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Antropologia da Educação Solange M enezes da Silva D em eterco Código Logístico 57327 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6429-8 9 788538 764298 Antropologia da Educação IESDE BRASIL S/A 2018 Solange Menezes da Silva Demeterco Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ D448a Demeterco, Solange Menezes da Silva Antropologia da educação / Solange Menezes da Silva Demeterco. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 160 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6429-8 1. Educação. 2. Cultura. 3. Antropologia educacional. I. Título. 18-50457 CDD: 306.43 CDU: 37.015.2 © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Annasunny/iStockphoto Solange Menezes da Silva Demeterco Doutora e mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Currículo e Prática (Tutoria a Distância) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Ciências Sociais pela UFPR. Professora de Ensino Médio e Superior nas áreas de Sociologia, História, Geografia e Geopolítica. Sumário Apresentação 7 1 A Antropologia e a alteridade 9 1.1 O objeto de estudo da Antropologia 9 1.2 A questão da alteridade: percepção do outro 13 1.3 A Antropologia como atitude 18 2 O conceito de cultura 25 2.1 O conceito de cultura na Antropologia 25 2.2 Cultura e relativismo cultural 30 2.3 Pensar antropologicamente 35 3 O diálogo entre a Antropologia e a educação 41 3.1 Etnocentrismo, relativismo cultural e educação 41 3.2 Escola, cotidiano e educação na atualidade 45 3.3 A Antropologia para pensar o processo educativo 49 4 Os múltiplos olhares na educação 55 4.1 A diversidade cultural em espaços escolares e não escolares 55 4.2 A formação docente na perspectiva da Antropologia 60 4.3 Educação, relações étnico-raciais e formação de professores 65 5 Antropologia e diversidade cultural 75 5.1 Estudos culturais e educação 75 5.2 O currículo e as diferenças: um olhar antropológico 81 5.3 Preconceito, intolerância, discriminação e exclusão 85 6 Pluralidades e diversidade cultural 93 6.1 Temas transversais na visão da Antropologia da Educação 93 6.2 As diferenças religiosas, de gênero, da sexualidade e das relações étnico-raciais 98 6.3 Xenofobia e preconceito: o papel da educação 104 7 O multiculturalismo 111 7.1 A Antropologia e a globalização 111 7.2 Assimilação e aculturação: novos rumos 116 7.3 A multidisciplinaridade na educação contemporânea 121 8 A educação inclusiva: novos modelos educacionais 129 8.1 Racismo e outras formas de violência 129 8.2 O conceito de direitos humanos 135 8.3 Os desafios atuais da carreira docente na visão antropológica: educação indí- gena, quilombola, do campo e de pessoas com necessidades especiais 140 Gabarito 153 Apresentação Uma das questões mais importantes quando se pensa a educação na atualidade diz respeito à formação dos professores. Isso porque fica cada vez mais claro o inestimável papel que exerce o professor dentro e fora da sala de aula. Em sala de aula, ele deve ser o orientador da produção do conhecimento dos estudantes, colaborando para a formação de indivíduos autônomos, críti- cos, responsáveis e colaborativos. Fora dela, deve ser o primeiro a compreender que cidadania é uma construção social, histórica e cultural. Assim, para que a educação cumpra seu papel social é fundamental a percepção do outro, da diversidade social, religiosa, política, socioeconômica, de gênero e étnico-racial. Somente com a compreensão de que somos todos diferentes, mas que temos direitos iguais, é que podemos combater preconceitos e construir uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todos têm direitos e deveres que devem ser respeitados. Uma sociedade na qual todos tenham as mesmas oportunidades. A Antropologia da Educação é um dos caminhos para se promover reflexões sobre diver- sas questões fundamentais para a compreensão do homem por inteiro, da cultura e da alteridade. Esperamos que as provocações aqui apresentadas despertem em você o desejo de lutar pelo fim da intolerância e da exclusão. Boa caminhada! 1 A Antropologia e a alteridade Vamos começar aqui uma jornada de autoconhecimento. Você pode estar se perguntando: o que significa isso? Isso quer dizer que procuraremos entender o que nos constitui e como sa- bemos quem somos. Complicado? Não. Buscaremos nossa identidade para entendermos melhor o que nos define como humanos. A Antropologia é uma das Ciências Sociais e, com a Sociologia e a ciência política, objeti- va estudar o ser humano em interação com os outros, isto é, seu comportamento em sociedade. Mas cada uma dessas áreas do conhecimento tem seu modo único de tratar esse objeto de análise, com instrumental teórico e metodológico próprio. A Antropologia objetiva investigar e analisar os aspectos culturais e simbólicos das relações humanas e como isso define identidades de indivíduos, grupos e sociedades. Precisaremos entender a ideia de alteridade e suas implicações na construção do pensamen- to antropológico, compreendendo a importância da percepção e do respeito ao outro. Preparado? 1.1 O objeto de estudo da Antropologia De modo geral, as pessoas não sabem muito sobre a Antropologia e qual seu objeto de estudo. Isso porque, entre outras coisas, é uma ciência relativamente nova e que recentemente passou a fazer parte dos currículos de alguns cursos de gradua- ção, particularmente nas licenciaturas. Em cursos de formação de professores, ela é essencial. Sabe por quê? Porque trata da nossa constituição como seres humanos, e de que forma construímos nossa identidade e cultura. O homem é o único animal que, usando a razão, interfere e modifica seu meio ambiente e produz sistemas simbólicos que o definem. Somos o que somos em virtude de nossa cultura. Mais à frente discutiremos melhor a ideia de cultura. Antes, vamos saber mais sobre a pró- pria Antropologia. A palavra Antropologia significa estudo do homem. Mas outras ciências, como a Sociologia, a Psicologia e a Biologia, também estudam o ser humano. Portanto, qual a diferença? A distinção reside na abordagem e na forma como esse estudo é realizado e com que objetivo. A Antropologia se propõe a entender o homem como um ser sociável, buscando sua história e tudo aquilo que fundamenta seu modo de vida e condiciona sua visão de mundo (valores, leis, regras, tradições, ritos, mitos, comportamentos etc.). Além disso, procura compreender como evoluímos ao longo do tempo sob o ponto de vista biológico. Assim, essa área do conhecimento tem uma dimensão bastante ampla, sendo vista por alguns autores como a ciência da humanidade e do ser humano como produtor de cultura. Você consegue perceber como ela é abrangente? Vídeo Antropologia da educação10 Vamos entender aqui qual o objeto de estudo, seu método de trabalho e os instrumentos teóri- cos para que, apropriando-se desse conhecimento, possamos conhecer o campo e a abordagem dessa ciência. Discutiremos também a ideia de alteridade e suas implicações na construção do pensamento antropológico, de modo a compreender a importância da percepção e do respeito ao outro. Um dos traços mais fortes de nós, humanos, é que podemos pensar sobre nossa existência e fazermos inúmeras perguntas sobre a vida. Queremos saber de onde viemos e o que é cada um dos fenômenos naturais. Questionamo-nos por que estamos aqui e por qual motivo agimos como agimos. Enfim, fazemos diversos questionamentos sobre o viver em sociedade. E na ciência temos encontrado muitas dessas respostas. Cada uma das áreas do conhecimento, sejam as ciências naturais ou sociais,busca fornecer as respostas para que possamos entender melhor nossa existência e a nós mesmos. Ao longo do tempo, os indivíduos tiveram contato com povos com valores, costumes, regras e tradições diferentes dos seus. Isso provocou (e ainda provoca) reações positivas e nega- tivas. Os contatos muitas vezes foram/são difíceis, hostis ou mesmo violentos. Mas, de qualquer forma, esse contato com o diferente promoveu mudanças em todos os lados envolvidos, ainda que nem sempre transformações desejadas. São inúmeros os relatos de contatos entre diferentes culturas que causaram intolerância, conflito, violência ou conflitos fatais. Um dos exemplos mais evidentes desse choque entre cultu- ras da história de nosso continente é o contato entre colonizadores europeus e povos nativos das Américas, durante o período das Grandes Navegações, a partir do século XV. Surgiu dessa intera- ção entre povos diferentes um dos maiores genocídios da história humana (isto é, extermínio de uma etnia e/ou de uma cultura). Os indígenas no Brasil, por exemplo, foram dizimados em razão da incompreensão, por parte dos colonizadores portugueses, dos hábitos, do estilo de vida e das crenças dos nativos. Figura 1 – Litografia de Jean-Baptiste Debret retratando a escravização de indígenas em território brasileiro Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste. Soldados índios da província de Curitiba escoltando selvagens. c. 1830. Litografia em papel: 21 × 32,5 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo. A Antropologia e a alteridade 11 Por muito tempo, os europeus adotaram a lógica das três letras: L (Lei), R (Rei) e F (Fé). Na perspectiva dos exploradores portugueses, os povos nativos não apresentavam nenhum desses elementos. Essa foi a justificativa para escravizar, catequizar e, aos poucos, exterminar os indígenas. A visão de que os povos nativos não cultuavam o mesmo deus católico foi determinante para que os europeus não os vissem como humanos, o que justificaria o tratamento que dispensavam aos nativos e o enorme esforço para catequizá-los. Tal como ocorreu naquele momento da história, atualmente nem sempre certas práticas culturais são compreendidas pelos indivíduos que não compartilham de determinada cultura. E, mais do que nunca, diante das novas formas de comunicação e circulação de bens, capitais ou pessoas, o contato com o diferente se faz mais presente; no entanto, nem por isso mais fácil. O surgimento das Ciências Sociais acontece num contexto de grandes transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, provocadas especialmente pelo Iluminismo e pelas Revoluções Francesa e Industrial (ambos os eventos iniciados ou terminados no século XVIII). Assim como a Sociologia, por exemplo, que buscaria respostas para os novos problemas sociais decorrentes dessas mudanças, a Antropologia se debruçaria exatamente sobre a questão da diferença entre os homens e a questão da alteridade, isto é, da diversidade. O enigma a ser de- cifrado era: como explicar a unidade biológica que marca a humanidade e a enorme diversidade cultural? Isso significa questionar como, mesmo sendo biologicamente iguais, pode haver tantos povos e culturas diferentes. Ao longo de sua existência, o homem sempre se questionou sobre si mesmo e sua sociedade. Mas o surgimento da Antropologia é, como vimos, bastante recente. Tomando o homem como objeto do conhecimento, essa ciência passou por diversas fases, mas sempre buscando dar a si mesma um caráter científico, com um referencial teórico e metodológico diferente das chamadas Ciências Naturais. Há aqui uma mudança significativa na caminhada do homem em busca de si mesmo – o ser humano pensando sobre ele mesmo. O conhecimento científico gerado pela Antropologia caracteriza-se pelo fato de que o homem é, ao mesmo tempo, produtor e sujeito desse conhecimento; torna-se objeto de estu- do numa abordagem totalmente diferente daquela produzida pelo conhecimento filosófico, teológico ou mitológico. Quanto mais as fronteiras do mundo se ampliavam, mais contato havia entre diferentes po- vos e culturas, o que aumentava a curiosidade de estudiosos sobre novos modos de vida e visões de mundo. Foi na Europa que essa nova ciência começou a produzir seus questionamentos e suas análises. E isso não foi um acaso, uma vez que os europeus eram os maiores exploradores dos mares e de novos continentes no século XVI. Portanto, foram eles que tiveram contato com um número grande e variado de povos. Na primeira fase dos estudos antropológicos, as chamadas sociedades primitivas, consti- tuídas por grupos sociais geograficamente distantes e em geral tecnologicamente mais atrasa- dos que os europeus, seriam o objeto de estudo da nova ciência. Trata-se de sociedades mais simples, organizadas de forma diferente das sociedades europeias da época, não fazendo parte Antropologia da educação12 da chamada civilização ocidental. Assim, por meio da observação realizada no lugar no qual se encontram esses grupos, a Antropologia define seu objeto de estudo específico. No entanto, ainda havia outra questão fundamental: como realizar esses estudos? Até aquele momento, todas as ciências constituídas tinham suas ferramentas e técnicas de pesquisa que lhes per- mitiam alcançar o necessário reconhecimento de sua cientificidade e credibilidade. A Antropologia ainda precisava construir seu referencial, o que se consolidou no final do século XIX e início do XX, com trabalhos de campo baseados em observação e investigação. Sua legitimidade como ciência foi constituída quando as sociedades distantes e não eu- ropeias ou norte-americanas se tornaram o objeto de estudo da Antropologia. Mas consoli- dou-se também a maior singularidade dos estudos antropológicos: a condição do pesquisador, que, ao mesmo tempo que investiga, é também o próprio objeto de estudo. Diferentemente das Ciências Naturais, como a Química e a Biologia, na Antropologia não há separação entre ob- servador e observado. Essa é uma característica importante dessa ciência e, ao mesmo tempo, uma das maiores dificuldades para desenvolver suas pesquisas. Entretanto, surgiu outra questão: com o avanço das sociedades complexas, rapidamente as sociedades primitivas tornaram-se escassas, modificaram-se e deixaram de apresentar as caracte- rísticas que atraíam a atenção dos pesquisadores no início dos estudos antropológicos. Isso con- figurou um dilema para o pesquisador. O que fazer diante desse quadro? O caminho encontrado pela maioria dos antropólogos foi reforçar a especificidade do seu trabalho. Para isso, reforçou-se que o importante não era estudar um objeto restrito a um espaço geográfico, a determinada cultura ou a uma história em particular. A Antropologia, então, trouxe um novo olhar sobre o homem e sua cultura, numa abordagem totalmente nova, a qual tem como objeto de estudo o ser humano em todas as suas dimensões. Assim, surge a chamada perspectiva antropológica. Mais do que as outras Ciências Sociais, a abordagem antropológica é muito mais integrativa e até mesmo reveladora, na medida em que trata das múltiplas dimensões que compõem o ser humano, sem desprezar suas nuances. Isso fez a Antropologia, ao longo do tempo, especializar-se e acabar por constituir áreas de estudo mais específicas: a Antropologia biológica ou física, a pré-histórica, a lin- guística, a psicológica e a social e cultural, a chamada etnologia. Isso não significa que o pesquisador precise dominar cada uma dessas subáreas, e sim que deve considerá-las em suas análises, uma vez que estão relacionadas entre si. Quadro 1 – Campo de estudos da Antropologia Definição/objeto de estudo Antropologia biológica ou física Caracteres biológicos do homem no espaço e no tempo; relação entre biologia e meios geográfico, ecológico e social; morfologia dos seres humanos; fatores cul- turais que influenciam as mudanças físicas no homem; genética das populações. Antropologia pré-histórica Estudo do homem considerando os vestígios materiais enterrados no solo(os- sadas ou quaisquer marcas da atividade humana). Ligada à arqueologia, visa reconstituir as sociedades desaparecidas (técnicas e organizações sociais, produções culturais e artísticas). O pesquisador realiza um trabalho de campo. (Continua) A Antropologia e a alteridade 13 Definição/objeto de estudo Antropologia linguística Estudo da linguagem, parte do patrimônio cultural de uma sociedade. É por meio dela que os indivíduos que compõem uma sociedade se comunicam e expres- sam seus valores, suas preocupações e seus pensamentos. Apenas o estudo da língua permite compreender como os homens pensam, o que vivem e o que sen- tem, isto é, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolinguísticas); como expressam o universo e o social (estudo da literatura, seja escrita ou oral); como interpretam os próprios saberes e técnicas (área das chamadas etnociên- cias). Interessa-se também pelas imensas áreas abertas pelas novas técnicas modernas de comunicação (mass media e cultura audiovisual). Antropologia psicológica Consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. O antropólogo é em primeira instância confrontado não com conjuntos sociais, e sim com indivíduos – somente por meio dos humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual não é Antropologia. Antropologia social e cultural (ou etnologia) Tem abrangência considerável, já que diz respeito a tudo que constitui uma so- ciedade: modos de produção econômica, técnicas, organização política e jurí- dica, sistemas de parentesco, sistemas de conhecimento, crenças religiosas, língua, psicologia e criações artísticas. Fonte: Elaborado pela autora com base em Laplantine, 1989, p. 17-20. Vale esclarecer que neste livro adotamos a abordagem da Antropologia cultural, procuran- do tratar a educação sob esse viés totalizante. Especialmente por ser uma obra de Antropologia da Educação, é preciso entendermos que a visão dessa área de conhecimento é fundamental para com- preender as várias nuances do sistema educativo e das práticas pedagógicas, uma vez que a escola é sempre um microcosmo da sociedade mais ampla, onde se encontrarão as mesmas dificuldades e os mesmo preconceitos que nela vigoram. No espaço escolar também é possível “plantar várias semen- tes” de transformação em busca de uma sociedade mais justa, igualitária e que garanta oportunidades iguais a todos seus participantes. 1.2 A questão da alteridade: percepção do outro Todo o processo de desenvolvimento da Antropologia, de alguma manei- ra, tem sido marcado pela ideia de evolução, o que nem sempre foi favorável às populações não ocidentais ou não europeias. Muitas vezes, como vimos, isso im- plicou em desrespeito e violência. De acordo com o Dicionário Houaiss (2009), evolução, no caso dos estudos promovidos pelas Ciências Sociais (especialmente pela Sociologia e pela Antropologia), significa “todo processo de desenvolvimento e aperfeiçoa- mento de um saber, de uma ciência etc.”. Infelizmente, a visão eurocêntrica era de que os povos/ os indivíduos que não tivessem atingido o estágio de evolução igual ao seu estavam atrasados. A solução encontrada foi ajudar esses grupos a alcançarem o desenvolvimento desejável, sempre tendo como meta a civilização. Isso ocorreu em virtude do fato de os europeus analisarem as cultu- ras diferentes de sua de modo negativo, tendo-as como inferiores. E aí está o problema. Essa visão fundamentou uma corrente teórica chamada de darwinismo social, que influenciou tanto a Sociologia quanto a Antropologia. Essa concepção era baseada na teoria de Charles Darwin, que estudou o processo de evolução dos seres na natureza. E, quando aplicada à vida em sociedade Vídeo Antropologia da educação14 e ao comportamento social dos indivíduos, produziu graves distorções e serviu de fundamentação inclusive para teorias racistas, hoje desacreditadas pelo avanço do conhecimento biológico. Sabe-se que é impossível comparar estágios de evolução entre populações, muito menos entre diferentes raças ou etnias. Entretanto, o evolucionismo biológico e o evolucionismo social aplicados ao estudo de sociedades diferentes geram discriminação e preconceito e, sobretudo, fundamentaram uma visão etnocêntrica das diferenças culturais. Perceba que aqui cultura sig- nifica civilização e progresso, numa perspectiva de que todas as sociedades primitivas deveriam desenvolver-se rumo à civilização. Os evolucionistas acreditavam que o que era bom para a sociedade europeia, tecnologicamente mais desenvolvida, seria bom para qualquer outra socie- dade. E qual foi o resultado disso? Como vimos, os povos nativos das Américas, no início do processo colonial, sofreram as consequências dessa visão. Não foi diferente durante o chamado neocolonialismo, também chama- do de imperialismo, no final do século XIX, quando os países mais industrializados exploraram nações africanas e asiáticas em busca de novas matérias-primas, mercados consumidores e mão de obra barata, a fim de avançarem em seus processos de industrialização e ampliarem suas áreas de influência. Foram décadas de exploração e sofrimento para essas populações, que não tiveram o direito à autodeterminação, isto é, não puderam decidir o próprio destino. Esses países foram explorados até quando foi possível. Depois disso, precisaram encontrar uma forma de retomar sua autonomia, o que foi um processo bastante caótico, tendo em vista as guerras civis advindas de disputas entre diferentes grupos que ambicionavam chegar ao poder nessas regiões. Assim, não é mero acaso que muitos países africanos e asiáticos estejam atualmente numa situação de penúria e subdesenvolvimento. Alguns deles (não poucos) são governados por ditadores corruptos que exploram o próprio povo, em virtude de não conseguirem estabelecer instituições democráticas em seus territórios. Podemos resumir o que estudamos até aqui na Figura 2. Figura 2 – Objeto e método de trabalho da Antropologia Objeto de estudo Estudo do outro/da diferença/ da alteridade Método de estudo Observação e trabalho de campo Fonte: Elaborada pela autora. Estamos tratando aqui do contexto de alteridade. Mas, afinal, o que significa esse termo? Tendo como objetivo o estudo do outro e definindo-se por essa premissa, a Antropologia faz esse trabalho de modo relacional. O que isso quer dizer? Significa que essa ciência estuda o outro em relação a nós. O outro é aquele que não sou eu, e os outros são aqueles diferentes de mim, que partilham de referências culturais distintas das minhas. Nesse ponto precisamos enten- der que a análise antropológica é realizada de maneira comparativa, e isso não é necessariamente ruim. Essa comparação objetiva detectar exatamente as diferenças e não tecer juízo de valor entre culturas, indivíduos e povos. Só podemos exercer a alteridade na medida em que pontuamos as diferenças, o que permite o reconhecimento do outro. Etnocentrismo é a análise ou avaliação de uma cultura com base na lógica dos próprios referenciais culturais, desva- lorizando o que é diferente. A Antropologia e a alteridade 15 No convívio social, estamos sempre em interação com várias pessoas e vários grupos, cada um exercendo diferentes papéis sociais, com base nos próprios padrões de comportamento e visão de mundo. É nessa convivência que nos damos conta do outro, exercendo a alteridade. Dessa maneira, a análise antropológica é relacional – eu e o outro. É nessa relação que encontra- mos a alteridade. Ela se faz presente na relação de um indivíduo com outro, entre grupos, entre indivíduos e culturas e delas com o meio ambiente. Como dissemos anteriormente, é isso o que nos torna humanos. Por isso se diz que a perspectiva antropológica é totalizante, isto é, procura compreender o homem em suas dimensões biológica, psicológica e cultural, hoje e no passado. A alteridade é plural e sempre flexível, ou seja, não pode ser analisada e explicada por meio de esquemas teóricos rígidos, particularmentena atualidade. O mundo contemporâneo vive a chamada globalização, fenômeno que envolve aspectos econômicos, políticos, sociais e, obviamente, culturais. Constitui a chamada economia-mundo, que integra mercados e pessoas, aproximando-as de forma jamais vista na história. Nos dias atuais, em razão da internet e das redes sociais, é muito fácil co- nhecermos pessoas que estão do outro lado do mundo, falam outra língua e, portanto, têm cultura diferente da nossa. Como você vê isso? Encara como um problema? Para muitos indivíduos, esse contexto provocou vários questionamentos e desconfortos. Nem todos se sentem à vontade com a presença tão próxima, ainda que virtual, de pessoas que não são semelhantes a elas, seja qual for a natureza da diferença: etnia, nacionalidade, língua, religião, gênero, enfim, de uma cultura com valores, princípios, regras, costumes e história distintos. Assim, a convivência no mundo atual, tal como no passado, nem sempre ocorre pacífica ou harmoniosamente. Pelo contrário, notamos o crescimento da xenofobia – definida como aversão ao estrangeiro, àquele que vem de fora –, o que gera cada vez mais preconceito, discriminação, exclusão e ódio. Ao mesmo tempo, aumenta o individualismo, outra característica da sociedade atual, chamada por alguns teóricos de pós-moderna. Segundo Scott (2010), o pós-moderno “é vinculado a noções de ‘pós-industrialismo’, ‘pós-capitalismo’ e sociedade do conhecimento”. Alguns pensadores, além de se contraporem à ideia de modernidade, “consideram que a condição pós-moderna contemporânea envolve pluralidade, diversidade e relativismo no conhecimento” (2010, p. 231). Alteridade, segundo o Dicionário Houaiss (2009), diz respeito à “natureza ou condição do que é outro, do que é distinto”. É a condição de ser outro. Perceba como é um conceito relacional, tal como afirmamos anteriormente: é diferente, distinto em relação a quê? Veja como é preciso ter um ponto de partida. Essa referência inicial com base na qual se pode avaliar é o eu. Assim, só podemos saber o que é diferente se tivermos noção do que/quem somos nós. O outro será aquele/aquilo que não sou eu. É necessariamente uma relação entre mim e o outro, ou entre nós e eles. Consegue, então, entender a perspectiva relacional na qual a Antropologia apoia a própria existência? Para termos a percepção da alteridade, é preciso entendermos e nos colocar no lugar do outro e compreender sua visão de mundo, baseada em valores, tradições e costumes que são pró- prios a ele, e não a nós mesmos. E qual seria a melhor maneira de captar a lógica de uma cultura diferente da nossa? Como dito há pouco, pela empatia e, sobretudo, pelo diálogo. Analise um exemplo: o mundo está dividido entre Oriente e Ocidente, tendo como referencial especialmente a questão religiosa. Para muitos indivíduos, o mundo atual divide-se entre cristãos e muçulmanos. Antropologia da educação16 Especialmente após o evento de 11 de setembro de 2001, quando um grupo de terroristas de ori- gem muçulmana cometeu uma série de atentados em solo americano, incluindo a destruição das duas torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, o islamismo quase se tornou sinôni- mo de terrorismo para muitas pessoas, incluindo autoridades. No entanto, será que isso é verdade? Todo muçulmano é um terrorista em potencial? É claro que não! Figura 3 – Ataque terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. Com o avanço do terrorismo, impulsionado muitas vezes por políticas externas de vários países que reforçaram esse preconceito, a divisão do mundo se agravou, o que fez aumentar a xenofobia. Com a crise migratória decorrente de conflitos em países do Oriente Médio, piorou ainda mais a situação de indivíduos de origem islâmica ou de nacionalidade de países em con- flito com os Estados Unidos e/ou seus aliados. O que se percebe nessa situação é o crescimento da intolerância em relação ao diferente e à sua cultura, muitas vezes vista como “atrasada” em virtude de algumas tradições morais ou religiosas. Atitudes como essas serão sempre um empecilho para o diálogo e o entendimento entre diferentes, o que favorece manifestações de discriminação e ódio e dificulta o entendimento e as relações pacíficas entre grupos, povos e nações. O choque cultural decorrente do contato entre diferentes não precisa necessariamente ser violento, marcado pela intolerância e pela impossibilidade do diálogo. Sem a percepção da alte- ridade, diminui o espaço para o entendimento, e as relações ficam comprometidas. Deve haver respeito ao outro e às suas características em nome do bem maior, que é exatamente a alteridade e a riqueza que ela traz. M ic ha el F or an /W ik im ed ia C om m on s A Antropologia e a alteridade 17 Um dos aspectos mais importantes ao se estudar Antropologia, especialmente num curso de formação de professores, é compreender que não há sociedades ou culturas melhores ou piores. Cada uma tem a própria lógica, e é com base nela que deve ser entendida. Qualquer tentativa de usarmos nossos valores e costumes para avaliar as práticas ou visões de mundo de pessoas de cul- turas diferentes trará como consequência conflito e incompreensão. Entretanto, não podemos esquecer que é necessário considerar em que medida, por exem- plo, uma tradição cultural que comprometa a integridade física ou intelectual do indivíduo pode ser aceita. O conceito de direitos humanos, recente na história da humanidade, exige que proble- matizemos algumas ações praticadas por grupos ou indivíduos e que, com base nessa premissa, passam a ser vistas como atos de violência contra a pessoa. A questão primordial é saber como determinar o que seja um valor universal e, com base nessa universalidade, avaliar realidades concretas particulares. Como, em nome dos direitos hu- manos, os quais são universais, podemos julgar práticas culturais? Como exemplificamos, com o contato entre povos nativos americanos e exploradores e co- lonizadores europeus, a imposição de uma cultura sobre outra pode ser trágica. No entanto, é pos- sível fazermos outro questionamento: não teria a sociedade ocidental criado o conceito de direitos humanos e passado a julgar as demais culturas com base em suas premissas, desconsiderando assim o restante do mundo? Podemos usar como exemplo a tradição por muito tempo praticada em várias sociedades e ainda presente em certos grupos minoritários: o infanticídio, isto é, a prática de matar crianças – em geral por serem portadoras de alguma deficiência (muitas vezes vista como um castigo dos deuses). Atualmente isso não é mais tolerado, punindo-se aqueles que a praticam sempre que a sociedade dominante assim determinar. Pode-se afirmar com segurança que práticas e tradições culturais não mudam apenas por- que alguém assim o quis, especialmente se a necessidade da transformação for defendida por in- divíduos de outra cultura, com base em valores, regras, normas e leis que não foram criadas pelos pertencentes àquela cultura. Existem vários exemplos que ilustram práticas polêmicas: abandono de idosos; mutilação de criminosos; ritos de passagem violentos para a idade adulta impostos a adolescentes em algumas tribos; mutilação genital de mulheres ainda na infância em vários países do mundo, entre outros. Assim, é possível perceber que é muito complicado uma cultura, por ser dominante, colocar-se acima de outras, julgar aspectos de tradições diferentes e impor-se sobre estas. Devemos reconhecer que, em todos os lugares, encontraremos tradições violentas ou destrutivas coexistindo com outras que evocam e reforçam valores como respeito ao outro, solidariedade e tolerância. O que se defende hoje é que o fato de uma ou outra prática cultural ser mais antiga não justifica sua permanência se isso implicar em violência e risco de morte a seus praticantes. Ainda que se busque a lógica interna daquela cultura, havendo riscos, é preciso rever a permanência dessa tradição cultural. Antropologiada educação18 O grande desafio, portanto, é encontrar princípios éticos universais que contribuam para des- pertar nos indivíduos o sentimento de respeito mútuo e evitar que, em nome do que quer que seja – religião, tradição cultural ou sentimento de pertencimento –, certas ações continuem a ser praticadas. Percebe o quanto a educação pode contribuir para esse processo de construção e dissemi- nação de valores universais de preservação da vida e da paz? Lembra-se das pesquisas das quais falamos anteriormente? Elas mostram que, quanto maior o índice de escolaridade dos indivíduos, menor é a aceitação de práticas culturais violentas e maior é o desejo que de elas acabem. Isso refor- ça uma ideia bastante difundida: a ignorância muitas vezes é a base da intolerância e do desrespeito ao outro. No entanto, antes de criticar essas sociedades, é preciso fazer esses valores universais che- garem até elas, no intuito de que os integrantes de determinada cultura em que haja tais práticas adotem o princípio de respeito à dignidade do outro e compreendam a importância de certas mu- danças. Quando não se conhecem determinados valores, não é possível haver adoção de práticas de respeito mútuo, impossibilitando transformações culturais. A imposição externa, forçada e com base apenas em sanções ou punições, não surtirá efeito se o que se deseja é a extinção de uma práti- ca violenta. É preciso tempo, educação, diálogo e, em alguns casos, medidas punitivas (mas apenas estas não serão eficientes). Foi assim que, ao longo do tempo, a tortura, a escravidão e o racismo passaram a ser inaceitáveis e condenados no mundo todo, ainda que isso não signifique a completa extinção de tais práticas. Nesses casos, são aplicadas medidas elaboradas ao longo do tempo para coibir e/ou punir quem ainda insiste em praticá-las. Mais recentemente, a xenofobia, o feminicídio e a homofobia, por exemplo, são questiona- dos e combatidos em nome dos direitos humanos e de valores universais. A luta contra a exclusão, a segregação e qualquer ato que comprometa a integridade física, psicológica e emocional de um indivíduo deve ser de todos nós, especialmente os educadores. Dessa forma, o que estamos discutindo até aqui diz respeito a uma questão primordial para a Antropologia e o pensar antropológico: a alteridade, isto é, a percepção do outro. Toda ação huma- na precisa fazer sentido para seu praticante, e é assim que a cultura se torna o pilar sobre o qual são fundadas a estrutura de uma sociedade e suas tradições. Por isso, qualquer manifestação cultural é compreendida com base na própria lógica, construída ao longo do tempo e reforçada por rituais e valores que fundamentam essa cultura. Estudar essas manifestações permite conhecermos melhor determinado grupo e captarmos a coerência interna que há naquela cultura. 1.3 A Antropologia como atitude Como vimos, desde o século XV os limites e as distâncias entre os diversos povos diminuíram. Com isso, a presença de culturas diferentes da nossa se fez cada vez mais presente. Será que podemos dizer que a diversidade faz parte de nós? O que você acha? Observe a Figura 4. Feminicídio: crime de homicídio de mulheres, decorrente de violência ou discriminação de gênero. Vídeo A Antropologia e a alteridade 19 Figura 4 – Crianças de diferentes etnias Ra w pi xe l/ iS to ck ph ot o Não lhe parece que essa fotografia representa um pouco da diversidade que encontramos nas escolas? E você, como se “classificaria”? O estudo da Antropologia nos ajuda exatamente a compreender que a diferença, a diver- sidade e a alteridade estão presentes em nosso mundo e que há muito elas despertam o interesse de diversos pensadores, os quais vêm investigando como todos esses elementos nos tornam mais humanos. Eles nos ajudam a entender que toda cultura tem os próprios pressupostos e que por meio deles é possível compreendê-las. Isso significa que toda cultura tem uma lógica própria, ainda que nos pareça estranha, e que faz parte de nosso projeto de civilização entender que nenhuma é melhor que a outra. Você já pensou como podemos aprender com os outros? E como essa experiência pode ser riquíssima para nossas vidas? A Antropologia nos ensina que podemos saber mais sobre nós mes- mos por meio do que aprendermos com o diferente de nós. Já pensou como o mundo seria menos interessante se todos fôssemos iguais? Nessa perspectiva chegamos a outro ponto importante: nossa cultura não é a única nem é a melhor ou a mais verdadeira de todas. No entanto, somos tão importantes quanto qualquer in- divíduo de qualquer lugar do mundo. A percepção da diversidade nos transforma e com isso nos tornamos pessoas mais inclusivas. Diversos pensadores e pesquisadores elaboraram o pensamento antropológico, e em todos encontramos a noção de que essa ciência surgiu para explicar fatos, fenômenos sociais e visões de Antropologia da educação20 mundo construídos e consolidados ao longo de toda a história da humanidade. Tais estudiosos reforçam que o objetivo é captar o ponto de vista do nativo de determinada cultura e decifrar sua lógica, preferencialmente sem traçar nenhum juízo de valor a respeito, respeitando-se as premissas apresentadas, relacionadas à discussão sobre direitos humanos. A Antropologia, na abordagem que estamos adotando nesta obra, analisa fenômenos complexos da convivência humana, em sua maioria muito presentes em nosso dia a dia, tais como hábitos alimentares, ritos religiosos, rituais de vários tipos, transações comerciais, práticas funerárias, leis e outros códigos, tabus etc., sempre objetivando captar quais são e de onde vêm as práticas culturais. E é nesse contexto que a educação se coloca como uma das práticas sociais mais importantes em qualquer sociedade. Como abordamos anteriormente, o antropólogo poderá se defrontar com o dilema de não conseguir reproduzir num laboratório aquilo que vê (fenômenos sociais e antropológicos). Ele de- verá lidar com os valores e a visão de mundo que fundamentam a própria cultura, sem se desfazer ou ignorar as implicações de sua biografia, como sua educação e seus preconceitos, enfim, aquilo que o constitui como pertencente a determinado sistema cultural. Mas isso não implica em falta de objetividade, que deve ser garantida pelo corpo teórico e metodológico adotado. Quando percebemos e valorizamos a alteridade, assumimos uma atitude antropológica, que significa tentar se colocar no lugar do outro e compreender a lógica da cultura deste. E sabe qual é um dos maiores impedimentos para assumirmos uma atitude antropológica? Acharmos que não precisamos do outro e que não temos nada a aprender com ele, ou ainda que já sabemos tudo. Quando cultivamos tais atitudes, tendemos a construir preconceitos, os quais geralmente se mostram equivocados. Como exemplo, podemos citar uma pessoa que não gosta de deter- minado gênero musical apenas por achá-lo que é popular demais ou por considerá-lo muito diferente daquilo que costuma ouvir, mas que, no entanto, nunca se dispôs a ouvir tal tipo de música, buscando compreendê-la. Uma pessoa assim julga um objeto cultural sem conhecê-lo. Avaliações prévias e apressadas tendem a ser injustas e levianas, uma vez que não estão funda- mentadas em argumentos consistentes que justifiquem tais percepções. Existem muitos exemplos desse tipo de comportamento. Você se lembra de algum? Já se viu fazendo isso? Provavelmente mais de uma vez... Isso é bastante comum, mas nem por isso pode ser aceito sem questionamentos ou criticidade. Posteriormente discutiremos mais sobre esses julgamen- tos, especialmente quando são problemáticos, como o racismo e qualquer tipo de discriminação. Cada grupo social observa, define e classifica os fatos e fenômenos que acontecem em sua realidade com base em seus interesses e suas necessidades. Assim, podemos concluir que é por meio da cultura que cada sociedade compreende e explica seu mundo. A atitude antropológica se baseia sempre num intercâmbio deexperiências entre indivíduos, numa troca igualitária. Fundamenta-se na ideia de que nos civilizamos cada vez mais quando nos dispomos a aprender com qualquer pessoa. O interessante é que, ao mesmo tempo que aprende- mos, ensinamos, ainda que muitas vezes isso seja um processo inconsciente. A Antropologia e a alteridade 21 Já que estamos no âmbito da Antropologia da Educação, devemos nos lembrar da atitude das crianças em relação ao novo. Você já reparou como uma criança geralmente fica animada quando se vê diante de outra criança? É comum que ambas fiquem curiosas, interessadas e abertas a apren- der. E é com essa atitude, por exemplo, que elas começam a frequentar a escola. Nesse momento, muitas vezes elas tomam consciência da diferença, uma vez que encontrarão entre seus colegas de turma crianças de outras etnias, com comportamentos, gostos, hábitos e desejos diferentes dos seus. E como elas tendem a reagir? Procuram trocar experiências entre si. Isso é básico quando se pensa na educação, porque a escola é, antes de tudo, um espaço de socialização e, portanto, deve favore- cer o intercâmbio e estimular o diálogo. A abordagem antropológica parte da perspectiva e da visão de mundo do outro. Quando o antropólogo se coloca diante do seu objeto de estudo (ou seja, o outro), ainda que incons- cientemente adotará vários “filtros” para analisá-lo: a própria teoria antropológica, seus valores, princípios e sua experiência de vida, o que não pode tirar a objetividade de seu trabalho. Observe que, de certa forma, como educadores, ao entrarmos em sala de aula, em contato com um grupo de alunos, muitas vezes bastante diferentes entre si, colocamo-nos numa posição muito similar. Levamos para a sala de aula nossa vida pessoal, nossos valores, costumes, hábitos e nossa visão de mundo. No entanto, ainda assim precisaremos estar abertos a cada uma dessas realidades e histórias de vida, em geral diferentes da nossa. Construir preconceitos em relação a alguma coisa dificulta muito o diálogo e diminui a possibilidade de trocas, o que gera preconceitos, discrimi- nação e exclusão – tudo o que deve ser combatido nos espaços escolares e não escolares. Um indivíduo, ao assumir uma prática antropológica, torna-se um sujeito que terá como missão traduzir a complexidade de uma cultura diferente da sua ou, se dentro do próprio uni- verso cultural, que deverá decifrar para outros que não a conheçam. É o caso, por exemplo, da Antropologia urbana, uma das áreas de atuação da antropologia na atualidade, ao investigar, por exemplo, os bailes funks. O pesquisador, sendo ou não frequentador desses eventos, deve adotar a teoria e o método próprios dessa ciência e, com base nisso, precisa “decifrar” objetivamente essa prática cultural para os próprios integrantes, especialmente para a parcela da sociedade mais ampla que não conhece tais eventos. Dessa forma, há uma troca por meio da qual todos aprendem sobre o fenômeno em questão – nesse caso, o baile funk. Outro exemplo clássico da Antropologia que ilustra essa questão é a pesquisa antropológica realizada em comunidades indígenas. Ela traz à luz uma cultura e um estilo de vida pouco conhe- cidos pelas populações urbanas. Trata-se de aprender com elas. Veja que, ainda que os indígenas sejam parte da cultura brasileira, sua cultura própria não está acessível a todos nós. Ainda que sejamos brasileiros, podemos não conhecer ou saber tudo sobre todas as manifestações culturais de nosso país. Devemos sempre nos lembrar que, ao vermos um costume diferente, reconhecemos em nós, por contraste, o que somos ou não. Quando vai a campo, num trabalho de observação participante, o antropólogo busca narra- tivas que podem ser distintas e variar de acordo com o informante. Dessa forma, sua análise será sempre uma interpretação daquilo que viu, não necessariamente a única verdade. Temos nisso a Antropologia da educação22 ideia de pluralidade que marca o trabalho antropológico. Percebe como essa abordagem pode ser rica para a educação? Reconhecer que não se sabe tudo e que é preciso captar as percepções, as histórias de vida e as visões de mundo do outro, o qual pode (ou deve) aprender nesse contato, ajuda-nos, como educadores, a destacar e valorizar as diferenças, de modo a promover a inclusão. E por que é possível falar em inclusão? Porque, quanto mais cedo entendermos que a uni- dade está na diversidade e que não há superioridade entre uma cultura e outra, mais receptivos à diversidade nos tornamos. A atitude antropológica tem como fundamento a capacidade de relativizar, isto é, compreen- der a lógica da sociedade com base no ponto de vista do indivíduo, deixando seus preconceitos de lado e transformando o exótico em familiar. Para isso, é necessário questionar os elementos desse código. Discutindo a ideia do relativismo cultural, Da Matta (1987) reafirma essa atitude como positiva e valorativa, buscando compreender o outro, o diferente, o exótico e o não familiar, fenô- menos que muitas vezes não estão distantes de nós. Considerações finais No desenvolvimento das Ciências Sociais, a Antropologia surgiu da preocupação em en- tender o que na época se chamava de sociedades primitivas. Durante seu desenvolvimento e consolidação como ciência, a percepção acerca dessas sociedades foi mudando, sobretudo a partir do momento em que se percebeu que não era viável analisar sociedades diferentes com base em premissas construídas por meio de visões etnocêntricas e/ou eurocêntricas. O campo de atuação se ampliou, e o método de trabalho desenvolvido para o estudo antropológico, com base no trabalho de campo e na observação participante, configurou-se em sua especificidade como ciência. O próprio conceito de cultura evoluiu ao longo do tempo e foi desdobrado até se construir a ideia de relativismo cultural, isto é, a capacidade de compreender o diferente, desvendando e decifrando a lógica das diferentes culturas. Com isso aprendemos que, às vezes, o que achamos natural é culturalmente construído e que nem tudo o que é estranho é necessariamente de menor valor ou ruim. Por isso se diz que viver em sociedade é um aprendizado contínuo, que começa quando nascemos e só termina quando morremos. Durante nossa vida, devemos aprender com o outro, ampliar nossos horizontes e lutar contra preconceitos. Dessa forma, percebemos que o conhecimento antropológico da nossa cultura passa ine- vitavelmente pelo conhecimento das outras culturas. Devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única (LAPLANTINE, 1989, p. 21). Assim, podemos praticar a alteridade e a atitude antropológica como ferramentas para se construir um mundo marcado pela tolerância, pela aceitação do outro, pelo diálogo e pela inclusão. A Antropologia e a alteridade 23 Quando se pensa na educação, tudo isso se torna ainda mais importante, uma vez que a escola é uma das principais instituições sociais, na qual também acontece o processo de sociali- zação dos indivíduos. Nela está presente a diversidade, com a qual nós, educadores, precisamos estar preparados para lidar, por meio de ações de resistência e combate aos diferentes tipos de preconceito e discriminação. Do contrário, podemos ter na escola mais um espaço de reprodu- ção da injustiça e exclusão do diferente. A construção do outro é uma das tarefas impostas à escola numa sociedade que se propõe justa, igualitária e equitativa, isto é, que colabore para formar indivíduos que tenham as mesmas oportunidades de inclusão e ascensão social. Valores como respeito ao outro e à sua dignidade devem ser construídos também na escola. Se ela, tal como já afirmamos, é um fenômeno social e cultural, torna-se também um interlocutor fundamental para a Antropologia. Atividades 1. Ao longo do tempo, os indivíduos tiveram contato com povos com valores, costumes, re- gras e tradições diferentes dos nossos. Isso provocou reações positivas e negativas. Os con- tatos muitas vezes foram/são difíceis,hostis e até violentos. Explique por que isso ocorreu e, em alguns casos, ainda ocorre. 