Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LITERATURA COMPARADA Francieli Borges Gabriela Semensato Ferreira Karina Regedor Gercke Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 B732l Borges, Francieli. Literatura comparada / Francieli Borges, Gabriela Semensato Ferreira, Karina Regedor Gercke. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 222 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-040-5 1. Literatura comparada. I. Ferreira, Gabriela Semensato. II. Gercke, Karina Regedor. III. Título. CDU 82.091 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 2 25/01/2017 16:37:39 Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vasco Popa, Czeslaw Milosz, Francis Ponge Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer a importância da atividade comparativa para o panorama literário. � Identificar as principais características nas obras dos autores citados. � Relacionar textos dos escritores que estudou nesta unidade. Introdução Você sabia que a análise comparativa pode ser muito produtiva nos estudos literários? Ela permite analisar cada texto individualmente para que se considere, em seguida, a relação entre os diferentes elementos. Interpretar textos, entretanto, demanda reativar conhecimentos e leituras prévias. Só assim, muitas vezes, conseguimos perceber referências a outros textos, artistas e momentos históricos, por exemplo. Neste texto, você vai interpretar e comparar poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vasco Popa, Czeslaw Milosz e Francis Ponge. SER_Literatura_Comparada_Book.indb 207 25/01/2017 16:37:54 Análise comparativa Ao realizarmos estudos de Literatura Comparada, há diversas possibilidades metodológicas para a análise de determinada obra. Você deve lembrar, entre- tanto, que certos conceitos, antes em voga na disciplina, são substituídos por outros, assim como determinados termos podem ser revisados ou revisitados pelos teóricos. O conceito de mimese, estudado por Aristóteles, por exemplo, é um exemplo. Foi considerado de forma complexa e até mesmo abrangente pelo filósofo grego, mas ao longo dos séculos entendido mais estritamente como cópia ou imitação. Depois, foi retomado a partir de filósofos da arte mais atuais, recobrando o sentido de possibilidade, de algo, em uma obra, que poderia acontecer, que tem verossimilhança. Como leitor, ou pesquisador, é importante que você primeiro considere qual é o principal objetivo de seu estudo e qual seu viés de leitura de um determinado texto. Após reflexão inicial, poderá decidir quais elementos ou textos serão comparados e por que essa ação é necessária ou produtiva para o estudo. O objetivo é relacionar outras histórias e costumes? Outras culturas e línguas? É para conhecer estilos e práticas de autores diversos? É porque determinada obra se aproxima mais de seus gostos pessoais, e você quer descobrir o que realmente lhe chama atenção? A análise comparativa nos ajuda a considerar todos esses detalhes e a pensar a literatura da maneira mais coerente, porém também mais instigante. O processo de leitura de uma obra por um especialista é cheio de in- formações diferenciadas e simultâneas, como se o estudioso usasse óculos multifocais, para não perder de vista as relações do tempo presente com o presente, do presente com o passado, e do passado com sua própria época. Os principais objetos de estudo em uma análise comparativa podem ser a literatura de dois ou mais grupos linguísticos, considerando diferentes teorias a partir delas, ou então diferentes linguagens artísticas, assim como saberes ou disciplinas. Parte-se, em geral, de obras literárias, mas também podemos considerar o papel ou função do escritor, do leitor, do público ou sociedade, do contexto histórico, cultural e de criação do texto. Podemos começar a concluir que o objetivo fundamental de uma análise comparativa é fazer com que uma obra literária deixe de ser apenas um texto encantador, comovente e isolado e passe a ser considerado uma produção cultural com vínculos na realidade social, na vida, e na própria história da arte. Através desse viés, aspectos que em um primeiro momento fogem à