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Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS INTOXICAÇÕES EXÓGENAS: As intoxicações exógenas são definidas como as consequências clínicas e/ou bioquímicas da exposição a agentes químicos dispersos no ambiente (ar, água e alimentos) ou isolados (pesticidas, medicamentos). As principais vias de intoxicação são a oral, cutânea, inalatória, endovenosa e a exposição de mucosas. Todo paciente com suspeita ou confirmação de intoxicação deve ser considerado como potencialmente grave e conduzido à sala de emergência, mesmo na ausência de sintomas. Durante a abordagem inicial, que também respeita o mnemônico ABCDE, devem ser realizados: Avaliação da perviedade e proteção das vias aéreas; Análise do padrão ventilatório: útil para identificar precocemente a necessidade de via aérea definitiva ou de outras formas de oxigenação suplementar; Verificação do estado hemodinâmico: devem ser obtidos acessos venosos, inicialmente usados para a infusão de 10 a 20 ml/kg de cristaloides. Além disso, contempla a monitorização da pressão arterial; Avaliação do nível de consciência: a o ATENÇAÕ: em pacientes com rebaixamento do nível de consciência, a dosagem de glicemia capilar deve ser realizada imediatamente. Sempre que possível, a história clínica deve ser colhida de forma objetiva, com o intuito de obter informações que direcionem hipóteses diagnósticas. Nesse momento, pode ser empregada a estratégia dos “5Ws”, a saber: Who (Quem): obter informações sobre o paciente, como medicações em uso, tentativas de suicídio, acesso a substâncias químicas e uso de drogas; What (O que): definir o agente tóxico utilizado, assim como a dose/quantidade a qual o indivíduo foi exposto; Where (Onde): identificar o local de ocorrência da exposição, assim como as condições nas quais o paciente foi encontrado (presença de frascos, seringas, cartas de despedida); Why (Por quê): estabelecer as circunstâncias e motivos da exposição. Durante o exame físico, realizado durante ou após as medidas de estabilização inicial, todos os sistemas devem ser investigados em busca de alterações, a saber: Odores característicos: hálito etílico ou odor de alho (contato com pesticidas organofosforados); Inspeção da pele: mucosas secas, palidez, desidratação, cianose, sudorese ou edema; Hipo ou hipertermia; Disfunções pupilares: midríase, miose, anisocoria ou alterações do reflexo pupilar; Quanto o paciente não colabora (recusa ou está impossibilitado de interagir), recomenda-se a coleta de informações de forma colateral, indagando o serviço de atendimento pré-hospitalar ou os familiares Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS Alterações pupilares nas intoxicações Nível de consciência e orientação: agitação psicomotora, confusão mental, sedação, desorientação, delírios e alucinações; Classificações dos níveis de excitação e depressão do SNC Estado neurológico: convulsões, síncope, alteração do tônus e de reflexos, movimentos anormais; Disfunções cardiovasculares: bradicardia, taquicardia, arritmias, hipo ou hipertensão; Alterações do sistema respiratório: bradi/taquipneia, identificação de ruídos adventícios à ausculta; Modificações gastrointestinais: sialorreia, hematêmese, vômitos, diarreia, rigidez abdominal e alterações à ausculta. Principais alterações clínicas por sistema em pacientes intoxicados De acordo com os achados do exame físico, é possível estratificar os pacientes conforme as síndromes tóxicas por eles apresentadas, a saber: Síndrome simpaticomimética: é definida pelo excesso de atividade simpaticomimética. Os indivíduos se mostram agitados, delirantes (principalmente na intoxicação por MDMA), hipertensos, taquicárdicos e taquipneicos. Eventualmente também é possível observar hipertermia, diaforese (sudorese intensa) e midríase; Síndrome anticolinérgica: promove a ativação do sistema simpático, levando ao aparecimento de rubor cutâneo, hipertermia, midríase, alterações visuais e ressecamento de mucosas (glândulas secretoras