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O NOVO CONCEITO DE BIOÉTICA Garrafa V. APRESENTAÇÃO – O novo conceito de Bioética. In: Garrafa V; Kottow M; Saada A (orgs.). Bases conceituais da bioética – enfoque latino-americano. São Paulo Editora Gaia / Unesco, 2006, pags. 09-15. O ano 2005 foi especial para a bioética. A aprovação da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, durante a 33 a . Conferencia Geral da UNESCO celebrada em 19/10/2005, em Paris, significou, na prática concreta, seu atestado de reconhecimento e maioridade. A UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – dispensou mais de dois anos de discussões até alcançar um documento final satisfatório. A homologação da Declaração se deu por aclamação, o que significa ter sido referendada unanimemente pelos 191 países integrantes das Nações Unidas. O percurso de sua construção, no entanto, foi longo e penoso, entre avanços e retrocessos, passando por diversas versões preliminares coordenadas pelo International Bioethics Committee (IBC) da Organização. Até outubro de 2004, o encaminhamento dado ao tema reduzia a bioética a questões específicas relacionadas com os campos biomédico e biotecnológico, de acordo com os interesses dos países desenvolvidos que durante os embates trataram de evitar, a todo custo, a ampliação da sua pauta. Desde o início do processo de construção da Declaração, os países da América Latina, especialmente o Brasil, manifestaram seu veemente desacordo com o rumo que o texto estava tomando. No início de novembro de 2004, por convocação do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Argentina, com apoio decisivo da Rede Latino- Americana e do Caribe de Bioética (REDBIOÉTICA), foi realizada uma reunião em Buenos Aires para discutir o assunto, da qual participaram, além da presidente do IBC (dra. Michèle Jean – Canadá) e diversos de seus membros, especialistas e representantes de 11 países latino-americanos. A referida reunião produziu dois documentos, ambos contundentes, advogando profundas alterações no teor da Declaração. A partir daí tudo começou a mudar. A reunião ordinária do IBC realizada em janeiro de 2005, então, preparou um draft bastante diferente dos anteriores, o qual subsidiou as duas reuniões decisivas dos chamados “Experts Governamentais nível II” que representavam oficialmente os diversos países, desenvolvidas em abril e junho, respectivamente, sempre em Paris. O teor final da Declaração e que foi levado à homologação na Conferencia Geral da UNESCO de outubro/2005, incorporou definitivamente à agenda bioética do Século XXI, além dos temas biomédicos e biotecnológicos, já contemplados inicialmente, questões sanitárias, sociais e ambientais, de grande interesse para as nações pobres e/ou em desenvolvimento. Ou seja: a luta dos países latino-americanos, secundada pela quase totalidade das nações africanas e pela Índia, além de alguns países árabes, politizou definitivamente a agenda bioética internacional. E é exatamente dentro deste contexto que nasce a construção do livro que a Editora Gaia apresenta aos leitores, originalmente denominado Estatuto epistemológico de la bioética em sua versão espanhola publicada no México pela UNAM, e agora traduzida para o português com o título Bases conceituais da bioética. O conteúdo da obra é produto do primeiro seminário temático promovido pela REDBIOÉTICA, com o apoio decisivo da UNESCO, em Montevidéu, Uruguai, dois dias após a divulgação da “Carta de Buenos Aires”, acima mencionada, e que foi importantíssima para o conteúdo final da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. Para que os leitores fiquem mais informados sobre o cenário exato da produção de Bases conceituais da bioética, é interessante relatar um pouco da história da REDBIOÉTICA/UNESCO. A Rede foi gestada durante a realização do Sexto Congresso Mundial de Bioética promovido pela International Association of Bioethics (IBC) e integralmente organizado pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) em Brasília, em fins de 2002. Sua fundação oficial aconteceu em Cancun, México, em maio/2003. Entre os