nossa compreensão são revelados e podem interagir com outras obras, auto- res, expressões sociais, culturais, políticas e artísticas. Por meio da análise Literatura comparada208 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 208 25/01/2017 16:37:54 comparativa é possível apurar o senso crítico. Demanda, ainda, um estudo sistemático e metódico de cada texto. Veja mais alguns objetivos da disciplina: � Articular e relacionar os conhecimentos literários conforme questio- namentos políticos, sociais e culturais. � Ir além dos conhecimentos obtidos em uma primeira leitura. � Diferenciar os elementos de generalidade e particularidade da obra para que não sejam confundidos com individualidade (aspectos subjetivos) e singularidade absoluta. � Investigar os princípios gerais da literatura. � Definir conceitos para que os estudos literários não sejam apenas atos individuais de leitura. � Estudar as obras como um todo, com uma análise linguística, semântica, temática, histórica, dentro de um âmbito internacional – ou seja, nos termos da literatura universal. � Mesmo considerando os elementos ambientais, contextuais e históricos, buscar o que é específico e único em cada obra, o que pode determinar a condição artística do texto. A comparação pode ser uma técnica que remete também ao processo mental que beneficia a generalização ou a diferenciação, a indução e a dedução. Não pode ser entendida, porém, como sinônimo de comparatismo, ou de literatura comparada. Para a literatura comparada, a comparação é um recurso analítico e interpretativo, um dos métodos utilizados, possibilitando a exploração adequada dos campos de trabalho, e o alcance dos objetivos dos estudos realizados. Assim, a comparação é um meio, uma ferramenta, e não um fim. A análise comparativa nos faz entender o que as obras de poetas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vasco Popa, Czeslaw Milosz e Francis Ponge podem ter em comum, ou quais os pontos de contato e de diferenças que os tornam expressivos nas linguagens artísticas do século XX. 209Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 209 25/01/2017 16:37:54 Os poetas Uma das definições importantes da poesia modernista é aquela que a descreve como sendo uma desautomatização da linguagem. É uma concepção mais formalista da poesia, com sua lógica e sistemática, porém conectada aos acontecimentos de seu tempo. Cada poeta apresentado aqui carrega suas características, semelhanças e diferenças ― e ajuda a traçar um panorama da produção poética do século XX. Carlos Drummond de Andrade Dentre a vasta obra de Carlos Drummond de Andrade, seus primeiros livros, Alguma poesia, de 1930, e Brejo das almas, de 1934, são citados como parte do modernismo brasileiro, apesar dessa vinculação não ser considerada tão expressiva na obra desse poeta como um todo. Ainda assim, Drummond apresenta, já nesses escritos, uma característica organização sintática e uma espécie de ‘poema-piada’, que parecem aproximá-lo do modernismo. Um dos traços dominantes em sua produção é a individualidade e a relação contraditória com a ordem e com o tempo. Trata-se de uma poesia atormen- tada pelo presente, passado e futuro, em que o eu-lírico mostra-se ciente do contexto social, das vidas de outros, e é tomado muitas vezes pela melancolia e pelo ceticismo. Frente a isso, utiliza-se da ironia, da sátira, mas também do profundo requinte no domínio da palavra poética. A poesia de Drummond é a cheia de rigor, de técnica. Porém demonstra consciência do trabalho árduo do poeta, de sua subjetividade, de sua existência no cotidiano social. Algumas de suas publicações de destaque são: Sentimento do mundo, de 1940, e A rosado povo, de 1945. Nelas, você pode perceber um sentimento não só de individualidade, mas também de coletividade, e de luta frente aos obstáculos da vida. Drummond, por essas e outras razões, é considerado pela crítica literária como um dos escritores brasileiros mais significativos. Contemporâneo de João Cabral, ele trilha, em sua poesia, um caminho quase oposto. Irônico, subjetivo e lírico, Drummond explora ao máximo as liberdades que o movi- mento modernista