Prévia do material em texto
FICHAMENTO: TÍTULO: Convite à Filosofia CAPÍTULO: A experiência do sagrado e a instituição da religião AUTOR: Marilena Chauí EDITORA: Ática ANO: 2002 EDIÇÃO: 12ª ed. PÁGINAS Totais: 440 PÁGINAS CAPÍTULO: 297-314 CHAUÍ, Marilena. A experiência do sagrado e a instituição da religião. In: Convite à Filosofia. 12ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2002. p. 297-314 A EXPERIENCIA DO SAGRADO E A INSTITUIÇÃO DA RELIGIÃO A Filosofia e as manifestação culturais A Filosofia se interessa por todas as manifestações culturais, pois, como escreveu o filósofo Montaigne, “nada do que é humano me é estranho” (CHAUÍ, 2002: 297). O Sagrado O sagrado é uma experiência da presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser – planta, animal, humano, coisas, ventos, águas, fogo. Essa potência é tanto um poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser, quanto algo que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência simbólica da diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros, do poderio de alguns sobre outros, superioridade e poder sentidos como espantosos, misteriosos, desejados e temidos. Sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados sejam naturais (como água, o fogo, o vulcão): é sobrenatural a força ou potência para realizar aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades humanas (CHAUÍ, 2002: 297). O sagrado opera o encantamento do mundo, habitado por forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente. Criam vínculos de simpatia-atração e de antipatia-repulsão entre todos os seres, agem à distância, enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes (CHAUÍ, 2002: 297). O sagrado pode suscitar devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito de temor. Nasce aqui o sentimento religioso e a experiência da religião (CHAUÍ, 2002: 298). A Religião A palavra religião vem do latim: religio, formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular). A religião é um vínculo. Quais as partes vinculadas? O mundo profano e o mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar, animais, plantas, pedras, metais, terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza (CHAUÍ, 2002: 298). Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento de fundação de uma aldeia, vila ou cidade: o guia religioso traça figuras no chão (círculo, quadrado, triângulo) e repete o mesmo gesto no ar (na direção do céu, ou do mar, ou da floresta, ou do deserto). Esses dois gestos delimitam um espaço novo, sagrado (no ar) e consagrado (no solo). Nesse novo espaço ergue-se o santuário (em latim, templum, templo) e à sua volta os edifícios da nova comunidade (CHAUÍ, 2002: 298). Através da sacralização e consagração, a religião cria a ideia de espaço sagrado. Os céus, o monte Olimpo (na Grécia), as montanhas do deserto (em Israel), templos e igrejas são santuários ou morada dos deuses. O espaço da vida comum separa-se do espaço sagrado: neste, vivem os deuses, são feitas as cerimônias de culto, são trazidas oferendas e feitas preces com pedidos às divindades (colheita, paz, vitória na guerra, bom parto, fim de uma peste); no primeiro transcorre a vida profano dos humanos. A religião organiza o espaço e lhe dá qualidades culturais, diversas das simples qualidades naturais (CHAUÍ, 2002: 298). A religião como narrativa da origem A religião não transmuta apenas o espaço. Também qualifica o tempo, dando lhe marca do sagrado (CHAUÍ, 2002: 298). Porque se dirige às paixões do crente, a religião lhe pede uma só coisa: fé, ou seja, a confiança, adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da divindade. A atitude fundamental da fé é a piedade: respeito pelos deuses e pelos antepassados. A religião é crença, não é saber. A tentativa para transformar a religião em saber racional chama-se teologia (CHAUÍ, 2002: 299). Ritos Porque a religião liga humanos e divindades, porque organiza o espaço e o tempo, os seres humanos precisam garantir que a ligação e a organização se mantenham e sejam sempre propícias. Para isso são criados os ritos (CHAUÍ, 2002: 299). O rito é uma cerimônia em que gestos determinados, palavras determinadas, objetos determinados, pessoas determinadas e emoções determinadas adquirem o poder misterioso de presentificar o laço entre os humanos e a divindade. Para agradecer dons e benefícios, para suplicar novos dons e benefícios, para lembrar a bondade dos deuses ou para exorcizar sua cólera, caso os humanos tenham