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Desigualdades sócio-raciais e políticas públicas APRESENTAÇÃO Para obter entendimento do processo de construção das desigualdades históricas no Brasil, é importante resgatar as práticas sociais que estabeleceram um paralelo com as condições de diferenças reproduzidas na sociedade contemporânea. Minorias sociais com negros, índios, pessoas com deficiência, mulheres e outros segmentos sofrem até hoje consequências dessa cultura patriarcal, escravocrata e exploradora. Esta somente poderá ser superada por meio do reconhecimento dessas problemáticas e da implantação de políticas públicas substanciais e inclusivas que busquem o rompimento desses paradigmas e primem pelo respeito em vista da emancipação e autonomia desses sujeitos. Nesta Unidade de Aprendizagem, você verá etapas do processo histórico de construção das desigualdades, bem como exemplos de políticas públicas e práticas que possam promover o rompimento com essas problemáticas. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as desigualdades sociorraciais presentes na história do Brasil.• Apontar políticas públicas brasileiras para afrodescendentes, indígenas, mulheres e minorias diversas. • Discutir acerca do alcance das políticas públicas de enfrentamento às desigualdades no Brasil. • DESAFIO Em 24 de julho de 1991 foi sancionada a Lei n.º 8.213 que, dentre outras providências, trata no artigo 93 da reserva de vagas a serem destinadas para a inclusão de pessoas com deficiências no mercado de trabalho. Suponha que você seja contratado para atuar como assistente social em uma determinada empresa e tem por missão adequar a instituição à legislação vigente no que tange a inclusão de pessoas com deficiência no seu quadro funcional. Cite quais estratégias você poderá utilizar para trabalhar essa questão, promovendo a mobilização, a capacitação e a inclusão desses indivíduos, cumprindo com o que determina a lei. INFOGRÁFICO É possível perceber ao longo da história do Brasil que a formação da nação se deu com base nos preceitos de uma sociedade firmada sobre os princípios patriarcais, escravagista, que acabaram por impulsionar um processo de reprodução das desigualdades sociais que podem ser sentidas ainda nos dias de hoje. A pesquisa Retrato das desigualdades de gênero e raça, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que a mulher e o negro são dois dos segmentos que mais foram estigmatizados em nossa sociedade e isto acaba por refletir de diversas formas, dentre as quais no processo de distribuição de renda no país. Neste Infográfico, veja como ocorre a distribuição da renda média da população segundo sexo e cor/raça no Brasil. CONTEÚDO DO LIVRO Neste capítulo há um resgate histórico acerca do surgimento dos processos que culminaram nas expressões das desigualdades sociorraciais e das demais formas de violência e exploração exercidas sobre as mais diversas minorias sociais que se apresentam em nosso país. Também são colocadas algumas das consequências trazidas pela cultura patriarcal que determina o homem como detentor do poder político, moral e de privilégios sociais sobre outros segmentos, em especial, as mulheres. Leia o capítulo Desigualdades sociorraciais e políticas públicas, da obra Questão Social, Direitos Humanos e Diversidade (Projeto Integrador), que traz apontamentos sobre os processos de identificação das desigualdades sociorraciais presentes na história do país desde os primórdios da colonização. Nele, você compreenderá como ocorrem as ações que culminam na reprodução dos preconceitos sociais e verá alguns apontamentos sobre os desafios para o enfrentamento dessas situações na contemporaneidade. Boa leitura. QUESTÃO SOCIAL, DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE Anderson Barbosa Scheifler Desigualdades sociorraciais e políticas públicas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as desigualdades sociorraciais presentes na história do Brasil. Apontar políticas públicas brasileiras para afrodescendentes, indígenas, mulheres e minorias diversas. Discutir acerca do alcance das políticas públicas de enfrentamento às desigualdades no Brasil. Introdução Neste capítulo, você vai ver como se constituem as desigualdades so- ciorraciais e demais formas de violência e exploração das minorias sociais existentes no Brasil. Para isso, você vai conhecer algumas das consequ- ências da cultura patriarcal. Como você sabe, tal cultura caracteriza o homem como