que os serviços devem ser especialmente criados para atender essa
população. Como tudo, temos prós e contras a essa especificidade, mas a
realidade informa que precisamos das duas abordagens: serviços específicos e
serviços genéricos, ou seja, “o menu” para que cada um possa escolher o que
acha melhor pra si.
Indivíduos “no armário” (e, portanto, mais vulneráveis) provavelmente
não atenderiam um serviço separado para o público LGBT. É crucial termos
serviços genéricos acessíveis e versados nas questões LGBT. Um serviço
especializado poderia ser, por exemplo, dentro de uma organização LGBT ou
um centro de atendimento de álcool, tabaco e outras drogas, com grupos,
atividades, períodos e/ou dias específicos de atendimento para o público
LGBT (Diehl et al., 2011a).
É importante ressaltar ao profissional da saúde que apenas o conhecimento
a respeito dos prejuízos que a associação do uso e abuso de álcool e outras
drogas exerce na atividade sexual não é capaz, isoladamente, de mudar
comportamentos; daí a necessidade de se aumentar intervenções para muito
além do caráter informativo do tema (Diehl et al., 2011a).
Existe também a necessidade de ampliar pesquisas clínicas, principalmente
nacionais, com relação a esse componente da sexualidade ligado ao uso, ao
abuso e à dependência de substâncias psicoativas, a fim de gerar mais
conhecimento nessa área do saber, a qual possui muitas variantes e
complexidades diversas associadas. A melhor compreensão de todos esses
aspectos tende a trazer evolução tanto no campo das terapias sexuais quanto
nas intervenções para controle e tratamento do uso, abuso e dependência de
substâncias psicoativas (Diehl et al., 2011a).
Aborto induzido em usuários de drogas
Etimologicamente, do latim, a palavra aborto significa ab de privação e
ortus deriva de nascimento. Ou seja, é a privação ou impedimento do
nascimento, resultando em morte do embrião ou feto. Entende-se por aborto
induzido ou aborto provocado, ou ainda interrupção voluntária da gestação,
aquela interrupção do desenvolvimento do embrião ou feto durante a
gravidez, que ocorre antes das 20 semanas de gestação (Menezes & Aquino,
2009).
Trata-se de um assunto extremamente delicado, polêmico em muitas
sociedades, especialmente aquelas de origem cristã; muitas vezes, está
associado a tabus, disputas e controvérsias, assim como tem implicações e
conexões importantes com aspectos religiosos, psicológicos, legais, sociais,
ético e morais, e, especialmente, para a saúde pública (Menezes & Aquino,
2009; Pazol et al., 2014; Pistani & Ceccato, 2014; Sorhaindo et al., 2014).
A legislação brasileira proíbe induzir o aborto, exceto quando a gravidez é
uma ameaça à vida para a mãe ou foi resultado de violência sexual ou estupro.
Mesmo quando há uma malformação fetal grave, como a anencefalia, o aborto
só é permitido após autorização judicial (Duarte et al., 2010; Victora et al.,
2011). Mesmo sendo uma prática ilegal, portanto, criminalizada no país, isso
não tem impedido que o aborto aconteça, o que contribui, em muitos casos,
para o uso de técnicas de saúde inseguras, e reduz a confiabilidade das
estatísticas sobre esse tipo de prática (Morse et al., 2011).
Acredita-se que, todos os anos, cerca de 46 milhões de mulheres recorrem
a essa prática em todo o mundo. Desse total, cerca de 20 milhões praticam os
chamados abortos inseguros, que envolvem uma série de práticas sujeitas a
riscos diversos, inclusive de vida. Isso porque as complicações do aborto estão
entre as maiores causas de mortalidade materna (Morse et al., 2011; Victora et
al., 2011).
Em 2008, houve um aborto para cada quatro gestações no Brasil (25%)
(Victora et al., 2011). Muitos métodos têm sido utilizados para induzir o
aborto, variando de procedimentos domésticos ou realizados em clínicas de
saúde privadas ilegais, expondo as mulheres ao risco de complicações e
mortalidade. Devido às desigualdades no país, as mulheres negras têm três
vezes mais chances de morrer durante um aborto inseguro do que as mulheres
brancas (Barros et al., 2010; Victora et al., 2011). O perfil de vulnerabilidade
de morte por aborto inseguro inclui aquelas que são jovens e têm recursos
limitados. Em outras palavras, aquelas que podem pagar por um aborto ilegal
são menos propensas a terem complicações ou morrerem devido a essa prática
(Victora et al., 2011; Fusco et al., 2012).
Usuários de substâncias são, também, uma população vulnerável para a
gestação não planejada e a prática do aborto induzido (Pedersen, 2007). No
entanto poucos estudos, tanto nacionais quanto internacionais sobre esse
tema, têm sido conduzidos em usuários de álcool e outras drogas. Entre os
poucos estudos encontrados, como, por exemplo, o estudo de Abdala e colegas
(2011), a taxa de histórico de aborto induzido em usuários de drogas injetáveis
de uma amostra da Rússia foi de 67%, ou seja, pode ser considerada
extremamente alta (Abdala et al., 2011). Outros estudos encontrados na
literatura sobre o tema versam a respeito do papel do consumo de substâncias
pós-abortamento (Pedersen, 2007) e outros sobre o uso de substâncias ou a
presença de transtornos por uso de substâncias como um dos fatores de
aborto, em geral e não somente do aborto induzido (Martino et al., 2006;
Coleman et al., 2009; Steinberg & Finer, 2011).