permitia, tanto em forma quanto em conteúdo. Versos livres e temas controversos, como o choque social, os poemas-piadas e o papel do indivíduo no mundo, são frequentes em sua obra. Literatura comparada210 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 210 25/01/2017 16:37:54 João Cabral de Melo Neto Poeta e diplomata, João Cabral de Melo Neto inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. Guiado pelo raciocínio e avesso ao confessionalismo, sua obra é caracterizada pelo rigor estético e pelo uso de rimas toantes. Divide com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira o título de um dos poetas brasileiros de maior destaque. As rimas toantes são aquelas em que apenas as vogais tônicas rimam entre si. Não há a presença de consoantes. João Cabral de Melo Neto é um expert no uso da rima toante. Em Morte e vida severina, de João Cabral, encontramos (MELO NETO, 2003): Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; Perceba que, nos versos pares, há a repetição das vogais i – a ao final do verso. A rima toante é muito frequente na poesia e no cancioneiro populares. A obra de João Cabral de Melo Neto é considerada, em parte, como poesia popular, além de apresentar alguns traços surrealistas. Pelo período em que publica e por suas características, é tratado também como escritor modernista, porém de 3ª fase. A poesia de João Cabral também chama a atenção pelo rigor utilizado na escrita dos versos, que podem ter estrutura mais fixa e rima. Não tem um estilo sentimentalista ou romântico, entretanto, mas mais objetivo. Apresenta, 211Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 211 25/01/2017 16:37:54 sobretudo, formas de perceber o real, de forma concreta e a partir das sensações geradas pela observação do contexto. Não evita oposições ou tensões, mas as trabalha de forma criativa. Assim, as palavras, em sua obra, podem ser concebidas como “palavras- -coisas”, dotadas de uma organização formal e oriundas de um trabalho lógico e racional. Não valoriza a ironia ou o verso livre, mais relacionadas à primeira geração do modernismo. Preocupação social é, também, marca de João Cabral de Melo Neto, em uma poesia mais lógica e sistemática, porém conectada aos acontecimentos de seu tempo. Em Morte e vida Severina (MELO NETO, 2003) – obra máxima do autor –, Cabral retrata o caminho do retirante fugindo da morte no campo castigado pela falta de chuva para encontrar, na capital, uma vida melhor. Vasco Popa Vasco Popa foi um dos poetas europeus mais populares do pós-guerra. Contem- porâneo de autores como o brasileiro João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999), o italiano Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975) ou o americano Robert Creeley (1926 – 2005), sua arte aponta para a grande diversidade poética desse período. Sua poesia apresenta uma característica marcante, que Haroldo de Campos (1929 - 2003) chamaria na orelha da antologia Osso a Osso (POPA, 1989) de “materialismo ôntico”, após alinhar a obra de Vasco Popa ao que ele chamou de coisismo, reconhecendo-o na poesia de Francis Ponge e João Cabral. Vasco Popa, nascido em 29 de junho de 1922, em Grébenatz, na Sérvia, é um dos mais representativos poetas contemporâneos da Iugoslávia. Suas obras já foram traduzidas para mais de 19 idiomas, sendo considerado uma figura marcante no cenário poético internacional. Popa parece operar mais em nome de uma pobreza de recursos que uma pureza de expressão. É importante notar que este objetivismo de Popa, se seguirmos as palavras de Haroldo de Campos (1997), está distante do obje- tivismo que guiou a poesia brasileira do final do século XX, muito marcada pelas obras de João Cabral de Melo Neto e Robert Creeley, por exemplo. Czeslaw Milosz Czeslaw Milosz foi um poeta, romancista e ensaísta lituano, nascido no período em que seu país ainda fazia parte do império russo. Cercado pelos círculos de vanguarda, durante sua formação, é notável a tendência de sua poesia ao viés político. Literatura comparada212 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 212 25/01/2017 16:37:54 Esse escritor também atuou durante a