detentor do poder político e moral e de privilégios sociais sobre outros segmentos, em especial as mulheres. A ideia é que você acompanhe alguns exemplos de políticas pú- blicas e reflita sobre a situação das minorias na atualidade. Além disso, você deve atentar aos desafios para o combate a todas as formas de desigualdade em um cenário de violência estrutural e exploração do capital. Desigualdades históricas Para entender as mazelas sociais e as diferentes expressões da desigualdade que afl igem o Brasil hoje, você precisa conhecer um pouco da história desses processos. Tal história é complexa e começa há cerca de 500 anos. Por volta de 1530, o Brasil passava por um processo de organização econômica e civil. Os portugueses, que já tinham experiências consolidadas em colônias tropicais, como a Índia e a África, trataram de estabelecer por aqui um sis- tema de exploração que seria considerado a experiência mais signifi cativa já praticada por eles até então. A agricultura como base fi nanceira, a estrutura patriarcal da família, o trabalho escravo e a miscigenação do português com as nativas (índias) criaram as condições necessárias para o estabelecimento da cultura econômica e social do invasor (FREYRE, 2006). A experiência trazida ao Brasil pelos portugueses que chegavam de outras colônias levou à implantação de conhecimentos e técnicas que permitiram o cultivo de plantas alimentares. Elas foram transplantadas com êxito para o meio agrícola, adaptando-se ao clima tropical e permitindo o trabalho do negro em larga escala. O cristianismo social, com foco na família mais do que na Igreja, entre outros fatores, favoreceu o processo de colonização da América Portuguesa. Tal colonização se estabeleceu sobre os pilares da escravidão, da casa-grande e da família patriarcal. Outra característica desse processo de formação social e cultural da sociedade brasileira eram as famílias constituídas por muito membros, infladas por filhos bastardos e dependentes dos patriarcas, que eram, nas palavras de Gilberto Freyre (2006, p. 85), “[...] mais femeeiros na sua moral sexual [...]”. Assim, a família colonial brasileira instaurou-se sobre as bases da riqueza agrícola e do trabalho escravo. Tais elementos determinariam as funções econômicas e sociais fundantes da cultura política que se formou. Ainda hoje é possível visualizar essas características, moldadas pelos princípios da oligarquia e do nepotismo. Os padres da época, em oposição à sociedade colonial, defendiam a fundação de uma santa república de índios “domes- ticados” para Jesus. Tinham por objetivo apropriar-se dos nativos para que eles trabalhassem em suas propriedades, eliminando todas as formas de autonomia familiar ou individual desses sujeitos. Eles eram trajados de maneira uniforme, tal qual crianças em um orfanato ou internos de algum estabelecimento similar característico do período. É importante destacar aqui que o termo “orfanato” não faz parte da política atual de acolhimento institucional executada no Brasil e regida pelos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desigualdades sociorraciais e políticas públicas2 Os religiosos da época eram conhecidos como jesuítas. Os primeiros que vieram ao Brasil chegaram com o primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Sousa, em 1549. Eles eram liderados por Manuelda Nóbrega e tinham como principal missão cristianizar os nativos e zelar pela Igreja instalada no Brasil colonial. Os jesuítas construíram locais chamados “missões”, onde combinavam a catequese dos nativos com a sua utilização como mão de obra para a produção de tudo o que a missão precisasse. Para que exercessem seu trabalho na colônia, inicialmente, foi necessário criar uma comunicação com os nativos, uma vez que eles falavam tupi e os jesuítas falavam português. Assim, o padre José de Anchieta desenvolveu um manual que auxiliava na comunicação dos jesuítas com os nativos. Nesse período da história brasileira, o idioma mais comum aqui era a língua geral, que mesclava elementos do português com idiomas nativos (SILVA, 2008). Quanto à cultura alimentar da sociedade brasileira desse período, cabe destacar o registro de Gilberto Freyre no clássico Casa-Grande & Senzala: Mais bem alimentados [...] eram na sociedade escravocrata os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Natural que dos escravos descendam elementos dos mais fortes e sadios da população. Os atletas, os ca- poeiras, os cabras, os