Dados do estudo probabilístico domiciliar, com amostra total de uma
população de 4.067 brasileiros com 14 anos ou mais, oriundos da Segunda
Pesquisa Nacional sobre Álcool e Drogas (2012) cujo objetivo foi avaliar a
prevalência de abortamento (espontâneo e induzido) e sua associação com o
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Steinberg%20JR%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21122964
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Finer%20LB%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=21122964
uso de substâncias e outras afecções sexualmente relacionadas, mostrou que
2.537 mulheres e 400 da amostra (15,8%) relataram história de aborto. O
aborto foi estatisticamente associado a beber na gravidez, um padrão de
dependência de álcool, consumo excessivo de álcool e fumo nos últimos 12
meses. Houve forte relação entre o aborto e a gestação anterior, ter tido pelo
menos um problema em uma gestação anterior, estar grávida antes dos 20
anos, apresentar baixo suporte social, depressão, abuso sexual, falta de uso de
preservativo e histórico de aborto. As mulheres em idade reprodutiva estão
em maior risco de uso de substâncias e aborto. Há uma necessidade de integrar
um cuidado multiprofissional para mulheres em idade reprodutiva que sejam
usuários de substâncias (Pillon, Diehl, Madruga, Caetano & Laranjeira, 2019,
no prelo).
Mais evidências sobre o aborto induzido em usuários de substâncias são
necessárias a fim de ajudar os planejadores de programas e formuladores de
políticas a identificarem grupos de maior risco para a gravidez indesejada e
reduzirem os riscos de saúde relacionados com o aborto entre os usuários de
álcool e drogas, ampliando também os esforços de prevenção e promoção da
saúde para essa população vulnerável (Gutierres & Barr, 2003; Martino et al.,
2006).
Estupro e sua associação como uso de substâncias
O estupro pode ser definido como uma violência sexual. É um problema de
saúde pública global com incontáveis consequências para a saúde física e
mental da pessoa acometida, como depressão, suicídio, transtornos de estresse
pós-traumático engajamento no uso de substâncias para o enfrentamento,
HIV, Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e com altos custos para os
sistemas de saúde e criminal. Essa condição também está associada ao tabu e
estigma em muitas sociedades ao redor do mundo, com falta de conhecimento
ou atitudes de culpar a vítima. Além disso, prejudica a dignidade humana e
desrespeita seriamente os direitos humanos.
Globalmente, 7% das mulheres são abusadas sexualmente por terceiros que
não são seus parceiros íntimos (WHO/UNODC, 2014). Nos Estados Unidos,
mais de 12 milhões de adultos sofrem violência por parceiro íntimo
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Gutierres%20SE%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=12646327
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=Barr%20A%5BAuthor%5D&cauthor=true&cauthor_uid=12646327
anualmente. Bolívia e Peru têm as maiores taxas de violência sexual na
América Latina, com quase uma em cada três mulheres sofrendo algum tipo
de abuso sexual antes dos 18 anos. Dados de um estudo de séries temporais
observacionais que analisaram informações de 2009 a 2013 provenientes de
um banco de dados secundário do Sistema Nacional de Informações de
Doenças Notificáveis (SINAN) mostraram que a taxa de notificação de estupro
aumentou em 590%.(Gaspar & Pereira, 2018). Outro estudo realizado por
Winzer (2016) sobre estupro e vitimização no Brasil, por meio de 41 estudos a
partir de uma revisão da literatura, constatou que 1% a 40% das mulheres e 1%
a 35% dos homens relataram alguma forma de vitimização no ano anterior
(Winzer, 2016). O levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública é
alarmante no relatório, sendo que em 2015 no país estimou-se que cerca de
45.460 pessoas foram violadas. Isso significa que a cada 11 minutos uma
pessoa é estuprada, ou seja, mais de 5 pessoas são estupradas por hora no
Brasil. Em 89% das vítimas eram mulheres (Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, 2016).
O consumo de álcool está relacionado à violência em praticamente todas as
suas formas, inclusive contra as mulheres e nas relações íntimas, e reflete as
relações de gênero (desigualdades). As políticas públicas mais eficazes para
reduzir o consumo de álcool são políticas que favorecem a equidade de gênero
e podem ser eficazes na redução da violência íntima e do estupro. Políticas de
equidade de gênero, se não acompanhadas de políticas públicas para controlar
o consumo, continuarão perpetuando as relações de poder da sociedade e
minando seus ganhos, enquanto os problemas de uso de álcool em homens e
mulheres continuarão a crescer – especialmente entre as mulheres e meninas.