têm inervação Em quadros graves, podem ocorrer diminuição do débito cardíaco induzida pela taquicardia (menor tempo de enchimento diastólico) e arritmias Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS colinérgica), porém NÃO HÁ DIAFORESE; Síndrome colinérgica: “antagônica” à síndrome anterior, caracteriza-se pela ativação do sistema nervoso parassimpático. O quadro típico pode contar com sintomas muscarínicos (diaforese, ↑ débito urinário, miose, vômitos, diarreia, lacrimejamento, salivação e letargia) ou nicotínicos (taquicardia, tremores, fraqueza, convulsões e sonolência). Os principais agentes causais são os pesticidas anticolinesterásicos, como organofosforados e carbamatos. Síndrome sedativo-hipinótica: observada na intoxicação por benzodiazepínicos, barbitúricos e etanol, tem como principal achado clínico a sedação, que pode evoluir para a perda do tônus muscular e, consequentemente, instabilidade de vias aéreas; Síndrome opioide: de modo similar à síndrome sedativo-hipinótica, também cursa com sedação e queda da frequência pupilar, porém os pacientes costumam apresentar miose pupilar. O quadro é confirmado pela presença de resposta à naloxona (antagonista direto de receptores opioides), porém a ausência de reação não descarta o diagnóstico; Síndrome setotoninérgica: caracterizada pela presença de atividade serotoninérgica exacerbada, frequentemente decorrente do uso de ISRS e IMAO, mas também associada a antipsicóticos atípicos. Os sintomas surgem em horas ou dias após a introdução medicamentosa, sendo marcados por hipertermia, alterações do estado mental, agitação, hiperreflexia, clônus e diaforese. Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS Parâmetros clínicos característicos das síndromes tóxicas Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS A realização de testes toxicológicos apresenta grande valor diagnóstico, permitindo identificar em diversos tipos de amostras (sangue, urina, fluido gástrico), a presença do agente tóxico. Os resultados desses exames devem ser disponibilizados em até 2 horas da chegada do paciente ao serviço de saúde, priorizando casos que possam sofrer mudanças na conduta terapêutica. Substâncias detectáveis na triagem toxicológica Como principais exames complementares solicitados no contexto de intoxicações, destacam-se: Hemograma completo; Bioquímica sérica e dosagem de eletrólitos; Provas de função hepática; Sumário de urina; Teste de gravidez (para mulheres em idade fértil); Gasometria arterial (na suspeita de acidose): salienta-se a importância do cálculo do ânion-gap ( (2 ∗ 𝑁𝑎+) + 𝑔𝑙𝑖𝑐𝑜𝑠𝑒 18 + 𝑢𝑟𝑒𝑖𝑎 6 ), pois algumas formas de intoxicação podem levar ao aumento desse parâmetro, como o metanol; Agentes tóxicos indutores de acidose com ânion-gap aumentado Concentração sérica de álcool (se houver suspeita de embriaguez); Lactato sérico; Glicemia capilar; Eletrocardiograma (na presença de bradi ou taquicardia, ou se houver ingestão de um agente cardiotóxico conhecido). Alterações eletrocardiográficas na intoxicação exógena aguda TRATAMENTO: O manejo das intoxicações exógenas será dependente do agente tóxico envolvido, de sua toxicidade e do tempo entre a exposição e a busca por atendimento. Assim, além de medidas gerais de suporte (oxigênio suplementar, monitorização), também é necessário promover a descontaminação, utilizar antídotos Caso a substância tóxica apresente meia- vida curta, os testes toxicológicos podem revelar resultados falso-negativos Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS (quando disponíveis) e abrir mão de técnicas de eliminação. Fluxogramade atendimento ao paciente com suspeita de intoxicação exógena Cabe ressaltar que os indivíduos com sintomas “pouco graves” devem ser mantidos em observação por ao menos 6 horas, devido à possibilidade de intoxicações por agentes de liberação prolongada. Antes da alta hospitalar, pacientes com ingesta proposital de substâncias nocivas devem ser avaliados por um psiquiatra para investigar a presença de ideação e planejamento