marujos. E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente é que têm agido, aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal alimentada, a anemia palúdica, o beribéri, as verminoses, a sífilis, a bouba. [...] Do que pouco ou nenhum caso tem feito essa sociologia, mais alarmada com as manchas da mestiçagem do que com as da sífilis, mais preocupada com os efeitos do clima do que com os de causas sociais suscetíveis de controle ou retificação, e da influência que sobre as populações mestiças, principalmente as livres, terão exercido não só a escassez de alimentação, devido à monocultura e ao regime do trabalho escravo, como a pobreza quí- mica dos alimentos tradicionais que elas, ou antes, que todos os brasileiros, com uma ou outra exceção regional, há mais de três séculos consomem, é da irregularidade no suprimento e da má higiene na conservação e na distribuição de grandes partes desses gêneros alimentícios. São populações ainda hoje, ou melhor, hoje mais do que nos tempos coloniais, pessimamente nutridas (FREYRE, 2006, p. 96–97). 3Desigualdades sociorraciais e políticas públicas Os senhores de escravos aprenderam desde cedo que, para melhorar o rendimento e a eficiência do trabalho do negro em suas propriedades, a alimen- tação seria um fator fundamental. Ela era necessária para conservar o negro e manter sua eficiência nas tarefas. O negro, enquanto seu capital e máquina de trabalho, obtinha alimentação farta e reparadora. Embora ainda não fosse nenhum primor da culinária, a alimentação dos escravos era, em grande parte, abundante em milho, toucinho, feijão e outros alimentos necessários para mantê-los produtivos nas tarefas que lhes fossem designadas. Esses gastos com alimentação nada mais eram do que investimentos para obter melhoria na produção. Os negros continuavam sendo tratados de forma desumana e sofriam os mais diversos abusos por parte de seus senhores. A escravidão no Brasil se consolidou como uma experiência de longa duração que marcou diversos aspectos da cultura e da sociedade brasileira. Mais do que uma simples relação de trabalho, a existência da mão de obra escrava africana fixou um conjunto de valores na sociedade brasileira em relação ao trabalho, aos homens e às instituições. Nessa trajetória, é possível identificar a persistência do preconceito racial e social. Durante o governo de Dom Pedro II, várias leis de caráter abolicionista foram aplicadas. A gradação da política abolicionista traduzia o temor que certos setores da elite tinham de um processo de abolição brusco, capaz de promover uma revolta social. A Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, foi a primeira a proibir o tráfico de escravos para o Brasil. Somente quase 40 anos depois, em 1888, a Lei Áurea deu fim ao regime escravista brasileiro (SOUSA, 2008). Nesse processo de gestação de uma nova sociedade, inúmeros fatores seriam determinantes para a formação de um povo e uma nação com características, cultura e mazelas próprias. A sífilis, depois da má nutrição, talvez tenha sido uma das grandes influências sociais do período, trazendo como consequências tanto deformações físicas quanto pauperização econômica do mestiço brasileiro. A doença trazida pelos primeiros europeus espalhou-se rapidamente pelas praias da colônia por meio das relações entre índias e colonizadores. Veja: Costuma-se dizer que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil, entretanto, parece ter se sifilizado antes de se haver civilizado. Os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar Desigualdades sociorraciais e políticas públicas4 sobre ela outro traço europeizante além das manchas de mestiçagem e de sífilis. Não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população aborígine que os absorveu (FREYRE, 2006, p. 110). A miscigenação foi importantíssima para o plano de povoamento da colônia brasileira. Por meio dos primeiros colonizadores é que foi preparado o campo para o único processo de colonização possível no Brasil, o da formação de uma sociedade híbrida por meio da poligamia. Do contato dos primeiros europeus com os nativos, resultaram as primeiras camadas de mestiçagem. Isso facilitou a penetração da segunda leva de povoadores que aqui vieram se instalar. O intercurso sexual entre colonizador e mulher índia se mostraria bem mais perverso do que a perturbação por doenças venéreas, o que se deve também à relação de submissão e sadismo imposta pelos estrangeiros. A dominação do homem sobre a mulher