2. O surgimento das Ciências Sociais aconteceu num contexto de grandes transformações so- ciais, políticas, econômicas e culturais, provocadas especialmente pelo Iluminismo e pelas revoluções Francesa e Industrial. A Antropologia se debruça exatamente sobre a questão da diferença entre os homens e a questão da alteridade, isto é, do reconhecimento da diversida- de. Qual era o objetivo a ser alcançado por essa ciência em seus primórdios? 3. A visão antropológica fundamentou uma corrente teórica que influenciou tanto a Socio- logia quanto a Antropologia, chamada de darwinismo social, baseada na teoria de Charles Darwin, o qual estudou o processo de evolução dos seres na natureza. Como isso impactou os estudos antropológicos? 4. No convívio social, estamos sempre em interação com várias pessoas e grupos, cada um exercendo diferentes papéis sociais, com base nos próprios padrões de comportamento e visão de mundo. Nessa convivência nos damos conta do outro e exercemos a alteridade. Para a Antropologia, como se define alteridade? Antropologia da educação24 Referências ALTERIDADE. In: INSTITUTO HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. EVOLUÇÃO. In: INSTITUTO HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1989. LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. SCOTT, J. (Org.). Sociologia: conceitos-chave. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. SIQUEIRA, E. D. Cultura e senso comum. Brasília, DF: Sistema Universidade Aberta do Brasil, 2007. p. 59-61. 2 O conceito de cultura Entender o conceito de cultura e suas implicações na construção do pensamento antropológi- co é fundamental para compreender a importância desse conhecimento para o processo educativo. São muitas as acepções para esse termo, porque ele transita por várias ciências, especialmente nas chamadas humanidades. A dualidade natureza versus cultura é discutida na Antropologia em razão da importância dessa duplicidade para compreendermos o quanto nos humanizamos ao alterarmos o ambiente no qual vivemos. Fazemos isso desde os primórdios da humanidade, e certamente esse processo continuará acontecendo. Construímos valores comuns a todos os grupos sociais, ao mesmo tempo em que surgem práticas, padrões e hábitos bastante distintos entre as sociedades. Mas ainda assim estamos falando de totalidade. Num curso de formação de professores, a Antropologia da Educação colabora para a refle- xão em torno da diversidade e da necessidade de se repensar práticas culturais que se constituíram tradições numa cultura e que, como vimos, atualmente podem atentar aos direitos humanos. Vale ressaltar que é extremamente importante que sejam formados profissionais da educação mais críti- cos e conscientes, em virtude das características do mundo contemporâneo, cada vez mais próximo em função da interdependência entre o países e das novas tecnologias. 2.1 O conceito de cultura na Antropologia Afinal de contas, o que significa cultura, palavra tão utilizada desde o iní- cio da nossa reflexão? Já sabemos que ela envolve vários aspectos da produção humana, tais como valores, leis e costumes. Também faz parte da cultura de um povo sua produção material. Ou seja, artefatos, utensílios, vestuário, moradia, ali- mentação e tudo o que o homem construiu ou produziu para se adaptar ao meio ambiente e atender às suas necessidades de sobrevivência e conforto. Mas não podemos adotar apenas uma lógica utilitarista, porque, se fosse assim, encontraríamos soluções absolutamente iguais para problemas comuns em todos os lugares do mundo. O que se observa é a existência de questões subjetivas além das questões materiais. Daí a diversidade encontrada entre os povos. Diante disso, podemos perceber que a cultura é bastante ampla e complexa, não sendo única, assim como também não há uma mais verdadeira ou perfeita que outra. Percebemos isso quando o padrão europeu serviu de referencial para julgar os povos ameríndios, classificando-os como “sel- vagens”, “primitivos”, não civilizados. Devemos falar em culturas, e não cultura. Com elas o homem enxerga o mundo, transforma sua realidade e o mundo que o cerca e constrói sua identidade com base no que por elas é definido como válido. Colocando-se como centro do mundo, numa postura antropocêntrica construída desde o século XVII, o ser humano constrói sistemas simbólicos para explicar e orientar o mundo em que vive. Vídeo Antropologia da educação26 Observe que, nessa linha de pensamento adotada pela Antropologia, a cultura é tão abstrata quanto concreta. Por exemplo, o homem não se alimenta apenas para sobreviver, mas por várias outras razões, entre elas o prazer de comer. Assim podemos perceber que, no que diz respeito à alimentação, a separação natureza x cultura é muito clara. Se não fosse assim, todas as sociedades adotariam insetos em seus padrões alimentares, mas isso não ocorre porque as pessoas tendem a comer aquilo que lhes é familiar, que aprendem a comer e que faz parte dos hábitos alimentares de sua sociedade. Observe as imagens a seguir. Figura 1 – Insetos como parte da alimentação de muitas culturas st oc kp ho to tr en ds /i St oc kp ho to Figura 2 – Bolo de chocolate tradicional da cultura ocidental sa na pa dh /i St oc kp ho to Qual dos pratos você teria vontade de provar? Arriscamos dizer, mesmo desconhecendo seus hábitos alimentares, que você escolheria o bolo. Por quê? Porque os insetos não fazem parte de nossa culinária ocidental cotidiana e despertam um misto de sentimentos que não ajudam a agu- çar o apetite, correto? Isso ilustra o que estamos discutindo aqui: a particularidade das culturas e, ao mesmo tempo, a universalidade da espécie humana. Queremos o familiar, resistimos ao novo. O conceito de cultura 27 Mas, para adotarmos uma atitude antropológica, é preciso transformar o exótico em familiar e assumir uma postura de estranhamento diante do que já conhecemos e do que nos é familiar. Sabe a impressão de andarmos no “piloto automático” que sentimos algumas vezes no nos- so dia a dia? É um pouco sobre isso que estamos falando. Se alguém lhe perguntasse por que não comeria o prato com os insetos e você apenas respondesse “porque não!” ou “porque tenho nojo!”, estaria reforçando sem questionamento os padrões já conhecidos, enquanto poderia se dispor a experimentar e “se familiarizar” com o novo, o exótico. O que acha? Então, cultura é mais do que a simples soma de valores, rituais, costumes, crenças, leis, utensílios e artefatos; é também um conjunto de sistemas simbólicos e de códigos por meio dos quais o indivíduo e os grupos decifram e explicam seu mundo. É muito comum entre os antropó- logos a seguinte comparação: a cultura seria similar às regras de um jogo, a que todos os jogadores devem conhecer e respeitar. Em alguns casos, como no jogo de truco, pequenos gestos podem significar muita coisa no andamento e na definição da partida. Assim, o mesmo acontece na so- ciedade: o convívio entre os indivíduos é mais tranquilo e equilibrado na medida em que as regras são conhecidas e respeitadas por todos. Por isso se diz que a cultura é um código que precisa ser descoberto e decifrado. Pensemos em outro exemplo: você fala japonês? Como se imagina chegando ao Japão sem dominar o idioma? O que poderia fazer para se comunicar e se integrar? Deveria, aos poucos, deci- frar aquele código linguístico, ao mesmo tempo que seus novos interlocutores também precisariam se esforçar para compreender você. Laraia (1989), como já dissemos anteriormente, afirma que a cultura condiciona a visão de mundo do homem, e na base disso há um sistema de classificações e de codificação queconstitui nossa herança cultural, que determina nosso comportamento em relação ao outro. Para ele, “o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” (LARAIA, 1989, p. 70). Roberto da Matta, um dos maiores antropólogos brasileiros, por sua vez, reforça que o social e o cultural são inseparáveis, sendo a cultura uma tradição transmitida de geração a geração – ela é o que diferencia uma sociedade da outra. O social, para ele, seria tudo aquilo que independe da na- tureza interna (biologia/genética) ou externa (fatores ambientais), sendo também “um fenômeno coletivo, globalizante, múltiplo” (DA MATTA, 1987, p. 17). Trata-se de “uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam como coletividade”. Existe uma “tradição viva conscientemente elaborada que passa de geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular e única uma dada comunidade relativamente às outras, constituídas de pessoas da mesma espécie”. Da Matta (1987, p. 48) diz que “sem uma tradição, uma coletividade pode viver ordenadamente, mas não tem cons- ciência do seu estilo de vida”. O autor afirma que em cada sociedade há uma tradição cultural que se assenta no tempo e se projeta no espaço. É por isso que pode haver uma sociedade sem cultura, mas não o inverso. Dessa forma, Da Matta (1987, p. 57) revela que, ao se observar as sociedades e buscar suas percepções sobre aquilo que vivem, creem ou realizam, suas ações concretas podem compreender seus valores e suas ideologias. Antropologia da educação28 Por exemplo, veja que por isso é possível, inclusive, haver vestígios da cultura de uma sociedade já extinta, objeto de estudo da Antropologia pré-histórica. Da Matta reforça que o homem, ao transformar a natureza, assim o faz por inúmeras razões, sobretudo para atender às suas necessidades de sobrevivência. Mas também precisa compreender o mundo em que vive e, para isso, inventa todo um sistema de valores que depois nortearão seu comportamento. Outro antropólogo que contribuiu significativamente para a discussão sobre os fundamen- tos da Antropologia é François Laplantine. Ela afirma: o social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação...) que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região, nação...) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. A cultura por sua vez não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez o sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os compor- tamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas...). (LAPLANTINE, 1989, p. 122, grifos do original) Mais uma vez, devemos lembrar o caráter relacional na análise antropológica, que, como afirma Laplantine, procura dar conta da relação entre o social e o cultural. É por isso que mui- tas vezes há certa confusão entre as abordagens e os objetivos da Sociologia e da Antropologia, parecendo que não existe distinção entre as duas ciências. No entanto, nelas há diferenças funda- mentais, sobretudo em termos metodológicos. Enquanto a Sociologia procura compreender o ho- mem em interação, isto é, vivendo em sociedade, a Antropologia pretende compreender o homem por inteiro, sua produção cultural, isto é, o homem em sua totalidade. Quando a Antropologia toma o próprio homem como objeto de conhecimento, inicia-se uma nova forma de perceber o mundo, um novo modo de pensar, baseado, como vimos, no agir com alteridade. Isso é bastante recente na história da humanidade e trouxe muitas consequên- cias, entre elas a ideia de que não há uma hierarquia entre culturas diferentes. Não há como classificar culturas diferentes numa escala de valoração com base na ideia de progresso ou atraso. Quanto mais se ampliavam os horizontes da humanidade, mais se percebeu que o estranhamen- to em relação ao outro poderia ser algo bastante positivo se houvesse uma atitude de curiosidade e, ao mesmo tempo, de respeito em relação ao diferente. Soube-se, então, que o olhar sobre o ou- tro e as interpretações possíveis de construir acerca das suas práticas culturais tornam viável nos conhecermos melhor. Por meio da etnologia, estudo das culturas e dos povos, a Antropologia possibilita a construção de um mundo mais tolerante e de pessoas mais críticas. Ao falarmos em cultura, referimo-nos à multiplicidade presente nas diferentes comunidades humanas. Os indivíduos se organizam em grupos e em sociedades com base em elementos que os aproximam, no que constroem em comum e com o que se identificam. Pode ser a língua, o mesmo referencial histórico, determinada organização política e social, a relação com o sagrado, a religião... Enfim, os indivíduos organizam seu mundo de maneira a fazer sentido para eles mesmos. Há elementos que unem e existem aqueles que separam os seres humanos. Por exemplo, quando se pensa na educação, observamos que em todas as culturas há uma forma de se transmitir às novas gerações o conhecimento acumulado. Isso é cultura. Entretanto, cada grupo/povo pode O conceito de cultura 29 fazer isso distintamente, muitas vezes sem um sistema formal de educação. Em sociedades sem escrita, a oralidade garante que as tradições do grupo sejam passadas aos mais jovens para que elas não se percam. Nesse sentido, a abordagem antropológica possibilita ao educador uma visão mais ampla do valor das práticas culturais e sua importância para a construção de identidades. Tendo isso em mente, o olhar antropológico nos mostra que práticas, costumes e concepções de mundo só fazem sentido se forem compreendidas com base na lógica do grupo que os produziu, numa relação dialógica. Fica clara a necessidade de inter-relacionar os diferentes elementos que compõem a cultura, ao mesmo tempo que se tenta explicá-los aos indivíduos que a produziram. Ao discutirmos o papel da cultura, devemos destacar que, ao contrário do que marcava o contexto inicial da Antropologia, o isolamento entre grupos sociais diminuiu ao longo do tempo; hoje praticamente não existe mais. Inevitavelmente, diante dessa realidade, foi possível observar que os grupamentos humanos se desenvolveram em ritmos, formas e tempos variados. Entretanto, isso não impediu que, apesar dessas diferenças, houvesse também algumas tendências e acontecimen- tos comuns. O exemplo mais clássico desse desenvolvimento humano diz respeito ao surgimento da agricultura – a chamada Revolução Neolítica. Historiadores e antropólogos se perguntam até hoje como, em diferentes lugares do planeta, povos distintos e nômades descobriram a agricultu- ra na mesma época. Em virtude disso, tornaram-se sedentários. Assim, ao lado da caça e da co- leta, passaram a exercer uma nova atividade econômica que mudaria para sempre a história da humanidade. Com isso surge também a ideia de Estado e uma nova forma de organização social, que dá início a várias civilizações. Durante a Antiguidade, elas fundamentaram algumas bases de tudo o que veio em seguida em termos de organização social, política, religiosa e, claro, cultural. A domesticação de animais, a diversificação de culturas agrícolas e o uso dos recursos naturais marcaram diferentes grupamentos humanos, ainda que não tivessem entrado em contato entre si. Tais práticas podem ser vistas como tendências dominantes. Seria possível cuidar das culturas agríco- las (plantio e coleta) e da domesticação de animais se os homens continuassem a ser nômades? Vale lembrar novamente que isso não significa que se possa avaliar as mudanças e os avanços alcançados por diferentes grupos numa escala de passagem da selvageria à civilização, passando pela barbárie, estágio intermediário. Como vimos, o evolucionismo, ainda que tenha sido importante na construção teórica da Antropologia, não foi suficiente para explicar os gru- possociais que não se encontravam no universo conhecido pelos europeus e americanos no século XIX. Ficou claro, ao longo do tempo, que diferenças físicas, como a cor da pele, não deter- minavam um sistema cultural e que, portanto, seria necessária outra forma de explicar a diversi- dade. Mas, enquanto essa concepção se manteve, muitas visões distorcidas sobre povos e grupos não europeus foram marcadas por preconceito, resultando até em extermínio de populações. Cabe aqui uma observação: ainda que não exista uma única linha evolutiva da humanidade e que a variedade de práticas e sistemas culturais seja uma realidade, não se pode relativizar tudo. É preciso entender que, ao procurarmos decifrar a cultura de um povo, estamos adotando critérios que são também construções culturais. Assim, é extremamente importante que, ao adotarmos a abordagem antropológica, tenhamos em mente que todos os grupamentos humanos fazem parte da história de nossa espécie como um todo. Todas as culturas particulares devem ser vistas como Antropologia da educação30 integrantes de um conjunto. Por exemplo, podemos estudar a cultura de tribos indígenas que vi- vem isoladas, sem considerar a realidade histórico-social-econômica do Brasil como um todo? Podemos nos questionar, por exemplo, por que (e como) elas ainda conseguem se manter isoladas do restante da “civilização”, enquanto outras tribos foram extintas ou vivem hoje à margem da so- ciedade mais ampla. Figura 3 – Indígenas vivendo em tribo isolada da sociedade, no Acre (2009). Não é à toa que, por bastante tempo, muitos antropólogos escolheram comunidades indígenas como objeto de estudo. Esses grupos estavam à margem da sociedade mais ampla, o que possibilitava a realização do trabalho de campo e a observação – técnica de pesquisa clássica da Antropologia. Assim, a cultura se torna o conceito-chave das análises antropológicas. Outros conceitos derivam dessa categoria de análise: diversidade cultural, etnocentrismo e relativismo cultural. Por meio destes a Antropologia se debruça sobre as diferenças e particularidades das sociedades, mas de modo a buscar o que nos aproxima como humanidade. 2.2 Cultura e relativismo cultural Você deve ter notado que já empregamos algumas vezes aqui a expressão rela- tivismo cultural. Vamos explorar uma pouco mais essa ideia? Vimos que o pesquisa- dor, ao analisar uma cultura, baseia-se nas teorias que fundamentam a Antropologia, mas também adota diferentes filtros. Isso porque não é possível se desfazer de tudo o que constitui sua cultura. Esta, de alguma forma, interfere na interpretação que ele faz de outra cultura. Se não fundamentar sua pesquisa nos princípios teórico-metodológicos da Antropologia, não produzirá um conhecimento realmente científico. Vamos a um caso concreto para entendermos melhor esse aspecto. Se um antropólogo está estudando uma sociedade que tem como parte da sua cultura um ritual de passagem para os meni- nos com o qual ele não concorde por ser extremamente cruel, deve procurar ser muito objetivo em G le ils on M ira nd a/ Ag ên ci a de N ot íc ia s do A cr e/ W ik im ed ia C om m on s Vídeo O conceito de cultura 31 sua observação. Há ritos de passagem que marcam a entrada do garoto na vida adulta que impli- cam em várias etapas, e algumas delas exigem muito deles em termos físicos e psicológicos. Podem, por exemplo, ser isolados por alguns dias em um local fora de sua aldeia, devendo sobreviver sozi- nhos, sem nenhuma ajuda. Ou, como forma de provar sua coragem, são obrigados a colocar a mão dentro de um formigueiro de uma espécie de formiga bastante perigosa, cuja toxina causa muita dor e sofrimento. Se esse menino não suportar tal situação por um tempo mínimo, não será consi- derado adulto, e isso pode significar muita humilhação diante do grupo. Mas qual é a dificuldade para o pesquisador numa situação como essa? É se desprender dos valores impostos pela própria cultura, que, nesse caso, determina que a criança e o jovem devem ser protegidos e poupados de alguns riscos à sua integridade como um todo, sem tecer juízos de valor. Assim, sob esse ponto de vista é que se diz que tudo é relativo, mas é importante entender que o relativismo não pode servir de justificativa para a imposição de uma cultura dominante sobre outras, nem para aceitar que, em nome da tradição, sejam mantidas práticas hoje inaceitáveis. Agora vamos discutir um pouco sobre a questão da mutilação genital feminina, tema po- lêmico, que sempre gera muita indignação e nos ajuda a refletir mais sobre essa questão. Trata-se de extirpar o clitóris da menina. A mutilação ocorre normalmente entre os três e os cinco anos de idade. Na maioria das vezes, isso acontece de forma muito rudimentar, usando lâminas comuns ou facas, sem nenhum tipo de higiene ou anestesia. Isso implica em enorme dor física e psicológica, além do risco de sangramento, infecção (inclusive pelo vírus da Aids), infertilidade e anomalias físicas irreparáveis na genitália. Então nos perguntamos: o que leva a comunidade a ainda acei- tar essa prática? Diversas pesquisas, algumas conduzidas pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Unesco, órgão de proteção da infância e da juventude, mostram que, ainda existindo a rejeição tanto de homens quanto de mulheres a essa prática, em alguns locais há também a percepção de que isso é importante para que a mulher seja aceita em sua comunidade. Mesmo sabendo dos inúmeros riscos às meninas, dados mostram que a aceitação da permanência desse ritual é maior entre as mulheres, com receio de serem excluídas do próprio grupo social. Entretanto, atualmente há várias mulheres, vítimas ou não desse rito, que se tornaram ativistas para tentar conscientizar as pessoas dentro e fora de seus países, no sentido de pôr fim a essa prática em nome dos direitos humanos. Esse é um exemplo que nos mostra o quanto é difícil esse processo de relativização cultu- ral. A diversidade que caracteriza grupos, países e sociedades pode ser percebida na pluralidade e originalidade de identidades. Atualmente, essa diversidade se acentua ainda mais, exigindo de todos nós um olhar mais aberto ao outro, sob diversos aspectos: raça, etnia, orientação sexual ou religiosa, nacionalidade, posicionamento político, hábitos alimentares etc. O conviver se torna um exercício de superação de preconceitos e uma luta para desenvolver conexões empáticas com o ou- tro, de modo a acolher, estabelecer o diálogo e valorizar suas características e seus pontos de vista, ainda que divergentes dos nossos. O relativismo cultural significa também se colocar no lugar do outro, uma ferramenta para o entendimento e um caminho para construir sociedades intelectual, afetiva, ética, moral e economi- camente equilibradas. Reconhecer e respeitar a diversidade é a condição para a defesa da dignidade Antropologia da educação32 humana e dos direitos humanos. Você já se deu conta de quantos conflitos estão acontecendo atualmente no mundo em virtude do não reconhecimento dessas premissas básicas que constituem nosso caráter de humanidade? Vejamos alguns deles. Um dos mais antigos é o conflito entre árabes e palestinos na região da Palestina e do Estado de Israel. Esse conflito se estende há décadas, sob o argumento de que, para a criação do Estado judeu, grandes parcelas de terras palestinas foram tomadas para constituir os limites de Israel e construir assentamentos para colonos judeus. Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou um plano de partilha da Palestina que previa a criação de dois Estados: um judeu e outro palestino. A recusa árabe em aceitar a decisão culminou em intenso confronto entre Israel e países árabes: a guerra árabe-israelense de 1948, quando grande parte da população palestina foi expulsa (Figura 4). Depois de várias guerras e discussões sobre a cidade de Jerusalém, considerada sagrada para as três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo),e sob a justificativa de ser uma questão religiosa, de disputas territoriais e de rivalidades étnicas dos dois lados, gerações inteiras até hoje não sabem o que é viver em paz. Fala-se que a questão religiosa é um dos motivos, mas há também fatores econômicos envolvidos – um deles é o controle da água na região e a posição estratégica em relação à geopolítica do petróleo. Figura 4 – Refugiados palestinos em 1948 Fr ed C sa sz ni k/ W ik im ed ia C om m on s Outro exemplo mais recente é o grande deslocamento populacional em movimentos migra- tórios em virtude de guerras, muitas delas alimentadas por conflitos étnico-religiosos. É o caso da Síria, país cuja população se divide em várias etnias, nem todas muçulmanas. Além disso, rebeldes e grupos terroristas atuam em seu território. O que se vê é uma das maiores crises humanitárias desde a Segunda Guerra Mundial. Há também desrespeito à diversidade e aos direitos humanos em vários outros países, como Congo, Nigéria, Etiópia, Somália, Chade e Iraque (na região da etnia curda – o maior povo sem Estado do mundo). Se buscarmos as razões para tantos conflitos, encontraremos motiva- ções econômicas, mas também questões étnico-raciais e/ou religiosas. Nesses casos, vemos na O conceito de cultura 33 prática o menosprezo ao direito de minorias no sentido de preservarem e verem reconhecidas suas culturas, o que configura desrespeito aos direitos culturais. Cada cultura tem o direito de se expressar, tentar manter suas tradições e transmiti-las às no- vas gerações. Além disso, culturas dominantes não têm o direito de subordinar aquelas minoritá- rias, sob pena de negar aos mais novos o conhecimento de tradições e valores que configuram suas identidades. O direito à liberdade, inclusive à de expressão, é de todos e é base para a convivência baseada no relativismo e respeito à diversidade. Essa é uma das tarefas da educação em todas as so- ciedades: oportunizar o compartilhamento do sistema cultural de cada sociedade ou grupo social de modo a construir ou reforçar identidades individuais e coletivas. Mas como opera a cultura? Laraia (1989, p. 67-105) define algumas formas pelas quais a cultura se concretiza na sociedade e como é percebida e praticada pelos indivíduos. Inicialmente o autor afirma que, como dito anteriormente, ela condiciona a visão de mundo do homem e tem uma lógica própria. No primeiro caso, o modo de ver a realidade e os julgamentos morais e valorativos, os diferentes comportamentos e até posturas corporais são produtos de uma herança cultural e determinam como vemos a diferença. Você já não identificou facilmente um turista em sua cidade? Isso foi possível porque, de alguma forma, ele se comportou ou apresentou indícios (atitudes, ves- tuário, sotaque etc.) que o diferenciou dos membros da sociedade na qual estava naquele momento. Como vimos, a consequência do fato de vermos o mundo por meio da lente da nossa cultura pode levar a julgamentos equivocados e preconceituosos em relação ao outro. É preciso ter muito cuidado. Para que isso não ocorra, segundo Laraia (1989), devemos tomar como ponto de referên- cia a humanidade, e não o grupo ou o indivíduo. Quando o autor diz que cada cultura tem a própria lógica, lembra que só é possível analisar a coerência de um hábito cultural com base no sistema a que pertence, procedimento que consiste em um sistema de classificação. E os diferentes sistemas divergem entre si de acordo com essa lógica. A cultura, ainda de acordo com Laraia (1989), também interfere no plano biológico, uma vez que aspectos físicos ou psíquicos podem definir formas de comportamento e construir siste- mas de classificação acerca do mundo no qual o indivíduo e seu grupo se inserem. Ele exemplifica essa interferência ao citar a questão das doenças psicossomáticas (doenças reais ou imaginárias e sua cura – real ou imaginária) e a sensação de fome, que depende de muitos fatores. Estamos condicionados, por exemplo, a sentir fome ao meio-dia. Mas será assim em todos os lugares do mundo? Sabemos que não, uma vez que os horários das refeições são definidos culturalmente em cada sociedade. Outro aspecto importante apontado por Laraia (1989) é o fato de os indivíduos da mesma sociedade participarem diferentemente de sua cultura. O autor afirma que o envolvimento de cada um de nós em nossa cultura é limitado e nenhuma pessoa é capaz de praticar todos os elementos da sua cultura. E isso é mais claro em sociedades mais complexas como a nossa, que impõe limites a essa vivência com base em diferentes critérios, tais como sexo e idade. Algumas dessas limitações são realmente de ordem cronológica, enquanto outras são estritamente culturais. O autor dá como exemplo as várias atividades que uma criança não pode realizar, enquanto outras são proibidas a pessoas de mais idade, por incapacidades de ordem física. Mas há situações nas quais os critérios Antropologia da educação34 são bastante questionáveis e frutos de uma definição arbitrária, como é o caso de os jovens de 16 anos poderem votar, mas não dirigir antes dos 18. Outro exemplo apresentado pelo autor é o do jovem de 17 anos, 11 meses e 20 dias, para o qual não é aconselhado assistir a um filme cuja clas- sificação é para 18 anos. Qual é realmente a diferença, uma vez que se trata de poucos dias entre uma idade e outra? O que explicaria essas imposições culturais? Convenções culturais que foram construídas pela própria sociedade e que passam a definir as diferentes participações dos indiví- duos na própria cultura. Finalmente, ao dizer que a cultura é dinâmica, Laraia (1989) aponta para o fato de que as mudanças pelas quais ela passa podem ser internas ou externas, mais lentas ou mais rápidas, sendo o tempo um elemento importante na constituição dos sistemas culturais. Isso significa que um com- portamento ou um valor aceito atualmente em determinada sociedade pode não o ser no futuro. Assim, percebemos que a cultura é uma condição essencial para nossa constituição como humanidade e diz respeito à nossa capacidade de significarmos o que fazemos e o mundo que nos cerca. Veja como essa ideia é importante para o que nos propomos aqui, ou seja, abrir uma nova frente para discutir a educação e a prática educativa. Isso porque cultura diz respeito a todas as for- mas de pensar e agir compartilhadas pelos indivíduos de determinado grupo ou sociedade, numa dimensão de tempo e espaço, em qualquer sociedade (indígena, camponesa, urbana etc.). É por isso que reforçamos que a análise antropológica busca o relativismo e a totalidade. Dessa forma, o estudo das culturas e as formas por elas escolhidas para transmitir o conheci- mento acumulado é fundamental para a Antropologia da Educação, lembrando que a relação entre culturas diferentes nem sempre acontece de forma igualitária. São relações de poder. Percebemos ao longo da história que pode haver tentativas de imposição de uma cultura sobre outra. Quando se fala em educação, isso pode ser ainda mais problemático. Alguma vez você já se perguntou, por exemplo, por que ainda há tantos analfabetos no Brasil, em pleno século XXI? Já lhe ocorreu que pode ser interessante para parte da elite brasileira, especialmente a elite política, que as pessoas assim permaneçam e não desenvolvam seu espírito crítico? E por que não interessa? Porque pes- soas com criticidade são questionadoras, não costumam aceitar, por exemplo, que continuemos a ser um país tão desigual, no qual tantas pessoas não tenham acesso às mesmas oportunidades dos indivíduos de maior poder aquisitivo. Uma provocação para você: o que seria mais importante para a educação? Pensar como aconteceu a evolução dos sistemas educativos ou como e por que eles foram constituídos? O que você acha? É claro que conhecer as diferentes soluções e os caminhos percorridos pela humanidade em vários momentos históricos e lugares do planeta nos mostra mais sobre a educação daqueles povos do que simplesmente a possibilidade detraçar uma linha evolutiva – especialmente se o ob- jetivo for comparar grupos sociais à luz do referencial das sociedades ocidentais tecnologicamente mais desenvolvidas. A educação e a atitude antropológica podem promover discussões enriquecedoras para se combater o desrespeito à diversidade e a manutenção da desigualdade, além de despertar a critici- dade dos indivíduos. Diante disso, o relativismo cultural não pode servir de argumento para não se analisar como estão construídas as relações de poder numa sociedade. O conceito de cultura 35 2.3 Pensar antropologicamente Reflita um pouco: como as pessoas vivem em sociedade? Quais rela- ções acontecem entre elas? De que forma as culturas se diferenciam e por que isso ocorre? Por que existe tanto preconceito e discriminação no mundo? Por que a cultura é tão importante para as Ciências Sociais, em especial para a Antropologia? São perguntas simples e que podem abranger quaisquer situa- ções que envolvam pessoas em interação, no sentido de organizar e explicar seu mundo. Desde o início da nossa reflexão, estamos tentando respondê-las. A Antropologia, portanto, é uma forma de autoconsciência científica da realidade social e da diversidade. O homem é um animal social e produz as condições materiais de sua existência. Isso sig- nifica dizer que ele modifica, sempre que necessário, o meio em que vive para melhor atender às suas necessidades de sobrevivência. O ser humano precisa viver em grupos, em interação com os demais da sua espécie, ao mesmo tempo que se defronta com indivíduos e grupos diferentes. Como se constrói então o conhecimento antropológico? Vimos o surgimento e o desen- volvimento dessa ciência, que aprimorou seu corpo teórico-metodológico para se diferenciar das demais ciências que estudam o homem. Mas o que é pensar antropologicamente? O que você considerou ao escolher seu curso e sua profissão? Por que resolveu ser educa- dor? Foi a compensação financeira que poderá obter (o que no Brasil não é comum, uma vez que a profissão docente não é muito valorizada)? Foram a realização pessoal, uma possível vocação, a pressão familiar, o desejo de mudar o mundo? Já pensou sobre isso? Independentemente de quais tenham sido os critérios que definiram sua escolha (ou de não ter ainda pensado em nada disso), de alguma forma a sociedade na qual você se insere exerceu algum tipo de influência. E mais: sua atuação profissional contribuirá para reforçar, manter ou alterar valores e padrões estabelecidos. Entretanto, o mais importante é que tipo de cidadão você é/ será: uma pessoa ética, que se compromete com as questões sociais mais importantes do meio em que vive, em especial aquelas relacionadas à educação e ao mundo em geral? Uma pessoa interes- sada em questões sociais, econômicas, ambientais e culturais da atualidade? Mesmo sem saber exatamente quem é você, ao aprender com a Antropologia da Educação, com certeza vai desenvolver seu espírito crítico e uma visão mais humanista. Poderá ampliar sua visão de mundo buscando conhecer e valorizar a diversidade, de modo a tornar-se capaz de sen- tir mais empatia e ser solidário com os demais. Essas são algumas das características esperadas atualmente em um profissional de qualquer área. Dessa forma, poderá fazer as melhores escolhas, assumindo e se responsabilizando pelas consequências, de maneira a contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que luta para combater preconceitos e qualquer tipo de discriminação, além de promover a inclusão de grupos minoritários. Sua capacidade de comu- nicação e argumentação será melhor e mais bem desenvolvida. Além disso, poderá desenvolver diversas competências e habilidades importantes, especialmente aquela que na atualidade talvez seja uma das mais importantes para a vida em comunidade: o respeito ao outro. Vídeo Antropologia da educação36 Mas você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com a Antropologia? Tudo! E sabe por quê? Porque somos seres sociais e sociáveis, que produzem cultura, e tudo o que acon- tece na sociedade nos diz respeito, direta ou indiretamente. Lembra a relação que vimos entre o social e o cultural? Temas que fazem parte do nosso dia a dia podem se tornar objetos de estudo da Antropologia da Educação, como: a crise na educação; os maus resultados dos estudantes; o difícil acesso de cer- tos grupos sociais à educação de qualidade (afrodescendentes, mulheres, indígenas, camponeses, pessoas de baixa renda, entre outros); intolerância; direitos humanos; políticas públicas; multicul- turalismo e diversidade étnica e cultural; relações de gênero; preconceito e discriminação. Enfim, temas que nos dizem respeito e que marcam a contemporaneidade. Pensar antropologicamente permite ao indivíduo distinguir o que pertence ao senso comum e o que é conhecimento científico, o que possibilita entender como se produz a diferença, qual sua impor- tância e como combater a intolerância. O indivíduo torna-se questionador e busca respostas que o aju- dem a entender o mundo em que vive e criar condições para promover as necessárias transformações. Sabendo das implicações da cultura e sua relevância para o entendimento dos grupamen- tos humanos, percebemos que foi possível compreender tanto as sociedades modernas, urbano- -industriais, quanto aquelas que desapareceram ao longo do tempo. Como vimos, cultura diz respeito a tudo aquilo que socialmente caracteriza a vida de um povo ou de grupos no interior da mesma sociedade. Um exemplo é a “cultura brasileira”, que diz respeito a todas as características pertinentes ao modo de classificar, definir e classificar a vida social (em termos materiais ou subjetivos) dos nascidos no Brasil. Mas devemos nos lembrar de que a cultura brasileira se define muito por aquilo ela não é: a cultura norte-americana, por exem- plo. O contraste é necessário para percebermos a alteridade, reconhecendo também que a cultura é uma parte da vida social. Podemos falar, ainda no caso da cultura brasileira, da língua portu- guesa (que