Segunda Guerra Mundial, passando pela experiência de clandestinidade. Publicou poemas de resistência, como Canção invencível, em 1942. Publicou também uma coletânea de ensaios sobre a submissão dos intelectuais poloneses ao comunismo, intitulada A mente cativa, em 1953. Milosz morou em Paris e emigrou para os Estados Unidos, tratando ainda de temas como a fragilidade humana, a crueldade, a corrupção, mas também o humanismo, a liberdade, a consciência e o poder. Por sua contribuição à arte poética, ganhou, em 1980, o Nobel de Literatura. Os poemas de Milosz transcritos aqui vêm da antologia Não Mais, publicada em 2003 pela editora da Universidade de Brasília, com seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Na apresentação, os tradutores ressaltam bem a preocupação de Czeslaw Milosz em perseguir a realidade em seus poemas (MILOSZ, 2003): “Sou um poeta da realidade. Digo que a terra não é um eco, Nem o homem um fantasma.” Observe a força dos versos finais do poema “Não Mais”, que deu título à antologia brasileira (MILOSZ, 2003): NÃO MAIS Preciso contar um dia como mudei Minha opinião sobre a poesia e por que Me considero hoje um dos muitos Mercadores e artesãos do Império do Japão Compondo versos sobre a floração da cerejeira, Sobre crisântemos e a lua cheia Se eu pudesse descrever as cortesãs De Veneza, como incitam com uma vareta o [ pavão no pátio E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina Os seios pesados, a marca Avermelhada no ventre onde o vestido se [ abotoa, 213Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 213 25/01/2017 16:37:54 Ao menos assim como as viu o dono das [ galeotas Arribadas àquela manhã carregando ouro; E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus [ pobres ossos No cemitério, onde o mar oleoso lambe [ o portão, Em palavras mais duráveis que o derradeiro [ pente Que entre carcomas sob a lápide, só, espera [ pela luz Não duvidaria. Da resistência da matéria O que se retém? Nada, quando muito o belo. Então devem nos bastar as flores da cerejeira E os crisântemos e a lua cheia. Aprecie também a elegância de “Janela” e “Dádiva” (MILOSZ, 2003). JANELA Olhei pela janela ao raiar do dia e vi uma jovem macieira, diáfana em meio à luz Quando olhei de novo ao raiar do dia lá estava uma grande macieira, carregada de fruto. Passaram-se decerto muitos anos, mas não me lembro de nada do que aconteceu neste sonho. DÁDIVA Um dia tão feliz. A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim. Os colibris se demoravam sobre a flor de [ madressilva. Não havia coisa na terra que eu quisesse [ possuir. Não conhecia ninguém que valesse a pena [ invejar. Literatura comparada214 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 214 25/01/201716:37:54 O que aconteceu de mau, esqueci. Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou. Não sentia no corpo nenhuma dor. Me endireitando, vi o mar azul e velas. Francis Ponge Francis Ponge foi um poeta francês nascido em 1899. Uma de suas obras mais conhecidas é Le parti pris des choses, de 1942, traduzida em português como O partido das coisas (PONGE, 2000). Esse texto mostra, de início, a multiplicidade de sentidos que sua poética oferece, já que o título também é entendido em outras línguas (o inglês, por exemplo) como “a voz”, “o modo” ou “a natureza das coisas”. Considerada modernista, sua poesia afasta-se do lirismo e da subjetividade e aproxima-se também da objetividade, para descrever objetos do cotidiano. Constrói, para isso, prosas poéticas, cheias de reflexão sobre a própria língua, tornando-se, por isso, metalinguísticas. Desse modo, opera jogos de palavras, ou entre palavras e coisas, demandando uma leitura crítica e ativa de seus textos. Francis Ponge ainda é pouco conhecido no Brasil. Os estudos de sua obra, por aqui, aconteceram mais fortemente na década de 1980, com as contribuições de Leila Perrone Moisés, Júlio Castañon Guimarães, Leda Tenório da Motta, entre outros. Contudo, podemos identificar em muitos escritores brasileiros influências, homenagens, citações e escolhas poéticas com base na obra de Ponge. Entre eles: João Cabral de Melo Neto, no poema O sim contra o sim; Wally Salomão, cujo livro, Lábia, é iniciado com epígrafe de Ponge; Manoel de Barros, em que a escolha poética pelas coisas simples em muito se assemelha à poética de Ponge; Murilo Mendes, autor do neologismo “francispongei-me”, inscrito no poema Texto de informação. Dos exemplos citados, talvez Manoel de Barros represente, atualmente, o autor mais próximo da poética de Ponge, pelo fato de reiterar, em sua obra, que estejamos alertas às coisas simples do mundo, para que as ressignifiquemos em nosso cotidiano. 215Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 215 25/01/2017 16:37:54 Considerações sobre a análise da poética Octavio Paz, um estudioso da Literatura do séc. XX para quem o pensamento sobre a criação jamais se aparta da criação em si, afirmou no “Prólogo” de La casa de la presencia (PAZ, 2003) que A história da poesia moderna é inseparável das poéticas que a justificam e defendem. Essas poéticas, apesar de sua diversidade contraditória, possuem um traço comum que as distingue das de outras épocas: todas elas são animadas por um ânimo beligerante, quer ante o passado, quer perante a realidade presente. São poéticas combatentes, duplamente críticas, tanto da tradição poética, quanto da sociedade, seus valores, suas instituições. A citação do poeta e ensaísta mexicano aponta ainda uma faceta do problema que, de outro ângulo, já foi considerado por Jonathan Culler (1999, 2015). O teórico chamou atenção para a importância de uma investigação crítica dos moldes conceituais de hábito pressupostas na leitura dos poemas modernos. A reflexão de Culler (1999, 2015) tem o objetivo de elucidar até que ponto são satisfatórias as diretrizes teóricas que estabeleceram a produção poética. A reflexão sobre a poesia se faz ao modo do conflito com o passado e o presente imediato da criação, bem como com seus arredores sociais. Lendo ou comentando poetas dos séculos XIX e XX evocamos certo en- tendimento, tacitamente pressuposto, de poesia moderna ou lírica moderna, segundo Jonathan Culler (1999, 2015). Caberia, portanto, esperar das pesquisas do comparatismo, segundo Culler (1999, 2015), a proposição de modelos teóricos que se prestassem à análise das obras individuais representativas nas fronteiras das diversas literaturas nacionais. Além disso, argumenta o teórico, caberia ainda aos comparatistas a tarefa de proceder à análise do modelo de lírica que está subentendida na leitura desta ou daquela obra poética moderna, a fim de avaliá- -lo criticamente na perspectiva mais ampla ensejada pela literatura comparada. Círculo de correspondências Francis Ponge e João Cabral já tiveram suas poéticas comparadas. Alguns críticos relacionaram as obras devido à alusão feita pelo próprio Cabral ao poeta francês em seu poema “O sim contra o sim”, no qual os estilos Literatura comparada216 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 216 25/01/2017 16:37:54 de diversos artistas que tiveram impacto na escrita Cabral são elogiados (MELO NETO, 2003, p. 298): Francis Ponge, outro cirurgião, adota uma outra técnica: gira-as nos dedos, gira ao redor das coisas que opera. Apalpa-as com todos os dez mil dedos da linguagem não tem bisturi reto mas um que se ramificasse. Com ele envolve tanto a coisa Que quase a enovela E quase a enovelando, Se perde, enovelado nela. E no instante em que até parece Que já não a penetra Ela entra sem cortar: Saltou por descuidada fresta Os estudos comparativos apontam como característica comum entre as duas poéticas a composição objetivista e calculada e a influência de Ponge sobre Cabral. Entretanto, embora tenha sido marcado pela poética de Ponge, Cabral desenvolveu características peculiares e originais ao longo de sua obra poética. Haroldo de Campos (1997, p. 206) afirma que o poeta brasileiro foi o primeiro a conceber a “[...] construção do poema como uma coisa [feita] de palavras [...]”