não se fixou apenas no meio sexual, mas também se estendeu para as relações sociais que se davam entre homem europeu e mulheres de raças submetidas ao seu domínio. Toda essa cultura de submissão e sadismo do senhor/colonizador/homem sobre escravo/ colonizado/mulher está intimamente ligada à formação econômica e patriarcal do Brasil. Isso se relaciona com os inúmeros casos de domínio e abuso sexual de mulheres que ocorrem ainda hoje. Nesse contexto, a mulher é reprimida social e sexualmente pelo homem e pela sociedade em geral. Ainda com rela- ção ao período colonial, cabe destaque ao sadismo praticado pelas mulheres, esposas dos senhores, sobre seus escravos, especialmente sobre as mulatas, muitas vezes por simples ciúme ou inveja sexual (FREYRE, 2006). Sobre a miscigenação do povo brasileiro, muito se estudou ao longo dos séculos. Entre esses estudos, se destaca o relato do viajante suíço Louis Agassiz, que esteve no Brasil em 1865 e concluiu seu relato da seguinte forma: [...] que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia e botar abaixo todas as barreiras que a separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental (AGASSIZ, 1896, p. 71). Essa visão eurocêntrica sintetizada por Agassiz (1896) se estendeu por séculos e ainda faz parte do imaginário estrangeiro sobre o Brasil. A imagem de paraíso sexual, de país do futebol, das praias e do carnaval, bem como a crescente desmoralização das instituições políticas, são reflexo em parte das 5Desigualdades sociorraciais e políticas públicas atitudes dos brasileiros, porém demonstram também uma visão preconceituosa e superficial sobre a sociedade e a cultura nacionais. Sobre o preconceito, Crochík (1995) destaca que os fatores que levam um indivíduo a ser ou não preconceituoso perpassam seu processo de socializa- ção e de formação, em consonância com as transformações sociais vividas por ele. Em outras palavras, o ambiente que constituio sujeito é responsável pelo desenvolvimento ou não de determinada atitude preconceituosa. Esta se manifesta de forma individual, mas é resultado do processo de socialização como resposta aos conflitos gerados. Tal socialização é fruto da cultura, relacionada com a história vivenciada pelo sujeito. Assim, esses processos podem variar historicamente e de acordo com as diferentes culturas. Veja: [...] os conteúdos do preconceito em relação aos diversos objetos não são semelhantes entre si. Aquilo que o preconceituoso imaginariamente percebe como sendo o deficiente físico não é o mesmo que imagina ser o deficiente mental; o estereótipo sobre o negro de que se utiliza é distinto do estereótipo sobre o judeu. Ou seja, cada objeto suscita no preconceituoso afetos diversos relacionados a conteúdos psíquicos distintos (CROCHÍK, 1995, p. 12). A sociedade brasileira é fortemente marcada pela exclusão, pelo preconceito e pela discriminação. As questões de gênero, sociais, étnicas e raciais são perpetuadas por meio de processos sutis e complexos. Isso se expressa nas relações sociais historicamente enraizadas. Nesse sentido, os processos de exclusão sempre vitimaram grupos sociais marginalizados por motivos socio- econômicos. Candau (2003) afirma que exclusão social e discriminação racial relacionam-se. Porém, têm diferentes níveis de especificidade e de autonomia. Candau (2003) afirma que os afrodescendentes vivem uma situação de desvantagem com relação a outras formas de discriminação, pois sofrem com disparidades variadas de que são vítimas e também com o encobrimento e a dissimulação. Assim, eles mesmos acabam, por vezes, reproduzindo de forma inconsciente as discriminações sofridas e carecendo de percepção do processo sócio-histórico em que estão inseridos. A apologia à mestiçagem, segundo a autora, é uma das formas de dissimulação usadas para amenizar as situações de desigualdade, utilizando a justificativa de que o cruzamento de diferentes raças possibilitou a ascensão social do negro mestiço, mulato. Dessa percepção, segundo a autora, surge o mito da democracia racial: [...] a democracia racial é uma corrente ideológica que pretende eliminar as distinções e desigualdades entre as três raças formadoras da sociedade brasileira (a negra, a indígena e a branca), afirmando que existe igualdade Desigualdades sociorraciais e políticas públicas6 entre elas. Elimina-se, assim, o conflito, continuando-se a perpetuar estere- ótipos e preconceitos, pois, se seguirmos a lógica de que as diferentes raças, desde