não é a mesma de Portugal), da arte brasileira, da literatura, da música e de outras dimensões, inclusive a educação. Isso porque cada país pensa e configura seu sistema educacional de determinada forma, e este sem dúvida se relaciona com o projeto de nação que pretendemos construir. Ou a falta desse projeto... Para compreendermos o que vem a ser esse pensar antropologicamente, devemos nos lem- brar sempre de que, assim como todas as sociedades, a cultura é dinâmica, intercalando mudanças e permanências. Voltemos ao exemplo da comida. Ao fazermos uma etnologia dos hábitos alimen- tares de um grupo ou uma sociedade, perceberemos que há ingredientes/alimentos que permane- cem ao longo de muito tempo como parte constituinte dos padrões alimentares, enquanto outros desaparecem. Podemos observar também a mudança no modo de preparar determinada receita, o que não altera significativamente a tradição. Entretanto, quando pensamos no comer, temos um exemplo da dualidade natureza x cultura em sua forma mais clara: quando o alimento passa por um processo de manipulação ou cozimento, ele se transforma em comida. Agrega-se valor aos ali- mentos quando eles são culturalmente transformados em comida: no ritual da refeição eles podem significar prazer (um jantar romântico, por exemplo), memória afetiva (o bolo que sua mãe fazia em sua infância), consagração (celebração de Natal por meio da ceia) etc. O conceito de cultura 37 Assim, pensar antropologicamente é buscar o significado das nossas práticas culturais e procurar entender como foram construídas, com o propósito de promover um questionamen- to mais amplo sobre nossa existência. Decifrar os códigos culturais destaca as diferenças, ao mesmo tempo que delineia afinidades e similaridades, pontuando características universais da humanidade. Um exemplo: pense que em todas as sociedades humanas encontramos algumas instituições que são básicas, como Estado, família e escola.Mas será que a forma como elas se estruturam é a mesma em todos os lugares do mundo? Não! No caso da família como instituição social, um dos temas mais analisados pela Antropologia é a relação de parentesco. Isto é, o antropólogo estuda um grupo social para entender como os indivíduos se organizam em termos de relações afetivas, responsabilidades e compromissos. O que se percebe é que em todas as famílias existem papéis a ser desempenhados. Entretanto, há diferenças na maneira de se exercer esses papéis. O pai, em alguns grupos, é quem gerou o fi- lho; em outros, pode ser outra pessoa que não o pai biológico. O importante é saber quem assume a responsabilidade de ajudar a prover a família e criar os filhos, uma vez que em todas as culturas existe a ideia de paternidade. Outro exemplo nessa linha são as diferenças que observamos entre sociedades matriarcais e patriarcais. Nas primeiras são as mulheres que organizam a vida social e têm autoridade, enquanto nas sociedades patriarcais o homem – o pai – é a figura que determina o destino de todo o grupo familiar. Você concorda que isso define o tipo de sociedade e as diferenças entre elas? Quando se estuda a história da educação, vemos que essas diferenças estiveram presentes, definindo como seria não só o próprio sistema educativo, mas o perfil de professores e alunos. Buscar as razões pelas quais essas mudanças aconteceram e avaliar o papel desempenhado pela cultura nesse processo é o objetivo da Antropologia da Educação. Lembre-se de que a humanidade é alteridade e, quando nos debruçamos sobre a educação com base em um olhar antropológico, estamos em busca do que nos aproxima por meio daquilo que nos diferencia. Muito complicado? Não se você pensar no objetivo maior da educação em qualquer lugar do mundo: transmitir a cultura de um povo e socializar os indivíduos. Isso é universal, mas o que é particular é a maneira como isso ocorre. Ficou mais claro para você? Dessa forma, o pensar antropologicamente na educação se concretiza à medida que es- pecialmente o professor compreenda que tem um papel fundamental a cumprir. Isso porque, se deseja realmente não só favorecer a aprendizagem de seus alunos, mas criar condições para que exista empatia, compaixão e respeito em sua sala de aula, esse profissional deve também desen- volver em si esses valores. O sistema escolar deve fomentar a igualdade e o respeito à diferença, de modo a formar cidadãos críticos e conscientes da alteridade, e não apenas profissionais qualifi- cados em termos de habilidades e competências técnicas. Atualmente é quase consenso em empre- sas e instituições de ensino que um excelente profissional sob o ponto de vista técnico pode ser um péssimo cidadão, sobretudo se tiver uma visão de que sua cultura e visão de mundo são supe- riores às dos indivíduos com os quais convive. É mais fácil formar em termos de habilidades e com- petências para o exercício profissional do que fomentar uma visão humanista, construída aos poucos, ao longo de todo o processo de socialização, que começa na família. Antropologia da educação38 Pensar a educação por meio do viés antropológico significa olhar para o passado e analisar e avaliar o que foi feito e o que ainda se faz na atualidade, de modo a rever aquilo que não tem mais sentido. É pensar que a cada geração mais conhecimento é acumulado e deve ser transmitido. Portanto, a escola precisa se reinventar. Valores mudam e comportamentos são revistos na socieda- de. Isso exige que se supere aquilo que se tornou incoerente com os novos tempos. Você se lembra de quando falamos que a cultura é dinâmica? A educação também deve acompanhar as mudanças sociais e culturais da sociedade, ao mesmo tempo que a própria cultura pode demandar mudanças. E, assim como em todas as instâncias da vida em sociedade, é preciso compreender o significado das práticas culturais relacionadas ao sistema educativo, como perfil docente e discente, currículo, avaliação, evasão escolar, enfim, tudo aquilo que configura a educa- ção como um todo. Construir sua visão de mundo com base na percepção da alteridade possibilita entender também que o saber, seja de professores ou alunos, é múltiplo e plural. Foi construído ao longo da vida e da trajetória de cada um como indivíduo e ao mesmo tempo condicionado pela cultura na qual se vive. Esses conhecimentos provenientes de várias fontes devem ser considerados no mo- mento em que a interação social acontece, inclusive na sala de aula. Os avanços tecnológicos e as rápidas mudanças pelas quais as sociedades vêm passando, num ritmo inédito, podem contribuir para o pensamento antropológico, especialmente se forem vistos como meios para aproximar culturas diferentes e promover aprendizagem mútua, inclusive entre comunidades tradicionais e sociedades complexas urbano-industriais. Além disso, tais even- tos possibilitam pensar formas de preservação do meio ambiente como recurso para a preservação da espécie. Promove-se, assim, uma verdadeira conexão entre o material e o imaterial, os dois lados da mesma moeda – a cultura e a diversidade cultural. Garantir a pluralidade de expressões entre tantas culturas diferentes é construir um pen- samento inclusivo e mais generoso com e para a própria humanidade, reforçando a cooperação, colaboração, consciência coletiva e solidariedade entre indivíduos, povos e nações. E um aspecto que não se pode desconsiderar é que, quanto mais empática e harmoniosa for a convivência huma- na, maior será a possibilidade de se encontrarem soluções para diminuir a desigualdade social e a pobreza. Você já havia pensado nisso? A pobreza não é algo natural. É construída social e histori- camente e, portanto, passa pela cultura. Considerações finais Você conseguiu perceber a dimensão do conceito de cultura e sua relevância, não só para a Antropologia, mas para a educação? É uma importantíssima dimensão da vida em sociedade, um conjunto de tudo o que caracteriza a vida material e imaterial das sociedades. Como vimos, o social e o cultural relacionam-se estreitamente. Com sua característica de totalidade, está presente em todas as sociedades humanas. E o que significa isso? Quer dizer que, ao longo da história da humanidade, construímos nossos sistemas culturais, ou seja, nosso modo de viver não é algo dado naturalmente. Roberto da Matta (1989) pensa O conceito de cultura 39 nas formigas, espécie que é social e constrói comunidades com uma dinâmica que ordena sua exis- tência, com regras e papéis bem definidos para seus componentes. Mas a diferença básica entre as so- ciedades das formigas e as humanas é que nós pensamos sobre nossa existência. Esse antropólogo dá como exemplo o fato de que as formigas podem alterar o meio ambiente, mas que farão isso sempre da mesma forma, sem alterações, instintivamente. Nós, humanos, podemos raciocinar e, de acordo com os interesses do momento, mudar o meio que nos cerca de diferentes maneiras e com vários propósitos. Isso é racional e historicamente definido. Quer uma sugestão? Pesquise um pouco sobre a vida das formigas. Você vai se surpreender com a capacidade que elas têm de se organizar como sociedade. Mas nada se compara ao que nós podemos fazer. A cultura é uma produção coletiva, que deve ser apreendida também coletivamente. Isso quer dizer que, ainda que individualmente possamos criar coisas, mudar comportamentos e pen- sar de um jeito ou de outro, é socialmente que os sistemas culturais são construídos. E é por essa razão também que se diz que a educação é um processo social. A socialização do conhecimento de um grupo e sua transmissão às novas gerações acontecem formalmente na escola, mas a noção de espaço de aprendizagem atualmente está sendo revista. Hoje já há um consenso de que a aprendi- zagem acontece também em espaços não escolares, especialmente em razão das novas tecnologias da informação e comunicação. Outro aspecto que precisamos considerar, até porque impacta muito na educação, é o papel dacultura nas sociedades de classe, nas quais se observa uma relação de poder entre uma cultura dominante e uma dominada. Quanto mais simples for o grupo social, menos hierarquizada será a cultura. Você já ouviu falar em cultura erudita? Sabe o que é? Trata-se daquela cultura cujos elementos são apreciados por camadas sociais com maior poder aquisitivo e que tende a ser con- siderada melhor, superior à dita cultura popular, muitas vezes por exigir muito estudo e anos de preparação. A música clássica, por exemplo, é considerada parte da cultura erudita, bem como certas obras literárias, espetáculos teatrais como óperas, que em geral custam caro e por isso muitas vezes são inacessíveis às camadas mais pobres da população. Já a cultura popular está muito ligada às tradições e é composta pelas manifestações do folclore, por exemplo, ou o artesanato de grupos locais que se expressam de forma mais simples e com os recursos disponíveis na região. Muitas vezes a cultura popular é transmitida oralmente e é mais acessível financeiramente às camadas com menor poder aquisitivo. Em termos de diversidade cultural, a cultura popular é mais numerosa em suas manifesta- ções, uma vez que está relacionada ao local, ao regional e representa as particularidades de cada povo. Enquanto isso, a cultura erudita é mais homogênea e pode se fazer presente em diferen- tes sociedades. Mas, pensando antropologicamente, podemos dizer que uma é superior à outra? Se você respondeu não é porque compreendeu o que significa o olhar antropológico. Finalmente, devemos reforçar que os elementos da cultura – valores, costumes, crenças, tradições e toda a cultura material – não significam nada isolados e desconectados da história e da realidade da sociedade na qual se inserem. Em sua dinâmica e de acordo com o processo social que a define, a cultura muda e muitas vezes se transforma para se manter, como no caso das tradições, que às vezes precisam ser reforçadas e ajustadas para que não desapareçam. Antropologia da educação40 Atividades 1. Uma questão importante para a Antropologia é que devemos sempre falar em culturas, e não em cultura. Ao mesmo tempo, há várias definições para esse termo nas Ciências Sociais. Afinal de contas, o que é cultura? 2. Um dos conceitos-chave da análise antropológica é o de diversidade cultural, relacionado às diferenças que encontramos entre indivíduos, grupos e sociedades. A essa ideia está relacio- nado o conceito de relativismo cultural. Explique o que é relativizar. 3. Ao lado da discussão a respeito do que seja cultura para a Antropologia, é preciso entender a forma como ela funciona e interfere na vida social. Um dos pensadores que melhor definiu como opera a cultura é Roque de Barros Laraia. O que nos diz tal autor sobre esse assunto? 4. A consolidação da Antropologia como ciência, a qual toma inclusive a educação e a cultura escolar como objetos de estudo, apresentou a nós uma nova forma de ver o mundo. De acor- do com o que estudamos, o que é pensar antropologicamente? Referências DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia social. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1989. LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. UNESCO. Declaração universal sobre a diversidade cultural. 2002. Disponível em: <http://unesdoc.unesco. org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2018. 3 O diálogo entre a Antropologia e a educação Uma das lições mais importantes que o olhar antropológico nos apresenta é a ideia de multiplici- dade, ou seja, a noção de que ao lado da unidade há algo que pode ser decomposto em várias partes. E, quando se pensa na educação, isso se torna ainda mais relevante, especialmente se considerarmos que uma sala de aula é uma unidade, mas a multiplicidade pode ser percebida nas diferenças entre os alunos. Cada ser é único e especial, mas o coletivo forma outra coletividade, marcada pela diversidade. Assim, identificar e interpretar os desdobramentos dos conceitos de etnocentrismo e relati- vismo cultural nas relações humanas e, em especial, fazer a abordagem antropológica do processo educativo são objetivos da Antropologia da Educação. 3.1 Etnocentrismo, relativismo cultural e educação Desde o início desta obra, discutimos o quanto e há quanto tempo o homem tenta entender o mundo que o cerca, buscando modelos explicativos para, sobretu- do, entender as diferenças. O eu e o outro são elementos indissociáveis e só existem em relação e em contraste entre si. Vimos que, ao longo da história, o choque cultural entre grupos e socieda- des foi e ainda é uma constante. O exemplo que apresentamos no início do livro – o contato entre europeus e as populações nativas das Américas durante a expansão ultramarina – é clássico para notarmos as consequências do não reconhecimento do outro. Nesse caso, os colonizadores sequer consideravam aquelas populações como humanas. Podemos nos lembrar também do caso dos negros africanos trazidos para as Américas e transformados em escravos. Mas, antes de avançarmos nesse exemplo, é importante dizer que, durante o mercantilismo1, os países pioneiros nas chamadas Grandes Navegações – Portugal e Espanha – empenharam-se em criar nas novas terras as condições necessárias para montar o empreendimento colonial. Esse projeto se sustentou com o chamado Pacto Colonial, estabeleci- do entre o país colonizador (a metrópole) e os países colonizados (as Colônias). Ele determinava que estas só podiam se relacionar economicamente com suas metrópoles. Tudo isso garantia a manutenção do poder dos países colonizadores e aumentava seus lucros. Nesse contexto, a escra- vidão de negros africanos era um grande negócio. Tanto era assim que o tráfico negreiro naquela época (século XVI até o século XlX) era permitido legalmente e bastante rentável. Os portugueses buscaram especialmente na África – Angola, Guiné, Benin e Moçambique – os indivíduos para serem transformados em escravos, montando diferentes estratégias para isso. 1 O mercantilismo foi o sistema econômico que vigorou durante a Idade Média após o fim do feudalismo, durante o qual os Estados nacionais intervinham fortemente na economia. Uma de suas características era a colonização de novas terras, nas quais a escravidão negra africana se impôs como forma de garantir a mão de obra necessária para a atividade econômica, em geral monoculturas voltadas para exportação. Vídeo Antropologia da educação42 A mais eficaz foi aproveitar que a instituição da escravidão já existia em vários lugares daquele continente, ainda que sem fins monetários, isto é, com o objetivo de ganhar dinheiro. Entre os africanos, eram transformados em escravos principalmente inimigos e prisioneiros de guerra. Para conseguirem capturar os negros, os portugueses se aproveitaram das inimizades entre as di- ferentes tribos e reinos. Isso resultou na prática de africanos capturarem africanos, o que facilitava muito o desenvolvimento do negócio para os europeus. Dessa forma, em pouco tempo a escravidão estava instalada na América. No Brasil, por exemplo, durou mais de 300 anos. Você consegue imaginar o que isso significou para o país? Nesta obra, ainda falaremos muito do legado do escravismo para a sociedade brasileira, em especial para a população afrodescendente, ainda hoje excluída e discriminada. As condições de travessia do Oceano Atlântico para o continente americano eram terrí- veis: os navios negreiros vinham lotados de escravizados, em péssimas condições de higiene, com alimentação precária e ocorrência de várias doenças, situação que fazia muitos indivíduos morrerem durante a viagem. Aqui chegando, a situação não melhorava... Exatamente por nega- rem a própria natureza humana a essas pessoas, o tratamento a eles dispensado era, obviamen- te, desumano. Na chegada ao Brasil, eram vendidos em feiras e inspecionados pelos prováveis compradores como animais,sem o menor respeito por seus sentimentos ou suas necessidades. Na Figura 1, podemos ver uma representação das condições de um porão num navio negreiro. Além de terem que suportar a travessia quase sem água e comida, os africanos ainda sofriam vio- lência física e, muitas vezes, psicológica. Isso porque uma das estratégias utilizadas pelos traficantes para submeter os negros e manter um controle maior sobre eles era separar as famílias, o que causava enorme abatimento emocional e fazia com que muitos indivíduos se rendessem a tal situação. Figura 1 – Quadro de Johann Rugendas que representa o poema épico “Navio negreiro”, do poeta Castro Alves, retratando a condição dos escravos nesse tipo de embarcação. Fonte: RUGENDAS, Johann Moritz. Navio negreiro. c. 1830. Gravura: 35,50 x 51,30 cm. Museu Itaú Cultural, São Paulo, SP. O diálogo entre a Antropologia e a educação 43 Agora observe a Figura 2: os escravos eram apresentados como mercadorias em feiras e mer- cados, seminus, sem nenhum respeito algum à sua dignidade. Eram avaliados por seu porte físico e potencial capacidade de trabalho. Seriam comprados e depois mantidos vivos com o menor inves- timento possível, o que, em geral, em virtude das péssimas condições de alojamento e alimentação e dos maus tratos, encurtava significativamente suas vidas. Figura 2 – Gravura de Edward Francis Finden, retratando um mercado de escravos na cidade do Rio de Janeiro. Fonte: FINDEN, Edward Francis. Slave market in Rio de Janeiro. c. 1824. Gravura. Library of Congress, Washington, DC. Os escravizados encontraram várias formas de resistir a essa condição. Uma das ações mais conhecidas foi a formação dos quilombos, comunidades nas quais os negros fugitivos se organizavam para retomar suas vidas. O quilombo mais famoso foi o de Palmares, localizado em Alagoas e comandado por Zumbi. Como em outras localidades, a repressão a essa iniciativa foi implacável e várias comunidades foram destruídas. Os negros africanos escravizados também buscaram formas de preservar seus costumes, mesclando elementos de sua cultura de origem à cultura da terra para a qual eram levados. Isso se refletiu na religião, na culinária e nas artes dos afrodescendentes. No Brasil, a Bahia é um dos estados nos quais melhor se observa essa mistura. E por que estamos falando disso tudo? A violência cometida em relação a esses indivíduos decorreu do fato de ter sido uma prática comum entre os colonizadores o desrespeito à diferença e a forma como ela era pensada. Após o surgimento da abordagem antropológica, passou a existir um grande esforço para não só reconhecer, mas aprender a lidar com a diversidade, numa tentativa de cada vez mais compreender as diferentes formas do outro. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Edward_Francis_Finden&action=edit&redlink=1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_de_Janeiro_(cidade) Antropologia da educação44 Como vimos, ainda que tenha sido sob a lógica do desenvolvimento do evolucionismo, grande marco teórico na história da Antropologia, a percepção da alteridade começou a ser cons- truída como modelo explicativo. Entretanto, como a diversidade era vista como base na noção de progresso e estágio de desenvolvimento das culturas de sociedades não europeias, portanto não civilizadas, era preciso ter um referencial por meio do qual as sociedades seriam comparadas. Assim, o primeiro passo dos evolucionistas foi adotar um conceito de cultura que atendesse aos seus objetivos. Na obra A origem das culturas, o antropólogo inglês Edward Tylor elaborou uma das definições de cultura mais aceitas ao longo de todo o século XIX, na qual cultura e civiliza- ção são quase sinônimos e para a qual cultura diz respeito ao conhecimento, às crenças, à arte, às leis, a moral, aos costumes, às capacidades e aos hábitos adquiridos pelo homem como mem- bro de uma sociedade. Essa definição trazia implícita a ideia de que todas as sociedades primitivas poderiam chegar à civilização, porém, mais do que isso, de que a sociedade do eu (a minha) seria mais importante e superior à sociedade do outro. Isso, como já vimos, foi devastador para vários povos. É nesse con- texto que observamos que não há espaço para o relativismo. Assim chegamos ao conceito que será o fio condutor deste capítulo: o etnocentrismo. Mas antes veremos como, aos poucos, o próprio evolucionismo produziu as condições para sua superação. E como isso aconteceu? Exatamente porque, ao não perceber o outro, acabou fazen- do com que esse outro, ainda que visto como atrasado, assumisse seu papel na história e exigisse que sua natureza humana fosse aos poucos reconhecida. A questão que se colocou foi a seguinte: se esse outro, o não europeu, poderia ser primitivo ou atrasado, isso queria dizer que, de alguma forma, ele era humano. Você percebe o quanto isso foi impactante para a análise antropológica? Aqueles povos, que num primeiro contato foram analisados numa lógica da negação de sua natu- reza humana e em seguida como não civilizados, aos poucos foram vistos com base no contraste, na diversidade e, finalmente, na alteridade. A diversidade facilita a ampliação do conhecimento sobre o outro, mas também pode cons- truir abordagens excludentes sempre que um indivíduo ou grupo entenda que só pode se afirmar caso negue esse outro. Lembra-se de quando falamos sobre os diversos conflitos que já acontece- ram e outros mais recentes, causados pela intolerância ao diferente? O etnocentrismo está na base da maioria deles, muitas vezes como resultado da ignorância e da intolerância que o medo do novo e do desconhecido pode gerar. Em algum momento da sua vida, você deve ter visto ou até mesmo vivido uma situação na qual uma pessoa (ou você mesmo) emitiu uma opinião preconceituosa e infundada ao lidar com alguma coisa que não conhecia bem. E o novo, como temos visto aqui, quase sempre gera essa rea- ção. Como cultura é um sistema marcado por símbolos e códigos, é comum cada indivíduo ver a sua como natural e como padrão a ser seguido por todos. O que não se justifica se estamos em um mundo tão plural, não acha? E é isso que chamamos de etnocentrismo, que se opõe radicalmente ao relativismo cultural. E sabe por quê? Porque quase sempre o etnocentrismo é irracional, frágil em termos de argumentação e inconsciente. Por outro lado, para relativizarmos, precisamos assumir a O diálogo entre a Antropologia e a educação 45 postura de querer relativizar. Necessitamos exercitar o relativismo e lutar contra nossos preconcei- tos e nossas verdades prontas sobre o outro, de maneira objetiva. Quando se fala do etnocentrismo e sua relação com o relativismo cultural, temos a opor- tunidade de rever nossos valores, nossos conceitos e, obviamente, nossa visão de mundo. Mas, para isso, é preciso adotar o que chamamos anteriormente de atitude antropológica e começarmos a pensar antropologicamente. Podemos analisar o outro com base no estranhamento; com isso teremos mais condições de conhecer o novo, vivenciar e experimentar elementos de uma cultura diferente da nossa. Isso porque, quanto mais intolerantes formos, mais difícil será o convívio social e muito se perderá em termos de aprender com o outro. 3.2 Escola, cotidiano e educação na atualidade Para você entender melhor esse tema, pense em um dos muitos grupos aos quais você pertence: sua família, seus colegas de trabalho, seus amigos, enfim, pen- se nas pessoas com as quais convive. Agora escolha um deles para imaginar como seria um grupo diferente dele. Observe a ilustração da Figura 3. Figura 3 – Tribos urbanas Qual é sua “tribo”? Hippies, surfistas, metaleiros, rappers? Ou pertence a outro tipo de tur- ma? Do que vocês gostam? O que fazem quando estão juntos? Como se vestem? Que tipo de mú- sica ouvem? Como se comportam em relação aos que não são como vocês ou não têm os mesmos gostos? Costumam aceitar facilmente um novo membro no grupo? Qual é a tolerância que têm em Vídeo Vl ad ay ou ng /i St oc kp ho to Antropologiada educação46 relação ao diferente? Conforme o que você responder, poderá avaliar em que medida seu compor- tamento tem sido etnocêntrico. Pense sobre isso. Mas, afinal, o que é etnocentrismo? Podemos, de acordo com Rocha (1988, p. 7), defini-lo como uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Esse autor complementa que o etnocentrismo é “indagar sobre um fenômeno onde se mis- turam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos” (ROCHA, 1988, p. 7). O argumento para justificar a aversão ao outro, numa postura etnocêntrica, é quase sem- pre sem muito fundamento além do fato de não querermos ter de lidar com a diferença. Eu e meu grupo somos a referência para ver o mundo, e não há espaço para a tolerância e a aceitação, para a vontade de aprender algo novo com o outro. A percepção da diferença muitas vezes é ameaçadora para nossa identidade e nossa seguran- ça em relação a quem somos. Ela nos mostra o quanto sabemos pouco ou nada sobre o diferente de nós, o que para muitos é muito preocupante. É impressionante o quanto atitudes etnocêntricas podem desencadear reações de intolerância e violência. Ao pensarmos antropologicamente na educação, o conhecimento do outro é quase condição básica para uma convivência respeitosa e harmoniosa, para o crescimento individual e coletivo. Além disso, trabalhar a diversidade e o relativismo cultural é entender que temos mais em comum com o outro do que muitas vezes imaginamos. Aqui é importante lembrarmos o que nos dizem Marconi e Presotto ao definir o que é a Antropologia e apresentar seu objetivo e objeto de estudo: A Antropologia visa ao conhecimento completo do homem, o que torna suas expectativas muito mais abrangentes. Dessa forma, uma conceituação mais am- pla a define como a ciência que estuda o homem, suas produções e seu com- portamento. O seu interesse está no homem como um todo – ser biológico e ser cultural –, preocupando-se em revelar os fatos da natureza e da cultural. Tenta compreender a existência humana em todos os seus aspectos, no espaço e no tempo, partindo do princípio da estrutura biopsíquica. Busca também a compreensão das manifestações culturais, do comportamento e da vida social. [...] A Antropologia como ciência do biológico e do cultural tem seu objeto de estudo definido: o homem e suas obras. (MARCONI; PRESOTTO, 2011, p. 2) Ver a Antropologia como “ciência que estuda o homem” e que tenta “compreender a natu- reza humana” já faz dela uma área do saber com todas as condições para estabelecer um diálogo muito produtivo com a educação. Pode ser também extremamente rica para pensar o processo ensino-aprendizagem e seu impacto na compreensão da alteridade. Diante do que vimos até aqui, você já deve ter entendido que o etnocentrismo está na raiz da intolerância e da criação de estereótipos construídos em relação ao diferente. Quem, ao menos uma vez na vida, não rotulou uma pessoa porque ela tinha alguma característica que a fazia ser O diálogo entre a Antropologia e a educação 47 diferente da maioria? Nas salas de aula nas quais você foi aluno, deveria existir o “CDF”, aquele aluno que estudava muito e “sabia tudo”. Também havia a “turma do fundão”, composta pelos alu- nos mais “indisciplinados” da classe, correto? Atualmente, como futuro educador e considerando sua experiência escolar, você pode rever esses rótulos e pensar por que o aluno que estuda e é responsável às vezes vira motivo de chacota na turma. Ou: será que a chamada “turma do fundão” não é formada por alunos para os quais a escola e/ou as aulas não despertam nenhum interesse? Será que comportamento destes não é uma reação à falta de motivação para as aulas e o processo de aprendizagem? E você, como era visto por seus colegas? Como via seus colegas de turma? Você foi daqueles que julgou e rotulou ou foi vítima desse tipo de comportamento? Infelizmente, na nossa sociedade, em razão do confronto com a diversidade, temos muitos exemplos de preconceitos gerados pelo etnocentrismo que se reproduzem no ambiente escolar. Rocha (1988) dá alguns exemplos desses rótulos e estereótipos que refletem atitudes etnocêntricas em relação a mulheres, velhos, negros, surfistas, gays etc., indivíduos que têm em comum apenas o fato de serem diferentes de quem os classifica. É comum uma característica física de uma pessoa, como ser mais gordinha do que o definido pelo padrão estético da sociedade, ser transformada em estigma que identifica aquela pessoa. Entretanto, se sempre tivermos em mente que um sistema cultural é algo bastante amplo, facilmente poderemos concluir que um ou outro traço ou caracte- rística de um indivíduo não é suficiente para defini-lo. Somos muito mais complexos do que isso, não acha? Nesse sentido, a escola se constitui no espaço por excelência para se exercitar o relativismo cultural e combater atitudes etnocêntricas, exatamente pelo que já comentamos aqui: ela é um microcosmo da sociedade mais ampla. O que acontece fora do espaço escolar nela se reproduz. É o lugar para “colocarmos novas lentes” e tentarmos ver o mundo sob um novo olhar, sem classi- ficá-lo com base na lógica da superioridade, mas sim da complementaridade, da universalidade e da tolerância. Entretanto, uma das discussões que marcam a relação entre a Antropologia e a educação é o fato de se esperar da escola ações relacionadas ao reconhecimento da alteridade. Alguns educado- res questionam quando, com base na discussão em torno da diversidade cultural, do relativismo e do combate aos preconceitos, temas fundamentais para a Antropologia, atribui-se apenas à escola a responsabilidade pela transformação, tarefa que deve ser de toda a sociedade. Apesar de reco- nhecerem o papel fundamental que a educação desempenha como instituição na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva, esses educadores criticam o fato de que, ao longo do tempo, perdeu-se de vista o papel social da educação. Isso significa que as questões relativas à alteridade devem estar presentes no cotidiano escolar, mas sem que a escola continue sendo um dos mais importantes canais de transmissão da cultura. As mudanças pelas quais a sociedade vem passando exigem que a escola se reinvente, revise currículos e se questione o papel e a formação docente. Como se viu, o caráter dinâmico da cul- tura também demanda novas necessidades, o que implica em analisar, por exemplo, o impacto da cultura digital sobre crianças e jovens. Como isso mudará a visão de mundo das novas gerações? O que se diz é que hoje temos uma escola do século XIX, com professores do século XX e alunos do Antropologia da educação48 século XXI. Assim, como ajustar esse quadro e atender às demandas de toda a comunidade escolar, do sistema educacional do país, do mercado de trabalho e, por fim, do mundo atual? Uma das medidas para que a Antropologia e a educação se aproximem é exatamente trazer a discussão sobre a alteridade para a sala de aula por meio de uma atitude antropológica. E isso pode ser feito ao se discutir temas relacionados à diversidade cultural no espaço escolar, oportunizar a formação continuada aos professores para que sempre possam rever e aprimorar sua prática peda- gógica e inserir a comunidade escolar como um todo no processo de discussão. O cotidiano escolar é marcado por comportamentos decorrentes do não reconhecimento da alteridade. Nela, como na sociedade em geral, percebe-se uma enorme resistência ao relativismo cultural por parte dos indivíduos que acreditam somente na própria visão de mundo, em suas ver- dades e em seus julgamentos em relação ao mundo. E por que resistem? Porque questionar-se sobre os própriospreconceitos coloca em xeque sua segurança e o conforto do que se conhece e acredita. Isso pode ser perturbador e, quando é um processo coletivo, configura-se num possível cenário de intolerância, ódio e violência. Não estamos afirmando que não se pode ter convicções e opiniões, mas quando isso se baseia na resistência em reconhecer e aceitar a diferença, assume-se uma posição que certamente compromete a relação com o outro e, assim, deixa-se de estabelecer uma relação dialógica. Julgarmos diferenças culturais como exóticas, curiosas ou mesmo “esquisitas” é bastante co- mum. Mas quando isso é a regra, desvalorizamos tudo o que não nos é familiar e corremos o risco de assumir uma atitude etnocêntrica. Mais à frente, veremos uma das mais graves consequências que esse comportamento hostil pode gerar na coletividade: o racismo. No cotidiano escolar, vemos essa prática se desdobrar no bullying, um dos mais sérios e antigos problemas relacionados à diversidade cultural que encontramos no ambiente educacional. Lembra quando falamos nos estereótipos? Alguns deles, que até há algum tempo eram vistos como simples “brincadeiras de criança”, hoje são questionados porque sabemos das suas implicações para as vítimas, por não serem nada “inocentes”. Precisamos, numa atitude antropológica, entender que só se pode considerar brincadeira se todos os envolvidos também a perceberem dessa forma. O que significa dizer que, se a pessoa foco da suposta brincadeira não estiver se divertindo também, algo está errado. Pensemos numa sala de aula na qual um grupo escolhe um aluno que, por algum traço físico ou comportamental (como usar óculos ou ser muito tímido), começa a ser alvo de provoca- ção e recebe rótulos. A todo momento, passa a ser importunado sistematicamente, desrespeitado, diminuído, humilhado na frente do grupo, numa posição de inferioridade e deboche. Será que realmente ele considera isso uma brincadeira? Passar por essa situação diariamente é confortável para ele? Caso ele não se divirta, tais atitudes configuram-se bullying. Isso certamente, de alguma forma, afeta o alvo dessas “brincadeiras” e causa nele sofrimento. Você certamente já viu essa situação na realidade. Na prática podemos assumir diferentes papéis num caso assim. É possível sermos vítimas, agressores (sim, porque bullying é uma agres- são!) ou expectadores (ao assistirmos à humilhação e à agressão ao outro e não fazermos nada para O diálogo entre a Antropologia e a educação 49 impedi-las)2. Hoje, com o avanço da ciência, o fenômeno bullying está claramente definido em termos conceituais, psicológicos, psiquiátricos e até sob o ponto de vista criminal. Nesses termos, de forma alguma pode ser encarado como uma brincadeira. Pesquise para saber se na sua cidade o bullying já é considerado crime. Em muitos municípios brasileiros já existe legislação para comba- ter essa prática, que é um dos claros exemplos de comportamento etnocêntrico ainda encontrado no cotidiano escolar. A atitude antropológica certamente é um antídoto contra práticas assim, que podem afetar professores e alunos e comprometer a qualidade da educação. Em muitos casos, o sofrimento causado pelo bullying gera evasão escolar – a vítima prefere abandonar a escola a continuar vivendo aquela situação. A vítima também pode se tornar um agressor e reproduzir o mesmo comportamento que lhe causou tanta dor com outras pessoas. Em situações extremas, a vítima tira a própria vida para sair daquela situação. Veja que todas as vezes em que se falou em choque cultural, em razão do compor- tamento etnocêntrico, indivíduos ou grupos de alguma forma acabaram sofrendo e tendo seu direito à diversidade e até à liberdade comprometidos. Isso é muito grave! Por meio de políticas públicas de educação e ações mais efetivas, é possível que a escola seja um espaço no qual podem ser desenvolvidas campanhas de esclarecimento, orientação e conscientização de combate à intolerância e à não aceitação da diversidade cultural. Toda a comunidade escolar (dire- ção, coordenações, professores, alunos, funcionários administrativos e as famílias dos alunos) precisa ser envolvida para se tornar multiplicadora desse novo olhar sobre a diferença. É claro que o poder público tem um importante papel a cumprir, mas cada um de nós pode ser agente da mudança que deseja na sociedade. Vamos lembrar que o social e o cultural andam juntos e são interdependentes. O professor, no cotidiano escolar, tem o importante papel de ser um mobilizador para agre- gar pessoas para a causa da alteridade e da inclusão, combatendo a intolerância em todas suas formas. Ao se defrontar com conflitos gerados pelo estranhamento em relação ao outro, o docente pode promover debates em torno da questão, abrir espaço para que a discussão aconteça num am- biente acolhedor, respeitoso e inclusivo – espaço no qual haja uma escuta qualitativa, ou seja, ouvir o outro sem juízos de valor, numa postura de troca e reconhecimento mútuo. 