. Ponge, à semelhança de uma aranha, enovela cautelosamente o objeto com os fios da linguagem até fundi-los, transformando-os num poema ou, mais especi- ficamente, em um “objoego” (termo cunhado pelo próprio poeta). Por sua vez, Cabral – engenheiro e pedreiro – é mais afeito à construção e ao empilhamento de palavras-pedras do que ao enredamento dos objetos. Cada palavra é tratada como uma pedra bruta a qual cabe ao poeta polir e lapidar a fim de erguer o poema-monumento ou, para aludir à sua obra, erguer a cidade de “Tebas-poema” proposta em “A fábula de Anfion”. Outra característica comum aos dois poetas – e 217Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 217 25/01/2017 16:37:54 que tem sido pouco discutida pela crítica brasileira – é a participação de ambos no movimento surrealista no início de suas carreiras literárias. Embora se distanciem na forma como abordam os objetos do mundo, tanto Ponge quanto Cabral se assemelham na maneira como lutam incansavelmente com a linguagem na composição de suas obras poéticas. É interessante notar que ambos os poetas, embora estejam conscientes das restrições e incapacidades da linguagem, se apegam estritamente a ela. Em outro lado do círculo de correspondências e relações, vemos Drum- mond e João Cabral. O poema a seguir (MELO NETO, 1996), escrito em 1943, revela a decisiva importância da obra de Carlos Drummond de Andrade nas primeiras produções de João Cabral de Melo Neto. Difícil ser funcionário Difícil ser funcionário Nesta segunda-feira. Eu te telefono, Carlos Pedindo conselho. Não é lá fora o dia Que me deixa assim, Cinemas, avenidas, E outros não-fazeres. É a dor das coisas, O luto desta mesa; É o regimento proibindo Assovios, versos, flores. Eu nunca suspeitara Tanta roupa preta; Tão pouco essas palavras — Funcionárias, sem amor. Literatura comparada218 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 218 25/01/2017 16:37:55 Carlos, há uma máquina Que nunca escreve cartas; Há uma garrafa de tinta Que nunca bebeu álcool. E os arquivos, Carlos, As caixas de papéis: Túmulos para todos Os tamanhos de meu corpo. Não me sinto correto De gravata de cor, E na cabeça uma moça Em forma de lembrança Não encontro a palavra Que diga a esses móveis. Se os pudesse encarar... Fazer seu nojo meu... Carlos, dessa náusea Como colher a flor? Eu te telefono, Carlos, Pedindo conselho. Como você pode observar, cada poeta destacado até aqui participa, de alguma forma, do modernismo, porém mantém característicasparticula- res, mostrando as diferentes direções de seus percursos poéticos. Assim, é importante, no estudo comparatista, considerar estilos e princípios de um movimento artístico, porém sem perder de vista que cada texto literário é único a seu modo. 219Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 219 25/01/2017 16:37:55 1. São características da poesia de João Cabral de Melo Neto: a) Para o poeta, todo o ato de escrever provém da inspiração, fruto de uma investigação íntima que privilegia os sentimentos e o lirismo. b) O lirismo de João Cabral de Melo Neto, que tem raízes no neossimbolismo, concilia o humor com temas do cotidiano, como a infância, a vida, a morte e o amor. c) Dada sua farta produção poética, a poesia de João Cabral de Melo Neto costuma ser dividida em fases, de acordo com as influências que recebeu de outros artistas visuais e poetas. d) João Cabral de Melo Neto integra o grupo de poetas religiosos que se formou no Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 40. Sua poesia é dividida em duas fases: a fase transcendental e a fase material. e) Corte profundo entre a poesia romântica e a poesia moderna. O poeta criou um novo conceito de poesia, que dessacraliza a chamada “poesia profunda”, ou seja, a poesia em que predominam os versos de sentimentos ou de abordagem introspectiva. Sua poesia é antilírica, presa ao real e direcionada ao intelecto, não às emoções. 2. Sobre Carlos Drummond de Andrade é correto afirmar: a) Sua obra está inserida na segunda geração modernista e sua principal característica é a poesia surrealista inspirada no cristianismo e no experimentalismo linguístico. b) Escritor cuja obra pertence à segunda geração modernista, quatro fases podem ser identificadas em sua obra: fase gauche, fase social, a fase do “não” e a fase da memória. c) Sua poesia denuncia a condição de exploração e marginalização dos negros em nosso país e também apresenta grande enfoque nos temas religiosos. d) Um dos grandes nomes da poesia da segunda geração modernista, sua obra é marcada pela preocupação religiosa e pela angústia existencial diante da condição humana. e) O poeta assumiu uma linguagem romântica e temas sempre envolvendo o eu-lírico. 