o início do processo colonizador, foram se integrando cordialmente, poderemos pensar que as diferentes posições hierárquicas entre elas devem- -se à capacidade e ao empenho dos indivíduos. Esta ideia disseminou-se no imaginário social, contribuindo para que o corpo social não se reconhecesse como uma sociedade hierarquizadora e discriminadora (GOMES, 1994, p. 45 apud CANDAU, 2003, p. 20). Conforme Santos (1997), a questão afrodescendente merece atenção es- pecial. É necessária a união dos movimentos de representação dos negros. Eles devem articular um novo discurso, ampliando o debate sobre as causas dos movimentos e respeitando a pluralidade dos indivíduos. Essa pluralidade, segundo o autor, enriquece e fortalece a atuação desses grupos. A trança ou o cabelo espichado não devem ser fatores de separação. Deve-se, portanto, respeitar as individualidades de cada um, primando pela tolerância para o avanço da causa. Esse processo também necessita ir ao encontro de estratégias elaboradas com bases científicas e de forma organizada. Todos os envolvidos devem ser multiplicadores da luta. Só assim será possível rever injustiças seculares, estruturais e cumulativas, mediante políticas compensatórias, que devem ser urgentemente implantadas neste país, inclusive as medidas de discriminação positiva. Pedir aos negros que aceitem o discurso oficial e esperem tranquilos a evolução normal da so- ciedade é condená-los a esperar outro século. O país necessita, com urgência, de medidas positivamente discriminatórias, que são a única forma de refazer um balanço mais digno, revendo o balanço histórico (SANTOS, 1997, p. 141). Outro segmento que merece especial atenção quando se trata de processos históricos de discriminação racial no Brasil é o indígena. Desde a época do Brasil colônia, com o choque das culturas europeia e ameríndias, ocorre um drástico processo de dissolvição da cultura tradicional indígena. As populações nativas da América sofreram destruição cultural e moral quase completa por meio da ação do colonizador ou do missionário. Isso se deu como um efeito colateral do choque entre civilizações em estados distintos de desenvolvimento, efeito este comum na história da humanidade. Conforme Freyre (2006, p. 177), “[...] sob a pressão moral e técnica da cultura adiantada, esparrama-se a do povo atrasado [...]”. Os nativos são os mais prejudi- cados nesse processo de fricção interétnica. Eles são alienados da possibilidade de desenvolverem-se de forma autônoma, já que foram induzidos a adotar, de forma natural ou pela força, os padrões impostos pelo imperialismo colonizador. 7Desigualdades sociorraciais e políticas públicas Esse processo desenvolveu-se ao longo dos anos. Uma das maneiras de contorná-lo é implantar políticas públicas voltadas à preservação da cultura das comunidades afetadas, bem como à inclusão desses indivíduos em meio urbano e rural. Na próxima seção, você vai ver como as políticas públicas podem alterar o cenário de discriminação e desigualdade. Políticas públicas brasileiras Nos últimos anos, vêm ganhando espaço políticas públicas voltadas à inclusão social de indígenas em cursos de ensino superior do Brasil — em instituições públicas, privadas e comunitárias. Isso se dá por meio de programas de acesso e permanência, como a política de cotas e outros projetos similares. Você pode tomar como parâmetro o caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é uma das instituições pioneiras nesse segmento. Em 2007, instituiu o Programa de Ações Afirmativas, criado por decisão do Conselho Universitário. Esse conselho determinou que, a partir de 2008, 30% de todas as vagas dos cursos de graduação seriam destinadas a estudantes oriundos de escolas públicas, considerando 50% destas reservadas para alunos autodeclarados negros ou pardos. Entre as medidas tomadas por esse programa, também está a criação de 10 vagas anuais para indígenas. Essa conquista foi assegurada em grande parte por mérito da mobilização dos grupos indígenas que tinham por objetivo assegurar, em especial no Rio Grande do Sul, o acesso ao ensino a estudantes originários ou descendentes dos povos Kaingang e Guarani. O processo seletivo desses estudantes ocorreria de forma diferenciada dos demais candidatos, por meio de critérios próprios regulados pela Comissão de Acesso e Permanência do Estudante Indígena. Em 2012, foi instituída a Lei nº. 12.711, chamada Lei das Cotas. Ela pa- dronizou todas essas políticas institucionais que vinham sendo desenvolvidas pelas instituições federais de educação superior no País. A lei garantiu a reserva de 50% das vagas em estabelecimentos de educação federal para estudantes oriundos de escolas públicas, considerando critérios socioeconômicos, étnico- -raciais e pessoas com deficiência. Quanto à divisão das vagas, veja o que afirma o artigo 3º da Lei das Cotas: Art. 3º. Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, par- Desigualdades sociorraciais e políticas públicas8 dos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (BRASIL, 2012, documento on-line). Essa é apenas uma das inúmeras políticas públicasvoltadas para o suporte e a inclusão da população indígena. A política de demarcação de terras in- dígenas, por exemplo, está em constante debate, especialmente em período eleitoral. Porém, esse segmento populacional, como muitos outros no País, ainda carece de programas mais efetivos que sejam desenvolvidos com maior participação dos sujeitos. O ideial é respeitar os diferentes níveis de interação com a sociedade urbana em que as populações indígenas se encontram e, especialmente, atentar àqueles que ainda preservam os costumes e valores tradicionais desses povos. Para obter dados sobre as terras indígenas no Brasil, acesse o link a seguir. https://goo.gl/vJp14Z O alcance das políticas públicas Na discussão acerca dos processos sócio-históricos de reprodução e combate às desigualdades vivenciadas pelas minorias sociais, vale ressaltar o con- ceito de minoria social. Uma minoria social é um grupo de pessoas que, por motivos econômicos, culturais, raciais ou religiosos, são marginalizadas na prática do convívio em sociedade. Minorias sociais não são necessariamente grupos formados por minorias quantitativas, mas se caracterizam por estar em situação de vulnerabilidade, sendo afetados de forma qualitativa na garantia dos seus direitos sociais. No Brasil, negros e mulheres são minorias que possuem um histórico de discriminação e permanecem na luta pelo reconhecimento de seus direitos e pelo exercício de sua cidadania. Candau (2003) aponta que as relações de gênero no Brasil sofrem com um processo histórico de hierarquização pautado na diferença entre os sexos. Nesse sentido, o homem heterossexual encontra respaldo em uma superioridade enraizada na cultura e nas práticas sociais, 9Desigualdades sociorraciais e políticas públicas em detrimento da mulher e dos grupos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros (LGBTs). As práticas de discriminação se legi- timam por intermédio da predominância, ainda hoje, do sistema patriarcal. Tal sistema se instaura nas relações sociais e continua a ser reproduzido nas famílias e instituições, que contribuem para a perpetuação das mais variadas formas de preconceito, discriminação e abuso contra a mulher. Candau (2003) ainda relata que ocorreram alguns avanços sociais e jurídicos relacionados à luta feminista e aos movimentos organizados de mulheres, que tiveram substancial crescimento após a década de 1960. Contudo, essas conquistas têm sofrido constantes ataques por parte de setores conservadores e fascistas, que têm se fortalecido na política brasileira. Estes, utilizando discursos discriminatórios em nome de determinadas organizações religiosas e a serviço da burguesia empresarial, possuem entre seus representantes indivíduos que defendem, entre outras propostas, a remuneração diferenciada para homens e mulheres. Muitos deles consideram que mulheres deveriam obter remuneração menor do que homens em cargos idênticos porque elas possuem o “risco” de engravidar. Esse tipo de percepção contribui muito para o aumento da discriminação da mulher no âmbito do trabalho e da política. Também leva a casos de violência que se multiplicam por todo o País, resultando no crescimento dos casos de feminicídio, entendido como o assassinato de mulheres cometido em razão de gênero. A sociedade machista brasileira, que determina um padrão cultural, social e dominante a ser seguido, é responsável pela criação de estereótipos de gênero que atingem em grande parte as mulheres e acentuam-se no caso das mulheres negras. Assim: O preconceito contra as mulheres é persistente e a luta para sua superação apresenta grandes desafios. Este preconceito não só permitiu justificar a di- ferença sexual como argumento de hierarquia que inferiorizava as mulheres, como também tende a tornar invisível a presença da mulher na sociedade, particularmente na esfera pública (CANDAU, 2003, p. 24). Como você pode notar, a história do Brasil foi construída sobre pilares concretados com sangue e abuso das minorias sociorraciais. Tais minorias ainda carregam o peso das práticas discriminatórias que seguem ocorrendo na contemporaneidade. As instituições e a cultura brasileiras se alimentam desses processos para seguir reproduzindo as práticas de exploração sobre as minorias, com vistas à perpetuação do poder — familiar, político, e outros — e Desigualdades sociorraciais e políticas públicas10 da acumulação do capital, concretizada por meio do parasitismo do sistema sobre determinados grupos sociais. Cabe a você, como profissional de Serviço Social, ficar atento a essas práticas, que por muitas vezes se confundem e se entrelaçam com a ontologia da profissão. O ideal é que você desenvolva um olhar técnico e um pensa- mento crítico sobre essas situações, evitando e combatendo a naturalização da práxis discriminatória. AGASSIZ, L. A journey in Brazil. Boston: S.E, 1896. BRASIL. Lei nº. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universida- des federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 16 out. 2018. CROCHÍK, J. L. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995. CANDAU, V. M. Somos tod@s iguais? Escola, discriminação e educação em direitos humanos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. FREYRE, G. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006. SANTOS, M. As cidadanias mutiladas. In: CARDOSO, R. et al. O preconceito. São Paulo. Imesp, 1997. Leituras recomendadas BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica NOB/SUAS: construindo as bases para a implantação do sistema único de assistência social. 2005. Disponível em: <http:// www.assistenciasocial.al.gov.br/sala-de-imprensa/arquivos/NOB-SUAS.pdf>. Acesso em: 16 out. 2018. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de ética do/a Assistentes Sociais: Lei 8662/93. Brasília: CFESS, 1993. SILVA, D. N. O que eram os Jesuítas? 2008. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com. br/o-que-e/historia/o-que-eram-os-jesuitas.htm>. Acesso em: 29 ago. 2018. SOUSA, R. G. Escravidão no Brasil. 2008. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com. br/historiab/escravidao-no-brasil.htm>. Acesso em: 29 ago. 2018. 11Desigualdades sociorraciais e políticas públicas Conteúdo: DICA DO PROFESSOR A cultura patriarcal existente em nosso país ainda deixa marcas de violência nas mulheres. A cada 7.2 segundos, uma mulher é agredida no Brasil. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. No período de dez anos, observou-se um aumento de 6,4% na taxa de homicídios de mulheres ou feminicídios quando o crime é cometido em razão do critério de gênero. Para combater essa epidemia de violência, instituiu-se, no ano de 2006, a Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, que cria mecanismos de combate à violência contra a mulher e trata da eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação de gênero. Acompanhe nesta Dica do Professor algumas disposições gerais que são tratadas nessa Lei, bem como a caracterização das formas de violência contra a mulher. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Nas primeiras décadas do Brasil colônia, o país estava em processo de organização econômica e civil. Os portugueses, que já tinham experiências consolidadas em colônias tropicais como Índia e África, trataram de estabelecer um sistema de exploração que seria considerado a experiência mais significativa até então já praticada por eles. Segundo o autor, qual era a base financeira desse sistema? A) Nas primeiras décadas do Brasil colônia, devido ao intenso comércio marítimo, os portuguesesadotaram o comércio como base financeira. B) A experiência trazida pelos portugueses permitiu o cultivo de plantas úteis alimentares que foram transplantadas com êxito para o meio agrícola. Assim sendo, os primeiros anos da colônia tiveram a agricultura como base financeira. C) A elevada demanda de mão de obra acabou tornando o comércio de escravos a base financeira da sociedade brasileira da época. D) Devido à riqueza mineral encontrada no Brasil, os primeiros anos tiveram a exportação de minérios como base financeira. E) Pela vivência com a cultura indígena, os colonizadores acabaram adotando o escambo como base financeira. 