suicida. MEDIDAS DE DESCONTAMINAÇÃO: A descontaminação visa impedir a absorção sistêmica do tóxico, devendo ser realizada precocemente durante o atendimento, ainda durante as etapas de avaliação inicial e estabilização. Toda a equipe profissional deve usar EPIs adequados de forma a reduzir o risco de exposição às substâncias nocivas. Diversas abordagens podem ser empregadas de acordo com a via de intoxicação, a saber: Descontaminação cutânea: consiste em despir e lavar abundantemente o corpo do paciente, preferencialmente em uma área específica para esse fim, evitando a contaminação de outros pacientes. As roupas devem ser armazenadas em sacolas e encaminhadas para descarte apropriado; Descontaminação ocular: os olhos devem ser abundantemente lavados com soro fisiológico (após anestesia tópica local), sempre da região medial para as laterais. A avaliação oftalmológica é imprescindível após esse procedimento; Descontaminação gástrica: é a forma mais comum de descontaminação, porém pode causar complicações, como a broncoaspiração. Há maior benefício para os pacientes que chegam ao serviço de saúde em até 1-2 horas, e que estejam alertas e colaborativos. Essa estratégia também é bastante favorável na presença de intoxicações por compostos sem antídotos disponíveis após a absorção intestinal. A lavagem gástrica, atual método de escolha, só deve ser realizada em pacientes capazes de proteger as vias aéreas. As contraindicações são direcionadas à presença de instabilidade hemodinâmica e ao consumo de substâncias cáusticas. Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS Principais contraindicações para a realização de lavagem gástrica O procedimento se dá por meio da passagem de uma sonda naso/orogástrica (18 a 22 Fr em adultos) e da subsequente infusão de 250 ml/vez (no máximo 6 litros) solução fisiológica até obter retorno límpido durante a aspiração. O carvão ativado, substância de alta capacidade de absorção, pode ser utilizado de forma isolada (cápsulas) ou associado à lavagem gástrica para a descontaminação. A administração desse composto tem as mesmas indicações descritas para a sondagem gástrica, porém dentre as contraindicações destaca-se a impossibilidade de aplicação em gestantes, neonatos, pacientes agitados ou com rebaixamento do nível de consciência. Fluxograma para determinar a administração de carvão ativado nas intoxicações Como complicações, além da já mencionada broncoaspiração, também é possível haver constipação intestinal. Quando empregado em múltiplas doses, o carvão ativado deve ser ofertado em intervalos de 4 horas, adicionando catártico (ex.: sulfato de magnésio) após a 3ª dose. Estratégia para descontaminação com múltiplas doses de carvão ativado A lavagem intestinal, por fim, é realizada por meio do uso de polietilenoglicol, um medicamento que promove o aumento do peristaltismo intestinal, visando a diminuição do tempo de exposição do agente à mucosa do TGI. A administração pode ser por via oral ou sonda, num volume máximo de 2 L/h. Essa estratégia é recomendada em caso de intoxicação por compostos não absorvíveis pelo carvão, como chumbo, lítio e ferro, porém não deve ser realizada na presença de vômitos não controlados. ELIMINAÇÃO DA TOXINA: Caso o paciente não esteja na janela de realização da descontaminação (> 2h desde a exposição ou com contraindicações às formas de lavagem do TGI), é necessário identificar o agente tóxico, tanto para buscar possíveis antídotos, como para determinar suas formas de excreção. O uso de xarope de ipeca para indução do vômito NÃO é mais recomendado, pois pode provocar ruptura esofágica e aspiração de conteúdo gástrico Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS O estímulo à eliminação da toxina é uma “estratégia extrema” que busca prejuízos decorrentes de sua metabolização. Assim, podem ser propostos: Alcalinização urinária: algumas substâncias hidrossolúveis, como salicilatos, metotrexato e fenobarbital, têm sua excreção urinária aumentada na presença de um pH alcalino. Assim, o