3. Sobre Vasco Popa podemos afirmar: a) Seus poemas são marcados Literatura comparada220 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 220 25/01/2017 16:37:55 pelo objetivismo. b) Sobre a guerra só conhecia o que lhe contavam. Não houve envolvimento em um contexto político-social que contribuiu com a trajetória de sua obra. c) É um dos mais representativos poetas românticos da Iugoslávia. d) É um poeta de linguagem descarnada, minimalista, pesquisador da forma, Vasco Popa, contudo, é mais do que esses rótulos que, de certo modo, apenas resumem parte de seu trabalho poético. e) Vasco Popa não é muito conhecido, pois sua obra tem pouca expressão. 4. Sobre Czeslaw Milosz: a) Poeta muito influenciado pela lírica clássica. O ato de escrever sempre foi apenas um meio de expressar sentimentos. b) O poeta fala das coisas etéreas e do espírito em seus poemas. c) Milosz é um exemplo excepcional na poesia implicada pela totalidade histórica, religiosa, política e artística do humano. Sua obra apresenta-se como o diálogo ininterrupto de uma consciência múltipla, é uma polifonia de registros líricos, narrativos, irônicos, confessionais e parabólicos. d) Czeslaw Milosz não viveu a guerra, mas mesmo assim essa lhe serviu de inspiração. e) Milosz publicou poucas coletâneas de poemas. 5. Sobre Francis Ponge podemos afirmar que: a) Sua obra está repleta de poemas com linguagem lírica rebuscada. b) Vinícius de Moraes representa, atualmente, o autor mais próximo da poética de Ponge, pelo fato de reiterar, em sua obra, que estejamos alerta às coisas simples do mundo, para que as ressignifiquemos em nosso cotidiano. c) Embora se distanciem na forma como abordam os objetos do mundo, tanto Ponge quanto João Cabral de Melo Neto se assemelham na maneira como lutam incansavelmente com a linguagem na composição de suas obras poéticas. d) Francis Ponge é o poeta das coisas indefinidas. e) Em sua obra são frequentes os temas sobre os horrores da guerra. 221Análise comparativa dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto... SER_Literatura_Comparada_Book.indb 221 25/01/2017 16:37:55 CAMPOS, Haroldo. Arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Cul- turais, 1999. CULLER, Jonathan. Theory of the lyric. Cambridge: Harvard University, 2015. MELO NETO, João Cabral de. Difícil ser funcionário. Cadernos de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, n. 1, p. 60, mar. 1996. MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. MILOSZ, Czeslaw. Não mais. Brasília, DF: UNB, 2003. PAZ, Octavio. La casa de la presencia: poesía e historia. 2. ed. Barcelona: Círculo de Lectores, 2003. PONGE, Francis. O partido das coisas. São Paulo: Iluminuras, 2000. POPA, Vasco. Osso a osso. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989. Leituras recomendadas CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2002. (Coleção Signos). COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1996. GLEDSON, John. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. MELO NETO, João Cabral de. Poesia e composição: a inspiração e o trabalho da arte. In: MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. MOTTA, Leda Tenório da. Francis Ponge: o objeto em jogo. São Paulo: Iluminuras, 2000. PAZ, Octavio. A tradição da ruptura: a revolta do futuro. In: PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. SECCHIN, Antônio Carlos. Caminhos recentes da poesia brasileira. In: SECCHIN, Antô- nio Carlos. Poesia e desordem: escritos sobre poesia & alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. SÜSSEKIND, Flora (Org.). Apresentação. In: SÜSSEKIND, Flora (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. Literatura comparada222 SER_Literatura_Comparada_Book.indb 222 25/01/2017 16:37:55 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
Compartilhar