No entanto as pesquisas sobre os efeitos do álcool e do estupro são ainda
menos representativas. Parece que a exposição a estímulos relacionados ao
álcool (isto é, a preparação do álcool) pode aumentar os comportamentos
associados ao consumo agudo de álcool. Atribuições de responsabilidade a
mulheres vítimas em cenários de estupro são afetadas pelo fato de o álcool ter
sido consumido ou não por uma vítima e/ou agressor. As vítimas geralmente
recebem níveis mais altos de culpa se consomem álcool antes da violência. Um
estudo transversal com 816 usuários de crack no sul do Brasil conduzido por
Vernaglia e colegas (2017) constatou que 34% relataram abuso sexual,
mostrando que as mulheres usuárias de crack tinham maior probabilidade de
estar em situações vulneráveis (Vernaglia et al., 2017).
Além da questão do uso de álcool e outras substâncias, a violência de
gênero continua sendo alarmante e, acima de tudo, parece estar ligada a outras
formas de violência que começam cedo na vida e continuam na idade adulta.
No Brasil, a taxa de feminicídio é de 4,8 a 100.000 mulheres – a quinta maior
do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em
2015, o Mapa da Violência sobre homicídios na população feminina revelou
que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu
54%, de 1.864 para 2.875 (Organização das Nações Unidas, Brasil-UNOBr,
2016).
Alguns agressores podem decidir ficar intoxicados, porque isso facilita a
justificação do comportamento sexualmente agressivo e desinibido. Embora
essa causa inicialmente pareça improvável, pois em muitas culturas a
intoxicação fornece uma “desculpa” para se envolver em um comportamento
tipicamente censurado. Traços de personalidade, como a impulsividade,
também têm sido associados ao consumo pesado de álcool e ao enfrentamento
sexualmente agressivo. Isso sugere que, para alguns indivíduos, a
impulsividade pode ser a causa de seu consumo pesado de álcool e
violência/agressão sexual (Abbey, 2011). Algumas precauções, entretanto,
devem ser enfatizadas quando observamos esse fenômeno delicado que
envolve álcool/drogas e abuso sexual/violência. É fato que não é a “garrafa de
álcool” que ataca ou comete violação/estupro, mas o álcool e/ou outras
substâncias podem estar frequentemente presentes nesse cenário (Ullman,
2014; Lichty & Gowen, 2018).
É fato também que o estupro atinge a coisa mais valiosa: a dignidade
humana. Dignidade diz respeito ao que é relativo à honestidade e à nobreza no
sentido de valores. Dentro da perspectiva dos direitos humanos, há vários
marcos históricos sobre a proteção da questão feminina, sendo que na
legislação brasileira, a evolução dos fatos é mais recente, sendo que em 1934 a
mulher adquire o direito de voto, e até 1962 ainda havia o estatuto da mulher
casada que a considerava relativamente incapaz. Na década de 1980, surgem as
questões do estupro versus as chamadas “obrigações conjugais”. Foi somente
em 1988 com a Constituição Federal que a igualdade dos cônjuges foi
determinada. Em 2006, após a intervenção da organização internacional foi
aprovada a Lei Maria da Penha (sobre violência doméstica) e mais
recentemente, em 2015, foi a aprovação da Lei do Feminicídio no país
(Rodrigues & Cortês, 2006; BRASIL, 2006).
Entre os objetivos de Desenvolvimento do Milênio, acordados entre vários
países em 2015 com as Organizações das Nações Unidas (ONU) para uma
agenda a ser alcançada até 2030, estão a diminuição da violência contra as
mulheres e a promoção da igualdade entre os gêneros (ONU, 2015). Muitos
fatores ainda constituem barreiras para a manutenção dessa privação de
direitos humanos, como o valor desigual atribuído a cada gênero devido ao
sexismo, ao machismo, ao poder e às culturas patriarcais (Brasil, 2006).
Intervenções de saúde pública que enfocam os profundos rituais de
“consumo” de gênero ancorados nas crenças patriarcais, a mercantilização dos
corpos das mulheres e as vítimas de estigma do estupro devem ser perseguidas
com mais vigor em todos os países do mundo (Dumbili & Williams, 2017).
Embora o direito penal possa punir apenas o comportamento agressor, as
intervenções sociais, educacionais, econômicas, políticas e de saúde podem
usar a estratégia de prevenção mais eficaz para promover comportamentos e
relacionamentos positivos (Kaplan, 2017). Por exemplo, a dissertação de
mestrado recentemente defendida por Alabarse (2018) na Universidade de
Campinas propôs uma breve intervenção de aconselhamento para as vítimas
parceiras de estupro que não formam perpetradores de violência. Esse estudo
mostrou que essa parece ser uma estratégia custo-benefício positiva,
comprovada pelo tempo, no atendimento especializado às vítimas de violência
sexual (Alabarse, 2018). O mesmo apoio deve ser oferecido aos perpetradores
de estupro.