transgredido as leis sagradas, as cerimônias ritualísticas são de grande variedade (CHAUÍ, 2002: 299). No entanto, uma vez fixada a simbologia de um ritual, sua eficácia dependerá da repetição minuciosa e perfeita do rito, tal como foi praticado na primeira vez, porque nela os próprios deuses orientaram gestos e palavras dos humanos (CHAUÍ, 2002: 299). [...] O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primeira vez e que volta a acontecer, graças ao ritual que abole a distância entre o passado e o presente (CHAUÍ, 2002: 300). Os objetos simbólicos A religião não sacraliza apenas o espaço e o tempo, mas também seres e objetos do mundo, que se tornam símbolos de algum fato religioso. Os seres e objetos simbólicos são retirados de seu lugar costumeiro, assumindo um sentido novo para toda a comunidade – protetor, perseguidor, benfeitor, ameaçador. Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu (palavra polinésia que significa intocável): é um interdito, ou seja, não pode ser tocado nem manipulado por ninguém que não esteja religiosamente autorizado para isso (CHAUÍ, 2002: 300). A religião tende a ampliar o campo simbólico, mesmo que não transforme todos os seres e objetos em tabus ou intocáveis. Ela o faz, vinculando seres e qualidades à personalidade de um deus (CHAUÍ, 2002: 300). A figuração do sagrado se faz por emblemas: assim, por exemplo, o emblema da deusa da Fortuna era uma roda, uma vela enfunada e uma cornucópia; o da deusa Atena, o capacete e a espada; o de Hermes, a serpente e as botas aladas; o de Oxóssis, as sete flechas espalhadas pelo corpo; o de Iemanjá, o vestido branco, as águas do mar e os cabelos ao vento; o de Jesus, a crus, a cora de espinhos, o corpo glorioso em ascensão (CHAUÍ, 2002: 300). Manifestação e revelação Há religiões em que os deuses se manifestam: surgem diante dos humanos em beleza, esplendor, perfeição e poder e os levam a ver uma outra realidade, escondida sob a realidade cotidiana, na qual o espaço, o tempo, as formas dos seres, os sons e as cores, os elementos encontram-se organizados e dispostos de uma outra maneira, secreta e verdadeira. A divindade, levando um humano ao seu mundo, desvenda-lhe a verdade e o ilumina com sua luz (CHAUÍ, 2002: 300). A lei divina Os deuses são poderes misteriosos. São forças personificadas e por isso são vontades. Misteriosos, porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incompreensíveis para os critérios humanos de avaliação. Vontades, porque o que acontece no mundo manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A religião, ao estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores (CHAUÍ, 2002: 301). A vida após a morte Toda religião explica não só a origem da ordem do mundo natural, mas também do mundo humano. No caso dos humanos, a religião precisa explicar por que são mortais. O mistério da morte é sempre explicado como expiação de uma culpa original, cometida contra os deuses. No princípio, os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses; a seguir uma transgressão imperdoável tem lugar e, com ela, a grande punição: a imortalidade (CHAUÍ, 2002: 302). Milenarismo O milenarismo é próprio das religiões da salvação. É a esperança da felicidade perene no mundo, quando, após sofrimentos profundos, os seres forem regenerados, purificados e libertadospela divindade (CHAUÍ, 2002: 303). O bem e o mal As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais: o bem e o mal (ou a luz e a treva, o puro e o impuro). Sob esse aspecto, há três tipos de religiões: as politeístas, em que há inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo cada deus podendo ser ora bom, ora mau; as dualistas, nas quais a dualidade do bem e do mal está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de combater-se; e as monoteístas, em que o mesmo deus é tanto bom quanto mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a divindade é o bem e o mal provém de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em luta contra ela (CHAUÍ, 2002: 303). Transcendência e hierarquia Magos, astrólogos, videntes, profetas, xamãs, sacerdote e pajés possuem saberes e poderes especiais. São capazes de curar, de prever o futuro, de aplacar a cólera dos deuses, de anunciar a vontade divina, de destruir a distância (por meio de palavras e gestos). Inicialmente, sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí conservá-lo. Pouco a pouco, porém, formam um grupo separado, uma classe social, com exigências e poderes