objetivos básicos da Rede, desde sua criação, sempre esteve presente a necessidade de adequação do estatuto epistemológico da bioética - ou seja, das bases teóricas de sustentação da disciplina - à realidade social, política e cultural dos países da região latino-americana. Neste sentido, dois instrumentos foram definidos como elementos condutores da concreção necessária aos objetivos inicialmente estabelecidos: a criação de um Dicionário Latinoamericano de Bioética (já em fase adiantada de organização, sob a coordenação do prof. Juan Carlos Tealdi, da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires) e a (re)construção teórica dos fundamentos conceituais da bioética contextualizados à realidade da região. As pessoas menos familiarizadas com a bioética poderão se perguntar sobre as razões da construção de novos referenciais de sustentação conceitual para a disciplina, se, ao que parece, pelo menos aos olhos desavisados, ela já estaria definida desde a criação do neologismo “bioética”, em 1970, por Van Rensselaer Potter e da adequação dos chamados “quatro princípios de Georgetown” como sua ferramenta metodológica hegemônica. Imediatamente após a apresentação do livro que deu origem à bioética – Bioethics,bridge to the future 1 - Potter teve sua idéia original utilizada e modificada por outros pesquisadores, com um escopo essencialmente biomédico aplicado principalmente às situações conflitivas da relação dos profissionais de saúde com seus pacientes e dos investigadores e empresas com os sujeitos das pesquisas. Diversamente, Potter imaginava a bioética com uma visão de “ponte”, de uma ética que se relacionava com os fenômenos da vida humana no seu mais amplo sentido, incorporando não somente as questões biomédicas e também sociais, mas, especialmente os temas ambientais ligados à sustentabilidade do planeta; um pouco mais adiante, em 1988, para renovar e reforçar suas idéias, ele passou a denominá-la de “Bioética Global” 2 . Já o Instituto Kennedy – organismo de grande valor na gênese e desenvolvimento da Bioética, é indispensável que se diga – por meio da Encyclopedia of Bioethics 3 , editada por Warren Reich, em 1978, reduziu a bioética potteriana original aos temas essencialmente biomédicos, como já foi dito, os quais Potter praticamente ignorava. E foi com este novo enfoque, ortodoxo e profundamente vinculado às raízes culturais anglo-saxônicas, que a bioética tornou-se, a partir dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), conhecida internacionalmente nos anos 1980, se consolidando, definitivamente, nos anos 90. A epistemologia dessa bioética, de base médica e clínica, tomou como referência os princípios da “autonomia” das pessoas, da “beneficência” (fazer 1 Potter, VR. Bioethics, bridge to the future. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1971. 2 Potter, VR. Global Bioethics: building on the Leopold Legacy. East Lansing, Michigan: Michigan State University Press; 1988. 3 Reich, WT (org.). Encyclopedia of Bioethics. New York: Macmillan Free Press, 1978. o bem) e da “justiça”, emanados do conhecido Relatório Belmont 4 , documento solicitado pelo governo dos EUA a um comitê de especialistas, para conter os abusos que começavam a se verificar naquele país com relação às pesquisas com seres humanos. Logo após, em 1979, Tom Beauchamp e James Childress publicaram a primeira edição da obra tida como referência da chamada bioética principialista anglo-saxônica de origem estadunidense – Principles of biomedical ethics 5 – incorporando aos três princípios acima mencionados um quarto, a “não maleficência” (do juramento hipocrático primum non nocere - antes de tudo, não causar danos). Estes quatroprincípios, pretensamente universais, ganharam o mundo e acabaram confundindo muitas pessoas desavisadas com a própria bioética. No início dos anos 1990, no entanto, começaram a surgir críticas ao principialismo e à universalidade de seus princípios a partir, principalmente, da necessidade que fossem respeitados os diferentes contextos sociais e culturais existentes mesmo em um mundo globalizado e, por extensão, as próprias interpretações morais autóctones dadas aos diferentes conflitos ou problemas neles verificados. Vozes discordantes passaram, a se manifestar no próprio EUA 6 7 , Europa 8 e América Latina 9 10 . A partir do Quarto Congresso Mundial realizado em Tóquio, Japão, em 1998, a bioética (re)começa a percorrer outros caminhos, a partir do tema 4 National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. The Belmont Report: ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research. Washington, DC: HEW, 1978. 