Essa parece ser uma das lacunas da Lei Maria da Penha, uma lei brasileira
que representa um marco histórico para o Brasil, mas não conseguiu reduzir
as altas taxas de violência de gênero. Uma das críticas é a falta de
atendimento/acompanhamento psicológico/psiquiátrico do agressor, além da
punição penal (Meneghel, Mueller, Collaziol & De Quadros, 2013).
Outro pontoimportante é a capacitação de equipes de profissionais de
saúde para atendimento adequado e identificação de casos de estupro para
melhor gerenciamento de cada caso, além de campanhas educativas em todos
os tipos de mídia para combater e reduzir todas as formas de violência,
principalmente contra as mulheres (WHO, 2014).
O papel da intervenção de “Bystanders” na prevenção de
assédio sexual e estupros
O termo em inglês quer dizer mais ou menos “o espectador”, ou ainda “a
testemunha”, ou seja, aquela pessoa que pode assistir, presenciar ou perceber o
assédio sexual e o estupro em si a terceiros, podendo assim ser um aliado para
prevenir/impedir que esses fatos ocorram. A literatura científica associando os
“Bystanders” a questões de consumo de álcool e outras drogas é ainda escassa,
mas já podemos encontrar algumas pesquisas e iniciativas principalmente em
populações de estudantes (Edwards et al., 2019; McMahon, 2010). Os
resultados sugerem que os programas podem ser facilmente implementados
em diferentes campis e podem surtir efeito para enfatizar estratégias de
intervenção eficazes relevantes para situações sociais encontradas por
estudantes que costumam beber em binge (Willians et al., 2019).
A abordagem de intervenção de Bystander tem ganhando popularidade
como um meio de envolver as comunidades na prevenção de agressão sexual,
especialmente nos campi universitários. Muitos programas de Bystander têm
ensinando os membros da comunidade a intervirem e outros ajudam também
a identificarem toda a gama de oportunidades quando podem intervir
(McMahon & Banyard, 2012).
Em geral, a maior aceitação dos mitos relacionados ao estupro tem sido
relatada por homens (aqueles que participam de fraternidades, atletas, aqueles
sem educação anterior sobre estupro, e aqueles que não conheciam alguém
sexualmente agredido). Por outro lado, a maior disposição para intervir como
um bystander tem sido reportada por mulheres, as quais tiveram educação
prévia sobre estupro e aquelas que conheciam alguém sexualmente agredida
(McMahon, 2010).
Um grupo chamado de “Men can stop rape”, cuja sigla é MCSR, usa o
seguinte esquema de seis etapas em seu treinamento do Bystander, para
preparar melhor os homens para intervirem (recuperado de:
https://www.mencanstoprape.org/Theories-that-Shape-Our-
Work/bystander-intervention.html):
PASSO UM: eventos de aviso. As normas sociais muitas vezes reforçam a
normalidade do sexismo e da agressão sexual, de modo que elas escapam à
atenção. Portanto, o primeiro passo é perceber quando alguém está “cruzando a
linha”.
PASSO DOIS: identifique eventos como problemas. Se entendermos o impacto
potencial que uma agressão sexual pode ter em um sobrevivente e nos amigos,
família e colegas de trabalho do sobrevivente, veremos alguém cruzando a linha
como um problema que exige ação.
PASSO TRÊS: sinta-se motivado e capaz de encontrar uma solução. Muitas vezes
os homens se sentem presos em situações em que podem intervir. Fornecer-lhes
quadros como prevenção primária, histórias dominantes/contrárias de
masculinidade e intervenção direta pode motivá-los a se soltarem.
PASSO QUATRO: adquira habilidades para ação. Esse passo fundamental
sublinha a necessidade de ajudar os homens a desenvolverem estratégias que
conduzam a uma ação efetiva. O MCSR trabalha com homens para desenvolver
um kit de ferramentas de intervenção.
PASSO CINCO: ato. Os primeiros quatro passos são muito importantes, mas só
surtem efeito se for dada ênfase à ação. Os homens precisam lembrar e usar as
estratégias no kit de ferramentas.
PASSO SEIS: avalie e revise. Depois de intervir, os homens devem considerar o
que funcionou bem, o que não funcionou e o que eles poderiam fazer de forma
diferente na próxima vez que surgir uma oportunidade.
Mutilação genital feminina (MGF)
A mutilação genital feminina (MGF) é definida pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) e pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) como “a
remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outra lesão dos
órgãos genitais femininos por razões não médicas”. Trata-se de uma tradição
cultural enraizada em muitas comunidades de 28 países da África e em alguns
países da Ásia e do Oriente Médio. Tem sido reconhecida mundialmente
como um importante problema de saúde, uma violência interpessoal e uma
violação dos direitos humanos, bem como da dignidade de meninas e de
mulheres (World Health Organization [WHO], 2011; WHO, 2018).