3.3 A Antropologia para pensar o processo educativo Um dos temas mais relevantes para a educação é exatamente o pluralismo cultural e a multiplicidade de manifestações culturais decorrentes desse inten- so contato entre indivíduos, grupos e povos em todo o mundo. A universaliza- ção do acesso à educação aproximou pessoas que talvez nunca se encontrariam. As questões étnico-racial, de gênero, de sexualidade, religiosa, das pessoas com necessidades especiais e tantas outras diferenças aparecem na maioria das escolas, numa escala inédita em nossa história. Diante desse quadro, nós, educadores, ao adotarmos uma atitude an- tropológica, podemos transformar a diversidade cultural em elemento educativo. Isso porque, ao 2 Para saber mais sobre o bullying, vale recorrer ao livro de Ana Beatriz Barbosa Silva intitulado Bullying: mentes peri- gosas na escola, da editora Principium Editorial. Vídeo Antropologia da educação50 nos aproximarmos daqueles diferentes de nós, ampliamos nossos horizontes, buscando pontos em comum com o outro, em vez de nos afastarmos dele. O professor e a escola como um todo não podem ignorar ou minimizar conflitos decor- rentes de posturas etnocêntricas, sob o risco de reproduzir práticas que devem ser superadas. Em decorrência disso, a educação é observada por muitos atores sociais que esperam dela as soluções para os vários problemas presentes nas sociedades contemporâneas. Assim, podemos dizer que o objeto da Antropologia da Educação é o indivíduo que está em formação, as práticas pedagógicas e a forma como essas colaboram para a discussão sobre a alteridade. Estamos desde o início da nossa discussão afirmando que o homem precisa ser visto em sua totalidade, que não se esgota apenas numa ou noutra dimensão. Dessa forma, a educação tem como uma de suas atribuições oportunizar que o potencial de cada indivíduo possa se de- senvolver. A escola e o professor podem ser a referência e o modelo com base no qual o indivíduo construirá sua visão de mundo, seus valores e suas crenças, o que determinará seu comporta- mento em sociedade. Ao se relacionar com outros indivíduos, cada qual com sua identidade, po- derá se desenvolver e se humanizar cada vez mais, especialmente se isso acontecer num ambiente de tolerância, respeito e afetividade. Os caminhos da Antropologia e da educação se cruzam na medida em que as ciências, a par- tir do Iluminismo, tomam o homem como objeto de estudo com base no racionalismo e em uma lógica mais humanista. As ciências, então, trazem a questão da interdisciplinaridade para o campo teórico. Os conhecimentos que a Antropologia oferece à educação nos ajudam a compreender te- mas fundamentais para a formação e ação docente e formação integral dos estudantes. As mudanças culturais, motivadas por inovações ou transformações sociais, de alguma maneira impactam sua transmissão para as novas gerações, o que inexoravelmente interfere nos sistemas educativos. Isso faz sugirem tantas reformas na educação no Brasil e em outrospaíses. Disso decorrerão transformações nas diversas áreas do conhecimento – inclusive Antropologia e educação –, como veremos na sequência da nossa reflexão. São vários os temas abordados pela Antropologia da Educação no que diz respeito ao cotidia- no educacional, mas antes vamos falar um pouco de questões mais subjetivas e muito importantes. Estamos tratando também de valores como cidadania, pensamento crítico, flexibilidade, sensibilida- de à diferença, empatia e adaptabilidade, relevantes para o relacionamento interpessoal. Você con- corda que, desenvolvendo ou aprimorando essas habilidades, as trocas culturais podem acontecer em bases mais respeitosas e de aprendizagem mútua? Se conhecemos alguém diferente de nós e nos propusermos a aprender com ele, seremos outras pessoas e, provavelmente, indivíduos melhores. Cabe ao professor construir relações dialógicas em sala de aula, sem julgar ou tomar par- tido de um lado ou de outro quando surgirem conflitos ocasionados pela não percepção ou pelo desrespeito ao outro. Ficar atento para que seus princípios, valores e pontos de vista não sejam determinantes de sua conduta com seus alunos é fundamental, sob pena de reproduzir precon- ceitos e discriminação. Isso porque basta observar o dia a dia da escola para perceber que esta continua sendo um espaço no qual o relativismo ainda não é uma prática cotidiana. A solução O diálogo entre a Antropologia e a educação 51 está relacionada à valorização da diferença não por si mesma, mas em razão da oportunidade que ela apresenta para novos aprendizados. Sobre isso, podemos retomar a ideia de a escola, assim como outras instâncias da vida social, ser um lugar no qual relações de poder se configuram e se realizam. Dualismos têm sido mantidos e reproduzidos ao longo do tempo com base em relações de poder absolutamente desiguais: colonizador e colonizado; saber formal e senso comum ou saber informal; cultura nacional oficial e culturas locais (FLEURI, 2003, p. 18). Quando as relações se dão com base em hierarquias verticalizadas, como a relação pro- fessor-aluno, o relativismo fica ainda mais difícil de ser vivenciado. Quando o professor se rela- ciona com seus alunos com base em uma postura de autoridade, “dona da verdade”, dificilmente haverá aí uma relação dialógica, de forma que as diferenças serão reforçadas. O respeito à auto- ridade do professor em sala de aula deve estar ancorado no respeito que os alunos têm por ele, inclusive pela forma como administra os conflitos. E sabemos que estes são muitos. Pense, por exemplo, em todas as vezes que, ao longo da sua vida escolar, foi chamado a trabalhar em grupo e não se sentiu à vontade com isso. Quantas vezes, se tivesse podido escolher, não teria trabalhado com determinada pessoa? E quais eram as razões para isso? E o que é mais importante: qual foi a atitude de seu professor diante desse conflito? E como as divergências podem ser resolvidas? Tendo como base os valores e princípios que norteiam não só a instituição escolar, mas a socie- dade na qual ela se insere, procurando minimizar os confrontos decorrentes de comportamentos e atitudes etnocêntricos. Devemos ter claro que nossas atividades e práticas pedagógicas serão sempre fruto daquilo que somos e do que pensamos. Por conta disso, o cuidado em relação a comportamentos etno- cêntricos deve ser constante. Desde pequenas divergências entre grupos semelhantes até conflitos entre diferentes estão presentes no ambiente escolar e exigem da comunidade acadêmica e das famílias atenção à forma como serão conduzidas as manifestações dessas diferenças. A relativiza- ção que fundamenta o olhar antropológico é a melhor estratégia para que o professor adote uma postura que construa relações sociais mais harmoniosas entre indivíduos e grupos diferentes. Na relação entre a Antropopologia e a educação, é necessário que as barreiras que ainda existem entre as duas áreas sejam derrubadas, para que, juntas, possam contribuir para a dis- cussão e análise de temáticas relacionadas a: ética, relações étnico-raciais, orientação sexual e relações de gênero, opção religiosa, meio ambiente, trabalho e relações de consumo, direitos humanos, cidadania etc. E, entre elas, o tema da pluralidade cultural é um dos que demandam mais preparo dos professores, porque reproduz na escola as diferenças que mais geram conflitos em razão da não percepção da alteridade e que alimentam estigmas e preconceitos. Para se combater o etnocentrismo da escola e buscar o relativismo cultural, deve-se questionar também o currículo e os livros didáticos, nos quais é possível encontrar marcas de etnocentrismo e discriminação. Em relação ao currículo, a escolha dos conteúdos e a forma como são abordados re- fletem, em muitos casos, a realidade social brasileira – marcada por relações de poder e de submissão das minorias às maiorias. O outro nem sempre aparece ou, quando está presente, quase nunca tem voz e pode apresentar a própria história. Antropologia da educação52 Podemos lembrar, por exemplo, que até a promulgação da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), alterada pela Lei n. 11.645 (BRASIL, 2008), ambas mudando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (BRASIL, 1996), questões sobre africanidade e indigenismo e a educação étnico-racial praticamente não existiam. Os estudantes só ouviam falar em indígenas para refor- çar os vários estereótipos vigentes na sociedade brasileira, sem criticidade em relação à situação na qual se encontram essas populações no país. O mesmo acontecia com a população afrodes- cendente, cuja história se resumia aos mitos relacionados à escravidão e cuja contribuição para a cultura brasileria se restringia a aspectos religiosos ou culturais, como o samba e o carnaval. A ideia era que, ao definir a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afrobrasileira e africana, fosse resgatada uma dívida histórica em relação a essas populações, na tentativa de superar preconceitos e a exclusão. Mas, como sabemos, não basta que exista uma lei para que a realidade mude. O que promove a transformação são os questionamentos acerca das causas desses problemas e a proposição de ações de combate a posturas etnocêntricas. Abordando temas tão sensíveis em relação à alteridade, faz-se necessária também uma revisão nos livros didáticos, que, em alguns casos, ainda abordam as chamadas minorias de forma preconcei- tuosa e discriminatória, apesar de a maioria já estar de acordo com o que determina a lei. Podemos dar como exemplo a maneira como as famílias ou as mulheres são apresentadas em alguns livros: famílias “perfeitas” são aquelas compostas por pai, mãe e filhos. Da mesma forma, a mulher dificilmente aparece numa posição de igualdade ou equidade em relação ao homem. Assim, tais publicações tornam-se um instrumento a serviço da manutenção de uma sociedade na qual o direito à liberdade e à livre expressão são cerceadas e por meio do qual se reproduz uma realidade que se quer superar. A importância do lega- do dos negros africanos que aqui foram escravizados e das populações indígenas nativas do continente americano são extremamente importantes na formação da cultura e da sociedade brasileiras. Temas relacionados à avaliação e ao desempenho escolar (tais como fracasso escolar, evasão e baixa qualidade da educação) devem ser vistos à luz do conhecimento antropológico. Isso porque certamente questões relacionadas a diversidade social e/ou cultural poderão ser a causa primária de tais problemas. Sua superação implica na adoção da atitude antropológica, sobretudo por parte de quem pensa a educação e o sistema educativo no país. Devemos nos lembrar sempre do papel relevante que desempenha o professor nesse processo, uma vez que é ele quem está na “linha de frente”, em salas de aula marcadas pela heterogeneidade e pela diferença. Note quantos desafios se impõem hoje ao professor em sua atuação profissional e à melhoria da qualidade da educação! Especialmente porque, como todainstituição social, a escola tende a nivelar os indivíduos e homogeneizar culturas em nome da estabilidade social. Mas as diferenças muitas vezes afloram com base no confronto. Entretanto, tal problema deve ser superado, como se diz, por meio de relações dialógicas. A aproximação entre o educador e o conhecimento e o olhar antropológicos para mui- tos ainda é uma novidade, porque a troca entre eles é vista com alguma resistência, tanto por antropólogos como por educadores. Isso acontece muitas vezes em razão do desconhecimento das possibilidades que surgem quando esses caminhos se cruzam, em especial ao se desenvolve- rem as condições básicas para se pensar as diversidades social e cultural. Devemos lembrar que O diálogo entre a Antropologia e a educação 53 Antropologia e educação têm a cultura como ponto em comum, aquilo que nos permite viver em sociedade e aprender uns com os outros, compartilhando conhecimentos e tradições. Como afirmam Marconi e Presotto (2011, p. 2): “apesar da diversidade dos seus campos de interesse, constitui-se em uma ciência polarizadora, que necessita da colaboração de outras áreas do saber, mas conserva sua unidade, uma vez que seu foco de interesse é o homem e a cultura”. O saber e o olhar antropológicos não são únicos, mas em muito colaboram para superar o etnocentrismo. Em relação à educação e à prática pedagógica, esses dois elementos possibilitam a compreensão de que as diferentes formas de ver o mundo não podem ser classificadas com base em apenas uma referência. A interação entre indivíduos e a integração de saberes são modos para se alcançar o que alguns teóricos chamam de educação para a diversidade ou educação multicultural, na qual as diferenças não sejam anuladas em nome da unidade. Somente superando modelos ultrapassados de escola e de processos de ensino-aprendiza- gem será possível construir uma sociedade da aprendizagem, em que a diversidade não seja negada e na qual a inclusão se torne o objetivo maior. Finalmente, devemos sempre nos lembrar de que o homem e tudo o que ele produz (ou seja, cultura) são objeto da Antropologia e da educação. Dessa forma, trata-se de uma via de mão dupla, na medida em que o homem é produto da cultura, e o processo de transmissão dos sistemas cultu- rais se concretiza por meio da educação e do processo ensino-aprendizagem. Considerações finais A persistência do etnocentrismo na sociedade é uma das dificuldades para superar os diver- sos conflitos em andamento, alguns deles históricos e de complicada solução. E a maior dificuldade é exatamente o fato de não se conseguir relativizar e ver a diversidade em sua potencialidade agre- gadora, de aprendizagem e de crescimento pessoal e coletivo. Nesse sentido, a superação de preconceitos e tudo o que eles acarretam passa por uma revi- são de elementos que são base de qualquer cultura, tais como valores, crenças, princípios, compor- tamentos e, obviamente, as leis que normatizam a vida social. E isso é extremamente complicado ao pensarmos que o ser humano tende a ter medo do desconhecido, do novo. A atitude antropológica é uma das alternativas para superar essas limitações que nos foram impostas por nós mesmos. Pensar o processo educativo sob o olhar antropológico nos permite resgatar questões ain- da sem solução ou mal encaminhadas, como é o caso do fracasso escolar. E por quê? O que isso significa? Quer dizer que estamos há muito tempo convivendo com o fracasso, seja na forma de baixo desempenho escolar , seja de evasão. Imagine o aluno que, por fazer parte de uma minoria étnico-racial, já é fruto da desigualdade socioeconômica que marca nosso país e chega à escola e nela não encontra os referenciais de sua cultura valorizados e reproduzidos. Como ele se sen- te? Qual o significado dessa escola para ele? Como ela pode fazer sentido para esse aluno se no ambiente escolar não se “fala” de sua realidade? Ou quando o faz, reforça mitos e preconceitos? Nosso papel como educadores é de grande importância e temos muitos desafios pela frente. Você vai enfrentá-los? Antropologia da educação54 Atividades 1. Vimos que, ao longo da história, o choque cultural entre grupos e sociedades foi/é uma constante. Um dos fatos históricos que serve de exemplo do quanto o etnocentrismo pode ser danoso é o caso dos negros africanos trazidos para as Américas e transformados em es- cravos. O que justificaria, do ponto de vista do colonizador, o tipo de tratamento dispensado a esses indivíduos? 2. O evolucionismo foi um grande marco teórico na história da Antropologia, porque, com base nele, a percepção da alteridade começou a ser construída como modelo explicativo. Entretanto, ele trouxe alguns problemas. O que significou essa abordagem? Como os evolu- cionistas viam a diversidade? 3. O etnocentrismo está na base da maioria dos casos de preconceito, discriminação e exclu- são, sendo, muitas vezes, o resultado da ignorância e da intolerância que o medo do novo e do desconhecido pode gerar. Como se pode definir etnocentrismo? Como ele se relaciona com o relativismo cultural? 4. Um dos temas mais relevantes para a educação são o pluralismo cultural e a multiplicidade de manifestações culturais decorrentes desse intenso contato entre indivíduos, grupos e po- vos em todo o mundo. Como a aproximação entre Antropologia e educação pode contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e menos etnocêntrica? Referências BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394. htm>. Acesso em: 26 mar. 2018. ______. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que es- tabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639. htm>. Acesso em: 26 mar. 2018. ______. Lei n. 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para in- cluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018. FLEURI, R. M (Org.). Entre limites e limiares de culturas: educação na perspectiva intercultural. In: ______. Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. MARCONI, M. A; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011. ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,1988. 4 Os múltiplos olhares na educação Compreender o conceito de diversidade cultural é condição essencial para que possamos avaliar o impacto de atitudes e comportamentos etnocêntricos em espaços escolares ou não. A vida em sociedade nos apresenta muitos desafios, especialmente quando a diferença é vista como algo que classifica indivíduos depreciativamente, numa escala de valores cujos critérios decorrem apenas da cultura dominante ou de quem julga. E é na escola que se concretiza aquilo que define a sociedade mais ampla. Sendo assim, hoje o ambiente escolar precisa se reinventar e fazer uma análise crítica de suas práticas, a fim de que realmente cumpra sua função social. No entanto, para que a diversidade seja vista em todo seu potencial de aprendizagem e construção da cidadania, a formação docente também precisa passar por uma revisão crítica. Isso porque o profissional docente da atualidade não pode ser o mesmo do passado. O professor hoje precisa ter algumascaracterísticas básicas, sobretudo entender que a construção de uma so- ciedade mais justa e igualitária depende de sua atuação. A escolha da profissão docente não pode ser aleatória, sem critérios e sem a consciência de que é preciso unir vários saberes. Dessa forma, o professor encontrará subsídios para trabalhar a diversidade e o relativismo cultural em sala de aula, porque sabemos que a discriminação racial se manifesta na escola, seja nos materiais didáticos ou nos relacionamentos interpessoais. Por tudo isso, é fundamental que o educador se perceba como um mediador das tensões étnico-raciais que ali ocorram, ao mesmo tempo que possa atender às exigências postas pelas diretrizes que regem a educação no país. 4.1 A diversidade cultural em espaços escolares e não escolares A partir do século XVII, a humanidade sofreu o impacto de profundas trans- formações que marcaram especialmente a sociedade ocidental. Essas mudanças trouxeram o outro e seus problemas para mais perto e definiram significativamente o que somos hoje. Esse foi um período pelo qual o mundo passou por inúmeras mudanças sociais, políticas e econômicas, muitas delas impactando o Brasil. Desde a Revolução Inglesa, vista como a primeira revolução burguesa da história, a burguesia surgiu como o principal agente histórico e social de mudança. Com isso, essa classe criou as condições necessárias para duas outras grandes revoluções. Com base nelas iniciou-se o processo de consoli- dação do capitalismo como modo de produção hegemônico, colocando fim ao regime feudal. A Revolução Industrial e as mudanças delas decorridas mudaram para sempre o mundo do trabalho, especialmente pelo advento das fábricas e pela nova divisão social do trabalho. Antes dessa revolução, a vida era eminentemente rural, agrícola, tendo a família como suporte e o senhor feudal como protetor, a quem todos deviam fidelidade. As atividades comerciais que foram se desenvolvendo transformaram as cidades no centro da atividade econômica. Elas atraíram grande número de trabalhadores, que abandonaram o campo por não conseguir mais tirar seu sustento Vídeo Antropologia da educação56 desse espaço. O capital acumulado das atividades comerciais foi investido nas fábricas e no maqui- nário necessário para seu funcionamento. Mas só isso não possibilitaria a revolução. Foi preciso também que houvesse uma fonte de energia (o carvão), um novo meio de transporte para deslocar pessoas e a produção (a locomotiva) e um mercado consumidor para comprar os produtos fabri- cados. Surge daí a preocupação com os mercados fora da Europa, em especial as Américas, em que existiam diversas colônias espanholas e a portuguesa, o Brasil, que receberam apoio inglês para seus projetos de independência. Afinal, as colônias só podiam comercializar com suas metrópoles. Além disso, elas eram escravocratas. Ou seja, nas colônias não havia mercado consumidor. Então, foi preciso também apoiar o fim do regime escravocrata. As cidades industriais se tornaram lugares difíceis para se viver. Bastante populosas e sem condições de receber tantos trabalhadores que para elas migravam em busca de emprego, eram sujas, insalubres, violentas e extremamente poluídas. Nas fábricas as condições de trabalho eram precárias, com longas jornadas diárias (12 a 16 horas), sem ventilação e higiene, alto índice de acidentes de tra- balho e a presença de crianças, mulheres e até gestantes como operários. Já a Revolução Francesa constitui-se num dos momentos de maior expressão na história do ocidente quando se fala em movimentos sociais e políticos, apresentando uma proposta baseada em ideais como liberdade, igualdade e fraternidade. Mesmo deixando muito a desejar em rela- ção a esses valores revolucionários, atualmente não se pode negar que seu poder transformador se concretizou em várias regiões do mundo e repercutiu a ponto de mudar para sempre a história do homem e da vida em sociedade. Essa revolução acabou com os privilégios feudais, pondo abaixo a aristocracia que deles usufruía. Essa elite social vivia indiferente à pobreza da maioria, especial- mente as populações rurais, que sofriam com a alta dos preços, as más colheitas, o êxodo rural em razão do avanço das atividades têxteis, o descaso e o abandono. As graves repercussões sociais e econômicas desse quadro são a base que impulsionou os revolucionários. Essa revolução ultrapas- sou os limites da França, e seus ideais se entenderam por toda a Europa, ameaçando hierarquias e privilégios. As elites não podiam mais ignorar o outro que antes lhes era invisível e indiferente. Após a consolidação do capitalismo e da nova sociedade industrial, estabeleceu-se um modelo de produção pautado na industrialização, que separou tecnologia, natureza e homem. Novas formas de organização social que abalaram a ordem social estabelecida trouxeram in- quietações aos setores mais conservadores da sociedade europeia da época. O trabalho passou a ser visto e vivido de outra maneira, não mais como algo humilhante, degradante ou exclusivo dos escravos (tal como era visto da Antiguidade) ou dos servos (no mundo feudal). Ele adquiriu um caráter de atividade que dignificava e qualificava o homem, capaz de gerar lucro e riqueza. Mas é claro que nem tudo correu tão bem como se poderia imaginar. Precisamos pensar que era necessário formar esses indivíduos para o trabalho, o que não foi uma tarefa fácil. Houve, então, uma separação entre o trabalhador e o produto final advindo de seu labor, uma vez que o capitalista é quem passa a exercer o controle técnico do processo de produção e deter os meios de produção (terra, ferramentas e instrumentos de trabalho). O operário tinha apenas sua força de trabalho e passou a vendê-la em troca de um salário, alienando-se do processo e perdendo a visão global da produção. A sociedade industrial viveu crises e conflitos após esse Os múltiplos olhares na educação 57 momento, especialmente pelo rompimento entre o capital e o trabalho, que dividiu e abalou a so- ciedade como um todo. Novas demandas e formas de pensamento passaram a existir, sugerindo que o corpo teórico e metodológico do qual se dispunha naquele momento não era suficiente para analisar e explicar as questões então colocadas diante da humanidade. Isso foi decisivo para a constituição das Ciências Sociais, sobretudo a Sociologia e a Antropologia, que tinham a missão de pensar essa nova socieda- de. Como dito anteriormente, foram tempos muito marcados pela ideia de progresso. Nas regiões em que não houvesse industrialização e urbanização, não existiria progresso, tratando-se, portan- to, de povos e países atrasados. Isso foi bastante negativo para muitos povos ao redor do mundo, que passaram a ser discriminados e sofrer com o racismo. Por isso, como vimos, o evolucionismo e o darwinismo social marcaram esse período e por algum tempo serviram como “justificativa teórica” para perseguições e racismo, especialmente na Europa e no contexto do imperialismo e do neocolonialismo, que se estenderiam até a primeira metade do século XX. É nesse contexto que a Antropologia se desenvolveu como ciência. Até boa parte do século XX, os estudos na área da educação tiveram como foco a comparação entre indivíduos, seu desempenho e suas capacidades, à luz de critérios ditos científicos decorrentes das premissas estabelecidas pelo darwinismo social. Ao lado da Antropologia física, a Antropologia da Educação, baseada nos méto- dos das Ciências Naturais, mediava, avaliava e analisava para fazer comparações, o que durou mais algum tempo. Aos poucos a Antropologia social e cultural ocuparam seu espaço e mudou a forma de ver seu objeto de estudo: o homem. Agora, com o objetivo de compreendê-lo em sua totalidade, com base em outras categorias de análise e tendo como método de trabalho a etnologia, essa ciência fundamentou-se, sobretudo, no trabalho de campo. Com isso foram inevitáveis o contato e a necessi- dade de compreender as diferentes sociedadese culturas. No Brasil, essa percepção do outro, como inferimos até aqui, ocorreu de forma bastante problemática, uma vez que ele aparecia em posições subalternas, sobretudo na condição de escravo ou nativo. As relações étnico-raciais foram marcadas pela negação, por mitos e por conflitos, sendo a discussão sobre o tema muito recente em relação ao processo educativo, em especial quanto às características que um profissional da educação deve ter para um bom desempenho. Como a sociedade contemporânea muda num ritmo inédito, a formação profissional de diver- sas áreas tem sido revista para atender às demandas impostas no que diz respeito à formação geral e profissional do indivíduo. Nesse contexto, a inclusão social aparece como foco de preocupação quando se pensam os processos formativos, e isso inclui a Antropologia da Educação – isso porque a educação não é neutra. A pluralidade de identidades presentes na escola exige um intenso trabalho de articulação entre as diferenças, para que as ações individuais se transformem em contribuições efetivas na consecução dos objetivos pedagógicos da escola. Quando os caminhos da Antropologia, da Pedagogia e da educação se cruzam, novos atores passam a fazer parte desse universo de discussão, especialmente se tivermos em mente a necessida- de de buscar a qualidade da educação, a qual deve se comprometer com a cidadania e com a inclu- são. Nesse contexto, a educação em espaços não escolares tem sido, cada vez mais, tema de vários estudos e pesquisas na área da Pedagogia social, vertente que vê a importância desses espaços para Antropologia da educação58 o processo educativo e para a socialização de indivíduos que se encontrem em situação extraordi- nária ou de vulnerabilidade. Num país como o Brasil, no qual a educação historicamente não tem sido prioridade do go- verno e da sociedade (não vamos nos eximir da nossa responsabilidade, não é mesmo?), o profissio- nal que escolhe a carreira docente sabe de antemão que encontrará muitas dificuldades. Podemos citar alguns exemplos: a baixa remuneração; as difíceis condições de trabalho (especialmente na rede pública); a falta de reconhecimento profissional pela sociedade e o status da profissão. Enfim, muitas questões devem ser levadas em conta antes de se escolher essa área. Veja que aqui o termo educador é mais adequado que professor, uma vez que estamos falando das várias áreas de atuação do pedagogo e dos licenciados de modo geral. E educador também é o que melhor se ajusta ao objetivo maior do processo educativo: formar cidadãos! No entanto, é isso que temos visto em nosso país? O que você acha? Em sua experiência como aluno, o que observou nas escolas que frequentou? Por exemplo, a questão étnico-racial foi um tema presente em sua vida escolar? Como e quando foram abordados os conflitos gerados pela diversidade? Provavelmente sua vivência não foi muito diferente daquela da maioria dos estudan- tes brasileiros: convivemos com a discriminação, o preconceito e a exclusão, mas por muito tempo pouco se falou sobre tais problemas e menos ainda se agiu para tentar combatê-los. Podemos dizer que esses temas efetivamente passaram a fazer parte de forma mais concreta nas escolas e espaços não escolares a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – a LDB, em 1996. Toda a legislação posterior tem tentado orientar e normatizar o sistema educa- cional no sentido de contemplar e lutar contra qualquer tipo de desigualdade. Mas apenas a lei não é suficiente para mudar uma realidade. As políticas públicas devem se voltar para a resolução dos pro- blemas, e ações precisam ser realizadas para que tudo isso não fique apenas no plano das intenções. Particularmente quando falamos em diversidade étnico-racial, o problema é ainda maior, uma vez que no Brasil tendemos a ignorar ou minimizar a miscigenação característica da forma- ção de nosso povo. Já falamos anteriormente que há uma tendência de que a cultura dominante se sobreponha e oprima a dominada. Nesse caso, a cultura subjugada é a das minorias. De acor- do com o Censo 2010, comparando-se com o Censo 2000, o percentual de pardos na população brasileira cresceu de 38,5% para 43,1% (82 milhões de pessoas) em 2010. A proporção de pretos também subiu de 6,2% para 7,6% (15 milhões) no mesmo período. Os resultados indicam também que a população que se autodeclara branca caiu de 53,7% para 47,7% (91 milhões de brasileiros) (BRASIL, 2012b). É importante destacar que qualquer mudança desses indicadores de alguma for- ma reflete transformações culturais, seja pelo aumento da discussão acerca da discriminação e do racismo, seja pela inserção da temática das relações étnico-raciais na pauta das questões que devem ser tratadas pela sociedade. Por meio da Antropologia, a alteridade se constitui em objeto de estudo. Aos poucos outras áreas do saber também a incorporam e ampliam o conhecimento sobre o tema. Vendo a alteridade como atributo do que é diferente, podemos perceber que esse conceito é extremamente complexo, pois pode envolver diferenças étnicas, culturais, sociais, sexuais, políticas, religiosas e econômicas. Os múltiplos olhares na educação 59 Vamos pensar um pouco: devemos aceitar o preconceito só porque ele existe desde o surgi- mento da humanidade? Adotando uma atitude antropológica, veremos que não podemos natura- lizá-lo, isto é, achar que tal atitude deve continuar só porque “sempre foi assim”. De forma alguma! A história está aí para nos lembrar sempre do alto preço pago pelos indivíduos, povos e nações que sofreram em virtude do etnocentrismo, como ocorreu com as populações nativas americanas, dizimadas pelo eurocentrismo. Foram séculos de dominação e opressão sobre povos e culturas, a ponto de muitos acharem que isso era natural e a única forma de ver a diferença. Vale lembrar que nossa visão de mundo é sempre uma representação, isto é, é uma percep- ção do real. A própria Antropologia tem como um de seus conceitos mais relevantes o de repre- sentação, que implica no fato de toda análise antropológica ser uma interpretação da realidade. Sendo assim, sempre estará sujeita à visão de mundo e ao sistema cultural de quem a elabora. Infelizmente, nesse momento, o que vai prevalecer são as diferenças. Elas se destacarão, e não as semelhanças. Observe as imagens a seguir e faça um exercício: se você tivesse que classificar as duas crian- ças apresentadas, que termos utilizaria? Qual das duas, por suas características físicas, tem mais oportunidades de acesso à educação (e educação de qualidade) no Brasil? Qual delas está mais próxima do padrão de beleza hegemônico vigente na sociedade ocidental? Figura 1 – Crianças estudando O que essa reflexão provocou em você? Já havia pensado no quanto as características físicas de uma pessoa podem influenciar a vida dela e comprometer a inserção desse indivíduo na socie- dade? Você já passou pela situação, muito comum na nossa sociedade, de mudar de calçada ao ver que alguém está vindo em sentido contrário e que, apenas pela aparência, você julgou que poderia ser “um bandido”? Como se sente diante do que temos visto até aqui? E na escola, como você viu isso acontecer? E nos espaços não escolares? Você já prestou aten- ção no perfil dos jovens que hoje estão sob a tutela do Estado em instituições de recolhimento de menores infratores, como a Fundação Casa? Aos poucos a sociedade começa a entender que, sem o desenvolvimento de programas realmente integradores que privilegiem a educação, não será pos- sível dar um futuro a essas crianças e esses jovens. Entretanto, para que isso aconteça efetivamente, é preciso um novo olhar sobre a infância e a juventude, sob a ótica da inclusão e do relativismo. É necessário ressocializar esses jovens, despertando neles a confiança em valores e princípios que modelam a ética e o respeito ao outro e que, sobretudo, independentemente de quem sejam ou de qual a sua cor de pele, por exemplo, serão respeitados e aceitospela sociedade. Para isso, a relação Eurocentrismo: visão etnocêntrica que coloca a Europa como centro do mundo e portadora dos únicos sistemas culturais aceitáveis e, em virtude disso, vistos como superiores. bo rg og ni el s/ iS to ck ph ot o ro m ro di nk a/ iS to ck ph ot o Antropologia da educação60 entre Antropologia e educação, com base na percepção da alteridade, mais uma vez pode ser ex- tremamente produtiva. Se o indivíduo puder olhar sua identidade étnico-racial e ter orgulho dela e de sua contri- buição para a formação do povo brasileiro (seja ele branco, negro, índio ou mestiço de qualquer tipo), poderá lutar contra a histórica tentativa de hierarquizar raças e culturas, marca da sociedade brasileira. Especialmente a população afrodescendente, majoritária em termos numéricos, ao com- preender seu papel no contexto da construção da identidade e da nacionalidade brasileiras, poderá se tornar ainda mais protagonista da mudança que deseja no país. Conceitualmente, afrodescendente diz respeito a categorias que vão do preto a várias outras de- nominações, muitas delas surgidas do processo de autoclassificação. Isso ocorre especialmente em mo- mentos de levantamento de dados, como é o caso do censo populacional, quando o próprio indivíduo diz qual é a própria cor. Essa definição, tal como todos os conceitos, é construída social e historicamente e por isso deve ser vista dentro do contexto na qual se insere. De acordo com Fonseca (2004, p. 70), “esse conceito tem uma grande base política, cultural e demográfica, mas corre o risco de cair no vácuo pelo fato de não lidar com profundas diferenças e antigos antagonismos também cunhados pelo processo político, econômico e cultural”. Ignorar algum desses aspectos é reduzir perigosamente o alcance e o valor como categoria para analisar equivocadamente o tema da diversidade étnico-racial. Entre nós, essa ideia está muito ligada à escravidão e à maneira como se deu a “libertação” dos escravos: por meio de pressão interna e externa sobre o governo imperial e sem qualquer política de inserção dos recém-libertos na sociedade mais ampla. O resultado disso foi a exclusão socioeconômica, a discriminação, o preconceito e a exclusão de gerações de pessoas não brancas. 4.2 A formação docente na perspectiva da Antropologia Temas sensíveis como as relações ético-raciais são importantes e devem ser discutidos na escola. É preciso criar nesse espaço as condições para o exercício da tolerância e do respeito ao outro. A Antropologia da Educação, ao lado de outras áreas do saber, como a Sociologia e a Pedagogia, toma a própria realidade como campo de estudos e de intervenção, mas cada uma ao seu modo e de acordo com o próprio referencial teórico-metodológico. A formação docente é um dos temas que essas ciências vêm tomando como objeto de estudo. Isso se deve ao fato, já mencionado aqui, de que muitos currículos e várias instituições de formação docente não acompanharam as mudanças pelas quais o mundo tem passado. As repetidas e graves crises econômicas, as guerras, os conflitos de caráter étnico-racial e as consequentes migrações decorrentes desses eventos, no contexto mais amplo da globalização, fize- ram aflorar a temática da diversidade. E, no campo da educação, colocaram em discussão a demora dos professores em perceber que o mundo passou por grandes transformações. A educação é uma mediadora desses conflitos e pode contribuir para a melhoria das condições de vida e de inserção social das chamadas minorias. Mas a educação e o processo educativo não são neutros. Portanto, o profissional docente também não será. Estará levando consigo para a sala de aula seus referen- ciais sociais e culturais. Vídeo Os múltiplos olhares na educação 61 As educações formal, não formal (prática educativa que acontece em espaços fora da escola, intencionalmente e sem uma estrutura rígida ou normatizada, com base no interesse de quem quer participar, como é o caso, por exemplo, de museus e praças públicas) e informal (caso do processo de socialização que ocorre dentro da família) implicam em troca de saberes, de referenciais e conhecimentos. Entretanto, na educação formal (que acontece no ambiente institucional da escola), há diretrizes que norteiam o processo de ensino e a seleção dos conteú- dos técnico-científicos a serem trabalhados. No entanto, também diz respeito a valores morais e princípios éticos. E é nesse processo que o conhecimento antropológico agrega um olhar dife- renciado, de respeito e tolerância. Professores e toda a comunidade acadêmica podem, ao adotar uma atitude antropológica, transformar a escola em um espaço de acolhimento e respeito. A emancipação dos indivíduos é também responsabilidade da educação, tanto quanto a prepa- ração profissional para o mercado. Lembra-se dos princípios estabelecidos pela legislação que vimos há pouco? A ação docente deve estar em consonância com eles, sem que isso signifique apenas uma mera reprodução de orientações e execução de práticas pedagógicas sem sentido para o professor. Você conhece o ditado “Ninguém dá o que não tem”? No sentido da educação, ele significa que, se o professor efetivamente não acreditar no que está dizendo e fazendo, seus alunos perceberão. Esse docente então não terá credibilidade e respeito por parte dos alunos. Além disso, se seus valores não estiverem de acordo com os da instituição na qual atua, seu desempenho certamente será afetado e sua insatisfação se tornará visível, mais cedo ou mais tarde, para toda a comunidade acadêmica. Assim, veja quantas questões podem ser trabalhadas ao longo da formação docente, em especial no âmbito da Antropologia da Educação. A constatação da negação da diversidade e da histórica tentativa de homogeneização cultural na sociedade brasileira demanda que os professores revisem suas práticas no sentido de não contribuírem para que o etnocentrismo e a intolerância sejam mantidos. Mas, atenção! Não estamos dizendo com isso que cabe única e exclusivamente aos docentes a resolução de todos esses problemas, os quais são históricos e têm múltiplas causas. Obviamente, a solução para essas questões exige várias ações. Entretanto, é sua responsabilidade rever sua prática pedagógica com base em um referencial teórico que discuta a alteridade e as re- lações multiétnicas, bem como a escolha de metodologias inovadoras que oportunizem a reflexão, a criticidade e a criatividade e que estimulem o protagonismo do aluno. O estudante hoje chamado de nativo digital, que tem habilidades e competências que as gerações anteriores (inclusive seus professores) não tinham, precisa de uma nova escola. Essas novas gerações estão em contato com a diversidade muito mais cedo e de maneira mais efetiva que no passado, seja por conta das novas formas de comunicação (via redes sociais, por exemplo), seja pelo acesso a uma grande quantidade de informação. Sendo a escola responsável pelos processos formativos e pela transmissão dos conhecimentos acadêmicos e o professor aquele que é, como mencionado, um ator importante nesse processo, cabe a ele revisar criticamente sua atuação profissional, inclusive para detectar possíveis falhas e lacunas em sua formação inicial. Esse profissional precisa entender que a formação continuada é fundamental para reciclar conhecimentos, atitudes e comportamentos. Com isso, estará mais bem preparado para enfrentar os desafios impostos pelas mudanças sociais, inclusive aquelas exigidas pelo mercado de trabalho – para si mesmo e para seus alunos. Antropologia da educação62 No entanto, nada disso será plenamente realizado se, antes de qualquer coisa, o professor não desenvolver seu autoconhecimento para perceber o quanto sua visão de mundo, seus valores e suas crenças são etnocêntricos, marcados por preconceitos. Rever seus conceitos é o primeiro pas- so para se tornar um professor que realmente adere à luta contra a discriminação e a desigualdade. Como esse docentepoderá mediar conflitos étnico-raciais ou de qualquer tipo em sala de aula se ele mesmo não praticar a alteridade? A formação docente é uma das instâncias do sistema educativo que precisa do olhar antro- pológico para que a separação entre as dimensões que definem o espaço escolar (organizacional, pedagógica e filosófica) não seja um obstáculo para ações mais integradas. Lembra-se de quando dissemos que o social e o cultural andam juntos e se relacionam? A escola como instituição é um exemplo dessa relação. Desde o início dessa obra, estamos reforçando que a educação é o único meio pelo qual a socie- dade pode superar a ignorância e a desinformação que atingem grande parte de nossa população. Ao mesmo tempo, é o caminho para se fomentar o desenvolvimento do espírito crítico dos indivíduos, tornando-os mais aptos e conscientes para fazerem escolhas mais adequadas para suas vidas e para o bem-estar da coletividade. Quando não temos liberdade de pensamento e de expressão, tornamo-nos “massa de manobra”, isto é, ficamos à mercê de outras pessoas que decidirão e agirão por nós. Quando isso acontece, a desigualdade e os privilégios de algumas pessoas são mantidos. Vemos isso em nossa sociedade o tempo todo: por falta de criticidade, muitos indivíduos não têm consciência do quanto sua cidadania está sendo comprometida e seus direitos, negados. Vamos analisar uma situação muito comum no cotidiano de inúmeras famílias no Brasil. Você acha correto que pais ou responsáveis precisem passar noites na fila para matricular seu filho em alguma creche ou escola pública? O acesso à educação é um direito constitucional. O art. 205 da Constituição de 1988, no Capítulo III, que trata da Educação, da Cultura e do Desporto, diz: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a co- laboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Já o art. 206 menciona que o ensino será ministra- do com base, entre outros, no princípio da igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola. O art. 208 estabelece que esse dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de, entre outras atribuições, “atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de idade” (BRASIL, 1988). Você conhecia esses artigos? Veja quantas questões podemos discutir com base neles, a co- meçar pela constatação de que, ao não conseguir colocar todas as crianças de até 6 anos na creche, o Estado não está cumprindo a lei! Além disso, ele falha em não garantir as condições necessárias para que as crianças permaneçam na escola. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394, em seu art. 1º, traz uma definição de edu- cação que “abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organiza- ções da sociedade civil e nas manifestações culturais” (BRASIL, 1996). Vale destacar que, em seu Os múltiplos olhares na educação 63 parágrafo 2º, a lei determina que a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social. Perceba que a lei constrói um panorama ideal. Mas a aplicação dessas ideias é um pouco diferente... O art. 2º reconhece a educação como dever da família e do Estado, a qual, “inspi- rada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E o ensino se desenvolverá baseado, entre outros princípios, na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”, o “respeito à liberdade e apreço à tolerância” e, importante para a nossa discussão aqui, a “consideração com a diversidade étnico-racial” (BRASIL, 1996). Como podemos perceber, deve haver uma preocupação da escola com as manifestações cul- turais, que têm grande peso na formação do indivíduo e no processo de construção da cidadania e da qualificação profissional. Para isso, o professor não só deve conhecer essa legislação, mas estar atento à demanda de vinculação da teoria à prática. Cada vez mais essa é uma condição básica para definir uma educação de qualidade. Mas um dos pontos mais relevantes é a preocupação com o tema da diversidade étnico-racial e com a importância da tolerância e da liberdade. Esses realmen- te são valores a serem cultivados, seja em espaços escolares ou não. Para que a formação docente, inicial e continuada, mostre-se ajustada a essas demandas (legais e sociais), ela vem sendo analisada, questionada e, em certos casos, até revisada, a fim de que os profissionais docentes adquiram ou desenvolvam habilidades e competências que lhes permitam rever a própria experiência com a diversidade e aprender sobre o relativismo cultural. A percepção de que o homem é um ser social e de que a marca da humanidade é a diversidade, em suas múltiplas vertentes, deve ser o fio condutor dos currículos dos cursos de formação de professores, tanto na formação inicial quanto na continuada. Hoje há grupos de pensadores que sugerem que disciplinas como a Sociologia e a Antropologia estejam presentes em todos os cursos de graduação, sob o argumento de que estaríamos preparando, em todas as áreas, não só profissionais mais capacitados para agirem de maneira inclusiva diante da diversidade, mas cidadãos mais críticos e tolerantes. Porém, enquanto isso não acontece, quais são o papel e as características do docente na contemporaneidade? Essa é uma pergunta que todos nós, profissionais da educação, já atuantes ou em formação, devemos nos fazer. Isso porque é no grupo social, na sociedade, vista aqui como um lócus de produção de conhecimento e de aprendizagem, que cada indivíduo se concretiza como um ser social e sociável. Diante disso, o processo educativo se torna um dos meios, como vimos anteriormente ao analisar brevemente a legislação, de constituição do indivíduo e de transmissão da cultura. No mundo atual, no qual encontramos sociedades cada vez mais plurais e multiculturais, compostas por múltiplas etnias, conceitos como o de africanidade se colocam como objeto de es- tudo tanto da Antropologia quanto da Pedagogia. Portanto, mais uma vez é possível percebermos o quão esses saberes podem ser complementares. Porém, o que mais precisamos pensar para real- mente efetivar o avanço em termos da discussão da diversidade cultural na escola ou fora dela? Como dissemos desde o início deste capítulo, é preciso refletir sobre a formação docente. Antropologia da educação64 Você teve um professor que se tornou referência para sua vida? Uma pessoa que se trans- formou em uma inspiração para você? O que o atraiu nela? Por que esse docente se destacou entre os demais? Como ele lidava com as diferenças em sala de aula? É comum termos um professor- -referência. E quase sempre ele acabou se destacando porque de alguma maneira soube se fazer respeitar e/ou porque nos fez pensar em coisas que nunca havíamos pensado. Foi assim com você? Uma das características mais importantes do profissional docente na atualidade é a flexibilida- de, a criatividade e, sobretudo, a capacidade de integrar teoria e prática. Aliás, essa tem sido uma das queixas mais recorrentes nas pesquisas realizadas com estudantes de Pedagogia. Eles afirmam sentir falta da experiência em sala de aula, de algo que se diferencie do estágio obrigatório. Gostariam de ter mais contato com questões e temas relevantes para a sociedade atual, como a etnicidade, relações de gênero, diferenças religiosas, desigualdade social e outras tantas questões que já vimos, as quais causam conflitos quando confrontadas. Esses estudantes devem também ser capazes de articular os saberes que lhe são apresentados ao longo do curso, o que pode exigir uma revisão nos próprios currículos dos cursos de formaçãode professores. Tendemos a reproduzir em sala de aula o estilo, o método e a prática pedagógica que estudamos durante nossa formação. É comum o professor ensi- nar como aprendeu. E isso pode ser um problema, especialmente diante do ritmo e da profundidade das mudanças pelas quais passa a sociedade contemporânea. Educar é formar, mas não podemos nos esquecer de que isso não pode ser “colocar numa forma”, um molde igual para todos. Quando vamos fazer um bolo, se quisermos reproduzir várias vezes a receita, podemos usar a mesma forma; provavelmente obteremos o mesmo resultado. Se a forma for redonda, o bolo será redondo; se for quadrada, ele será quadrado. Mas, ao tratarmos de formação de pessoas, devemos aplicar a mesma lógica? Certamente que não! Somos diferentes; não há um indivíduo igual ao outro. Nesse caso, formar é transmitir valores e conhecimentos em determinada cultura, sempre lembrando que esses valores devem ser universais. Então, como fazer para que o processo de socialização se efetive de maneira a passar a todos valores, regras, normas e princípios que norteiam a sociedade na qual esses indivíduos se inserem? A eliminação das desigualdades e dos conflitos étnico-raciais e suas consequências, como o racismo, tem na escola um canal e no professor um agente de superação dessas condições e de eman- cipação dos sujeitos por elas afetados. Docentes e discentes precisam refletir acerca do meio em que vivem e das mazelas que marcam nossa sociedade. Ao desenvolverem um espírito crítico, valorizando os múltiplos saberes de uns e de outros, ambos poderão construir uma sociedade mais inclusiva e menos preconceituosa. A obrigatoriedade de incluir a história e a cultura afro-brasileira e africana nos currículos da educação básica trouxe um novo desafio para a formação docente. Mais uma vez, a Antropologia da Educação sai na frente para propor categorias de análise, algumas comuns a outras Ciências Sociais, como o conceito de raça, mas trazendo aquela que é sua por excelência: a alteridade. A nova legislação decorreu, como vimos, da mobilização de setores da sociedade e de seg- mentos do Estado, interessados em começar a corrigir uma dívida histórica com as populações afrodescendentes. Nesse contexto, surgem também as políticas afirmativas (também chamadas de cotas), que geram bastante polêmica e causam grande impacto na educação em geral. Elas foram Os múltiplos olhares na educação 65 criadas para ampliar a camadas da população brasileira a oportunidade de acesso à educação e, com isso, sua inserção social. Por exemplo, a Lei n. 12.711 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do Ensino Médio público, em cursos regulares ou da Educação de Jovens e Adultos1 (BRASIL, 2012a). Você já ouviu alguém se posicionar contra as cotas? E você, qual sua posição em relação a isso? Considera a lei injusta? Conforme sua resposta, esse pode ser um bom momento para começar a rever seu ponto de vista. É possível fazer isso com base no que a Antropologia da Educação propõe e no que estamos desde o início deste livro reforçando: a necessidade de ampliarmos o olhar e considerarmos a alteridade e a diversidade, especialmente essa da qual falamos agora, a étnico-racial. Para muitas pes- soas, tal legislação é discriminatória e reforça preconceitos. Porém, não podemos nos esquecer de que a democratização do acesso à educação superior e a consequente redução da desigualdade social no país sofreram grandes mudanças, as quais foram favoráveis àqueles que de outra forma poderiam não chegar a uma universidade. Vendo por esse ponto de vista, você concorda que, ainda que suscetível a muitas críticas, essa é uma poderosa ferramenta de combate à desigualdade social, étnica e racial? Percebe o quanto o tema da diversidade étnico-racial deve estar presente nos cursos de formação de professores? Ao tomar a decisão política de normatizar a questão, o Estado brasileiro mostrou também que a rele- vância e a necessidade de trazer a história e a cultura afro-brasileira para o currículo eram para validar essa cultura para nossa formação. Esse é um tema importante para todos nós. 4.3 Educação, relações étnico-raciais e formação de professores No Brasil, a Antropologia aparece na formação docente no século XIX, nas chamadas escolas normais, por onde passavam os candidatos a professores. A his- tória da educação nos mostra que essas escolas eram, assim como o campo peda- gógico como um todo, marcadamente influenciadas pelos ideais da Igreja católica, particularmente dos jesuítas, que em 1549 chegaram ao Brasil. Determinados a conter o avanço dos protestantes, os jesuítas queriam converter as popu- lações nativas das Américas por meio de ações missionárias. Acreditavam que a educação seria o caminho para a tarefa de doutrinação na fé católica. Ao mesmo tempo que ensinavam os indígenas a ler e escrever, transmitiam a cultura dos colonizadores portugueses. E nesse contexto divulgaram um novo método de estudo que deveria ser seguido pelos professores de seus colégios. Fazia parte desse conjunto de regras que os estudantes aprendessem valores morais e costumes considerados básicos para um bom cristão, aprendendo e recitando orações e participando dos rituais religiosos prescritos pela Igreja. O método se baseava na realização de exercícios, necessitando que o aluno decorasse o conteúdo – repetição e memorização, tudo sob uma rígida disciplina. O professor fazia 1 As demais 50% das vagas permanecem destinadas à ampla concorrência. “As vagas reservadas às cotas serão subdivididas – metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mí- nimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- tística (IBGE). A porcentagem de vagas designada para a Lei de Cotas, anualmente, fica a critério de cada instituição, desde que, no mínimo, 12,5% sejam instituídos a cada ano” (BRASIL, 2012a). Vídeo Antropologia da educação66 longas e repetidas preleções, correções e avaliações sistemáticas. O aluno dependia desses resul- tados para avançar para uma classe superior. Castigos eram comuns, mas deveriam ser aplicados com cuidado, desde que não fossem castigos físicos. Quando, em 1759, os jesuítas foram expulsos do Brasil pelo ministro português Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, em meio a uma série de outras reformas implan- tadas no Reino Português, as quais se estenderam até o Brasil, as escolas jesuíticas foram fechadas. Criaram-se então as aulas régias de latim, grego e retórica, que nunca tiveram o alcance das escolas dos jesuítas. O que devemos considerar aqui é que já naquela época a educação era pensada e or- ganizada para atender aos interesses do Estado, e não da população em geral. Outro referencial importante para a educação no Brasil foi o positivismo2, que, com base nas Leis dos Três Estados de Auguste Comte, via a educação sob a lógica do progresso. Desde o Império e ao longo do século XX, a educação brasileira foi fortemente marcada pelo pensamento positivista. A fé na ciência era tida como solução para todos os problemas, inclusive os sociais. O professor apareceu nesse contexto como aquele que também deveria ser preparado para exercer suas atribuições de maneira “correta”, isto é, de acordo com o espírito cientificista da época. Foram criadas disciplinas pedagógicas, e o número de disciplinas de formação geral diminuiu. Também foram adotadas práticas experimentais. Durante o período imperial (1822-1889), a educação brasileira estava voltada para a forma- ção das elites. O governo, diantedessa opção, focou seus esforços na criação de escolas de educação superior, negligenciando as demais etapas da escolaridade. Aos poucos, concretizam-se os objeti- vos relativos à educação superior no país, definidos anteriormente com as reformas pombalinas. Assim, a educação da população como um todo não era foco do governo imperial. Cursos supe- riores foram criados no Rio de Janeiro e na Bahia para formar a elite que governaria o país, agora sede do reino português desde a chegada da Família Real, em 1808. O ensino primário, por várias razões, entre elas o limite orçamentário do governo imperial, foi pouco difundido e não extensível a todos, uma vez que os escravos não podiam frequentar essas escolas. Observa-se o mesmo desca- so em relação ao ensino secundário e às escolas normais. Como o ensino secundário e o profissio- nalizante não garantiam o acesso à educação superior, não despertavam o interesse da população em geral. O ensino no país continuava elitista. A formação docente também não recebeu a devida atenção por parte do Estado. Com a falta de cursos específicos para essa formação, o resultado foram profissionais com baixo desempenho, qualificação ruim e pouca motivação para a carreira. Em 1875 havia escolas normais para meninos e meninas, no Rio de Janeiro (capital do Império). Só em 1880 iniciou-se o desenvolvimento de escolas normais no país, que abrangiam ensino literário (que já era parte do ensino secundário) e “algumas matérias relacionadas à função docente” (PILETTI, 2016, p. 103). Elas não tinham uma prática de ensino, uma vez que os cursos eram noturnos. Diante desse quadro, a maioria dos pro- fessores atuantes no ensino primário no Brasil eram leigos, e, ao final do Império, o país ainda não 2 O positivismo foi uma corrente filosófica criada por Auguste Comte, pensador francês considerado pai da Sociolo- gia. Essa vertente de pensamento tentou explicar a vida social segundo critérios das Ciências Naturais. Na educação, via na ordem e na disciplina formas de fazer com que o indivíduo amadurecesse e se tornasse menos egoísta e mais apto a viver em sociedade. Os múltiplos olhares na educação 67 tinha um sistema de ensino integrado. O mais grave era que não havia preocupação com a base (o ensino das crianças) nem com a formação docente. Quando o país entrou na era republicana, o modelo elitista de educação passou a ser questio- nado, uma vez que os fatos que marcaram a República Velha levaram a uma discussão sobre o mo- delo almejado de país. Havia uma ideia de progresso e de construção de uma nova e mais vigorosa nação, mais democrática e que tivesse uma identidade própria. Mas o que se viu foi uma frustração generalizada, com crises políticas, econômicas e sociais. Mais uma vez foi mantido o modelo edu- cacional caracterizado pelo governo central, ou seja, educação superior para as elites e os demais níveis para as classes populares. Reformas educacionais foram realizadas, mas sempre com a mes- ma fórmula: total descaso com a educação básica e, portanto, com a formação de professores. Ainda que houvesse durante as primeiras décadas da República a percepção de que a reali- dade brasileira pudesse ser transformada pela educação, as reformas propostas demoraram para chegar às escolas normais. Nesse momento ficou clara a falta de profissionais devidamente pre- parados, com boa formação técnica e geral, em consonância com os princípios que passavam a orientar o sistema educacional no país. O Manifesto da Escola Nova, de 1932, deixou claro o confronto entre essa vertente, os liberais (que defendiam um Estado laico e a necessidade de rever a educação brasileira a fim de ajustá-la às novas demandas do país) e a corrente ligada à Igreja católica (que defendia, entre outras causas, o ensino religioso obrigatório). Nesse momento foi definido que os professores de todos os níveis deveriam ter formação universitária. Aos poucos, a formação específica passou a ser essencial para que o professor pudesse lecionar. A Constituição de 1934 foi a primeira a tratar de forma específica a educação, deixando claro que ela era um direito de todos e que o ensino primário seria obrigatório e gratuito. No entanto, a mesma Constituição dava ao governo central poderes muito maiores que a autonomia que os estados tinham em relação ao setor. Aliás, ao tratarmos dos poderes do governo central, precisamos lembrar que já tivemos dois períodos ditatoriais na história da república brasileira – o Estado Novo (1937-1945, sob Getúlio Vargas) e o Regime Militar (1964-1985). São períodos durante os quais outras reformas educacio- nais foram propostas. Durante o primeiro período, uma nova Constituição foi outorgada, na qual o direito à educação perdeu o caráter de garantia constitucional. Foi também um governo autoritário em relação à educação, deixando mais uma vez a cargo das elites dirigentes a tarefa de “cuidar” do restante da população, um claro retrocesso em relação à educação. No breve período democrático entre 1945 e 1964, tivemos outra Constituição, promulgada em 1946. Ela foi elaborada e votada por representantes da população no Congresso. Porém, ainda manteve a centralização e a falta de participação popular na definição das regras, dos formatos e dos currículos para o sistema de ensino em seus vários níveis. No entanto, retomou a ideia de a educação ser um direito de todos, estabelecendo como regra ser dever do Estado o ensino primá- rio. As escolas normais, em 1946, segundo a lei orgânica, foram normatizadas. Com base nisso, integrava-se com outras instâncias da escolaridade – secundário e superior –, uma vez que passaria a permitir o acesso à faculdade de Filosofia. Antropologia da educação68 Em 1961 surge a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB –, que normatizava a educação em todos os níveis e cuja redação foi resultado de um forte debate que acontecia na- quele momento entre os defensores da escola pública (bandeira dos educadores da Escola Nova) e os defensores da escola privada (ligados à Igreja católica). Tal debate marcou toda a história da educação no Brasil e chegou aos nossos dias. É nessa lei que, pela primeira vez, faz-se referência à questão étnico-racial e à diversidade. Em seu art. 1º, condena “qualquer tratamento desigual por motivo de convicção política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou de raça” (BRASIL, 1961). Sobre a formação docente, a LDB de 1961, no Capítulo IV, que trata da formação do ma- gistério para o ensino primário e médio, em seu art. 52, definia que “o ensino normal tem por fim a formação de professores, orientadores, supervisores e administradores escolares destinados ao ensino primário, e o desenvolvimento dos conhecimentos técnicos relativos à educação da infân- cia”. Em seu art. 54, dizia que “as escolas normais, de grau ginasial expedirão o diploma de regente de ensino primário, e, as de grau colegial, o de professor primário” (BRASIL, 1961). Já os docen- tes para o ensino médio serão formados, de acordo com o art. 59, “nas faculdades de filosofia, ciências e letras e a de professores de disciplinas específicas de ensino médio técnico em cursos especiais de educação técnica” (BRASIL, 1961). Essa legislação também trouxe alguma flexibilidade curricular para que diferenças regionais pudessem ser contempladas, o que é muito importante num país com formação pluriétnica e mul- tirracial como o Brasil. Quando surgiram os pensadores da Escola Nova, nos anos 1930, os quais traziam novos questionamentos e novas propostas para a educação brasileira, o que se viu é que estes em muito se aproximavam dos temas de interesse da Antropologia da Educação naquele momento. Ao defen- derem a educação como um dever do Estado, que deveria criar as políticas educacionais, o grupo afirmava também que seria preciso capacitar “cientificamente” os profissionais da educação para que pudessem exercer sua atividade. Segundo Nagle, os princípios doutrinários e os mecanismos de efetivação,os princípios republi- canos; a importância da educação e a necessidade de reconstrução educacional; as bases e as diretrizes do movimento; as finalidades da educação, a questão de valores; a educação, função essencialmente pública; a laicidade, a gratuidade, a obrigatoriedade e a coeducação; a escola comum ou escola única; as linhas do plano; o conceito de universidade; a unidade de formação de professores; a democracia. (NAGLE, 2015, p. 44) Os escolanovistas já apregoavam a educação como um direito de todos e fundamentada em princípios de igualdade de oportunidades. Além disso, defendiam o diálogo com as Ciências Sociais (entre elas a Antropologia) para criarem e utilizarem métodos, processos e avaliação da aprendizagem, junto de técnicas pedagógicas propriamente ditas. Nesse contexto, destacavam a necessidade da unidade da formação docente, que passou a ser orientada na perspectiva de formar professores para todos os níveis da educação, que teriam acesso à formação superior e assim passa- riam a ser uma nova elite no país. Os múltiplos olhares na educação 69 Agora vamos refletir sobre o que vimos até aqui nesse breve resumo da história da edu- cação. Se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, documento que sintetizou as ideias dos escolanovistas, via a educação como uma possibilidade de reforma social que deveria acontecer sob bases científicas, qual seria o papel do professor nesse processo? Ele seria um agente funda- mental e, para isso, deveria ser “bem formado” (NAGLE, 2015). E o que isso significa? O professor deveria ser o profissional com uma visão global dos problemas sociais brasileiros e com uma forte convicção da função social da educação, com um código cultural comum, cuja base fosse formada por princípios e valores morais que tornassem possível o consenso social. Diante do que você aprendeu até aqui, acredita que isso seria possível? Sabemos que não, pois qualquer tentativa de homogeneizar indivíduos e grupos sociais em termos culturais tende a fracassar em razão do fato de que a diversidade, especialmente a étnico-racial, forma o povo brasi- leiro. Além disso, é comum encontrarmos na nossa história iniciativas para “conter” as manifesta- ções populares, vistas, sobretudo durante a República Velha, como “caso de polícia”. Os pensadores que construíram o Manifesto, homens do seu tempo, também sentiam certo desconforto diante das crescentes ondas de insatisfação do povo diante da situação política e econômica do Brasil naquele momento. Viam a reforma na educação como um dos caminhos para conter o descontentamento popular. Isso porque acreditavam que uma formação sólida em termos de valores morais daria conta da situação, e não porque acreditavam na necessidade de desenvolver o espírito crítico dos indivíduos. Viam a necessidade de profissionalização dos professores, que deveriam se especializar para ser capazes de transmitir seu conhecimento e aplicá-lo na prática. A escola continuou a olhar para ela mesma, e outras reformas aconteceram, cada uma aten- dendo a interesses político-econômicos de parte da elite brasileira. Algumas vezes, com a intenção de dar um retorno às demandas da sociedade da época. Mas o que essas reformas têm em comum é a visão de que era preciso formar trabalhadores capacitados para atender ao projeto desenvolvi- mentista e industrialista do país. Quando observamos que, em pouco mais de 120 anos de regime republicano, já tivemos aproximadamente 30 vividos sob regimes ditatoriais, vemos que a democracia brasileira ainda está em construção. Diante disso, a educação e o sistema educativo continuam sob a lupa do questiona- mento em torno de seus objetivos e seu desempenho. Até hoje, um dos maiores questionamentos sobre o sistema educativo no Brasil diz respeito ao fato de que o mesmo órgão normatiza, fiscaliza e avalia as instituições (públicas e privadas) e o sistema educativo – o Ministério da Educação e da Cultura (MEC). Isso mostra o tamanho do papel que o Estado (em suas três instâncias – federal, estadual e municipal) assumiu em relação à educação. É também o MEC que define, por meio de políticas públicas e/ou legislação, como e sob quais fundamentos acontecerá a formação docente. E isso pode ser um problema se o Estado não for capaz de acompanhar o ritmo das mudanças sociais e tecnológicas que define atualmente a chamada sociedade do conhecimento. Outra questão bastante atual diz respeito à falta de formação pedagógica de muitos pro- fessores da educação superior, inclusive dos cursos de licenciatura. Sob o argumento de que essa fase da escolaridade exige que o indivíduo seja preparado para “o mercado”, encontramos muitos Antropologia da educação70 professores especialistas em suas áreas, mas sem o conhecimento pedagógico necessário para for- mar profissionais para a docência. E como isso se relaciona com nossa discussão? Esses docentes, ao não terem passado por um curso de formação para professores, em sua maioria não tiveram contato com disciplinas como a Antropologia. Portanto, podemos questionar em que medida estão preparados para trabalhar a questão étnico-racial em sala de aula. Finalmente, refletir sobre a formação docente e as relações étnico-raciais é pensar tanto na superação de limitações individuais quanto nas dificuldades inerentes à profissão, especialmente na contemporaneidade. Essa temática não é nem pode ser de interesse de apenas parte da popula- ção brasileira – a população afrodescendente, mas da população como um todo. Por várias vezes já dissemos que o Brasil é um país multiétnico e plural, mas essa constatação implica em reconhecer e respeitar as diferenças se quisermos construir uma nova sociedade. Reconhecer a diversidade étnico-racial na escola brasileira, em todos os níveis, se isso for bem problematizado (e nisso a Antropologia da Educação dá sua contribuição inquestionavel- mente), pode redefinir a temática no contexto escolar e incentivar os professores a reverem suas eventuais posturas etnocêntricas diante de seus alunos. Com base nisso, a formação docente (inicial e continuada) torna-se uma oportunidade para os professores adquirirem conhecimen- tos teóricos e práticos, além de oportunizar o desenvolvimento e aprimoramento de habilidades e competências estratégicas. O combate ao preconceito e à discriminação por questões étnico-raciais é visto atualmente quase como uma obrigação do sistema escolar. Dessa forma, cabe ao professor a tarefa de criar ambientes favoráveis para tornar as relações sociais mais equitativas e justas, menos hierárquicas e conflitivas em suas salas de aula. Considerações finais No cotidiano escolar, ainda encontramos docentes e pedagogos que afirmam não perceber os conflitos decorrentes de diferenças relacionadas à questão de raça ou etnia. Então devemos nos perguntar sempre: eles realmente não veem ou não querem ver? Às vezes a omissão nos passa a mensagem (ainda que inconscientemente) de que não precisamos agir, não é mesmo? Acontece nesse caso algo muito similar ao que falamos sobre o bullying. Naturalizamos os atritos em nome da ideia de que “sempre foi assim”. O mesmo ocorre com os conflitos étnico-raciais no Brasil. Uma educação e uma prática pedagógica que se proponham inclusivas e contra as discrimi- nações exigem capacitação dos professores e uma sólida formação para a percepção da alteridade. Cursos, oficinas e capacitações regulares devem ser oferecidos aos futuros educadores e aos pro- fissionais já em exercício. Indicação de leituras e oferecimento de palestras e fóruns de discussão sobre o tema da diversidade são recursos que geralmente produzem resultados compensadores para aprimorar hábitos, percepções e visões de mundo a esse respeito. Compreender as relações étnico-raciais na escola depende de discussão, reflexão e análise feitas em conjunto, incluindo toda a comunidade acadêmica. Aos professores cabe também exigir que essa formação esteja ao seu alcance, de modo a suprir eventuais lacunas em sua formaçãoOs múltiplos olhares na educação 71 inicial. Os docentes devem sinalizar em caso de dificuldades para lidar com os conflitos decorren- tes do não reconhecimento da alteridade. Sobretudo, precisam se abrir para os múltiplos olhares que a Antropologia da Educação oferece. Essa demanda pode partir dos próprios professores, que, ao proporem esse tema, obrigarão os demais segmentos envolvidos no sistema educacional a se pronunciarem e promoverem as condições necessárias para que essa discussão aconteça na escola. O posicionamento dos profissionais da educação diante da intolerância, do preconceito, da discriminação e da exclusão dependerá em grande parte do quão capazes e habilitados eles estarão para rever a própria formação e visão de mundo. Dependerá também do quanto estão comprometi- dos com o desenvolvimento da autonomia e a construção da cidadania. Seus discursos não podem ser antagônicos à sua prática pedagógica e à sua postura como indivíduos. Para avançarmos como sociedade, às vezes é preciso voltar ao passado para entender as razões que nos levaram à realidade atual e à persistência entre nós de determinadas práticas exclu- dentes e discriminatórias. Conhecer e compreender como se deu o processo de formação do povo brasileiro e como os atores responsáveis por ela apareceram na história nos ajudará a entender tam- bém como o sistema educacional brasileiro foi construído, por muito tempo negando às camadas populares (compostas, sobretudo, por afrodescendentes) o acesso à educação. Valores e princípios, como dissemos, são social e historicamente construídos. Em razão disso, podem ser revistos. Questionar mecanismos de dominação e relações de poder pauta- dos na dominação de grupos minoritários em termos étnico-raciais é promover uma educação transformadora. Ações discriminatórias se concretizam e se perpetuam em ambientes escolares e não escolares porque a mentalidade de muitos envolvidos no processo educativo ainda não mudou como deveria. Sabemos que nem sempre os objetivos da educação são alcançados apenas criando e imple- mentando políticas públicas, até porque muitas vezes elas não são resultado de um debate com a sociedade mais ampla. Especialmente quando a Pedagogia amplia significativamente sua área de atuação profissional, já que hoje há pedagogos em empresas, em hospitais, no sistema carcerário, em instituições públicas de caráter normativo e corretivo (que acolhem menores infratores ou em situação de risco), entre outras áreas, um olhar antropológico para a realidade contribui para o combate a estigmas e preconceitos. Assim, observe que, ao contrário do que muitas pessoas acham, a Antropologia está presente na educação há muito mais tempo do que se imaginava. Entretanto, as questões que essa ciência sempre se propôs a problematizar foram relevantes para a sociedade como um todo, em especial para a formação e profissionalização docente. Mas o que se deve compreender é que o diálogo entre Antropologia e educação tornou as duas áreas mais ricas em termos de possibilidades, inclusive para a institucionalização da formação de professores. A Antropologia se consolidou nas escolas normais e cursos de formação de professores até mesmo antes de se tornar uma disciplina da edu- cação superior. E isso fez e ainda fará muita diferença na qualidade dos nossos professores. Antropologia da educação72 Atividades 1. Com base no conteúdo deste capítulo, explique como a frase a seguir, de Nelson Mandela (1918-2013), importante ativista e ex-presidente da África do Sul, relaciona-se com a reali- dade de nossas salas de aula no que diz respeito às relações étnico-raciais: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua ori- gem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam apren- der, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar” (MANDELA, 1995). 2. A partir do século XVII, o mundo passou por muitas e intensas mudanças, as quais trans- formaram especialmente a sociedade ocidental. Sobretudo a Revolução Francesa e a Re- volução Industrial impactaram o modo de vida vigente em cada época que ocorreram. Explique a relação entre as mudanças decorrentes desses fatos históricos e o surgimento das Ciências Sociais, em particular a Antropologia da Educação. 3. As relações étnico-raciais no Brasil têm sido marcadas por negação, mitos e conflitos. A dis- cussão em relação ao processo educativo é muito recente, em especial no que diz respeito às características que um profissional da educação deve ter para um bom desempenho. Segun- do o que estudamos neste capítulo, o que é preciso para que um professor atue efetivamente no combate ao preconceito relacionado a essa questão? 4. Ao longo da história, vimos que as escolas normais desempenharam um papel funda- mental na formação de professores. Atualmente as instituições de educação superior são responsáveis pela formação docente. Diante disso, por que se critica hoje a presença de professores sem formação pedagógica nas instituições de formação superior, inclusive nos cursos de licenciatura? Referências BRASIL. Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1961. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4024. htm>. Acesso em: 28 mar. 2018. ______. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018. ______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l9394.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018. Os múltiplos olhares na educação 73 BRASIL. Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 ago. 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/ l12711.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018. ______. Ministério da Educação. Cotas – perguntas frequentes. 2012a. Disponível em: <http://portal.mec. gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html>. Acesso em: 28 mar. 2018. ______. Censo 2010 mostra as características da população brasileira. 2012b. Disponível em: <http://www. brasil.gov.br/educacao/2012/07/censo-2010-mostra-as-diferencas-entre-caracteristicas-gerais-da-populacao- brasileira>. Acesso em: 28 mar. 2018. CUNHA, S. L; DELIZOICO, N. C. Formação continuada de professores: alguns apontamentos. In: EDUCERE – CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 12., 26-29 out. 2015, Curitiba. Anais... Curitiba: PUCPR, 2015. FONSECA, D. J. A (re)invenção do cidadão de cor e da cidadania. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 210, p. 65-83, mar./abr. 2004. MANDELA, N. Long walk to freedom. USA: Hachette, 1995. NAGLE, J. O Manifesto dos Pioneiros e a história da educação brasileira. In: CURY, C. R. J; CUNHA, C. da. (Org.). O Manifesto Educador: os pioneiros 80 anos depois. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, n. especial, 2015. PILETTI, C; PILETTI, N. História da educação: de Confúcio a Paulo Freire. São Paulo: Contexto, 2016. 5 Antropologia e diversidade cultural A diversidade cultural (e tudo o que ela implica em nossa sociedade) coloca em discussão os estudos culturais e sua importância para a educação. O que seriam esses estudos? Por que são impor- tantes para a educação? A temática da diversidade cultural é muito presente na chamada pós-modernidade, cujas ca- racterísticas repercutem no sistema educacional e nos temas que se tornam relevantes à educação e à formação para a cidadania. Desse modo, conhecer e apropriar-se de conceitos básicos da Antropologia – como preconceito, intolerância, discriminação e exclusão, decorrentes do não respeito à diversidade cultural – torna-se fundamentalpara construir uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva. 5.1 Estudos culturais e educação Temos falado desde o início desta obra que a contemporaneidade é marca- da por muitas e intensas transformações – configurando o que se convencionou chamar de pós-modernidade. Para entendermos melhor o que isso significa, veja o esquema de mudança social de Daniel Bell, adaptado por Santos (2008), que apresenta as características de cada um dos grandes momentos da história que constituíram a sociedade atual: Quadro 1 – Características dos três grandes momentos históricos Pré-industrial Industrial Pós-industrial Regiões Ásia, África, América Latina Europa ocidental e oriental EUA, Japão, centros europeus Setores Primário: caça, pesca, agricultura, extração Secundário: industrial Terciário: serviços, saúde, consumo, educação, pesquisa, comunicação Ocupação Agricultor, mineiro não espe- cializado Operário especializado, engenheiro Técnicos e cientistas Tecnologia Matérias-primas Energia Informação Projeto Jogo com a natureza Jogo com a máquina Jogo entre pessoas Metodologia Senso comum, experiência Empirismo, experimentação Teorias, modelos, sistemas, si- mulação computadorizada Perspectiva Passado/repetição Presente/adaptação Futuro/programação Princípio Tradição/terra Expansão econômica Centralização, codificação do co- nhecimento Fonte: Santos, 2008, p. 24. Vídeo Antropologia da educação76 Observe que as mudanças impactam em diferentes setores. Aos poucos, elas se estendem a praticamente todos os lugares do planeta, além de alterarem o tipo de ocupação à qual as pessoas se dedicam, o tipo de tecnologia que utilizam, com que propósito, sob qual perspectiva e a meto- dologia que adotam para alcançar seus objetivos. Além disso, na fase atual, é preciso sobretudo decodificar o conhecimento, que está sendo produzido numa velocidade inédita, com base em um volume gigantesco de informações, que circulam num ritmo incrível. Isso ocorre, sobretudo, graças às novas tecnologias da informação e informatização. Essa mesma informatização altera inclusive a forma como as pessoas se relacionam entre si. A pós-modernidade surge num contexto social e histórico marcado pelo avanço e pela mu- dança de objetivos e formas de atuação dos movimentos sociais, que se fortificam e reforçam em suas pautas questões ligadas aos direitos das minorias e à diversidade cultural. Em termos eco- nômicos, como vimos no quadro anterior, as novas tecnologias da comunicação e da informação mudam a maneira como os indivíduos se relacionam entre si e consigo mesmos. Nada mais é dura- douro como antes. Se você conversar com seus pais, avós ou pessoas mais idosas e perguntar-lhes qual era o maior desejo de uma pessoa quando jovem no passado, possivelmente ouvirá que era trabalhar, constituir família, fazer carreira na mesma empresa e manter o casamento pela vida toda. Experimente perguntar! Inclusive há uma percepção entre indivíduos de gerações anteriores de que hoje “as pessoas não sabem o que querem”, que “ninguém para em emprego nenhum”, que “não levam a sério seus casamentos porque desistem por qualquer coisa”. Você já ouviu algo semelhante? Santos conceitua pós-modernismo como aquilo que define as mudanças que ocorreram nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por con- venção, se encerra o modernismo (1900-1950). Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 1950. Toma corpo com a arte pop nos anos 1970. Cresce ao entrar pela filosofia, durante os anos 1970, como a crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com desde alimentos processados até microcomputadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural. (SANTOS, 2008, p. 8) Afetando diretamente as artes, vimos também que se intensificaram a comunicação de massa, o apelo da mídia e a consolidação da chamada sociedade de consumo. Ao mesmo tempo que a tec- nologia invadiu nosso cotidiano, vivemos a era da informação e da sociedade do conhecimento. É um momento no qual as verdades absolutas são colocadas em xeque, novas ideias sobre como viver surgem e há uma tentativa de se padronizar e homogeneizar os indivíduos, o conhecimento e a cultura. Hoje nos transformamos tanto quanto muda o mundo que nos cerca, exatamente porque nossa interação acontece de diferentes maneiras e em outro ritmo. Tudo parece ser passagei- ro, transitório, menos duradouro. Analise, por exemplo, a quantidade de amigos que dizemos ter nas redes sociais. Eles vêm e vão, não permanecem e podem ser bloqueados, se assim desejarmos. O que isso significa? Já pensou a respeito? Essas relações são duráveis? Ao mesmo tempo, muitos de nós precisam ser reconhecidos e valorizados e ter seus desejos imediatamente satisfeitos. Usando novamente a realidade das redes sociais, como você se sente quando não recebe o retorno que es- perava de seus amigos? Muitos de nós estão muito dependentes desse prazer e de tantos outros na Antropologia e diversidade cultural 77 contemporaneidade. Somos hedonistas, o que significa dizer que buscamos o prazer a todo momen- to e em todas as situações. Isso, para muitos, leva-nos a um crescente individualismo. Especialmente as novas gerações são muito criticadas por serem extremamente individualistas e só pensarem na- quilo que lhes interessa, sem uma consciência do outro. Você concorda com essa visão? Você conhece a ideia, que circula com frequência em nossa sociedade, de que é mais im- portante ser do que ter? É assim que vivemos? O que você pensa sobre isso? Observe as imagens a seguir. Figura 1 – Consumismo na atualidade on ei nc hp un ch /i St oc kp ho to im tm ph ot o/ iS to ck ph ot o O que elas despertam em você? Pense no que poderia comprar, no que determinados produ- tos trariam para sua vida, enfim, como se sentiria se pudesse ter tudo o que quisesse. Hoje, diante do consumismo desenfreado, discute-se sobre isso no âmbito das Ciências Sociais, inclusive da chamada antropologia do consumo, área que se dedica a estudar essas questões, que invariavelmente aparecem também na educação. Antes de continuarmos, vamos voltar um pouco ao conceito de cultura. Estamos falando da sociedade contemporânea, em que o estilo de vida está profundamente marcado pelas relações de consumo. Adquirir bens é muito mais do que apenas comprar coisas; implica em ter aquilo que aquela mercadoria, aquele bem, tem de valor, o que ele significa. É a isso que devemos estar atentos, porque esse valor pode ser simbólico, porque a cultura também é feita de símbolos. Ao longo da história, vários símbolos foram criados e seus significados se transformaram. Se você vê a imagem de uma cruz, ou de um bolo enfeitado com velas, no que você pensa? O que essas imagens repre- sentam? A resposta da maioria de nós é que a cruz representa o cristianismo e que o bolo com velas é de um aniversário, não? Então, veja que esses significados nos foram ensinados, assim como tudo o que diz respeito à cultura. Coletivamente incorporamos esses símbolos e de alguma forma eles orientam nossa forma de ver o mundo. Mas será que, para todos os grupos sociais, esses símbolos teriam os mesmos significados? E ainda que tivessem, seriam igualmente importantes para todos? Provavelmente não. Mais uma vez devemos lembrar o papel da educação, visto que é também no espaço escolar que são construídos e reproduzidos símbolos relacionados ao sistema cultural no qual ela se insere. A Antropologia da Educação tenta captar e interpretar esse sistema simbólico e tudo o que ele envolve, partindo do pressuposto de que, conforme afirma Geertz (1989)1, a cultura é uma rede de significados. 