5 Beauchamp, TL; Childress, JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford University Press, 1979. 6 Clouser, D; Gert, B. A critique of principlism. J. Med.Phil.; 1990, 15:219-236. 7 Gert, B; Culver, C; Clouser, D. Principlism. In: Bioethics: a return to fundamentals. New York/Oxford, Oxford Press, 1997:71-92. 8 Holm, S. Not just autonomy – the principles of American biomedical ethics. J.Med.Ethics; 1995, 21:332- 338. 9 Lepargneur, H. Força e fraqueza dos princípios da bioética. Bioética (CFM); 1996; 4(2):131-143. 10 Garrafa, V. et al. Bioethical language and its dialects and idiolects. Cadernos Saúde Pública; 1999, 15 (suppl. 01):35-42. oficial do evento que foi “Bioética Global”. Com forte influência de Alastair Campbell, então presidente da IAB, parte dos seguidores da bioética retornou aos trilhos originais delineados por Potter que, já bastante idoso e enfermo, enviou uma vídeo-conferência apresentada na abertura do Congresso, onde reafirmou suas convicções originais. No final do século XX, portanto, a disciplina passou a expandir seu campo de estudo e ação, incluindo no contexto das questões relacionadas à qualidade da vida humana assuntos que até então apenas tangenciavam sua pauta, como o tema dos direitos humanos e da cidadania, a questão da priorização na alocação de recursos sanitários escassos, a preservação da biodiversidade, a finitude dos recursos naturais planetários, o equilíbrio do ecossistema, os alimentos transgênicos, o racismo e outras formas de discriminação etc. Até 1998, a epistemologia da bioética se restringia a caminhos que apontavam para temas e problemas/conflitos preferencialmente individuais com relação aos coletivos. A maximização e super-dimensionamento do princípio da autonomia tornou o princípio da justiça um mero coadjuvante da teoria principialista, uma espécie de apêndice, embora indispensável, de menor importância; o individual sufocou o coletivo, o “eu” deixou o “nós” em posição secundária 11 . A teoria principialista se mostrava incapaz ou impotente para desvendar, entender, propor soluções e intervir nas gritantes questões sócio-econômicas e sanitárias coletivas persistentes da maioria dos países periféricos da parte sul do mundo 12 . O princípio da justiça significava para o principialismo, proporcionalmente, o que a promoção da saúde representava nos anos 1960 e 70 para a então chamada “medicina social”: algo até certo 11 Selleti, JC; Garrafa, V. As raízes cristãs da autonomia. Petrópolis: Vozes; 2005, pp. 11-14, 105-08. 12 Garrafa, V; Porto, D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics; 2003, 17(5-6):399-416. ponto abstrato, secundário, coadjuvante, onde cabiam todos os demais problemas não contidos nas categorias teóricas consideradas principais. Com o Sexto Congresso Mundial de Bioética, realizado em Brasília, em 2002, a voz daqueles que não concordavam com o desequilíbrio verificado na balança tornou-se mais forte, a partir da definição da temática do evento, que foi “Bioética, Poder e Injustiça” 13 . Os fortes embates verificados no evento trouxeram à tona a necessidade da especialidade incorporar ao seu campo de reflexão e ação aplicada, temas sócio-políticos da atualidade, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas existentes entre ricos e pobres, entre as nações dos Hemisférios Norte e Sul do planeta, principalmente. Segundo Daniel Wickler, um estadunidense, ex-presidente da IAB e ex- consultor de bioética da Organização Mundial da Saúde (OMS), “a combinação entre bioética e política é nova e saudável para a área... Foi um feito histórico que deu grande impulso à bioética