próprios, privam a comunidade da presença direta do sagrado e distorcem a função originária que possuíam, transformando-a em domínio e poder sobre a comunidade. Tornam-se os portadores simbólicos do sagrado e mediadores indispensáveis (CHAUÍ, 2002: 306). A religião, como já observamos, realiza o encantamento do mundo, explicando-o pelo maravilhoso e misterioso. O grupo que detém o saber religioso, ao tornar-se detentor do poder, possui o mais alto: o de encantar, desencantar e reencantar o mundo. Por isso, num primeiro momento, o poder religioso concentra-se nas mãos de um só, que possui também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade (CHAUÍ, 2002: 306). As finalidades da religião A invenção cultural do sagrado se realiza como processo de simbolização e encantamento do mundo, seja na forma da imanência do sobrenatural no natural, seja na transcendência do sobrenatural. O sagrado dá significação ao espaço, ao tempo e aos seres que neles nascem, vivem e morrem (CHAUÍ, 2002: 308). Críticas à religião As primeiras críticas à religião feitas no pensamento ocidental vieram dos filósofos pré-socráticos, que criticaram o politeísmo e o antropormofismo. Em outras palavras, afirmaram que, do ponto de vista da razão, a pluralidade dos deuses é absurda, pois a essência da divindade é a plenitude infinita, não podendo haver senão uma potência divina (CHAUÍ, 2002: 308). Declaram também absurdo o antropormofismo, uma vez que este reduz os deuses à condição de seres super-humanos, quando, segundo a razão, devem ser supra-humanos, isto é, as qualidades da essência divina não podem confundir-se com as da natureza humana. Essas críticas foram retomadas e sistematizadas por Platão, Aristóteles e pelos estóicos (CHAUÍ, 2002: 308). Observando, portanto, que as críticas à religião voltam-se contra dois de seus aspectos: o encantamento do mundo, considerado superstição; e o poder teológico-político institucional, considerado tirânico. No século XIX, o filósofo Feurbach criticou a religião como alienação. Os seres humanos vivem, desde sempre, numa relação com a Natureza e, desde muito cedo, sentem necessidade de explicá-la, e o fazem analisando a origem das coisas, a regularidade dos acontecimentos naturais, a origem da vida, a cauda da dor e da morte, a conservação do tempo futuro. Para isso, criam os deuses. Dão-lhes forças e poderes que exprimem desejos humanos. [...]. Nesse movimento, gradualmente, de geração a geração, os seres humanos se esquecem de que foram os criadores da divindade, invertem as posições e julgam-se criaturas dos deuses. Estes, cada vez mais, tornam-se seres onipotentes, oniscientes e distantes dos humanos, exigindo destes culto, rito e obediência. Tornam-se transcendentes e passam a dominar a imaginação da vida dos seres humanos. A alienação religiosa é esse longo processo pelo qual os homens não se reconhecem no produto de sua própria criação, transformando-o num outro (alienus), estranho, distante, poderoso e dominador. O domínio da criatura (deuses) sobre seus criadores (homens) é a alienação. A análise de Feuerbach foi retomada por Marx, de quem conhecemos a célebre expressão: “A religião é o ópio do povo”. Com essa afirmação, Marx pretende mostrar que a religião – referindo-se ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, isto é, às religiões de salvação – amortece a combatividade dos oprimidos e explorados, porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo. Todavia, Marx fez uma outra afirmação que, em geral, não é lembrada. Disse ele que “a religião é lógica e enciclopédia popular, espírito de um mundo sem espírito”. Que significam essas palavras? Com elas, Marx procurou mostrar que a religião é uma forma de conhecimento e de explicação da realidade, usada pelas classes populares – lógica e enciclopédia – para dar sentido às coisas, às relações sociais e políticas, encontrando significações –, que lhes permitem, periodicamente, lutar contra os poderes tirânicos. Marx, tinha na lembrança as revoltas camponesas e populares durante a Reforma Protestante, bem como na Revolução Inglesa de 1644, na Revolução Francesa de 1789, e nos movimentos milenaristas que exprimiam, na Idade Média, e no início dos movimentos socialistas, a luta popular contra a injustiça social e política. Se por um lado na religião há a face opiácia do conformismo, há, por outro lado, a face combativa dos que usam o saber religioso contra as instituições legitimadas pelo poder teológico-político (CHAUÍ, 2002: 309-310).