2) O processo de contato entre nativos e colonizadores desencadeou uma cultura sexual entre homens brancos e mulheres índias. Essa miscigenação mostrou-se importantíssima para o plano de povoamento da colônia brasileira. Esse processo de formação social acabaria resultando naquilo que os historiadores chamam de: A) Sociedade Mestiça. B) Sociedade Híbrida. C) Sociedade Mulata. D) Sociedade Mescla. E) Sociedade Mista. O texto descreve o relato de um viajante europeu após sua estadia no Brasil. O autor desferiu duras críticas aos habitantes que eram fruto da miscigenação das raças que aqui se encontraram. Segundo ele, esse processo de mistura acabara por eliminar as melhores características encontradas no branco, no índio e no negro. Essa visão eurocêntrica tem criado uma imagem do país que, apesar de não representar de forma fidedigna toda a complexidade de uma sociedade multicultural como a nossa, tornou-se parte do imaginário que representa o Brasil. Conforme descrito no texto, 3) qual é a imagem que o Brasil acaba passando no exterior? A) A imagem de paraíso sexual, do futebol, das praias e da justiça. B) A imagem de país do futebol, do carnaval, das praias e do emprego. C) A imagem de paraíso sexual, do futebol, das praias, do carnaval e da desmoralização política. D) A imagem de país do carnaval, do trabalho, das praias, de paraíso sexual e da desmoralização política. E) Nenhuma das alternativas. 4) Candau (2003) afirma que a apologia à mestiçagem é uma das formas de dissimulação usada para amenizar as situações de desigualdades se utilizando da justificativa de que o cruzamento de diferentes raças possibilitou a ascensão social do negro mestiço, mulato. A partir dessa percepção da autora, como ela define esse processo? A) Mito da democracia racial. B) Mito da justiça racial. C) Mito da evolução racial. D) Processo de fusão racial. E) Processo de democratização racial. 5) A sociedade machista brasileira, que determina um padrão cultural, social e dominante a ser seguido, é responsável pela criação desses estereótipos de gênero que afligem em grande parte as mulheres. Essa discriminação se acentua quando é formado o seguinte segmento: A) Mulheres idosas. B) Mulheres trabalhadoras. C) Mulheres negras. D) Mulheres brancas. E) Mulheres índias. NA PRÁTICA Determinado município do Rio Grande do Sul tem por característica receber a passagem transitória de população indígena originária da tribo Kaingang. Esse povo costuma se deslocar para as cidades, geralmente, no período de férias escolares e entressafra. Esse período compreende os meses de novembro a abril, sendo que, nesse período, observa-se um maior número de famílias acampadas junto à estação rodoviária municipal. Os integrantes são originários de reservas Indígenas e se deslocam para a cidade para realizar a venda de artesanato, comércio em geral e compra e venda de produtos. Luiza é a nova assistente social do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) desse município. A ela é dada como meta de trabalho a realização de diagnóstico e estudo de caso dessas famílias, com objetivo de inseri-las em programas sociais e identificar a possibilidade da construção de um espaço apropriado para essas famílias. Conheça Na Prática algumas ações que podem ser desenvolvidas por Luiza para a elaboração desse diagnóstico e a elaboração de um relatório final. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Lei n.º 11.340, Lei Maria da Penha Saiba os detalhes do principal marco na história do Brasil no que tange ao combate à violência contra a mulher que se consolidou em 07 de agosto de 2006, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha. A Lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e tem por finalidade prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência, criando mecanismos de assistência e proteção às mulheres nessa situação. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Retrato das desigualdades de gênero e raça no Brasil Confira os dados completos sobre as desigualdades de gênero e raça, que são estruturantes da desigualdade social brasileira. Os pontos complementam as informações insistentemente evidenciadas pela sociedade civil organizada e, em especial, pelos movimentos negro, feminista e de mulheres ao longo das últimas décadas. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Brasil avança em políticas de inclusão para minorias Confira os números sobre o avanço das políticas públicas no Brasil e sobre a inclusão de minorias. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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