na América latina e no mundo” 14 . Com as transformações e o novo ritmo que começou a ser experimentado no contexto internacional da bioética, o escopo da ética aplicada deixou de ser considerado como de índole supra-estrutural, meramente individual ou específica para, ao contrário, passar a exigir participação direta da sociedade civil nas discussões com vistas ao bem-estar futuro das pessoas e comunidades. A questão ética, pois, adquiriu identidade pública; deixou de ser considerada apenas uma questão de consciência a ser resolvida na esfera privada ou particular, de foro individual ou exclusivamente íntimo. Hoje, ela cresce de importância no que diz respeito à análise das responsabilidades sanitárias e à interpretação histórico-social mais precisa dos 13 Garrafa,V; Pessini, L (orgs.). Bioética, poder e injustiça. São Paulo: Loyola/Sociedade Brasileira de Bioética, 2003, 522 p. 14 Wickler, D. Ecos do Sexto Congresso Mundial de Bioética – cartas. Boletim SBB; 2003 (7-9):02. quadros epidemiológicos, como também é essencial na determinação das formas de intervenção a serem programadas, nas questões ambientais, na formação de pessoal sanitário e outros, na responsabilidade dos Estados frente aos cidadãos, principalmente aqueles mais frágeis e necessitados. E é nesse contexto – e, certamente como conseqüência dele – que surge a REDBIOÉTICA, estimulada a produzir conhecimentos teóricos relacionados com a bioética e que estejam mais comprometidos com as questões concretas que assolam as maiorias populacionais dos países pobres e em desenvolvimento do mundo. Até hoje, com honrosas exceções, as nações do chamado Terceiro Mundo estão habituadas, nos mais diferentes campos, a importar (a)criticamente ciência e tecnologia das nações industrializadas, muitas vezes com conseqüências desastrosas para os povos receptores. Recentemente, passou-se a importar, também (a)criticamente, “pacotes éticos”, como no caso do principialismo. É contra a massificação desenfreada e descontextualizada da informação científica que acultura povos periféricos do mundo, que a Rede se interpõe com seu trabalho crítico. Antes de encerrar essa breve “Apresentação”, seria injusto deixar de mencionar os esforços recentemente empreendidos por uma nova entidade existente no campo da bioética e que tem procurado proporcionar espaço, especialmente para as idéias latino-americanas, no contexto internacional: a Sociedade Internacional de Bioética (SIBI). A SIBI, que tem como presidente o médico espanhol e ex-deputado socialista europeu Marcelo Palácios, por meio de diferentes atividades e eventos, vem privilegiando o pensamento bioético regional, de modo orgânico e comprometido, com a saudável abertura de diálogos acadêmicos genuinamente bilaterais. Em resumo, com a recente Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos homologada pela UNESCO e incluída na íntegra nos anexos deste livro, muda profundamente a agenda da disciplina para oséculo XXI, com a incorporação significativa de temas de interesse para as nações periféricas, principalmente aquelas do Hemisfério Sul do mundo. Neste sentido, a Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO, coerente com seu compromisso de trabalhar – pela via acadêmica – pela diminuição das diferenças entre pobres e ricos em um mundo assimetricamente globalizado, tratou de iniciar a construção de novos referenciais teóricos para a bioética, mais próximos da realidade onde ela mesma atua. Esta obra que ora a Editora Gaia oferece aos especialistas, estudantes e à opinião pública, representa um esforço libertário gigantesco de intelectuais da América Latina que trabalham com a bioética, e que, definitivamente, começam a pensar as questões que lhes dizem respeito com seus próprios cérebros. Volnei Garrafa Professor titular e coordenador da Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília; presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO; vice- presidente da Sociedad Internacional de Bioética (SIBI) – capítulo da América Latina; editor chefe da Revista Brasileira de Bioética.
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