1 Na obra A interpretação das culturas, Geertz discute o conceito de cultura e o método antropológico – a descrição densa – e propõe uma visão da cultura como um sistema simbólico. É uma obrafundamental da Antropologia. Antropologia da educação78 Nesse sentido, diante da relação do indivíduo com o consumo, podemos nos lembrar do papel que a publicidade e a propaganda desempenham, uma vez que intermedeiam a relação entre indivíduo e mercadoria. Os valores construídos muitas vezes não estão claros para o consumidor quando ele adquire um produto. Imagine alguém que vai comprar um carro. Quando observamos os comerciais desse bem, por exemplo, podemos perceber que o que está sendo vendido é muito mais do que um “veículo”, ou seja, o que o carro efetivamente é. Quais critérios usamos quando vamos escolher um carro? Observe a figura a seguir: que mensagens são passadas? Que valores são agregados ao carro para despertar o desejo de compra no consumidor? Por que adicionar a ele um personagem detentor de atributos valorizados em nossa sociedade, como beleza, elegância, riqueza, sucesso etc.? Isso, claro, não é novidade na história do consumo, mas foi intensificado na medida em que tudo se tornou mais efêmero, de curta duração. Figura 2 – Compra de carro como marca de sucesso pessoal Adotando uma atitude antropológica, podemos interpretar o que está por trás dos desejos do indivíduo ao adquirir uma mercadoria. Como ele se identifica com tal mercadoria? Sabia que muitas vezes compramos coisas para nos sentirmos parte de um grupo, para não sermos excluídos ou para nos comunicarmos? Você já viveu uma situação desse tipo? Isso acontece dessa maneira porque há uma dimensão cultural nas relações de consumo. Portanto, esse é também um proces- so social. Como dissemos anteriormente, atribuímos significados aos objetos, e isso passa pelos valores construídos durante nossa vida em sociedade, sempre mediados pela cultura. A lógica do consumo também é cultural. Na pós-modernidade, vários pensadores afirmam que vivemos per- manentemente insatisfeitos, inquietos, criando “necessidades” de consumo que geram um padrão no qual o descarte é a regra. Para termos sempre aquilo que é mais novo, moderno e atual, descar- tamos bens que ainda poderiam ser úteis. Isso impacta em todos os setores, especialmente no meio ambiente. Não é à toa que a questão da sustentabilidade é uma das mais relevantes de nosso tempo. Queremos a sensação de bem-estar constante, ainda que ilusório. Muitas normas e regras são questionadas e há uma forte reação a novos valores. A moral que marca nosso tempo tem um caráter utilitarista, isto é, há uma tendência de que os indivíduos acatem valores morais que Lu ck yB us in es s/ iS to ck ph ot o Antropologia e diversidade cultural 79 atendam aos seus interesses, desde que isso lhes traga vantagens, privilégios ou prazer, buscando sempre a satisfação de seus desejos. A percepção do outro e de seus direitos e desejos fica em se- gundo plano. Às vezes, sequer acontece. Como fica a escola diante do desafio de mostrar às novas gerações que ter não pode ser mais importante do que ser? Como orientá-los no sentido de compreenderem que o poder aquisitivo, a renda e o consumo não devem ser os parâmetros para definir a identidade de um indivíduo? Douglas, antropóloga inglesa que estuda o consumo, e Isherwood (2015) afirmam, como outros es- tudiosos da área, que os bens tornam visível a cultura, já que por meio destes se consegue a subsis- tência e se concretizam relações sociais. Dessa forma, é preciso investigar o que leva os indivíduos a desejarem comprar, ostentar e descartar bens de consumo, muitas vezes num padrão incompatível com suas condições financeiras. Na sociedade atual, encontramos diferentes estilos de vida. Independentemente de qual seja, certamente suas escolhas e práticas de consumo de algum modo “definem” quem você é e como se integra ou não a determinados grupos sociais. Nisso, mais uma vez, a Antropologia se aproxima de outra área do conhecimento: a Economia. Juntas elas fornecem subsídios para se analisar a di- versidade e as múltiplas experiências que um indivíduo pode vivenciar ao tentar se encaixar numa sociedade tão marcada por sentimentos muitas vezes contraditórios. Vejamos um exemplo disso. Estudos econômicos mostram que, quando a renda de uma família cresce, o primeiro padrão de consumo a sofrer alterações é o alimentar. Mas, ao contrário do que se esperaria, ao poder adquirir alimentos que enriqueceriam a dieta familiar, são comprados alimentos considerados supérfluos (iogurtes, biscoitos, chocolates, sucos processados, congelados etc.). Isso demonstra que há outros valores agregados a esses alimentos. Passam também pela questão do gosto, conceito que com- provadamente também é construído social e historicamente. Aprendemos a comer determinados alimentos desde a infância, com nossas famílias. Esses hábitos alimentares serão levados para o resto da vida e são muito difíceis de mudar. Quando chegamos a essa variável, lidamos com uma racionalidade que passa por outras formas de classificação dos alimentos. Cada vez mais os aspectos materiais deixaram de ter apenas a função de garantir a sobre- vivência da espécie. Eles passaram a carregar sentidos e significados, vistos como produções cul- turais e promotores de relações sociais. Pensamos o mundo também por meio das relações de consumo e dos significados que atribuímos aos bens materiais, que são, portanto, uma parte visível da cultura. Isso, na sociedade atual, passa por questionamentos de todo tipo, desde as correntes de pensamento críticas ao consumismo (visto como uma prática exacerbada e que degrada não só o meio ambiente, mas as relações sociais) até pensadores que veem o momento atual como a conso- lidação do neoliberalismo e da própria sociedade de consumo. O prazer que se obtém ao consumir decorre das sensações que a experiência provoca, mas também do significado que assume o ter/manipular as coisas. Construímos imagens e fantasias que têm significados e que se esgotam rapidamente. Queremos sempre algo novo, inclusive sonhos e fantasias. É o que os estudiosos chamam de ciclo do consumo, que não se fecha quando se adquire o objeto do desejo. Pelo contrário: a sensação de vazio pode vir logo depois da aquisição do bem desejado, que poderá ser fácil e rapidamente descartado. Busca-se então um novo objeto de desejo, recomeçando o ciclo. Antropologia da educação80 Figura 3 – Ciclo do consumo Fonte: Elaborada pela autora. No mundo pós-moderno, imaginamos antes de experimentar concretamente alguma coi- sa. Isso facilmente gera frustração, desilusão e vazio. Esse ciclo compromete muito a qualidade das relações sociais, que muitas vezes podem ser motivadas apenas pelo desejo de satisfazer desejos e promover trocas em nome do status social. Há quem diga que se multiplicam e se des- cartam amigos, por exemplo, da mesma forma e com igual facilidade com que se multiplicam e descartam coisas2. Você concorda com essa visão? Compreender o jogo do consumo nos ajuda a entender a sociedade contemporânea, na qual o papel da cultura muda. Diante dessas e de outras tantas questões e temáticas, surgem na Inglaterra os estudos cul- turais, a partir dos anos 1960. Em meio às mudanças advindas do pós-modernismo, os estudos culturais tentam explicar nosso mundo atual, por meio da articulação entre a Antropologia e a educação. O diálogo entre os dois saberes se dará por meio da inter e da transdisciplinaridade3, retomando e revisando o conceito de cultura de forma crítica, de modo a considerar sua historici- dade e seu aspecto político. Nos estudos culturais, o conceito de cultura é central e importante para a educação exatamente por aprofundar essa conceituação. Os pensadores pioneiros nesses estudos apresentaram diferentes percepções do conceito de cultura. Todos têm em comum o envolvimento político com as questões de seu tempo. Cada pensador, à sua maneira, ao analisar as novas formas culturais (na música, na imprensa, na comunicação de massa, na publicidade etc.), observa os mo- vimentos sociais e chama a atenção para as relações de classe, cultura e poder.Para a educação, esses estudos foram importantes ao redefinirem cultura, vista como aquilo que de melhor a humanidade havia produzido em termos de conhecimento e como uma forma de promover a ascensão social por meio do aprimoramento cultural. A concepção de muitas pessoas ainda hoje é de que ter cultura significa estudar bastante e ler muitos livros. Mas já sabemos que há uma pluralidade de culturas, que definem diferentes modos de vida. Isso nos encaminha para uma visão multicultural, consolidada pelos estudos culturais. O que esses estudos propõem é que se repense também o papel da educação na contemporaneidade, que deve fornecer as ferramentas 2 Para saber mais sobre esse tema, você pode recorrer à seguinte bibliografia: BAUMAN, Zygmunt. Uma vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. _____. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. MIGUELES, Carmen. Antropologia do consumo: casos brasileiros. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. 3 A interdisciplinaridade, segundo Saviani (SAVIANI, 2003), é indispensável para a implantação de um processo in- teligente de construção do currículo de sala de aula – informal, realístico e integrado. Por meio da interdisciplinaridade o conhecimento passa de algo setorizado para um conhecimento integrado, em que as disciplinas científicas intera- gem entre si. Os temas transversais que o governo brasileiro propõe são uma forma interessante de se trabalhar de forma interdisciplinar. Já na transdisciplinaridade as fronteiras das disciplinas são praticamente inexistentes. Há uma sobreposição dos conteúdos, de modo que não se pode identificar exatamente onde uma disciplina começa e onde ela termina. Ou seja, um trabalho transdisciplinar obrigatoriamente deve conter elementos que vão além das disciplinas e do espaço disciplinar das salas de aula. 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Por conta disso, muitos de nós têm uma sensação de desam- paro, de falta de perspectiva. Isso para muitos gera desconforto e medo. Ao mesmo tempo, somos hoje muito mais flexíveis do que nossos pais e avós em relação a quase tudo, seja sobre o que é um bom emprego, qual a ideia de família, de relacionamentos interpessoais etc. Tudo é permitido. Ao menos em tese... Mas será que deve ser assim mesmo? Esse relativismo é benéfico para a percepção, o reconhecimento e o respeito às diferenças? Se nada é tão bom ou tão ruim, o que vale? Quais valores são válidos para construir uma sociedade mais justa e igualitária? Será que mudaram? A ética, por exemplo, deixou de ser um valor em si mesma? Claro que não! Ao menos para a maioria. Aliás, como veremos adiante, a ética é inclusive um dos temas transversais que devem ser trabalhados de forma interdisciplinar nas escolas brasileiras, em todos os níveis de escolaridade. O homem e a sociedade pós-moderna valorizam a pluralidade e a diversidade, ainda que não saibam muito bem como lidar com elas. Mas ao menos hoje esses temas fazem parte da pauta de discussões da sociedade e, por extensão, das escolas. Entretanto, na chamada sociedade do espe- táculo4, muitos indivíduos anseiam se tornar “famosos”, “importantes”, enfim, “celebridades”. Nesse processo, a mídia desempenha, por meio de diversos programas e atrações, um papel fundamental, ao produzir, promover, valorizar e divulgar essa cultura, com a qual tantos indivíduos se identi- ficam. Para muitos, ser famoso (ainda que por pouco tempo e de forma nem sempre positiva) é mais importante do que ser bem-sucedido pessoal e profissionalmente, construir uma carreira por meio de uma atividade prazerosa e trazer para si mesmo e para o grupo social muitas realizações, inclusive em termos de relações interpessoais. Como lidar com tudo isso na escola? Diante do cenário que apresentamos nas páginas anteriores, marcado por muitas mudan- ças e incertezas, é fundamental ter clareza em relação às formas de garantir educação de qualida- de a crianças e jovens. Isso é básico quando se pensa em igualdade de direitos e oportunidades. Mas o que deve ser ensinado? Vimos que os estudos culturais, ao proporem uma análise das relações de poder entre cultura e educação, também reconhecem a importância de se reconhecer e valorizar a linguagem, os sistemas simbólicos e as práticas culturais daqueles grupos sociais, que, por diferentes razões, têm sido historicamente excluídos da escola. Ao observarmos como a sociedade se organizou da modernidade até aqui, vimos que o debate sobre o que e como ensinar nas escolas é uma questão das mais relevantes. Isso nos leva à necessidade de refletirmos um pouco sobre alguns aspectos do sistema educativo, como currículo escolar, políticas públicas, práticas pedagógicas e, é claro, formação docente (inicial e continuada). 4 Ver: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Vídeo Antropologia da educação82 Em capítulos anteriores, analisamos a questão da formação docente e parte das políticas públicas que nortearam o desenvolvimento do sistema educacional brasileiro. Vamos agora falar um pouco sobre currículo. Por que esse tema é importante para nossa caminhada? Porque também precisamos avaliar em que medida as relações de poder estabelecidas interferem na escolha dos saberes que serão valorizados, que conteúdos devem ser trabalhados nas escolas e como ficam as questões referentes à alteridade nesse contexto. Especialmente quando observamos os indicadores relacionados à inclusão da questão étnico-racial, percebemos que ainda estamos longe de afirmar que a igualdade e a equidade são características da educação brasileira. Então, ainda que tenha- mos hoje o amparo da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), movimentos sociais e professores destacam a necessidade de continuar o trabalho no sentido de que as práticas pedagógicas atendam ao que determina a lei, assim como pedem também a revisão do currículo escolar para que este incorpore a diversidade étnico-racial. Esse debate sobre conhecimentos e conteúdos escolares acaba impondo uma discussão mais ampla e extremamente importante sobre as relações de poder implícitas quan- do esse tema vem à tona, como se configuram as relações de poder entre classes sociais e como se constituem as identidades e valores de professores e alunos. O governo federal, por meio do Parecer CNE/CP n. 3, de 10 de março de 2004, criou as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), estabelecendo orientações acerca dos conteúdos a serem incluídos, trabalhados e, quando necessário, modificados nos currículos escolares, em todos os níveis e modalidades de ensino. Outros documentos foram elaborados com base em discussões regionais nas quais foram avaliadas e propostas estratégias que pudessem garantir a im- plementação das diretrizes nacionais.O objetivo maior era orientar as instituições de ensino no com- bate a todas as formas de preconceito, racismo e discriminação manifestadas no ambiente escolar, em relação à população indígena e à afrodescendente (incluindo comunidades quilombolas). Nesse sentido, as noções de cultura, diversidade, identidade e relações étnico-raciais, desde os anos 1990, estão presentes nos documentos oficiais do MEC que normatizam o siste- ma educativo brasileiro. Sobretudo na educação básica, o governo tem se preocupado em reco- nhecer a legitimidade e a urgência das demandas trazidas pelos movimentos sociais em relação à democratização da educação no país, especialmente o movimento negro. O combate ao ra- cismo e a todo tipo de preconceito tem sido foco das ações implementadas nesse sentido. A Lei n. 10.639/03, que alterou a LDB e determinou a inclusão no currículo oficial das escolas brasi- leiras a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”, estabeleceu também que os conteúdos referentes a essa temática deverão “ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” e, com a complementação da Lei 11.645 (BRASIL, 2008), “assim como os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”. Em relação aos conteúdos, a lei complementa a Lei n. 9.394 (BRASIL, 1996) (a LDB), que passa a vigorar acrescida do artigo 26-A, segundo o qual, em seu parágrafo 1º: Antropologia e diversidade cultural 83 § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cul- tura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão minis- trados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. (BRASIL, 2003) Observe que as diretrizes são coerentes com a proposta de promover o debate na sociedade e no sistema educativo sobre o respeito à pluralidade cultural. Para que isso se concretize, é pre- ciso discutir a concepção, a elaboração e os desdobramentos do currículo da educação básica no Brasil, respeitando as particularidades e os fins de cada um dos níveis de escolaridade – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Devemos nos lembrar sempre de que a escola e o sistema educativo não podem ser vistos descolados da sociedade mais ampla e de seus valores. Portanto, há de se considerar os elementos que compõem os diferentes sistemas culturais que marcam o Brasil, ao mesmo tempo que é preciso buscar o que nos aproxima como nação. Moreira (BRASIL, 2007), no livro Indagações sobre currículo, organiza a discussão sobre o tema em cinco eixos: currículo e desenvolvimento humano; educandos e educadores: seus direitos e o currículo; currículo, conhecimento e cultura; diversidade e currículo; currículo e avaliação. O autor chama a atenção para o fato de que As indagações sobre o currículo presentes nas escolas e na teoria pedagógica mostram um primeiro significado: a consciência de que os currículos não são conteúdos prontos a serem passados aos alunos. São uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais, intelectuais e pedagógicas. Conhecimentos e práti- cas expostos às novas dinâmicas e reinterpretados em cada contexto histórico. As indagações revelam que há entendimento de que os currículos são orienta- dos pela dinâmica da sociedade. Cabe a nós, como profissionais da Educação, encontrar respostas. (BRASIL, 2007, p. 10) Moreira também comenta que, para se pensar o currículo, é preciso [ter] a consciência de que os currículos não são conteúdos prontos a serem passados aos alunos. São uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais, intelectuais e pedagógicas. Conhecimentos e práticas expostos às novas dinâ- micas e reinterpretados em cada contexto histórico. [...] são orientados pela dinâmica da sociedade. Cabe a nós, como profissionais da Educação, encontrar respostas. [...] Daí que, quando os sistemas de ensino, as escolas e seus profissio- nais se indagam sobre o currículo e se propõem a reorientá-lo, a primeira tarefa será perguntar-nos que aspectos da dinâmica social, política e cultural trazem indagações mais prementes para o conhecimento, para o currículo e para as práticas educativas. (BRASIL, 2007, p. 9-10) Diante disso, podemos perceber o quanto a Antropologia da Educação nos permite fazer essa contextualização, uma vez que esse olhar sobre a cultura e sua relação com a sociedade na qual é produzida problematizam as dinâmicas e as relações sociais. A percepção e o respeito à alterida- de são quase uma condição básica para que se possa fazer essa contextualização e avaliar o que é Antropologia da educação84 importante para a concepção do saber, a construção do conhecimento, a seleção e a elaboração do currículo escolar. Pensar e definir o que, para que, para quem e como ensinar é o grande desafio das áreas do conhecimento (Antropologia da Educação, Pedagogia, Sociologia, Filosofia, entre outras), que, num projeto interdisciplinar, devem estar unidas. Para que a educação alcance a qualidade suficiente para que seu potencial transforma- dor se realize, os conhecimentos a serem trabalhados na escola precisam ser relevantes para os estudantes, para ajudá-los a perceber que podem, ao desenvolver seu espírito crítico, construir a cidadania. Se esses conhecimentos são relevantes e significativos, os indivíduos adquirem ha- bilidades que o ajudam a perceber a possibilidade de intervirem concretamente na sociedade em que vivem. Dessa forma, eles compreendem que o conhecimento é social e historicamente construído, tendo uma dimensão cultural e política, e que analisar essa relação é primordial para melhorar o sistema educativo e possibilitar o empoderamento dos indivíduos. Em grande parte, isso decorrerá do entendimento de que podem se tornar agentes e protagonistas da mudança que querem na sociedade. Assim, os alunos percebem que têm direitos e que, entre eles, o direito à educação é um dos mais importantes e do qual não podem abrir mão. Diante desse quadro, qual seria o papel do professor? Qual sua participação no processo de elaboração do currículo e como fazer com que ele se concretize na prática pedagógica? São per- guntas fundamentais, para as quais, como dissemos anteriormente, precisamos pensar de forma interdisciplinar e entender que todos temos direito ao conhecimento, à cultura e a uma educação contextualizada e de qualidade. O currículo que atenda às premissas básicas da Antropologia da Educação é aquele que integra conhecimento e cultura e contempla as temáticas referentes à diver- sidade e às relações étnico-raciais. Na Pedagogia e na Antropologia da Educação, destaca-se que o currículo também se cons- titui e trabalha com regras, normas, valores, atitudes, princípios e rituais que se constituem e são transmitidos na rotina escolar e por meio das relações sociais estabelecidas na escola e em espaços não escolares. Daí a importância de pensar o currículo como uma questão central da educação, especialmente quando, como nos mostram os estudos culturais, considera-se rever o conceito de cultura na sua construção. Deve-se compreender que a diversidade cultural numa sociedade plural enriquece a educação e as práticas pedagógicas. Moreira (BRASIL, 2007) revisa o desenvolvimento do conceito de cultura ao longo da his- tória e nos apresentaos sentidos adotados na perspectiva antropológica, os quais também são contemplados nos estudos culturais e que devem embasar a concepção de currículo: a palavra “culturas” (no plural) corresponde aos diversos modos de vida, valores e significados compartilhados por diferentes grupos (nações, classes sociais, grupos étnicos, culturas regionais, geracionais, de gênero etc.) e períodos his- tóricos. Trata-se de uma visão antropológica de cultura, em que se enfatizam os significados que os grupos compartilham, ou seja, os conteúdos culturais. Cultura identifica-se, assim, com a forma geral de vida de um dado grupo social, com as representações da realidade e as visões de mundo adotadas por esse gru- po. A expressão dessa concepção, no currículo, poderá evidenciar-se no respeito e no acolhimento das manifestações culturais dos(as) estudantes, por mais des- prestigiadas que sejam. Finalmente, [outro significado] tem tido considerável Antropologia e diversidade cultural 85 impacto nas ciências sociais e nas humanidades em geral. Deriva da antropolo- gia social e também se refere a significados compartilhados. Diferentemente da concepção anterior, porém, ressalta a dimensão simbólica, o que a cultura faz, em vez de acentuar o que a cultura é. Nessa mudança, efetua-se um movimen- to do que para o como. Concebe-se, assim, a cultura como prática social, não como coisa (artes) ou estado de ser (civilização). (BRASIL, 2007, p. 27) Os professores, ao entenderem o papel estruturante do currículo para que possa relacionar teoria e reorientar sua prática pedagógica e tornar a escola significativa para seus alunos, tornam-se mais engajados com as demandas sociais que marcam também suas salas de aula. A luta maior é por uma sociedade menos preconceituosa, mais democrática, justa, inclusiva e igualitária. Discussões co- letivas que envolvam a comunidade escolar e a não escolar, realizadas de forma sistemática e prática, por meio de cursos, palestras, seminários, leituras e oficinas são formas de concretizar essa revisão curricular. Profissionais docentes mais preparados, orientados por uma atitude antropológica e mu- nidos de um referencial teórico que os ampare, certamente trarão melhorias à educação. Além disso, com base, sobretudo, nas várias teorias sobre currículo, os professores entenderão que este não pode estar descolado da realidade e é resultado de fatores sociais, culturais, econômicos e políticos. Enfim, os objetivos do processo de ensino devem estar claros para todos os atores envolvidos, bem como precisam superar a visão simplista de que currículo são apenas conteúdos/conhecimentos que devam ser ensinados. Os docentes entenderão claramente sua importância como sujeitos que aplicarão o que ficou definido no currículo, com participação de seus alunos. Juntos, construirão o conhecimento que será, ao mesmo tempo, fruto das condições nas quais foi produzido e caminho para a realização de projetos de mudanças e transformação pessoal e social. 5.3 Preconceito, intolerância, discriminação e exclusão Ao longo do tempo e no âmbito da discussão da pluralidade e da diversida- de cultural, as explicações e tentativas de justificar essas diferenças deram origem a conceitos como o de raça, que estiveram na base de narrativas e discursos que ti- nham, a cada momento, objetivos relacionados ao contexto da época, mas sempre procurando fundamentar política e/ou ideologicamente a tratativa dispensada ao outro, o qual tinha características físicas percebidas e que serviam como fator classificatório (cor da pele, tipo de cabelo, olhos, estatura etc.), todas de caráter biológico. Atualmente há um consenso nas Ciências Humanas de que o conceito de raça, já abolido pelas Ciências Naturais, é social e historicamente construído. Portanto, essa ideia sempre esteve (e espera-se que em breve não esteja mais) a serviço de uma ideologia dominante. O que há em comum nas formulações desse conceito é o fato de que ele quase sempre serviu para tentar legitimar relações de poder entre dominantes e dominados, tal como aconteceu a partir do século XV, quando da chegada dos colonizadores europeus às Américas. E é para essas relações de poder que estamos chamando a atenção desde o início deste capítulo, bem como para a neces- sidade de se ampliar o conceito de cultura. Vídeo Antropologia da educação86 Diante de tudo isso, o conhecimento, a cultura, o próprio processo ensino-aprendizagem e, portanto, o currículo passaram a ser vistos ao mesmo tempo como uma ferramenta e uma estraté- gia de luta contra o preconceito e a exclusão decorrentes de qualquer tipo de desrespeito à diver- sidade. Trata-se de uma educação plural, que passa, como estamos vendo neste capítulo, por uma revisão do conceito de cultura e que incorpora essa dimensão histórica e política. Historicamente, a escola existe para transmitir conhecimentos e formar os indivíduos no senti- do de se tornarem pessoas cultas, úteis e produtivas para a sociedade. No entanto, ao longo do tempo, passou-se a exigir muito mais dela e da educação, em razão das mudanças que estamos pontuando desde o início deste capítulo. Hoje precisamos de pessoas que sejam capazes de construir relações empáticas com seus semelhantes, as quais sejam pautadas na empatia, na solidariedade, no respeito e na tolerância. Ao lado da preocupação com a aprendizagem dos conteúdos escolares, a escola precisa formar cidadãos que reconheçam e valorizem a pluralidade cultural e as relações étnico-raciais. Organismos internacionais como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) há muito orientam seus países-membros a possibilitarem o aces- so de todos à educação e proporcionarem ações que promovam a igualdade. Entre as discussões pautadas e sistematizadas em documentos orientadores estão a questão da pluralidade cultural e as temáticas que deveriam fazer parte dos currículos escolares, a fim de que os objetivos traçados possam ser alcançados dentro dos prazos definidos em acordos internacionais, além da definição dos propósitos educacionais para o século XXI5. A luta para combater o preconceito, a discrimina- ção e a exclusão é o fio condutor que embasa todos esses documentos e orienta as ações sugeridas. Em 2001, na cidade de Durban, África do Sul, foi realizada a primeira edição da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Com base nas discussões do evento, as relações raciais no Brasil se tornaram mais presentes na pauta gover- namental de questões fundamentais para a construção de um país mais justo. Nesse encontro foi elaborado um documento (BRASIL, 2001) que passou a orientar as políticas de combate a toda forma de discriminação e preconceito. Nesse documento, fica evidente a preocupação com as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância, especialmente quando se observam indicadores “nas áreas da edu- cação, emprego, saúde, moradia, mortalidade infantil e expectativa de vida”. Segundo os dados apresentados, esses indivíduos estão numa “situação de desvantagem, particularmente quando os fatores que para isto contribuem incluem racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata” (BRASIL, 2001, p. 16). Ao mesmo tempo, reconheceram-se “o valor e a diversidade da herança cultural dos africanos e afrodescendentes e afirmamos a importância e a necessidade de que seja assegurada sua total integração à vida social, econômica e política, visando a facilitar sua plena participação em todos os níveis dos processos de tomada de decisão” (BRASIL, 2001, p. 16). O documento apresenta também algumas medidas para colocar em prática suas propostas, afirmando que: 5 Para saber mais sobre o tema, acesse os relatórios da Unesco, disponíveis em: <http://www.unesco.org/new/pt/ brasilia/education/education-2030/education-for-all/>. Acesso em: 11 abr. 2018. Antropologia e diversidade cultural 87 o compromisso solene de todos os Estadosem promoverem o respeito uni- versal, a observância e a proteção de todos os direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, inclusive o direito ao desenvolvimento, como fator fundamental na prevenção e eliminação do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; [...] que os obstáculos para superar a discriminação racial e alcançar a igualdade racial residem, principalmente, na ausência de vontade política, na existência de legislação deficiente, na falta de estratégias de implementação e de medidas concretas por parte dos Estados, bem como na prevalência de atitudes racistas e estereótipos negativos; [e] que a educação, o desenvolvimento e a implementação fiel das nossas nor- mas e obrigações dos direitos humanos internacionais, inclusive a promulgação de leis e estratégias políticas econômicas e sociais, são cruciais no combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância correlata. (BRASIL, 2001, p. 26, grifo nosso) Como estamos defendendo desde o início da nossa reflexão, a educação é uma das estratégias para se alcançarem os objetivos definidos nesse e em outros documentos que tratam da questão. No Brasil, existe o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais Para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana para “que todo o sistema de ensino e as instituições educacionais cumpram as determi- nações legais com vistas a enfrentar todas as formas de preconceito, racismo e discriminação para garantir o direito de aprender e a equidade educacional a fim de promover uma sociedade mais justa e solidária” (BRASIL, 2013, p. 27), bem como: – Cumprir e institucionalizar a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, conjunto formado pelo texto da Lei 10639/03, Resolução CNE/CP 01/2004 e Parecer CNE/CP 03/2004, e, onde couber, da Lei 11645/08. – Desenvolver ações estratégicas no âmbito da política de formação de pro- fessores, a fim de proporcionar o conhecimento e a valorização da história 28 dos povos africanos e da cultura afro-brasileira e da diversidade na construção histórica e cultural do país; (BRASIL, 2013, p. 26-27) Entre os eixos centrais que constituem sua base, esse plano propõe trabalhar com: 1) Fortalecimento do marco legal; 2) Política de formação para gestores e profissionais de educação; 3) Política de material didático e paradidático; 4) Gestão democrática e mecanismos de participação social; 5) Avaliação e Monitoramento; e 6) Condições institucionais. (BRASIL, 2013, p. 28) Observe que o eixo 2 aborda uma questão já discutida aqui. Como vimos, ela é fundamental para se conseguirem resultados mais efetivos na implementação da Lei 10.639 (BRASIL, 2003) e no combate ao preconceito e à discriminação. Tal eixo propõe agir sobre todo o sistema educativo articuladamente e com o propósito de construir uma cultura antirracista, envolvendo inclusive a revisão curricular, sempre com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Antropologia da educação88 Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Devemos nos lembrar sempre de que a LDB vigente define que todos os estudantes no país, independente- mente do nível de escolaridade, devem ter oportunidade de uma formação multicultural, de res- peito à alteridade, às características e às identidades regionais e nacionais, aos direitos humanos, no sentido de combater o racismo e a discriminação. Os estudantes têm direito a uma educação que oportunize o reconhecimento e a valorização da história e da cultura africana e indígena. Além dis- so, para concretizar esses objetivos, os conteúdos curriculares devem ter uma base nas dimensões históricas e antropológicas da sociedade. E o que significam alguns termos usados desde o início deste livro? Quando classificamos os indivíduos com base em alguma característica pessoal ou de pertencimento a determinado grupo social, podemos transitar entre diversas categorias de análise. Vamos entender melhor esse tema. Preconceito é uma forma de classificação na qual se tece um juízo de valor. Se definimos que algo num indivíduo ou num grupo é ruim, por conta dessa visão passamos a segregar, separar ou excluir esse indivíduo ou grupo, discriminando-o. Um passo posterior à discriminação é a segregação, ou seja, quando a separação é mais radical (tal como aconteceu na África do Sul durante o regime do apartheid6), sobre a qual falaremos mais tarde. Quando chegamos ao ponto de simplesmente não permitirmos a existência das diferenças, estamos diante da intolerância. Segundo Carneiro (2000, p. 6), discriminação é o “tratamento desfavorável dado a uma pessoa ou grupo com base em características raciais ou étnicas. Por exemplo, impedir uma pessoa de assumir um emprego por não ser branca é um ato de discriminação”. O preconceito, por sua vez, diz respeito a um “conceito ou opinião formado antecipadamente, sem conhecimento dos fatos. É uma ideia preconcebida e desfavorável a um grupo racial, étnico, religioso ou social. Implica aversão e ódio irracional contra outras raças, credos, religiões etc.”. É muito difícil que um indivíduo seja totalmente desprovido de qualquer tipo de preconcei- to, mas a luta para combater tal prática deve ser um exercício diário e permanente se quisermos uma sociedade mais justa. Ainda que em alguma medida sejamos preconceituosos, devemos com- bater a discriminação e a intolerância. Você se considera uma pessoa preconceituosa? Em caso afirmativo, em relação a quê? Já se percebeu discriminando alguém? Por que fez isso? Em que medida se considera intolerante? São perguntas difíceis, mas das quais não podemos fugir. Sem a consciência do preconceito, é impos- sível lutar contra ele. Temos vários tipos de preconceito, como os sociais (decorrentes da divisão da sociedade em classes com diferentes níveis de renda), os raciais (ligados à ideia da existência de raças inferiores e superiores, que se concretizam no racismo) e os sexuais (relacionados às relações de gênero e à visão de que o homem é superior à mulher ou à ideia de que a única orientação sexual aceita é a heterossexualidade). Mais adiante voltaremos a discutir sobre a questão sexual e o racismo. Por 6 O apartheid foi a política racial implantada pelo governo da África do Sul de 1948 a 1994, segundo a qual os negros não tinham direitos, inclusive de voto, e eram obrigados a seguir um rígido conjunto de leis, regras e normas, por serem considerados inferiores pela minoria branca da população. Antropologia e diversidade cultural 89 hora, é importante que você entenda que, quando falamos em preconceito, intolerância, discrimi- nação e exclusão, estamos tratando de relações sociais, culturais, econômicas e políticas, uma vez que, como abordado nos tópicos anteriores, a cultura envolve todos esses aspectos da vida social. Diante de tudo isso, somente com o envolvimento e a articulação de vários segmentos e ato- res sociais, passando pelo sistema educativo e com base numa visão antropológica do mundo, po- deremos implementar ações que sejam efetivamente transformadoras da realidade atual. O diálogo entre saberes é fundamental nesse processo, e muito esforço será necessário para superar as barrei- ras históricas que impedem o acesso das camadas mais pobres ou discriminadas – especialmente por questões étnico-raciais – a direitos básicos e fundamentais para a construção da democracia e da cidadania plena. Essa luta deve ser de todos os educadores! Considerações finais Você já pensou que, mesmo compartilhando uma mesma cultura, ainda que marcada pela diversidade, muitas vezes temos dificuldade em lidar com a coletividade? Ao longo de nossa exis- tência, estamos sempre aprendendo a viver em sociedade. E parte desse aprendizado às vezes pode significar sermosmenos individualistas. Nesse processo, a escola desempenha um importante pa- pel, sobretudo na figura do professor, que, como acabamos de ver, está na “linha de frente”, direta- mente junto aos estudantes. Em virtude dessa proximidade, o docente tem condições de perceber a heterogeneidade que marca cada sala de aula. Como agente fundamental do processo educativo, o professor, por meio de suas práticas pedagógicas, ao participar ativamente de todo o projeto de construção da rotina escolar (inclusive a concepção e elaboração do currículo escolar) e ao pensar na construção do conhecimento e da di- nâmica da escola, pode promover o diálogo que colocará em xeque os preconceitos. Como vimos, a promulgação de uma lei não basta para combater tal prática e erradicar a discriminação e a ex- clusão. Para a implementação de uma educação das relações étnico-raciais, é preciso a articulação entre o Estado, as políticas públicas e os atores envolvidos, seja na escola ou fora dela. Em um momento no qual a escola está se reinventando, ela é cobrada no sentido de dar conta da formação de indivíduos para esse mundo em constante transformação. A escola precisa deixar de ser apenas uma instituição, sob pena de não conseguir acompanhar o ritmo dessas mudanças. Para isso, são fundamentais uma visão crítica sobre o processo educativo, a concepção de cultura, a formação docente e o papel da família na promoção de educação de qualidade e na construção de oportunidades iguais para todos. Estudantes e professores precisam compreender seus papéis nesse contexto e assumir o controle desse projeto coletivo de transformação social. Afinal, educação é um processo sociocultural que envolve participação individual e coletiva, com base em relações de poder. As reflexões geradas pelos estudos culturais na educação convidam os educadores a exa- minarem os discursos produzidos, fazer novas perguntas e verificar quais saberes são instituídos como verdades e quais suas implicações no campo pedagógico. Enfim, os docentes devem prestar atenção às transformações sociais e ao que elas suscitam nos discursos educacionais, a fim de de- senvolverem teorias mais sensíveis à cultura e à contingência do contexto social. Antropologia da educação90 Atividades 1. A contemporaneidade é marcada por muitas e intensas transformações, configurando o que se convencionou chamar de pós-modernidade. Com base no que estudamos, apresente três características desse período. 2. Numa sociedade marcada pelo consumo, atribuímos significados aos objetos, e isso passa pelos valores que são construídos durante nossa vida em sociedade, sempre mediados pela cultura. Diante disso, qual tem sido o papel da publicidade e da propaganda nesse processo? Por que esse é um tema importante para a Antropologia e a educação? 3. Especialmente na educação básica, o governo tem se preocupado em reconhecer a legiti- midade e a urgência das demandas defendidas pelos movimentos sociais, especialmente o movimento negro, em relação à democratização da educação no país. O combate ao racismo e a todo tipo de preconceito tem sido foco das ações implementadas nesse sentido. Diante desse quadro, o que definiu a Lei n. 10.639/03? 4. A reflexão sobre a concepção e a elaboração do currículo escolar deve contar com a contri- buição da Antropologia da Educação, numa discussão que deve ser inter e multidisciplinar. Explique por que essa contribuição é importante. Referências BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/ leis/L9394.htm>. Acesso em: 4 abr. 2018. ______. Ministério da Cultura. Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata – adotada em 8 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul. 2001. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_durban.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018. ______. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que es- tabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jan. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10639. htm>. Acesso em: 28 fev. 2018. ______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, 2004. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018. ______. Ministério da Educação. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. In: MOREIRA, A. F. B (Org.). Brasília: MEC/SEB, 2007. ______. Lei n. 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para in- cluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, mar. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 4 abr. 2018. Antropologia e diversidade cultural 91 BRASIL. Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para educação das relações etnicorraciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana. Brasília, DF: MEC/SECADI, 2013. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias =1852-diretrizes-curriculares-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 28 fev. 2018. CARNEIRO, M. L. T. O racismo na história do Brasil: mito e realidade. 8. ed. São Paulo: Ática, 2000. DOUGLAS, M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2015. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 1989. ROCHA, G; ROSTA, S. P. Antropologia e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. SANTOS, J. F. dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção Primeiros Passos, 165). SAVIANI, N. Saber escolar, currículo e didática: problemas da unidade conteúdo/método no processo peda- gógico. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, 1990. Brasília: Unesco, 1990. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por. pdf>. Acesso em: 28 fev. 2018. 6 Pluralidades e diversidade cultural As conquistas sociais rumo à construção da cidadania plena passam pela atuação do Estado como agente que define políticas públicas. Ao fazer isso, sinaliza suas prioridades e pauta questões que devem ser tratadas pela sociedade. Ou, então, como veremos em seguida, atende a demandas originadas na própria sociedade, muitas vezes tentando corrigir injustiças e erros históricos. Nesse contexto é que se devem problematizar os temas transversais previstos na legislação e nas diretrizes educacionais brasileiras. Neste livro, faremos isso com base em uma análise etno- gráfica que colabore para a formação de professores inclusivos, para que possam se posicionar criticamente no âmbito da educação e da diversidade. 6.1 Temas transversais na visão da Antropologia da Educação A escola é um espaço no qual a possibilidade de exercer a cidadania se con- cretiza, isto é, ela é um lugar onde os conflitos aparecem, ao mesmo tempo que as oportunidades de discussão sobre as razões desses conflitos também podem surgir. Entretanto, sendo também uma instituição social, a escola está sujeita a normatizações e diretrizes definidas por políticas públicas. É nesse contexto que se deixa claro o que se pretende para o país e que tipo de educação e de sociedade queremos.Num país tão desigual e injusto como o Brasil, fica evidente o quanto alguns indivíduos e certas camadas da população não têm acesso a direitos básicos que deveriam ser garantidos a to- dos. Diante da persistência da desigualdade e da exclusão histórica, o Estado brasileiro entendeu que certas questões eram primordiais para a construção da cidadania. Mas isso só é possível por meio da atuação de indivíduos que sejam autônomos, protagonistas de sua participação política, sendo mais reflexivos e cientes de seus direitos e deveres. Como vimos, desde 1996 a LDB (BRASIL, 1996) é o documento que orienta a educação brasileira. Ligada a ela temos outras leis, portarias e outros instrumentos que definem os princípios e objetivos da educação no país, bem como apontam temas que devem ser contemplados nos currí- culos escolares e trabalhados nos momentos de formação docente, inicial ou continuada. A premissa básica é que a igualdade de direitos é necessária para qualquer sociedade que se pretenda justa e igualitária, porque garante o exercício da cidadania. Além disso, devemos sempre nos lembrar de que a igualdade exige equidade, isto é, que todos tenham as mesmas oportunidades. Você acha justo que um garoto, apenas por ter nascido numa região pobre, even- tualmente mais sujeita à violência, na qual não existam boas escolas, tenha menos oportunidades na vida? É justo que ele tenha mais dificuldades de aprendizagem porque a escola em que estuda é ruim? É correto que encontre dificuldades de inserção no mercado de trabalho porque não foi bem formado, não teve oportunidade de desenvolver e aprimorar habilidades e competências a Vídeo Antropologia da educação94 fim de estar em igualdade de disputar um posto de trabalho com outro indivíduo cuja formação foi mais qualificada? É claro que não! E mais: não é aceitável. Assim, reconhecer que as desi- gualdades socioeconômicas e as diferenças existem e que devem ser consideradas ao pensar as políticas educacionais é fundamental para a transformação social. No contexto da educação, foram elaborados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), vinculados à LDB de 1996, com o objetivo de estabelecer as diretrizes para a elaboração do currículo do Ensino Fundamental. Eles também orientam ações, práticas e políticas educacio- nais. Em essência, “configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e programas de transformação da realidade educacional empreendi- dos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores” (BRASIL, 1997, p. 13). Contribuem também para a atuação docente, seja para sua atualização profissional, seja para organização de sua prática pedagógica. Apesar de não serem um modelo que deva ser imposto ou que tenha a pretensão de ser homogêneo, os PCN deram um rumo à educação brasileira e trouxeram questões fundamentais para a discussão. Como já vimos no capítulo anterior, esses parâmetros impactaram na concep- ção e elaboração do currículo. Podem ser utilizados em todo o processo de ensino-aprendizagem, incluindo a produção de material didático. A atualização e adequação desse material é uma das es- tratégias para concretização dos objetivos dos PCN, especialmente no que diz respeito ao combate à desigualdade, ao preconceito, à discriminação e à exclusão. Eles servem também para contextua- lizar a aprendizagem. Entretanto, ainda que sejam flexíveis e procurem contemplar as diferenças regionais, é nos temas transversais que segmentos da população brasileira podem ver suas parti- cularidades sendo tratadas. Estamos falando das populações afrodescendentes, indígenas, quilom- bolas, bem como da questão da educação no campo, da educação de pessoas com necessidades especiais, das relações de gênero, entre outras. Analisando essa realidade com base no olhar antropológico, o que você acha? Acredita que dessa forma alcançaremos o sucesso como sociedade, na qual a exclusão não seja um destino para alguns indivíduos apenas por alguma característica que os coloquem em algum grupo das cha- madas minorias? Todos nós, de alguma maneira, somos sujeitos no processo educativo. Por conta disso devemos nos envolver nessa discussão. Mas não cabe aqui uma crítica mais profunda à LDB ou aos PCN. Interessa-nos, neste momento, avaliar em que medida a alteridade está contemplada e quais são algumas das diretrizes para trabalhar com esse tema. A formação integral dos estudantes depende da qualidade da educação a eles oferecida, devendo ela estar conectada à realidade atual e às necessidades sociais. E, mais do que isso, essa formação deve oportunizar a todos o acesso a uma teoria que esteja conectada com a prática, o que implica em trazer para a sala de aula discussões sobre a dignidade do ser humano, a igualdade de direitos, a recusa categórica de formas de discriminação, a importância da solidariedade e do respeito. Cabe ao campo educacional propiciar aos alunos as capacidades de vivenciar as diferentes formas de inserção sociopolítica e cultural. Apresenta-se para a escola, hoje mais do que nunca, a necessidade de assumir-se como espaço social de construção dos significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania. (BRASIL, 1997, p. 28) Pluralidades e diversidade cultural 95 Além disso, no contexto atual, outras temáticas se colocam para o sistema educacional: a inserção no mundo do trabalho e do consumo, o cuidado com o próprio corpo e com a saúde, passando pela educação sexual, e a preservação do meio ambiente são temas que ganham um novo estatuto, num universo em que os referenciais tradicionais, a partir dos quais eram vistos como questões locais ou individuais, já não dão conta da dimensão nacional e até mesmo internacional que tais temas assumem, justificando, portanto, sua consideração. (BRASIL, 1997, p. 28) Um dos princípios que embasam os PCN é oportunizar, por meio da educação, uma for- mação voltada para a autonomia, a cidadania, a participação política consciente e crítica e ao de- senvolvimento profissional adequado aos novos tempos, quando é preciso sempre construir novas competências e continuar a aprender. Uma educação de qualidade favorece o crescimento indi- vidual e coletivo com base no desenvolvimento das potencialidades de docentes e discentes. Sim, porque o professor também deve ter condições de desenvolver sua criticidade e aprimorar sua atuação profissional. O pressuposto básico é o de que a aprendizagem de conteúdos deve necessariamente favorecer a inserção do aluno no dia a dia das questões sociais marcantes e em um universo cultural maior. A formação escolar deve propiciar o desenvolvimento de capacidades, de modo a favorecer a compreensão e a intervenção nos fenômenos sociais e culturais, assim como possibilitar aos alunos usufruir das manifestações cul- turais nacionais e universais. (BRASIL, 1997, p. 33) Dessa forma, estudiosos e pensadores de diferentes áreas concordam que a educação é o caminho para que os indivíduos desenvolvam suas potencialidades, adquiriam os conhecimen- tos necessários para poder participar da vida em sociedade de forma autônoma e responsável. Ao cumprir sua função social, a escola possibilita uma maior e melhor compreensão da reali- dade em seus aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos, condição fundamental para a construção da cidadania e de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual as diferenças sejam reconhecidas e valorizadas. Possibilitar o conhecimento sobre a cultura local, regional e nacional é um dos objetivos dos PCN, uma vez que a questão da identidade, pessoal e coletiva, é parte do processo de socia- lização que acontece na escola. Mas, ao mesmo tempo, propõem que a alteridade seja vista como constituinte de relações sociais que acontecem dentro e fora do espaço escolar. A construção e o compartilhamento de conhecimentos socialmente relevantes se dá quando temáticas pertinentes e significativas para a compreensão do mundoatual estão presentes na rotina escolar. Como vimos, isso começa pelo currículo escolar, mas também engloba a formação docente, porque, para alunos e professores: O desenvolvimento de capacidades, como as de relação interpessoal, as cogniti- vas, as afetivas, as motoras, as éticas, as estéticas de inserção social, torna-se pos- sível mediante o processo de construção e reconstrução de conhecimentos. Essa aprendizagem é exercida com o aporte pessoal de cada um, o que explica por que, a partir dos mesmos saberes, há sempre lugar para a construção de uma in- finidade de significados, e não a uniformidade destes. Os conhecimentos que se transmitem e se recriam na escola ganham sentido quando são produtos de uma construção dinâmica que se opera na interação constante entre o saber escolar Antropologia da educação96 e os demais saberes, entre o que o aluno aprende na escola e o que ele traz para a escola, num processo contínuo e permanente de aquisição, no qual interferem fatores políticos, sociais, culturais e psicológicos. (BRASIL, 1997, p. 34) Assim, o que se percebe é que a inclusão de temas presentes na realidade atual e importantes para a formação integral dos estudantes (valores, atitudes, competências) é um dos objetivos mais importantes dos PCN. Conhecer e refletir sobre questões ligadas à pluralidade cultural, à economia, à política, à sexualidade, à saúde, ao meio ambiente, à ética, às inovações tecnológicas, às relações de trabalho e ao consumo dão ao estudante (e de certa forma também a toda a comunidade que faz parte do processo educativo) as condições de compreender qual é seu papel na sociedade na qual se insere e como se posiciona no mundo. Trata-se de construir os conhecimentos relativos a temas tão complexos e importantes para o desenvolvimento do espírito crítico e das competências profissionais que o mercado exige atualmente. O foco da educação é a aprendizagem, e o ensino deve estar a serviço dela, tornando a aprendizagem significativa e o aluno o protagonista do processo. Como vimos anteriormente, é uma mudança que exige revisar a formação e a atuação docente, uma vez que o papel do professor também deve ser ressignificado, o qual se torna um mediador no processo ensino-aprendizagem. Atribuir novos sentidos aos conteúdos escolares também é parte desse caminho de ressigni- ficação como um todo. A Antropologia da Educação chama a atenção para o fato de esse processo ser também cultural e, portanto, a atitude e o decorrente olhar antropológico são partes constituin- tes da educação. Atribuir sentido às práticas culturais, sociais e políticas de uma sociedade é uma das tarefas delegadas à escola e deve envolver toda a comunidade escolar. Outro avanço importante para dar conta de temas importantes, alguns deles polêmicos ain- da hoje, tais como a sexualidade e as relações de gênero, é compreender que a aprendizagem não acontece apenas na escola, pela educação formal. Especialmente as novas gerações têm hoje ao seu dispor várias fontes de informação e conhecimento. E esses saberes precisam ser considerados e integrados aos conteúdos escolares formais. É mais um caminho para tornar a escola significativa para os estudantes e, por que não dizer, também para os professores. Cada grupo social, cada sociedade, cada país têm suas características. Estas devem ser con- templadas nos conteúdos escolares, sem, entretanto, desconsiderarem as diferenças e a pluralidade cultural. Aprender com o outro é fundamental! A escola pode orientar essas discussões. Por meio da mediação do professor, é possível apreender a lógica das diferentes culturas, valorizando-as e enriquecendo-as com novos pontos de vista. Fazendo um rápido exercício, pense um pouco e responda: que tema/assunto você gostaria de ter discutido em sala de aula com seus professores e colegas e não teve a oportunidade? Hoje, o que considera importante para que crianças e jovens discutam e aprendam na escola? Os PCN estão organizados em áreas do conhecimento (Língua Portuguesa, História, Geografia, Matemática, Ciências Naturais, Arte, Educação Física e Língua Estrangeira). Junto a elas aparecem os chamados temas transversais, que dizem respeito a conteúdos que devem ser in- cluídos nas disciplinas elencadas anteriormente, de forma transversal. São eles: ética, saúde, meio ambiente, orientação sexual, pluralidade cultural e trabalho e consumo. Pluralidades e diversidade cultural 97 Os temas transversais estão em sintonia com a função social da educação e seu papel na contemporaneidade, uma vez que são abordadas questões atuais que estimulam a escola a discutir valores que fundamentam não só a construção da democracia e da cidadania, uma vez que hoje novos atores, novos direitos, novas mediações e novas instituições redefinem o espaço das práticas de cidadania, propondo o desafio da superação da marcante desigualdade social e econômica da sociedade brasileira, com sua consequência de exclusão de grande parte da população na participação dos direitos e deveres. Trata-se de uma noção de cidadania ativa, que tem como ponto de partida a com- preensão do cidadão como portador de direitos e deveres, mas que também o vê como criador de direitos participando na gestão pública. (BRASIL, 1998, p. 20) Além disso, o reconhecimento e o respeito ao outro e à diversidade e a importância do diálogo para promoção de justiça e de solidariedade, assim como o desenvolvimento e o aprimoramento de habilidades e competências, são fundamentais para a futura inserção profissional dos estudantes. São propostas discussões abrangentes sobre as relações sociais, políticas, econômicas e culturais que marcam o mundo atual. Isso se desdobra em diferentes abordagens, tendo como foco o ambiente físico e biológico, o equilíbrio entre a ação humana e o equilíbrio ambiental. Nesse sentido, são discutidas as relações de trabalho (e seus subtemas, como desemprego) e de consumo, bem como o quanto a ética permeia também essas relações. Aliás, a ética é um dos te- mas mais relevantes na formação dos estudantes para que possam se inserir na sociedade diante da extrema complexidade do mundo nesse momento histórico em que vivemos. A convivência social implica em estabelecer relações que são marcadas por conflitos dos mais diversos tipos, mas ela sempre deve ser pautada por princípios éticos universais. Hoje, cada vez mais, cada um de nós deve responder por suas escolhas e assumir as responsabilidades que delas decorrem. Por conta disso, é preciso discutir ética com crianças e jovens para que inter- nalizem valores fundamentais para a vida em sociedade. Com base em modelos positivos de comportamento e posicionamento diante de temas como a intolerância e a discriminação nas relações étnico-raciais, por exemplo, professores e toda a comunidade escolar desempenham pa- pel fundamental na formação das novas gerações, que poderão abolir práticas que desrespeitem os direitos dos cidadãos e a democracia. A ética e os demais temas transversais devem estar pre- sentes na rotina escolar e na prática docente. Mais do que nunca, aliar teoria à prática é condição básica para a implementação dos temas transversais. Com relação ao tema saúde, num país como o Brasil, no qual quase metade da população nem ao menos tem acesso ao saneamento básico, isso se torna muito relevante. Deve-se abordar questões ligadas ao bem-estar do indivíduo, ao autoconhecimento, à higiene pessoal, à saúde e à prevenção de doenças, à gravidez na adolescência, à drogadição etc., temas importantes para a construção da responsabilidade pessoal e coletiva. Um dos pontos mais importantes para a reflexão que estamos fazendo em nossa disciplina se relaciona com os dois próximos temas transversais: orientação sexual e pluralidade cultural. O primeiro está ligado a assuntos que muitas vezes ainda são considerados tabus em nossa so- ciedade, tais como a descoberta e vivência da sexualidade e seus subtemas – métodos contracep- tivos, doenças sexualmente transmissíveis,entre outros. Como sabemos, as implicações disso se Antropologia da educação98 refletem no dia a dia de muitas pessoas, que, por sua orientação sexual, por exemplo, são excluí- das e têm seus direitos básicos desrespeitados. Trataremos desse tema adiante. Já a pluralidade cultural tem marcado nossa discussão desde o primeiro capítulo, exata- mente por sua relevância para a Antropologia da Educação. Diante da própria formação étnica da população brasileira e sua diversidade cultural, incluir em todas as áreas do conhecimento a etnicidade, o pluralismo e o multiculturalismo colabora para a construção de uma sociedade mais inclusiva e que estimule a convivência mais harmoniosa entre os diversos grupos que formam o Brasil, nação em que a diferença é parte da sua identidade. O objetivo deve ser sempre valorizar a diferença não só como o que nos caracteriza, mas, sobretudo, como o que nos enriquece. Não é justamente isso que estamos reforçando desde o início do livro? Observe que, apesar de abrangentes, os temas transversais devem contemplar tam- bém as diferenças regionais. Mas é importante que estas sejam trabalhadas na transversalidade, de maneira inter e transdisciplinar. Observe que o olhar antropológico atende a essa demanda, uma vez que o conhecimento é visto como algo sempre em construção e que deve ser relativizado. Para isso, é preciso flexibilidade. A transversalidade, ao pressupor que haverá uma integração entre as áreas do conhecimento e dos conteúdos escolares, já torna o aprendizado não só mais significa- tivo, mas também mais coerente e em consonância com o que se espera hoje da educação. Como já dissemos anteriormente, a escola se torna mais significativa para o estudante e, portanto, mais efetiva também na construção de relações sociais mais harmoniosas e justas, na medida em que articula conhecimento com as questões sociais relevantes. Ao mesmo tempo, tam- bém prepara os estudantes para a vida em sociedade e o exercício profissional com base em sólidos valores positivos de respeito a si mesmo, ao outro e ao meio ambiente. 6.2 As diferenças religiosas, de gênero, da sexualidade e das relações étnico-raciais Todos os dias vemos nos noticiários que o mundo é palco de vários confli- tos, de motivações diferentes, muitos deles sangrentos e todos com uma coisa em comum: a intolerância. Mas você pode se perguntar: como uma guerra civil, por exemplo, pode ser exemplo de intolerância? Deve haver uma causa mais “relevan- te”? Será? Pois saiba que a intolerância é forte o suficiente para construir relações nas quais não há mais espaço para o diálogo e o entendimento. Se é por uma ques- tão religiosa, étnica, econômica, política ou tudo isso junto, não importa. O que vale é que em al- gum momento as pessoas deixaram de se entender, de dialogar, de procurar resolver pacificamente suas divergências. Particularmente, quando falamos em guerra civil, tudo fica ainda mais crítico, porque estamos falando de pessoas de um mesmo país matando umas às outras. Vídeo Pluralidades e diversidade cultural 99 Como vimos em capítulo anterior, atualmente existem vários conflitos de motivação étni- co-racial acontecendo, mas é claro que, ao lado dessa motivação, há também questões políticas e econômicas. Entretanto, quando nos perguntamos por que, dentro de um mesmo território, a convivência entre povos de diferentes origens étnicas é tão difícil, encontramos como resposta a não percepção e o não reconhecimento do valor da diversidade. Mas, quando se chega ao ponto de querer que o outro sequer exista, estamos perto do que se chama de genocídio. Infelizmente tam- bém são vários os exemplos que encontramos na história da humanidade: Figura 1 – Casos de genocídios no mundo Fonte: Lammerhirt, 2017. Verifique que não são poucos os casos. Nessa imagem estão representados os mais famosos, em virtude do número de vítimas. Porém, ainda hoje ocorrem outros com menos impacto na mí- dia. Vamos lembrar que o mais conhecido exemplo de intolerância foi o genocídio de milhões de judeus durante o Holocausto, promovido pelo Estado nazista alemão durante a Segunda Guerra Mundial. A chamada “solução final” adotada por Adolf Hitler para resolver a questão do extermí- nio dos judeus e outros “indesejáveis” (como ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência física e/ou mental, negros, mulheres, crianças, comunistas, anarquistas, maçons, dissidentes políticos, alcoólatras) foi a câmara de gás e a incineração dos cadáveres em fornos nos campos de concentra- ção. Foram mais de seis milhões de judeus, um milhão de ciganos e outras centenas de milhares de vítimas. O que você sente ao observar a imagem a seguir? Antropologia da educação100 Figura 2 – Prisioneiros judeus em Buchenwald, campo de concentração nazista na Alemanha, em 16 de abril de 1945. Como aceitar que seres humanos tenham pensado e realizado ações tão terríveis contra outros seres humanos? Não é difícil de acreditar que a humanidade tenha um dia chegado a esse extremo? Uns pelo que fizeram, outros por sua omissão, outros pela indiferença. Seja como for, o fato é que a não aceitação do outro já nos levou a essa barbárie. Ainda hoje infelizmente não faltam exemplos de situações nas quais a intolerância leva à violência extrema. E há quem diga que fatos como esse deveriam ser deixados no passado porque não há mais nada a fazer para mudar o que aconteceu e a lembrança é muito dolorosa. Você concorda com isso? Para que serviria a História se não reme- morássemos fatos marcantes como esse e tirássemos as lições necessárias para que não se repitam? Recentemente, um grupo terrorista fundamentalista islâmico jogou homossexuais do alto de um prédio para morrerem, numa demonstração extrema de homofobia. Qualquer outra explicação não encontrará comprovação em nenhum livro considerado sagrado... No dia a dia escolar, à luz dos parâmetros e das diretrizes que orientam e normatizam a edu- cação do Brasil, ainda que a eles tenhamos muitas ressalvas, é possível criar um espaço de discussão no qual situações, imagens, “brincadeiras”, narrativas e atitudes em relação às diferenças religiosas, de gênero, de orientação sexual e étnico-raciais sejam problematizadas. Quem de nós não conhece ao menos uma piadinha na qual a mulher é desvalorizada, homossexuais são ridicularizados, ou outra que tenha um estereótipo negativo ligado a uma religião, uma etnia ou raça como tema? Devemos nos questionar: elas são engraçadas? Para quem? Ou melhor: são mesmo engraçadas? Quando fala- mos sobre o bullying, chamamos bastante a atenção para o fato de que uma brincadeira só é mesmo uma brincadeira inofensiva quando não agride nem humilha ninguém. A piada de que você se lem- brou se enquadra nessa categoria? Pluralidades e diversidade cultural 101 Ao reproduzirmos esse tipo de discurso, estamos colaborando para a manutenção do pre- conceito, de estereótipos e para a exclusão daqueles indivíduos que, por não se enquadrarem ou não atenderem aos padrões preestabelecidos pela sociedade como os “corretos”, vão compor as chamadas minorias. E esse conceito se relaciona com a falta de equidade e com a negação de direitos básicos e, portanto, de cidadania. Na mídia é muito comum encontrarmos diversos exemplos. Na maioria das vezes, não questionamos mais profundamente, perguntando-nos por que essa discriminação ocorre e quais as consequências para os indivíduos que estão na condição de vítimas dessa situação. O que elas sentem? Como lidam com esse tipo de tratamento? O que esperam da sociedade? Diversos pensadores, entre eles Zygmunt Bauman, afirmam que o papel da educação e do educador na atualidade é também fomentar o desenvolvimento do espírito crítico dos estudantes para que vivam melhor num mundo que muda rapidamente e que é multifacetado. Somos muitos, nossa identidade também está em construção. Como já vimos aqui, definimo-nos também com base no outro: sei quem sou também porque me defronto com o outro, aquele que não sou. Nessemundo, qual é o papel do outro? Como respeitá-lo em suas diferenças? Como lidar com as mu- danças de nossas identidades – sociais, culturais, sexuais, religiosas etc.? Segundo Bauman (apud PORCHEDDU, 2009, p. 669), a escola não pode existir apenas para domesticar os indivíduos para a vida social ou formar mão de obra para o mercado. Dela se espera também que considere as mu- danças que ocorrem no mundo, que veja na desordem e no caos o potencial de algo novo, criativo e construtivo, que pode interessar às novas gerações. Os estudantes entenderiam que não se aprende apenas durante o tempo de escolaridade formal, mas ao longo de toda a vida. A educação não pode ser um produto. Não se trata mais de transmitir conhecimentos. O professor não é mais o único detentor do saber. A escola precisa se ajustar ao mundo atual e atender às demandas colocadas diante das tão rápidas e profundas transformações. No Capítulo 5, indicamos algumas das obras de Bauman, as quais vale a pena ler. Outro autor que nos ajuda a pensar como lidar com as diferenças na escola é Jacques Delors, que, coordenando o Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (UNESCO, 2010), traçou um quadro sobre a educação e as novas demandas para o novo século e pontuou as dificuldades para atualizar os projetos educativos. Um dos pontos mais desta- cados pelo autor diz respeito à necessidade de nos unirmos em torno de um projeto comum, uma vez que o mundo hoje está integrado e marcado pela interdependência – a chamada aldeia global. Chama a atenção também para o fato de ser preciso despertar na sociedade o interesse pela educação ao longo da vida, o que exige novas estratégias e projetos educacionais. Ele e outros pensadores da contemporaneidade acreditam que hoje devemos buscar a colaboração e a participação democrática de todos os atores sociais, sem discriminação e em busca do desenvolvimento humano. No entanto, a maior contribuição de Delors foi apresentar o que chamou de quatro pila- res da educação para o século XXI. São eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Observe como essa visão se aproxima do olhar que a Antropologia nos propõe quando estabelece a alteridade e o estudo do homem por inteiro como seu objeto de estudo. Para Delors (1998, p. 89), “à educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado, e ao mesmo tempo, a bússola que permite navegar através dele”. Antropologia da educação102 Antunes (2010) também explica esses quatro pilares, como podemos visualizar na figura a seguir: Figura 3 – Os quatro pilares da educação Aprender a conviver Esse domínio da aprendizagem atua no campo das ati- tudes e dos valores e envolve uma consciência e ações contra o preconceito e as rivalidades diárias que se apresentam no desafio de viver. Aprender a ser Essa aprendizagem depende das outras três, e, dessa forma, a educação deve propor como uma de suas finalidades essenciais o desenvolvimento do indivíduo, ou seja, espírito e corpo, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal e espiritualidade. Aprender a conhecer Essa aprendizagem se refere à aquisição dos “instrumentos do conhecimento”, desenvolvendo nos alunos o raciocínio lógico, a capacidade de compreensão, o pensamento dedutivo e intuitivo e a memória. O importante é não apenas despertar nos estudantes esses instrumentos, mas motivá-los a desenvolver sua vontade de aprender e querer saber mais e melhor. Aprender a fazer Saber fazer ou dominar competências não se separa de aprender a conhecer, mas confere ao aluno uma formação técnico-profissional em que aplicará na prática seus conhe- cimentos teóricos. É essencial que cada indivíduo saiba se comunicar por meio de diferentes linguagens, assim como interpretar e selecionar, na torrente de informações que recebe, quais são essenciais e quais podem ajudar a refazer opiniões e serem aplicadas na maneira de se viver e de re- descobrir o tempo e o mundo. Fonte: Antunes, 2010. O objetivo é que se possa oferecer às novas gerações uma educação de qualidade e mais conectada com o mundo atual, complexo e dinâmico como nunca e que exige de nós novas habilidades e competências, inclusive para querer aprender cada vez mais e melhor. Os pilares do conhecimento se fundam numa consciência de que cada um de nós deve ser o sujeito do seu processo de construção do conhecimento. O indivíduo se interessa e se abre para o conheci- mento, para o novo, para o diferente e o desafio de conviver com esse outro, enfim, percebe-se como sujeito autônomo, livre para pensar e apto para agir no sentido de construir uma sociedade democrática e justa. A escola e o processo ensino-aprendizagem deixam de ser algo inflexível, imutável, pronto e acabado e se tornam um caminhar no qual esses pilares se relacionam entre si. Aprender é um processo sempre em construção! E, como temos afirmado várias vezes aqui, vale também para o professor que, em sua formação inicial e, sempre que possível, buscando for- mação continuada, reinventa-se, recicla-se e adquire essa postura de aprender continuamente. Dessa forma estará mais capacitado para rever os próprios conceitos em relação à diversidade e trazer para sua sala a discussão dialógica que deve marcar temas tão relevantes, como as diferen- ças religiosas, de gênero, de sexualidade e étnico-raciais. Especialmente quando aborda a capacidade de aprender a conviver, Delors (1998) nos mos- tra a importância de rever valores e atitudes para combater o preconceito e lidar com os conflitos que estão presentes na sociedade e que aparecem em sala de aula. Da mesma forma, aprender a ser, quase que uma síntese dos outros três pilares, aproxima-se bastante do olhar antropológico, uma vez que propõe que se construa uma existência pautada numa formação holística, isto é, que contempla corpo e espírito. Podemos entender que essa existência se realizará plenamente se pudermos ver, Pluralidades e diversidade cultural 103 compreender, valorizar e aprender com o outro e com ele estabelecer uma convivência harmoniosa e construtiva. Quando falamos nas diferenças religiosas, por exemplo, vemos hoje um aumento da intole- rância e do medo, nada relacionado com os princípios que fundamentalmente norteiam todas as religiões no mundo. Particularmente as três grandes religiões monoteístas (que cultuam um único deus) cultivam valores muito semelhantes, tais como amor ao próximo, caridade, honestidade, compaixão, humildade e outros, que são edificantes e importantes para a formação de um indiví- duo. Entretanto, historicamente essas religiões (judaísmo, cristianismo e islamismo) se confrontam e seus seguidores lutam entre si e matam em nome de seu deus. Como explicar isso? Pela intolerân- cia e pelo não reconhecimento da alteridade. No que diz respeito às relações de gênero, hoje há muita polêmica sobre a pertinência de se discutir esse tema nas escolas. O que se tem visto é que há uma forte resistência em trazer a temáti- ca para as salas de aula. E isso compromete o projeto de uma educação que valorize as diferenças e a alteridade. E por que as relações de gênero, bem como a sexualidade, são temas que causam tanto desconforto? Porque estão cercados de tabus e preconceitos. Historicamente, a Antropologia tem analisado as relações de gênero em várias culturas do mundo e é recorrente o fato de haver muita desigualdade nessa área, comprometendo as relações sociais, políticas e econômicas. Segundo Goldemberg (2004, p. 7), gênero é um conceito útil para “desnaturalizar os papéis e as identidades atribuídos ao homem e à mulher. Assim, diferencio o sexo (dimensão biológica dos seres humanos) do gênero (uma escolha cultural, arbitrária, um produto social e histórico)”. Verifica-se que as relações sociais passam pela posição que homens e mulheres ocupam e os papéis e as funções a eles atribuídos na estrutura social, ou melhor, quaissão as representações de cada um deles. Histórica e quase que universalmente a mulher é inferiorizada e desvalorizada, devendo se colocar numa posição de submissão em relação ao homem. Cada vez mais se discutem a sexuali- dade e a forma como homens e mulheres usam e percebem seus corpos, sobretudo depois do mo- vimento feminista (nos anos 1960), do surgimento da pílula anticoncepcional e da ampliação do acesso da mulher ao mercado de trabalho. Mas isso não implicou em igualdade e equidade. Como estamos falando de relações, fica claro que a definição de papéis masculinos e femininos só existe um em relação ao outro; sendo assim, são identidades que se constroem mutuamente. Hoje, atreladas às relações de gênero, existem outras temáticas, como a persistência da vio- lência contra a mulher, as diferenças salariais, as masculinidades e outras, mas não se esquecendo de contemplar as relações de poder envolvidas. Além disso, é preciso considerar que diferenças entre homens/mulheres, homens/homens, mulheres/mulheres, além de relacionais, são construí- das social e historicamente, tal como todos os demais aspectos relacionados à cultura, não sendo apenas o sexo biológico o definidor de identidades e representações. O objetivo hoje deve ser superar o silêncio que ainda existe nas escolas (a despeito da exis- tência dos temas transversais) em relação à discussão sobre gênero, sexualidade e diversidade se- xual, bem como superar a visão biológica, assumindo a existência e a presença nas escolas de gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais. O silêncio e a omissão em relação a esse tema só Antropologia da educação104 colaboram para aumentar a homofobia e disseminar ódio, violência e exclusão, reforçando a hete- rossexualidade como se fosse a norma. E isso precisa ser revisto. Entre permanências e mudanças que podemos verificar nessa área, o que se percebe é que essa é uma discussão que não pode mais ficar fora da escola, uma vez que, tal como na sociedade mais ampla, no ambiente escolar também encontramos as várias identidades de gênero. E essas diferentes orientações sexuais precisam ver na escola um espaço de acolhimento, reconhecimento e valorização, ainda que para isso valores tradicionais da sociedade precisem ser questionados e revistos. Sem isso, o combate ao preconceito religioso, de gênero e racial ficará comprometido. 6.3 Xenofobia e preconceito: o papel da educação O que temos visto até aqui, especialmente na reflexão sobre diferenças, é que a escola sempre acaba sendo cobrada e colocada em xeque quando a sociedade demanda soluções para conflitos ou produção de novos conhecimentos. Mas você pode estar se perguntando: não é essa a função social da escola? Sim, uma vez que nela vemos reproduzidas as tensões e os conflitos existentes fora do espaço escolar. E o convívio entre diferentes é sempre uma dificuldade para a qual se busca na escola uma solução. No que diz respeito às diferenças de gênero, religiosas e étnico-raciais, a noção de alteridade deve ser uma referência para toda a comunidade escolar, em especial para professores e estudantes. Quando a pluralidade cultural foi elencada para fazer parte dos PCN como um dos temas transversais, a alteridade, a diversidade e o multiculturalismo se tornaram fundamentais para a educação, ao lado da tolerância. Para compreendermos melhor a definição de tolerância e o alcance desse conceito para a Antropologia da Educação, vamos apresentar o próprio texto da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada na Conferência Geral da Unesco em 1995, que, em seu artigo 1º, explica que 1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz. 1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em ne- nhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado. 1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumen- tos internacionais relativos aos direitos humanos. Vídeo Pluralidades e diversidade cultural 105 1.4 Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem. (UNESCO, 1995, grifos nossos) Observe que tolerância não é um favor, mas sim o reconhecimento e a valorização das di- ferenças, além de ser a base de uma visão de mundo inclusiva e respeitosa, fundamental para a cultura de paz. A tolerância está em consonância com o princípio antropológico do relativismo cultural e da atitude antropológica, uma vez que não só resulta do reconhecimento, mas também da valorização da diversidade e do pluralismo cultural. Continuando a analisar o documento da Unesco, podemos compreender qual é o papel da educação nesse processo. O artigo 4º, que trata da educação, define que 4.1 A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar aos indivíduos quais são seus direitos e suas liberdades a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a von- tade de proteger os direitos e liberdades dos outros. 4.2 A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritá- rio; por isso é necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância centrados nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância, que expressam as causas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e as nações. 