Com a crescente globalização e os recentes movimentos migratórios pode-
se afirmar que na verdade a mutilação ou “corte” (cutting no idioma inglês)
genital feminino (MTF/C) afeta mulheres em todo o mundo (Pastor-Bravo et
al., 2018; Oberreiter, 2008), por essa razão julguei importante abordar essa
questão aqui também, apesar de não termos notícias no Brasil e/ou outros
países da América Latina sobre essa prática. No entanto, como será visto mais
adiante, em outros países de língua portuguesa a prática ainda está bastante
arraigada. Como tal, portanto, a sua eliminação passa a ser uma preocupação
global. Não se tem notícia na América Latina e seus países sobre essa prática.
Estima-se que atualmente existem mais de 200 milhões de mulheres em
todo o mundo vivendo com a MGF. Esta pode afetar múltiplos aspectos da sua
saúde física e mental (WHO, 2018). As consequências para a saúde incluem:
infecções bacterianas e virais, infecções pelo vírus da imunodeficiência
humana (HIV), Chlamydia trachomatis, Clostridium tetani, vírus herpes
simples (HSV tipo 2), infecções do trato urinário, dor excessiva e hemorragias,
complicações obstétricas, problemas psicológicos (ex. depressão, stress pós-
traumático, ansiedade, vergonha) (Klein et al., 2018; Pastor-Bravo et al.,
2018).
Quase metade das meninas e mulheres com MGF vive em apenas dois
países: o Egito e a Etiópia. Os países nos quais a MGF foi documentada são:
Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Chade, Costa do
Marfim, Djibuti, Egito, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau,
Quênia, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa,
Somália, Sudão, Togo, Uganda, República Unida da Tanzânia e Iémen. A
prevalência da MGF varia de 0.6% a 98% da população feminina (WHO,
2011).
Em 2012, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução
que convida a comunidade internacional a intensificar os esforços para acabar
com a prática. Em setembro de 2015, a comunidade global concordou com um
novo conjunto de metas de desenvolvimento. São os chamados “Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável” (ODS), os quais incluem uma meta específica
no objetivo cinco de eliminar todas as práticas prejudiciais e nefastas, como a
MGF/C, até o ano de 2030. Tanto as resoluções como as metas do ODS
significam que existe uma vontade política da comunidade internacional em
trabalhar conjuntamente para acelerar as ações em direção ao fim dessa prática
em todos os continentes do mundo. No entanto, como os dados da MGF estão
entre os chamados “cifras negras” (devido às dificuldades de dimensionamento
real do fenômeno), ainda são necessários ampliação de dados para medir o
progresso em direção a esse objetivo comum (UNICEF, 2016).
Apesar de sua alta prevalência em diversos cenários e as consequências
para a saúde física e mental das mulheres afetadas, muitos provedores de
cuidados em saúde e outras instâncias sociais têm ainda conhecimento
limitado sobre todas as esferas que envolvem a prática, sobretudo habilidades
de prevenir e gerenciar complicações relacionadas a elas, assim como em lidar
com o estigma envolvido (tanto por profissionais da saúde quanto por outros
membros das próprias comunidades em que convivem quando imigrantes de
outros países, como Portugal, por exemplo) por não se aproximarem
diretamente dos contextos culturais e não considerarem o desenvolvimento de
competências específicas dessas comunidades para lidar com a prática e suas
consequências (Dias, 2006). A despeito de esforços de organizações
governamentais e não governamentais para tentar acabarcom essa prática, a
questão ainda parece longe de ser solucionada. Houve um declínio nas últimas
três décadas em alguns países. No entanto o progresso atual é ainda
insuficiente para manter o aumento do crescimento populacional. Se as
tendências continuarem a crescer o número de meninas submetidas a essa
prática deverá aumentar significativamente nos próximos 15 anos (UNICEF,
2016).
Uma das várias questões levantadas por pesquisadores e por líderes
comunitários são os aspectos que envolvem a manutenção dessa prática, os
quais não são apenas questões religiosas ou ritualísticas, uma vez que vão
além, pois parecem envolver uma ampla gama de rotas e contextos sociais,
crenças, valores culturais, questões ligadas à formação da identidade de
mulheres nessas culturas e aspectos econômicos. Esses aspectos fazem dessas
importantes questões a serem trabalhadas dentro das comunidades e com as
comunidades para que mudanças possam ser alcançadas num futuro (Abreu &
Abreu, 2015; Oberreiter, 2008; Quintaz, 2013).
O estudo conduzido por Mohammed e colegas (2018) entrevistou 618
homens e mulheres acima de 18 anos no Egito, e mostra que
aproximadamente 56% acreditam que essa prática deve continuar. As
mulheres foram mais favoráveis à continuação da MGF do que os homens
(60.3% versus 47.9%). A crença de que a MGF é uma “boa prática”, assim como
o baixo nível de conhecimento, o status da mulher com MGF naquela
sociedade e aspectos religiosos estiveram significativamente associados à
disposição das mulheres em sujeitar suas filhas à MGF no futuro. Os autores
concluíram que a forte correlação entre a pressão social e as intenções de
realizar a MGF significa que a prática da MGF continuará a ser adotada entre
as gerações futuras, a menos que políticas sejam postas em prática para
erradicar essa prática por meio do empoderamento das mulheres pela
educação, pela transformação e geração de renda nessas comunidades
(Mohammed et al., 2018).