objetivo dessa intervenção é manter pH sérico de 7,5 e pH urinário de 8,0 por meio da administração de bicarbonato de sódio. É importante monitorizar os níveis de potássio devido à sua maior reabsorção urinária, corrigindo eventuais distúrbios eletrolíticos. Considerações sobre a alcalinização urinária nas intoxicações exógenas Métodos dialíticos: ainda que raramente empregadas, a hemodiálise e a hemoperfusão podem ser usadas nas intoxicações cujo potencial lesivo ocorre mais rápido do que sua eliminação. A primeira é reservada a pacientes que já possuem indicação para terapia de substituição renal, enquanto a última submete o sangue à passagem por colunas de carvão ativado ou resinas que irão adsorver as substâncias exógenas. Aspectos sobre o uso de hemodiálise na intoxicação exógena Considerações sobre a hemoperdusão nas intoxicações exógenas Emulsão intravenosa de lípides: é uma estratégia recente utilizada inicialmente para o manejo de choque cardiogênico induzido por toxinas. Seu funcionamento se dá por meio da absorção de substâncias lipossolúveis e pelo aumento do metabolismo cardíaco resultante da maior presença de ácidos graxos. As indicações dessa prática ainda são controversas, sendo direcionadas para intoxicações por anestésicos, betabloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio, cocaína e antidepressivos tricíclicos. Como complicações, destacam-se a hiperlipidemia grave, pancreatite aguda e a síndrome e síndrome do desconforto respiratório agudo. A diálise apresenta melhores resultados com substâncias de baixo peso molecular e menor afinidade com proteínas plasmáticas Júlia Figueirêdo – EMERGÊNCIAS USO DE ANTÍDOTOS: Os antídotos são substâncias que neutralizam ou atenuam a ação dos agentes tóxicos, porém, apesar da especificidade, normalmente não fazem parte da conduta inicial na maioria das intoxicações. Por vezes o manejo desses pacientes pode ser feito apenas com medicações sintomáticas. Ressalta-se, no entanto, que esses fármacos devem estar disponíveis para uso imediato, seja em ambulâncias ou unidades de pronto atendimento, pois a janela de administração é limitada. Os principais antídotos usados no tratamento de intoxicações exógenas são: Sulfato de atropina (dose inicial de 1-4 mg IV, de 5 em 5 min): utilizado em quadros induzidos por inibidores da acetilcolinesterase (carbamatos e organofosforados), deve ser administrado até obter sinais de atropinização adequada (melhora da saturação, FC em torno de 120 bpm e diminuição da secreção pulmonar); Diazepam (máximo de 100 mg IV, administradas de forma fracionada): recomendado em todos os casos no qual haja necessidade de sedação (ação GABAérgica), como na intoxicação por cocaína e anfetaminas; Fitomenadiona (10-20 mg IV a cada 8 ou 12 horas): é a forma injetável da vitamina K, empregada em caso de ingestão de raticidas ou intoxicação por anticoagulantes, visto que atua como precursora de fatores de coagulação; Flumazenil (0,3 mg IV por 30s, repetindo a dose após mais 30s): é um antagonista de benzodiazepínicos que inibe de forma competitiva os receptores GABA.Sua administração não reverte os efeitos farmacológicos desse medicamento, mas controlam a sedação e a depressão respiratória associada; Naloxona (0,1-0,2 mg IV a cada 2 a 3 min): é um antagonista de receptores opioides indicado para o tratamento de superdosagens ou intoxicação aguda por esses fármacos. A administração deve ser mantida até obter ventilação adequada e estado de vigília; Piridoxina (dose varia conforme indicação): a vitamina B6 pode ser aplicada tanto em intoxicações por etilenoglicol (aumenta a produção de glicina, com menor toxicidade) como por isoniazida (impede a depleção de GABA); Tiamina (100 mg diluídas em 100 ml de SG 5% IV de 6/6h): a vitamina B1, em quadros de abuso de etanol, previne o desenvolvimento da encefalopatia de Wernicke, ao passo que em pacientes que ingeriram etilenoglicol, estimula a formação de metabólitos menos nocivos; Antídotos usados no manejo de intoxicações exógenas