MGF em Guiné-Bissau: aspectos socioculturais
Na Guiné-Bissau, a MGF é referida por meio do termo de “fanado”.
Muitos dos 30 grupos étnicos fazem a prática do “fanado”, especialmente nas
regiões de Gabu e Bafata (leste do país). Existem diferenças consideráveis
entre as formas de mutilação realizadas por grupos étnicos, variando desde a
excisão do clitóris até a excisão do clitóris mais os pequenos lábios e/ou
grandes lábios, outros realizam um ritual de iniciação que envolve tatuagens,
mas sem corte (Abreu & Abreu, 2015).
A grande maioria das mulheres não reconhece a prática como uma
mutilação de fato, então a palavra “mutilação” parece não fazer sentido para
muitas delas, uma vez que tal prática está normatizada dentro das culturas. O
procedimento é realizado pelas chamadas “fanatecas”. A maioria das
“fanatecas” são mulheres já mais velhas ou idosas acreditadas pela comunidade,
as quais também vêm de uma família em que gerações de mulheres têm sido
praticantes tradicionais como elas. Dependendo da habilidade das “fanatecas”,
o procedimento dura cerca de 20 minutos (Oberreiter, 2008).
É realizado como uma cerimônia de iniciação tradicional para meninas.
Muitas delas já aos 5, 7 ou 12 anos de idade, entre os meses de julho e
setembro, como um rito de passagem para a “purificação” ou para se “tornarem
mulheres de fato”. Em geral nesse dia as meninas comem bastante o que
quiserem. Assim como as outras meninas e mulheres cantam músicas e
dançam, e muitas ficam em filas com roupas distintas ou em outras etnias com
a cabeça coberta ou ainda raspada. Muitas não sabem sequer o que irá
acontecer. As meninas mais velhas cuidam e instruem as mais jovens. Há
sempre muitos rituais de transição para o estágio adulto da vida. Mas entre os
Balanta pode haver um segundo fanado aos 30 ou 40 anos de idade. Para as
meninas, é vergonhoso chorar e todas cantam juntas. Em Oio e Cacheu o
fanado pode durar semanas ou meses. As mulheres testemunham o fanado,
mas é proibido falar sobre isso, pois segundo elas “não se deve falar sobre o
que acontece lá”. Depois do fanado as meninas não podem sair sem roupa; elas
“já são mulheres”. Durante a cerimônia, elas aprendem histórias, músicas e
conselhos de suas tradições oriundas das mulheres mais velhas. Nas tradições
dos Bijagós as meninas cantam, colocam farinha na pele e costumam fazer
tatuagens. A prática é um rito de iniciação – a mutilação marca a identidade
social da menina. Quando a menina faz o fanado ela se “torna mulher”, “toda a
comunidade a vê como mulher”. Se ela for mais velha, ela já pode se casar. Ela
se torna “mais responsável”. A prática é um fator de integração social – sua
negação implica exclusão do grupo de amigos, meninas da escola, organizações
religiosas e outros grupos sociais; a mulher seria, sob essas condições,
socialmente impedida de se casar. As mulheres que não fazem o fanado têm
problemas com outras pessoas e com os homens. Entre as crenças estão a
busca “da pureza” mediante a remoção daquilo que representa “o masculino”
nelas. As meninas que fazem o fanado “serão mais respeitadas”, porque “não
trairão os maridos”; têm “menos chances de perder sua virgindade antes do
casamento”. O aspecto da dor é também um fator que emerge da maturidade
social. Ao adquirir o status social, a mulher mostra que adquiriu domínio
sobre o próprio corpo, superando a dor resultante da prática. A prática é um
ato de virtude e purificação – a mulher está preparada para defender mais
facilmente sua virgindade até o casamento e, no contexto familiar, mantendo
sua lealdade ao marido; a prática seria, na visão do homem, um fator que
impede o adultério e se traduziria em uma demanda menor para mulheres em
termos sexuais, pois a mulher não terá prazer com outro homem. Os homens
e as mulheres acreditam que as meninas são mais protegidas dessa forma e que
muitos homens dão importância a elas. Elas estão aptas a se casar e a servir
seus maridos e a procriarem, pois honraram suas crenças. A prática não tem
origem religiosa, mas foi inserida na religião como parte dela. Se por ventura
alguma criança morre durante os rituais de iniciação, a ninguém é atribuída a
culpa. Esse fato é visto como sendo o desejo do espírito guardião, podendo
também ser atribuído ao fato da presença de pessoas externas ao lugar sagrado
(Abreu & Abreu, 2015; Oberreiter, 2008).
As meninas que não fazem o fanado são vistas como “promíscuas,
impróprias para casar, prostitutas, vulgares” e não são aceitas pela
comunidade. Se estiverem em uma comunidade muçulmana, a menina que
não participou no ritual de iniciação não pode entrar na mesquita da vila e é
vista como descrente. Às mulheres, mães das meninas, cabe decidir pela
prática do fanado ou não. Assim como recai sobre elas a culpa e
responsabilidade pelos atos da filha e pelo desprezo da comunidade caso ela
não realize o fanado e não venha a se casar no futuro. Assim, existe uma forte
pressão da comunidade para que as mulheres e os homens dessa comunidade
levem suas filhas para fazerem o fanado, a fim de serem respeitadas dentro
dela. Isso parece ocorrer mesmo em outros países onde existe uma
comunidade oriunda da Guiné Bissau (Quintas, 2015; Abreu & Abreu, 2015;
Oberreiter, 2008; Dias, 2006).
Os cortes não são de todo executadas com o cuidado higiênico e
obviamente a assistência médica adequada. As vítimas dessa tradição sofrem a
dor silenciosa toda de uma infância e inocência que muitas sequer se lembram
ou quando se lembram percebem a dor de mulheres que as seguraram pelas
pernas (Quintas, 2015).
No dia 6 de fevereiro de 2013, Bissau comemorou o “Dia Internacional da
Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina”, condenando a prática e
concordando com o seu abandono em prol da saúde sexual e reprodutiva das
mulheres. Mas infelizmente, ao que tudo indica, elas continuam a ocorrer
dentro e fora do país!
Do ponto de vista sociocultural, se as meninas jovens têm mais educação é
porque ainda não estão casadas e, muitas delas, quanto mais acesso têm a
informação e educação formal, mais percebem que os rituais e tradições a que
estãosubmetidas em seu país ou em sua comunidade, mesmo residindo fora
do seu país de origem, são condenáveis e proibidas internacionalmente.
Assim, o casamento dentro dessas culturas acaba por implicar que a mulher
tenha sido mutilada, deixe os estudos e que procrie (Quintas, 2015).
Não são os aspectos religiosos que predominam como fatores explicativos
para a manutenção dessa prática, mas sim as interações complexas entre
questões sociais e culturais relacionadas à iniciação à feminilidade, ao status da
mulher e à necessidade de ser aceita pelos homens. A MGF é sempre feita para
beneficiar o marido, para a procriação, e não a favor da mulher, muito embora
as crenças presentes e transmitidas às meninas estejam ligadas ao benefício
delas. Entre os grupos cristãos e muçulmanos encontram-se pessoas que
defendem a prática e outras que a condenam (Abreu & Abreu, 2015). O desejo
e a pressão de se casar e a segurança econômica e social que pode vir com o
casamento tendem a perpetuar a prática em alguns contextos (WHO, 2018).
As razões alegadas para a manutenção da prática observadas nos estudos na
Guine Bissau são semelhantes às relatadas pela OMS em outros países onde a
prática também permanece: (1) Respeito pela tradição, (2) Rito de passagem,
(3) Convenção social, (4) Crença de que a prática aumenta a fertilidade, (5)
Para a aquisição do casamento, (6) Assegurar a virgindade, a castidade e a não
infidelidade, (7) Limpeza, pureza e beleza, (8) Feminilidade (WHO, 2018).
Existe uma necessidade de mais estudos sobre a temática a fim de
aprofundar e melhor conhecer as diversas barreiras para a erradicação dessa
prática nesse contexto, com possíveis caminhos construídos conjuntamente
com as comunidades, além de explorar se existe ou não uma interface com o
uso de substâncias. Entre os possíveis caminhos apontados estão a promoção
de educação, igualdade de gênero e melhoria das condições socais e
econômicas do país, a fim de alavancar mudanças que possam ser duradouras
para gerações vindouras (Abreu & Abreu, 2015).
Informações sobre ISTs e HIV/AIDS para serem abordadas
com os usuários de substâncias
Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)
É importante que as informações sejam repassadas aos pacientes de forma
assertiva e empática, sem usar de “terrorismo” ou do amedrontamento para a
abordagem, pois sabidamente o medo por si só não muda comportamentos.
Lembrar a eles que uma IST aumenta as chances de contrair o vírus HIV,
fenômeno de maior vulnerabilidade a coinfeçcão. Infecções sexualmente
transmissíveis (ISTs) eram antigamente chamadas de “doenças venéreas”.
Atualmente esse termo encontra-se em desuso, pois pode estar atrelado a mais
preconceito e isso ser mais uma barreira a dificultar o acesso ao diagnóstico e
consequentemente o tratamento. São doenças/infecções causadas por várias
bactérias e vírus; mais de 20 infecções/doenças sexualmente transmissíveis
afetam homens e mulheres, pessoas trans, pessoas que fazem alguma atividade
sexual, entre outras. São aquelas infecções que se adquire ao ter contato sexual
(vaginal, oral ou anal) com alguém que já tenha alguma IST. Entre as
consequências estão: dor na relação sexual ou ao urinar, mal cheiro,
corrimento, infertilidade, infecções no bebê, malformações congênitas (ao
nascer), aborto (no caso de gestantes), câncer e até mesmo morte. Também
não podemos nos esquecer dos efeitos psicológicos causados pelas ISTs, as
quais geram vergonha, estigma, diminuição da autoestima, receios de novos
relacionamentos e dificuldade de estabelecer intimidade por receios de
adquirir novas ISTs.
Sífilis
É causada pela bactéria treponema pallidum. O primeiro sintoma é o
aparecimento de uma lesão em forma de úlcera (7 a 15 dias). Desaparece
naturalmente, esse é o chamado de cancro duro. Se não tratado pode evoluir
para a sífilis secundária e até sífilis terciaria, que afeta o sistema nervoso
central. O risco de transmissão no intercurso sexual das lesões de cancro duro
e condiloma plano são de 60% (Gonçalves et al, 2013).
Quadro clínico:
Sífilis recente – menos de um ano de evolução, sendo dividida em: primária,
secundária e latente recente;
Sífilis tardia – com mais de um ano de evolução, sendo dividida em: latente tardia
e terciária;
Sífilis congênita – recente (casos diagnosticados até o segundo ano de vida) e
tardia (casos diagnosticados após o segundo ano de vida).
Gonorreia
É uma das mais comum das ISTs. É causada pela bateria gonococo. O
período de incubação geralmente é entre 2 a 5 dias e o período de
transmissibilidade pode durar de meses a anos, se o paciente não for tratado.
Clinicamente, a gonorreia apresenta-se de forma completamente diferente no
homem e na mulher. Há uma proporção maior de casos em homens, sendo
que em 70% dos casos femininos a gonorreia é assintomática (Gonçalves et al.,
2013).
Gonorreia no homem – ocorre mediante um processo inflamatório da uretra
anterior, que causa prurido discreto junto ao meato urinário e fossa navicular;
eritema localizado; corrimento inicialmente claro que, gradativamente, torna-se
purulento; ardor e urgência miccional.
Gonorreia na mulher – o quadro é oligossintomático (ou seja, com poucos
sintomas), podendo causar: corrimento escasso, leitoso, muitas vezes não
percebido pela paciente; aumento da frequência urinária; disúria; secreção
vaginal mucoide ou francamente purulenta; colo uterino edemaciado, com
ectopia acentuada; edema de grandes e pequenos lábios e, consequentemente,
dispareunia. Os recém-nascidos de mães doentes ou portadoras podem
apresentar conjuntivite gonocócica por contaminação no canal de parto
(Gonçalves et al., 2013).
Sintomas: de 2 a 8 dias.
Tratamento: ATB (penicilina e penicilina).
Recomendação: convocar a parceria sexual para exame. Suspender a
atividade sexual durante o tratamento.
Chlamydia trachomatis
É causada pela bactéria gram-negativa anaeróbia chamada Chlamydia
trachomatis. O período de incubação, no homem, varia de 14 a 21 dias, sendo
que dois terços das parceiras de homens com uretrite não gonocócica
hospedam a C. trachomatis na endocérvix. O quadro clínico é pouco
expressivo, podendo variar de leucorreia, disúria ou prurido genital, a
pacientes assintomáticas em 70 a 80% dos casos (Gonçalves et al., 2013).
Uretrite não gonocócica:
Sintomas: corrimento uretral importante de 8 a 10 dias após o contágio
Bactérias: clamídia trachomatis, ureaplasma, mycoplasma homini
Sintomas: corrimento uretral, necessidade frequente de urinar, dor e ardência ao
urinar
Tratamento: ATB (ampicilina, penicilina)
Recomendação: convocar a parceria sexual para exame. Suspender a atividade
sexual durante o tratamento. Orientar uso de preservativo.
Vulvovaginites
Sintomas: corrimento vaginais malcheiroso, com desconforto e prurido
interno e na vulva. Causada por fungos, principalmente o Trichomonas
vaginalis ou cândida ambicans.
Papilomavírus Humano (HPV) – Condiloma Acumulado
O Papilomavírus Humano (HPV) é um DNA-vírus pertencente à família
Papilomaviridae, que possui mais de 200 subtipos. Destes cerca de 45 infectam
a área anogenital, sendo divididos em dois grandes grupos, os de baixo e os de
alto risco oncogênico. Os HPV de baixo risco mais frequentes são 6, 11, 40, 42,
43, 44, 54, 61, 70,72 e 81, e os de alto risco, 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52,
56,58, 66, 73 e 82. Os HPV 6, 11, 16 e 18 são os responsáveis pela maioria das
lesões HPV induzidas. O período de incubação varia de 1 a 20 meses, em
média 3 meses. As lesões podem ser múltiplas ou únicas, localizadas ou difusas
e de tamanho variável. Podem estar localizadas no pênis, sulco bálano-
prepucial, região perianal, na vulva, períneo, vagina e colo do útero
(Gonçalves et al., 2013).
Causado pelo vírus HPV.
Período de incubação: do contagio ao sintoma pode variar de 3 semanas a
6 meses.
Tratamento: com cauterização com ácido.
Prevenção: usar preservativo (camisinha) e fazer Papanicolau.
O tratamento visa à remoção das lesões. As recidivas (retorno da doença)
podem ocorrer e são frequentes, mesmo com o tratamento

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