4.3 A educação para a tolerância deve visar a contrariar as influências que le- vam ao medo e à exclusão do outro e deve ajudar os jovens a desenvolver sua capacidade de exercer um juízo autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos. 4.4 Comprometemo-nos a apoiar e a executar programas de pesquisa em ciên- cias sociais e de educação para a tolerância, para os direitos humanos e para a não-violência. Por conseguinte, torna-se necessário dar atenção especial à melhoria da formação dos docentes, dos programas de ensino, do conteúdo dos manuais e cursos e de outros tipos de material pedagógico, inclusive as novas tecnologias educacionais, a fim de formar cidadãos solidários e responsáveis, abertos a outras culturas, capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade dos seres humanos e de suas diferenças e capazes de prevenir os conflitos ou de resolvê-lospor meios não violentos. (UNESCO, 1995) Chamamos atenção para a afirmativa de que “a educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância” e para o item 4.3, que destaca a necessidade de se superarem o medo e a exclusão, sentimentos tão recorrentes. Especialmente quando se fala em xenofobia, isto é, a aversão ao que vem de fora, ao estrangeiro, como dito no item 4.4, isso demanda atenção à formação docente para que possa efetivamente contribuir para a formação de indivíduos capazes de resolver confli- tos com base no respeito mútuo e na solidariedade. Antropologia da educação106 Hoje tantos conflitos estão acontecendo no mundo e, como não se via desde o final da Segunda Guerra Mundial, ocorrem vários fluxos migratórios, por diferentes razões, mas sempre gerando reações diversas por parte tanto daqueles que fogem ou optam por deixar seus países de origem, quanto por aqueles que não veem outra opção para salvar suas vidas e/ou de seus familiares. Como já relatamos no capítulo anterior, em 2001 aconteceu, na África do Sul, a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, du- rante a qual foi elaborado seu documento de Declaração e Programa de Ação (BRASIL, 2001), no qual se reafirmou que “a diversidade cultural é um valioso elemento para o avanço e bem-estar da humanidade com um todo, e que deve ser valorizada, desfrutada, genuinamente aceita e ado- tada como característica permanente de enriquecimento de nossas sociedades”, reconhecendo que “a proibição de discriminação racial, do genocídio, do crime do apartheid e da escravidão, como está definida nas obrigações dos importantes instrumentos de direitos humanos, não admite exce- ção” (BRASIL, 2001, p. 3). A xenofobia, o racismo e a discriminação racial violam os direitos humanos e dificultam (quando não inviabilizam) a convivência harmônica e pacífica entre os homens e, em muitos casos, provocam o deslocamento populacional, do qual falávamos anteriormente. Essa situação, em casos mais graves, gera graves crises humanitárias, causando dor e sofrimento às pessoas, que muitas vezes se tornam também vítimas de preconceito, discriminação, violência e exclusão. Essas pessoas veem seus direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos negados quando sua condição passa a depender da compreensão e da tolerância daqueles que os acolhem. Mas não se fala em xenofobia apenas em relação a migrações forçadas. Deixar o país de origem pode ser uma opção e acontece por diferentes razões: econômicas (busca de melhores con- dições de vida), políticas (fugir de perseguição ou repressão), cultural (fuga de uma limpeza étnica, isto é, quando o grupo que está no poder decide eliminar uma etnia, como aconteceu em Ruanda nos anos 1990) etc. De qualquer maneira, a questão da imigração sempre exige envolvimento do Estado, seja por meio de definição e implementação de sua política externa, seja por conta das ações relativas ao acolhimento dos imigrantes e, em casos extremos, dos refugiados. Na Declaração citada, os países participantes reconheceram que a xenofobia, particularmente contra migrantes, refugiados e aqueles que solicitam asilo, constitui-se em uma das principais fontes do racismo contemporâneo, e que a violação dos direitos humanos contra membros de tais grupos ocorre em larga escala no contexto das práticas discriminatórias, xenófobas e racistas. (BRASIL, 2001, p. 8) Em um mundo interligado e interdependente, a colaboração internacional para promover ações de acolhimento, proteção e inserção social desses grupos é fundamental. A Declaração de Durban fala sobre isso e reconhece que a “xenofobia, em suas mais diferentes manifestações, é uma das principais fontes contemporâneas de discriminação e conflito, cujo combate requer pronta e ur- gente atenção dos Estados, assim como da comunidade internacional” (BRASIL, 2001, p. 7). Esse documento também chama atenção para o fato de que ainda persiste, no mundo atual, teorias de superioridade racistas e práticas que em muito se aproximam daquelas viven- ciadas pelas populações nativas nas Américas, descritas no início deste livro. A crença nessa Pluralidades e diversidade cultural 107 superioridade étnica ou racial, ainda que não se reproduza hoje nos mesmos moldes daquela praticada a partir do século XVI, ainda causa danos imensos a quem é vítima de discriminação e preconceito. A Declaração reconhece não só as dificuldades para o combate e a erradicação da xenofobia, da discriminação racial e do preconceito, como também reafirma os princípios dos direitos iguais e da autodeterminação dos povos [...], lem- brando que todos os indivíduos nascem iguais em dignidade e direitos, enfati- zando que a igualdade deve ser protegida como questão de prioridade máxima e reconhecendo o dever dos Estados em tomar medidas rápidas, decisivas e apropriadas visando eliminar todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. (BRASIL, 2001, p. 9) Assim, sendo a educação uma atribuição do Estado, podemos perceber o papel que ela de- sempenha nesse processo. Mas, ao lado disso, não podemos nos esquecer das enormes dificuldades para implementar ações e políticas que efetivamente surtam o efeito desejado. Como dissemos no início deste capítulo, aprender com a História ajuda a não repetir os mesmos erros e a construir um mundo mais justo. Os signatários da Declaração reconhecem que racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata ocorrem com base na raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica e que as vítimas po- dem sofrer múltiplas ou agravadas formas de discriminação calcadas em outros aspectos correlatos como sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outro tipo, origem social, propriedade, nascimento e outros. (BRASIL, 2001, p. 5) Vemos a persistência de práticas discriminatórias do passado e novas formas de racismo e xenofobia, algumas muito atraentes para jovens que não tenham perspectivas para suas vidas ou que estejam sendo formados na cultura do ódio. Esses jovens devem ser protegidos em relação a isso para que não sejam cooptados por indivíduos e/ou grupos racistas e/ou xenófobos. Mais uma vez pode- mos pensar na importância de uma escola na qual o diálogo sobre esses temas aconteça, não? Esse documento caracteriza as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerân- cia correlata (africanos e afrodescendentes, povos indígenas, migrantes e refugiados), bem como su- gere medidas de prevenção, educação e proteção com vistas à erradicação desses males, discorrendo também sobre recursos e medidas eficazes de reparação, ressarcimento, indenização, entre outros, em níveis nacional, regional e internacional. O texto também aborda estratégias para alcançar a igual- dade plena e efetiva, abrangendo a cooperação internacional e o fortalecimento das Nações Unidas e de outros mecanismos internacionais no combate a tais preconceitos e intolerâncias. Além disso, discorre sobre o Programa de Ação para que os objetivos sejam alcançados e medidas de prevenção e políticas afirmativas (acesso aos serviços sociais, emprego, moradia, educação, atenção à saúde etc.), importantes para assegurar que esses compromissos sejam cumpridos. Diante do que vimos, podemos afirmar que a tolerância, em última instância, diz res- peito à alteridade e ao respeito às diferenças, constituindo-se num requisito básico para que possamos conviver sem que os indivíduos sejam discriminados em virtude de sexo, raça, etnia, religião, nacionalidade. Antropologia da educação108 Tendo em vista esse contexto, fica claro que a Antropologia, em sua aproximação com a educação, pode dar uma valiosa contribuição para a luta contra o preconceito, a discriminação e a xenofobia. Considerações finais A aproximação entre a Antropologia e a educação nos ajuda a compreender os sistemas simbólicos e a rede de significados que envolvem as diferenças e a emergênciado outro como ator fundamental na atualidade. Esse outro que sempre existiu, mas que nem sempre esteve tão perto de nós, inclusive em termos espaciais. O outro pode estar dentro nas nossas casas. Pode ser nosso ir- mão/nossa irmã trans ou homossexual, nosso amigo que é negro e é constantemente discriminado, nossos amigos que abraçaram uma religião diferente da nossa, exigindo que estejamos conscientes de que a diversidade está posta e que deve ser acolhida e respeitada. Diante de fatos como esses e outros, comentamos desde o início desta obra a necessidade de fazer com que os documentos e as leis que propõem uma discussão de temas relacionados às diferenças não sejam apenas diretrizes, mas se concretizem na prática. Como dissemos ante- riormente, temas como ética, diversidade cultural, meio ambiente, saúde, trabalho, consumo e orientação sexual devem ser incorporados à rotina escolar de forma integral, fazendo parte, ain- da que de forma transversal, dos conteúdos e das práticas pedagógicas. O ideal acontece quando toda a comunidade escolar, incluindo aí as famílias dos estudantes, envolve-se nessa discussão. Assim se potencializa o poder de transformação que só a educação pode realizar. Dessa forma, os indivíduos passam a ter condições de pensar a própria existência e sua atuação na sociedade e, com isso, mudar o que é preciso para construir um mundo no qual ser diferente não signifi- que não ter direitos, ser desrespeitado, não ter sua identidade reconhecida e, sobretudo, não ser violentado de nenhuma forma. Aprender a viver juntos e construir uma cultura para a paz é primordial para a mudança no mundo e a inclusão das minorias, assim como é dever da educação na atualidade promover o conhecimento e a cultura dos diferentes grupos étnico-raciais, das várias identidades de gênero, das diferentes classes sociais e dos vários grupos religiosos. Mas isso não acontecerá se não houver uma reflexão sobre os saberes selecionados para serem trabalhados na escola, como já vimos no capítulo anterior. E isso se dará questionando as relações de poder/dominação que se configuram na sociedade. Enfim, com tantos desafios postos hoje diante da complexidade do mundo, lidar com as diferenças implica em conseguir não só dar sentido ao enorme volume de informações às quais se tem acesso, selecionando o que é realmente relevante, mas também conseguindo mobilizar os conhecimentos construídos para as ações e atitudes na vida prática. Buscar a boa convivência com o outro, com as diferenças e com as mudanças e incertezas que vivemos atualmente deve ser o grande objetivo da educação no século XXI, sobretudo para promover a colaboração, a integração, a solidariedade, a responsabilidade social e o respeito à diversidade em todas as suas formas. Pluralidades e diversidade cultural 109 Atividades 1. Os PCNs deram um rumo à educação brasileira, trouxeram questões fundamentais para a discussão e impactaram na concepção e elaboração do currículo. Mas será nos temas trans- versais que segmentos da população brasileira verão suas particularidades sendo tratadas. Quais são e do que tratam os chamados temas transversais? 2. Um avanço importante para dar conta dos temas transversais, alguns deles polêmicos ainda hoje, tais como a sexualidade e as relações de gênero, é compreender que a aprendizagem não acontece apenas na escola, pela educação formal. Por quê? 3. No dia a dia da escola, à luz dos parâmetros e diretrizes que orientam e normatizam a edu- cação do Brasil, é possível criar um espaço de discussão no qual situações, imagens, “brin- cadeiras”, narrativas e atitudes em relação às diferenças religiosas, de gênero, de orientação sexual e étnico-raciais sejam problematizadas. Dê um exemplo de piada, discurso ou brinca- deira desse tipo e explique por que isso deve ser combatido na escola e na sociedade. 4. Jacques Delors traçou um quadro sobre a educação e as novas demandas para o novo século e pontuou as dificuldades para atualizar os projetos educativos. Assim, definiu os quatro pilares da educação para o século XXI. Aponte quais são eles e relacione um deles ao combate à xe- nofobia, à discriminação e ao preconceito ligados às relações de gênero e diferenças religiosas. Referências ANTUNES, C. A prática dos quatro pilares da educação na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 2010. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/ L9394.htm>. Acesso em: 4 abr. 2018. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998. ______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: MEC, 2004. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes- Etnico-Raciais.pdf/>. Acesso em: 5 abr. 2018. ______. Ministério da Cultura. Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial Conta o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata – adotada em 8 de setembro de 2001 em Durban, África do Sul. 2001. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_durban.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018. DELORS, J. Os quatro pilares da educação. In: DELORS, J. (Coord.). Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, 1998. GOLDEMBERG, M. De perto ninguém é normal: estudos sobre corpo, sexualidade, gênero e desvio na cul- tura brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. Antropologia da educação110 LAMMERHIRT, L. Genocídios no mundo: há como preveni-los? Politize!, jan. 2017. Disponível em: <http:// www.politize.com.br/genocidios-no-mundo-ha-como-preveni-los/>. Acesso em: 5 abr. 2018. PORCHEDDU, A. Zygmunt Bauman: entrevista sobre a educação – desafios pedagógicos e modernidade líquida. Segunda parte da entrevista: os desafios da educação: aprender a caminhar sobre areias movediças. Trad. Neide de Rezende e Marcello Bulgarelli. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, maio/ago. 2009. UNESCO. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Paris, 16 nov. 1995. Disponível em: <http://www.dhnet. org.br/direitos/sip/onu/paz/dec95.htm>. Acesso em: 5 abr. 2018. ______. Educação: um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Brasília, DF, jul. 2010. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2018. 7 O multiculturalismo O diálogo entre a Antropologia e a educação tem se mostrado fértil para compreendermos melhor o mundo atual e sua complexidade, particularmente em razão do fenômeno chamado globali- zação, do qual já temos falado brevemente em capítulos anteriores. Hoje o mundo vive sob o impacto desse fenômeno, que envolve aspectos econômicos, políticos, sociais e, obviamente, culturais. Vamos agora apresentar e discutir os impactos da globalização na educação, sobretudo no conceito de multiculturalismo. Iremos analisar também como as trocas e os intercâmbios culturais re- forçam os processos de assimilação e aculturação na atualidade e a sua importância para a educação. Finalmente, discutiremos também como a multidisciplinaridade colabora para a realização de uma prática pedagógica que favoreça a criação de espaços de diálogo na escola. 7.1 A Antropologia e a globalização Desde os anos 1980, o mundo tem passado por rápidas e intensas transfor- mações. Falamos em união, integração econômica e cultural, superação de fronteiras com a criação de grandes blocos de tendência hegemônica, como União Europeia, Mercosul, entre outros. O mundo se globaliza, a cultura se mundializa, os mercados se unificam. Constituiu a chamada economia-mundo, que integrou mercadose pessoas, enfraquecendo Estados-nacionais, gerando uma interdependência entre países jamais vista na histó- ria. Ela é marcada também pelos avanços tecnológicos, especialmente dos meios de comunicação de massa, sobretudo por conta da internet e das redes sociais. Isso facilitou a comunicação e o contato entre culturas de diferentes lugares do planeta em tempo real e, ao lado da facilidade de mobilidade e de viagens a outros países, diminuiu distâncias e aproximou as pessoas. Hoje é muito fácil conhecermos pessoas que moram do outro lado do mundo, falam outra língua e, portanto, têm outra cultura. Como você vê isso? É um problema para você? Para mui- tos indivíduos, esse contexto provocou questionamentos e gerou certo desconforto. Nem todos se sentem à vontade com a presença tão próxima, ainda que virtual, de pessoas diferentes, seja qual for a diferença: etnia, nacionalidade, língua, religião, gênero, enfim, de uma cultura com valores, princípios, regras, costumes e história diferentes da sua. Em termos teóricos, há controvérsias em torno da periodização da globalização, mas em geral definiu-se que ela teve início nos séculos XV-XVI, com as Grandes Navegações. Naquele momento, num contexto de expansão ultramarina realizado pelas potências europeias da época – Portugal e Espanha – houve uma ampliação da área de atuação econômica desses países, marcada pelo mercantilismo, cujos fundamentos eram: balança comercial favorável (exportar mais do que importar); metalismo (metais preciosos para cunhar moedas e ostentar riqueza); colonização de novas terras, nas quais era praticada a monocultura com o uso de mão de obra escrava de negros Vídeo Antropologia da educação112 africanos; procura de novas matérias-primas (sobretudo especiarias); e busca por novas rotas para comércio. Assim, começa a haver um grande intercâmbio de pessoas, mercadorias e culturas que mudaria o mundo para sempre. Vimos no Capítulo 3 que um dos legados mais perversos desse período foi o escravismo, que no Brasil se manteve por quase trezentos anos e deixou marcas profundas na sociedade bra- sileira. A população afrodescendente sofre pela mentalidade que marcava aquele período e que ainda hoje traz problemas como discriminação, preconceito e exclusão. Mas voltaremos a essa questão mais à frente. Vamos continuar a caracterizar a globalização. Na primeira fase da globalização, houve uma integração cada vez maior entre povos de dife- rentes lugares do mundo e com culturas distintas, o que promoveu reações nem sempre positivas em termos de reconhecimento das diferenças. Nas novas terras descobertas ou na velha Europa, muita coisa mudou, especialmente em termos de organização e estrutura sociais, sem contar a for- te presença da Igreja católica como parte atuante e importante na condução desses contatos entre povos. Devemos reforçar sempre que, sob o argumento de “levar Deus” aos “selvagens”, não houve o reconhecimento e muito menos a valorização da diversidade – religiosa, social, cultural, política e econômica. O que precisamos entender é que, a partir daquele momento, diminuiu significativamente o isolamento que antes havia entre os povos no planeta, dando início a uma crescente integração entre economias, povos e países, que só aumentou ao longo do tempo, tal como foi, mais recente- mente, o avanço dos meios de transporte e de comunicação, os grandes responsáveis por propor- cionar essa aproximação. Uma das consequências dessa nova realidade foi a divisão internacional do trabalho, conceito que define a forma como iriam se concretizar as relações de trabalho a partir do empreendimento colonial, no qual a Europa seria a grande fornecedora de mercadorias e as colônias abasteceriam as metrópoles europeias com matérias-primas e mão de obra escrava. Esse sistema foi extremamente favorável à Europa, mas desastroso para as colônias e suas populações nativas, que foram dizimadas, subjugadas e impedidas de manter seu estilo de vida e cultura. Isso sem falar na tragédia que se tor- nou o escravismo, mantido pelo lucrativo tráfico negreiro. Mais tarde, o avanço e a consolidação do capitalismo chega a uma nova fase com a Revolução Industrial e consagra a nova divisão do trabalho, caracterizada pela distinção entre capitalistas (donos dos meios de produção, tais como a fábrica) e o proletariado (trabalhadores que tinham apenas a força de trabalho e a vendiam em troca de salário). Isso consolida as relações de trabalho que observamos até hoje em nossa sociedade, ainda que o capitalismo já esteja, segundo a maioria dos autores, em sua fase financeiro-monopolista, na qual o setor de serviços e as tecnologias da informação são suas principais características. O multiculturalismo 113 Com o avanço do processo de globalização, as trocas continuaram, agora intensificadas pela divisão internacional do trabalho, segundo a qual os países ricos forneceriam ao mundo os pro- dutos industrializados, enquanto antigas colônias e os países pobres supririam o mercado com matérias-primas e produtos primários, isto é, não manufaturados. Esse modelo, segundo muitos críticos da globalização, contribuiu para o aumento da distância que separa países pobres de ricos. Uma das mais fortes características da globalização é o rápido e sempre progressivo avanço tecnológico, em todas as áreas, mas sobretudo nas comunicações e informática. Surgem novas áreas do conhecimento que demandam novas capacidades dos indivíduos: informática e ciência da computação, genética e biotecnologia, novas engenharias, ciências ambientais, robótica e toda a gama de possibilidades que a internet oferece, entre outras. É um mundo novo, para o qual são necessários indivíduos capacitados para desempenhar funções em profissões que exigem habilida- des e competências diferentes daquelas exigidas em fases anteriores. É um mundo no qual as ideias são o maior valor! A globalização tem desdobramentos sociais, políticos, econômicos, políticos e culturais. A revolução eletrônica, os processos de descolonização e independência das ex-colônias que existiam na África, na Ásia e em alguns locais da América Central, o enfraquecimento dos Estados-nacionais e a criação de espaços sociais transnacionais e novas formas de viver nas grandes cidades são alguns pontos de destaque no processo de globalização ocorrido ao longo do século XX. Todos esses fenômenos impactaram na construção de identidades, reforçando o papel da cultura. John Scott destaca a abordagem da cultura global como uma das possibilidades para se ana- lisar a globalização. De acordo com essa análise, a globalização é “um fenômeno orientado por uma cultura homogeneizante baseada nos meios de comunicação de massa, que ameaça as culturas e identidades nacionais e locais” (SCOTT, 2010, p. 95). A ideia básica é que o crescimento dos meios de comunicação de massa alterou e ampliou fortemente a capacidade de conexão entre os indiví- duos, não importando onde estes estejam. Estamos falando de comunicação em grande escala e no poder da televisão e, sobretudo, da internet, que possibilita o acesso a imagens e notícias em tempo real, isto é, quase ao mesmo tempo em que estão acontecendo ou sendo divulgadas. Além disso, as redes sociais possibilitam que cada indivíduo se manifeste, se posicione e exponha suas opiniões e sua vida a quem desejar ou a toda a rede. Isso tem sido muito impactante para as relações interpessoais, muitas delas agora intermediadas pela web. Observe a imagem a seguir. Ela representa um pouco do que a televisão pode fazer conosco, por ser um dos mais populares e poderosos meios de comunicação. Sem criticidade, sem discerni- mento e informação, podemos ser facilmente manipulados e, muitas vezes, levados a fazer escolhas que, com um pouco mais de instrução, talvez não fizéssemos. Antropologia da educação114 Figura 1 – Televisão: mídia de massa Imagine então como isso pode ser potencializado com a internet. Diante do gigantesco vo- lume de dados que circulamna rede a cada minuto, como podemos nos posicionar e eleger o que é realmente importante? Até mesmo saber o que é verdadeiro (ou não) está difícil! Você já pensou a quem interessa que a maioria da população não tenha acesso à educação de qualidade? Sim, interessa àqueles que contam com a ignorância da maioria para que nada mude, que não se combata as desigualdades, porque assim conseguem manter seus privilégios. Trata-se de parte de uma elite que chegou ao poder exatamente pela falta de espírito crítico de uma massa de ignorantes. E atenção: estamos falando aqui de ignorância no sentido literal da pa- lavra: o não saber alguma coisa. De forma alguma tem uma conotação pejorativa. Isso significa que, mais uma vez, só a educação pode mudar esse estado de coisas. O conhecimento empodera as pessoas e amplia seus horizontes. Estudiosos dizem que a humanidade produziu nos últimos 50 anos a mesma quantidade de informação produzida nos 5 mil anos anteriores e essa capacidade daqui para a frente só aumenta- rá. Há quem afirme que dobrará a cada 5 dias! Pense como ficaremos diante disso? Mas é sempre bom lembrar que informação não é necessariamente conhecimento. Transformar informações que sejam relevantes em conhecimento é o grande desafio, inclusive para a educação. Como lidar com isso? Como a escola se coloca diante desses meios de comunicação e das novas tecnologias? Especialmente quando falamos em meios de comunicação de massa, devemos nos lem- brar que eles impactam sobre todas as instâncias da vida social e influenciam as relações sociais. Desde o surgimento do rádio, já se discutia até onde iria a tecnologia e que mudanças ela nos traria. Hoje já sabemos. Chegamos até aqui. Até onde iremos, não é possível saber com precisão. Para o antropólogo indiano Arjun Appadurai (1996, p. 15), a comunicação eletrônica e as migrações (voluntárias ou forçadas) são aspectos importantes do mundo atual porque, ainda que não sejam fenômenos novos, ganham determinadas características que as diferenciam do que acon- tecia no passado. Especialmente porque hoje costumam caminhar juntos, isto é, todos podemos ur fin gu ss /i St oc kp ho to O multiculturalismo 115 ver pela TV, pelo computador ou pelo celular, muitas vezes no momento em que os fatos estão ocorrendo, imagens de pessoas em suas trajetórias para fora de seus países. E, nesse caso, quanto mais impactantes forem essas imagens, mais rapidamente elas ganharão o mundo! Você já havia pensado nisso? Campos de refugiados, em sua maioria bastante precários, com péssimas condições de vida para seus ocupantes, de alguma forma existem há muito tempo, por diferentes razões, em vários lugares do mundo. Entretanto, quando essa precariedade é mostrada por imagens na TV ou na internet, causa mais comoção no público, o que não significa necessaria- mente que causará também alguma empatia ou que os problemas que levaram ao seu surgimento serão discutidos ou os conflitos solucionados. Segundo Scott (2010), todas as concepções de globalização são válidas. O autor analisa desta forma o impacto de cada uma delas: A abordagem do sistema-mundo tende a ser economicista (minimizando a im- portância dos fatores políticos e culturais), mas, como a globalização é frequen- temente interpretada em termos de instituições e atores econômicos não pode ser totalmente ignorada. O modelo da globalização da cultura, por outro lado, é mais culturalista (minimiza fatores econômicos), mas, como grande parte da crítica à globalização se concentra nos efeitos negativos dos meios de comunica- ção de massa e do marketing homogeneizantes sobre as culturas locais e indíge- nas, esta abordagem também tem muitos adeptos. A concepção da sociedade e da política globais tende a ser otimista e abrangente, uma excelente combinação para a produção de visões de mundo, porém menos satisfatória para programas de pesquisa em ciências sociais. Finalmente, o modelo do capitalismo global, ao priorizar esse sistema e dar menos atenção a outras forças, pode passar a impressão de parcialidade. (SCOTT, 2010, p. 97) Como dissemos anteriormente, independentemente sob qual abordagem estejamos analisan- do os impactos da globalização, é certo que ela trouxe problemas, manteve e até acirrou disparidades entre indivíduos e países, aumentando as desigualdades, mas também promoveu avanços significa- tivos em termos de integração. Hoje o mundo é interdependente – todos os países de alguma forma estão conectados e dependentes uns dos outros. Outra crítica recorrente à globalização se relaciona com o papel que as grandes corporações desempenham na economia e na vida dos indivíduos. Especialmente quando, para alavancar seus negócios e aliadas à publicidade e propaganda, são acusadas de estimular o consumo desenfreado – o consumismo –, reforçando a ideia do consumo de massa, do ter para ser e da degradação am- biental, assuntos que já comentamos em capítulo anterior. Além disso, ao incentivar o consumo de determinado produto, tendem a homogeneizar indivíduos e culturas. É uma ideologia que muitas vezes não está explícita, mas que impacta na visão de mundo e no comportamento das pessoas. E ainda que esse consumo possa trazer melhorias na condição de vida para alguns, certa- mente exclui uma parcela importante da população do mundo, uma vez que, como comentamos anteriormente, tende a agravar as desigualdades entre países. O crescimento econômico de alguns não anula o fato de que o próprio capitalismo, ao se consolidar como sistema hegemônico, em sua essência é extremamente contraditório – e, portanto, o abismo entre as classes sociais, por exemplo, tende a aumentar. Antropologia da educação116 Aliás, voltando à questão da migração, se analisarmos mais detalhadamente as razões para o deslocamento de pessoas, perceberemos que boa parte delas migra em busca de trabalho. Esse cenário fica ainda mais claro em momentos de crises econômicas que geram desemprego, que, no contexto dos avanços tecnológicos, também se torna estrutural, isto é, alguns postos de trabalho deixam de existir em razão das novas tecnologias. E, nesse caso, mais uma vez a educação aparece como caminho pelo qual o indivíduo pode melhorar sua empregabilidade, capacitando- -se constantemente, reciclando e atualizando conhecimentos. Mas como ficam as diferenças no contexto da globalização? Elas certamente estão mais ex- postas e sujeitas a questionamentos de todo tipo. A própria facilidade de intercâmbio e proximi- dade (ainda que virtual) favorece que eventuais conflitos aconteçam, assim como também temos contatos que se tornam produtivos e enriquecedores. Hoje é muito mais fácil vermos onde e quais são as diferenças que existem entre indivíduos, grupos e países – e nem sempre sabemos como lidar com essas diferenças. Identidades são construídas e desconstruídas, muitas vezes com base no sentimento de pertencimento, quando sabemos quem somos e o que nos define por fazermos parte de um grupo, uma cultura, uma etnia, uma religião... enfim, por nos identificarmos com características comuns a esses grupos. Chamamos atenção para o fato de que essa proximidade, essa facilidade de deslocamento (no espaço e no tempo), pode trazer duas consequências importantes: por um lado, há uma ten- tativa de homogeneização de culturas e, por outro, há um reforço das identidades locais, regionais e nacionais. Para a Antropologia, essa é uma questão importante, considerando que o conceito de cultura continua a ser uma poderosa categoria de análise da contemporaneidade. Em todas as áreas, aspectos constituintes da cultura são destacados, reforçados e validados. Vamos a um exemplo? Pense na alimentação. O que se observa é uma tentativa de padronizar hábitos e padrões alimentares, sobretudo com o surgimento e a disseminação das redes de fast food. Você pede seu lanche a qualquer momento e em qualquer lugar e o recebe de acordo com o padrão definido. Não há surpresas! Mas, em paralelo a isso, está ocorrendo um movimentode resgate e valo- rização das cozinhas regionais e nacionais, como forma de resistência a essas tentativas de massifica- ção e homogeneização, reforçando identidades culturais e a diversidade. Nessa conjuntura atual, a educação enfrenta grandes desafios, sobre os quais estudiosos de várias áreas, inclusive a Antropologia, têm se debruçado, procurando entender a essência dessas mudanças. Uma delas, bastante estudada por Zygmunt Bauman (2001, p. 12), é a sensação de ace- leração do tempo e o encurtamento das distâncias. Ainda que virtualmente, podemos estar mais próximos de indivíduos, ainda que eles estejam no outro lado do mundo. As tecnologias da comu- nicação e os meios de transporte nos permitem isso. 7.2 Assimilação e aculturação: novos rumos A globalização potencializou a questão da diversidade e pluralidade cultural e colocou em pauta a necessidade de se pensar como combater o aumento dos ca- sos de preconceito e discriminação. É possível notar o aumento da intolerância em Vídeo O multiculturalismo 117 relação ao outro de várias formas e em vários lugares do mundo. Entretanto, ao contrário do que acontecia no passado, hoje há um movimento em direção ao combate de comportamentos que de alguma maneira desrespeitem indivíduos e/ou grupos em seus direitos. É preciso pensar que, como humanidade, somos um grande grupo, composto por diversas culturas, mas que, a despeito disso, nossas singularidades devem ser valorizadas. Mas, para isso, não podemos pensar a igualdade em detrimento das diferenças. Isso significa que a igualdade deve acontecer na diversidade. Veja a imagem a seguir, muito conhecida quando se discute a questão da igualdade: Figura 2 – Duas concepções sobre igualdade de direitos IE SD E BR AS IL S /A O que você assimila dessa imagem? Em qual dos quadros está a igualdade? Cada um dos três tem uma altura diferente, mas todos querem ver a paisagem. Utilizar os três caixotes absolutamente iguais permitiu que todos visualizassem o que está além do muro? Como garantir a igualdade? Seria distribuindo igualmente um caixote para cada um? A diferença em relação ao segundo qua- dro é o fato de cada um dos personagens ter tido a oportunidade de usar quantos caixotes fossem necessários para que pudessem ver a paisagem. Apenas dessa forma é possível se falar em igualdade e, mais do que isso, em equidade: todos terem a oportunidade de contemplar a paisagem, indepen- dentemente de sua estatura. Esse é apenas um exemplo de como podemos nos equivocar em relação ao que seja igual- dade. Quando nos confrontamos com a diferença, nem sempre se alcança a igualdade de direitos. A possibilidade de um convívio harmônico e que considere a alteridade, garantindo igualdade de oportunidades para todos, às vezes acontece com a assimilação da aculturação, que deve ser vista como processo natural quando duas ou mais culturas entram em contato. Vamos relembrar as bases do fenômeno da globalização para, em seguida, retomarmos um dos pontos apresentados na figura a seguir. Equidade: virtude de quem manifesta senso de justiça, imparcialidade; respeito à igualdade de direitos. Antropologia da educação118 Figura 3 – O mundo globalizado Fonte: Adaptado de O LIVRO..., 2015, p. 170. Devemos analisar com mais atenção especialmente o primeiro quadro da figura. Quando se diz que a globalização afeta as culturas, isso significa que valores, identidades e tudo o que diz respeito a essas questões se misturam e evoluem. Esse processo pode ser bastante complicado e gerar muitas discussões, inclusive teóricas. É nesse momento que as Ciências Sociais dão sua contribuição, que é muito importante para a educação. Cooperam para investigar, avaliar e analisar as diferenças, sejam elas quais forem, com o objetivo de apresentar possibilidades para a ação social e adoção de uma atitude antropológica. Mas é importante destacar que intervir na realidade não é o mesmo que negar a diversidade. Identidades culturais são construídas e desconstruídas o tempo todo e acabam inclusive contribuindo para a definição dos papéis sociais. Há muitos novos temas colocados para discussão na atualidade: os desdobramentos da globalização, a ecologia, a bioética e o meio ambiente, o novo papel da mulher e as questões de gênero, os conflitos religiosos, as mudanças tecnológicas, o papel das novas mídias sociais, as novas fronteiras e a imigração, a economia mundial e a economia compartilhada, as crises humanitárias, os fundamentalismos religiosos e o terrorismo etc. Isso sem falar nas culturas híbridas, a chamada mundialização da cultura. Uma forma de percebermos na prática tudo isso é pela socie- dade em rede, na qual todos os indivíduos e todas as instituições estão interligadas em rede, tal como pensou Manual Castells (2016). E a comunicação pelas redes sociais são um exemplo disso, conectan- do as pessoas de uma maneira nunca antes vista. A globalização também contrapõe o universal ao local, trazendo de volta um certo “tribalis- mo”, um retorno aos hábitos civilizacionais e culturais primitivos. Lembra das tribos urbanas que abordamos no Capítulo 3? Seja curioso! Pesquise! Verá que elas estão bem mais próximas do que você imagina... Como vimos no início deste capítulo, foi com as mudanças ocorridas no pós Segunda- Guerra, o processo de descolonização da África, a Guerra Fria e, depois, a queda do Muro de O movimento global de produtos, ideias e pessoas afeta O mundo está cada vez mais interconectado. Processos de mudança alteraram as relações entre pessoas e comunidades. as culturas: valores, identida- des e formas cultu- rais se misturam e evoluem. a economia: o capitalismo, os mercados financei- ros e os negócios multinacionais se expandem. a política: organizações e instituições interna- cionais influenciam Estados nacionais. O multiculturalismo 119 Berlim, culminando com o advento da globalização e os problemas interculturais, que o conceito de cultura se tornou, segundo Costa (2010), privilegiado objeto de estudo. Para se pensar nesses temas, é importante recorrer a referências teóricas e metodológicas de diferentes áreas do conhecimento, tais como a Antropologia e a Sociologia, que tradicional- mente se debruçam sobre questões relativas a cultura e socialização. Quando se relaciona isso ao contexto da globalização, dois processos clássicos dessas duas ciências, assimilação e aculturação, são importantes para se pensar nos desdobramentos desses contatos entre diferentes pessoas e culturas. Isso porque, ao mesmo tempo em que se percebe tentativas de homogeneização cultural, percebe-se também outros movimentos no sentido de reforçar as diferenças. Nas Ciências Sociais, sempre que há interação entre repetição de padrões de comportamento comuns na vida em sociedade, estamos falando de processos sociais, e é por meio destes que as re- lações sociais se concretizam, os indivíduos e grupos se relacionam. São eles: cooperação, conflito, acomodação e assimilação. Para analisarmos como a globalização impacta nas relações sociais e como isso se reflete na cultura, vamos compreender o processo de assimilação cultural, etapa seguinte à acomodação – definida como o momento em que indivíduos ou grupos aparentemente aceitam uma situação para diminuir ou acalmar um conflito. Mas isso não significa que os indivíduos ou grupos envolvidos mudarão sua visão de mundo e, consequentemente, seu comportamento. A acomodação é mais superficial e pode acontecer de diferentes maneiras: pela coerção, pela tolerância, por um acordo firmado entre as partes em conflito ou pela conciliação. Em todos esses casos não ocorre uma efetiva mudança cultural. Somente quando ocorre o processo de assimilação, quase sempre lento e muitas vezes di- fícil, é que realmente podemos dizer que há uma mudança real nos padrões de comportamento, formas de pensar e agir, enfim, no sistema cultural, resolvendo uma situação de conflito que havia anteriormente. Em decorrência disso, passaa haver um compartilhamento de um novo sistema cultural comum, muitas vezes renunciando à cultura de origem. Segundo Dias (2005, p. 89), A assimilação é o processo que surge se a acomodação teve êxito e perdurou, o que acabará afetando, além do comportamento exterior, os hábitos e costumes daqueles que se acomodaram. Por ser um processo profundo e durável, os va- lores e as atitudes são partilhados por pessoas ou grupos que eram diferentes e que se tornam semelhantes. O autor continua essa ideia afirmando que é possível também definir a assimilação “con- siderando-a um modo de interação social, pelo qual os indivíduos ou grupos modificam profun- damente suas atitudes e seus valores, com o objetivo de se integrar no meio social em que vivem” (DIAS, 2005, p. 89). Desde o capítulo anterior, temos falado em migrações e deslocamentos de população. Essas são situações em que é comum ocorrer a assimilação, uma vez que o imigrante precisa se ajustar à nova realidade na qual se encontra, e, dessa forma, ele tem mais condições de se inserir na sociedade. Vamos ver um exemplo do processo de assimilação? Quando alguém chega a um novo país, uma das primeiras dificuldades que encontrará, depois do idioma, caso não o domine, será a alimentação. Até que absorva ao menos alguns aspectos da nova cultura e seus hábitos e padrões alimentares, precisará experimentar novos sabores, sentirá falta dos pratos com os quais Antropologia da educação120 estava habituado, especialmente da “comida de casa”. Mas com o tempo ajustará seus hábitos alimentares, incorporando novos elementos às suas receitas tradicionais e vice-versa, alterando pratos locais com elementos da sua cultura de origem. Dessa forma, modificam-se tanto os seus hábitos alimentares quanto os do grupo que o acolheu, adaptando-se e possibilitando uma inte- ração social mais harmoniosa. No Brasil, esse processo vem acontecendo há séculos, uma vez que somos um país de imi- grantes. Nossa história é marcada por vários fluxos migratórios e, ainda hoje, continuamos a re- ceber pessoas do mundo inteiro que, por meio de processos sociais como esses, vão deixando sua marca na cultura brasileira. De acordo com Dias, quando o processo de aculturação de elementos se consolida, temos a assimilação, quando os indivíduos efetivamente modificam elementos de seu local de origem e de alguma forma se identificam com a nova cultura e, consequentemente, sentem-se participan- tes dela. Essa sensação de pertencimento confirma os processos de interação social. Para Costa, aculturação “é o nome dado à troca de influências que ocorre quando duas culturas diferentes entram em contato contínuo e direto, modificando padrões, valores, comportamentos e língua originais e, muitas vezes, fazendo surgir uma cultura mestiça e híbrida, formada por traços das culturas envolvidas” (2010, p. 48). Você se lembra de quando afirmamos que a cultura é dinâmica e está em constante mu- dança? Devemos nos lembrar disso para entendermos que qualquer um dos processos sociais citados tem a capacidade de alterar parcial ou totalmente os sistemas culturais. Tal como as so- ciedades, que também estão sempre mudando, nossos referenciais culturais (costumes, hábitos, valores, símbolos etc.) são alterados exatamente por conta do processo de socialização. Vimos que, com a globalização, esse movimento se intensificou e com isso os processos de interação social também ganharam novo ritmo. A aculturação molda a cultura de um indivíduo e/ou de um grupo por meio das trocas que acontecem frequentemente com outras diferentes culturas. Mas precisamos lembrar também que há uma tendência a que as culturas dominantes se imponham sobre as culturas dominadas, e nesse caso o processo de aculturação pode não ser totalmente desejado, mas necessário para al- gum fim, como é o caso de governos ditatoriais que impõem seus valores à população de maneira compulsória e autoritária. Por isso, para que a assimilação ocorra, o processo de aculturação deve estar consolidado. De acordo com Dias, “em relação aos grupos minoritários, a assimilação é o processo em que o grupo étnico ou racial adota os valores, atitudes e comportamentos do grupo dominante na sociedade” (2005, p. 180). Mas quando se fala em aculturação, não significa que efetivamente aconteceu a mudança cultural, pois ainda que se adote uma ou outra característica de uma nova cultura, isso não quer dizer que outros traços da antiga cultura sejam esquecidos. E como esses processos se refletem na educação? Vejamos. Pelo fato de eles serem fundamen- tais para o processo de socialização, são também extremamente relevantes para se pensar o processo educativo, uma vez que a primeira função da escola é socializar os indivíduos para que possam se integrar à sociedade. Assim, tanto a aculturação quanto a assimilação são importantes, especialmente O multiculturalismo 121 no contexto da globalização, uma vez que diminuem cada vez mais a possibilidade de isolamento de indivíduos ou grupos. E, sendo assim, qualquer mudança que ocorra influencia todo o grupo. Com a intensificação das trocas culturais entre sociedades mais amplas, é inevitável que seus impactos se reflitam nas salas de aula, onde, como temos visto, as diferenças culturais estão presentes. Como educadores, devemos estar atentos para a riqueza das trocas culturais, pois elas po- dem ser importantes para o reconhecimento e a valorização da diversidade. Essa é uma das maiores contribuições que a Antropologia da Educação pode trazer para a questão da alteridade. Observar como acontecem e quais os impactos dos processos sociais na escola é reconhecer que sempre ha- verá movimentos no sentido da conservação e da transformação de padrões culturais e estruturas sociais e que, diante disso, podemos atuar no sentido de possibilitar um diálogo rico e produtivo. Trata-se de um movimento de unificação e fragmentação cultural que gera também movimentos e mudanças de identidades, uma das características mais marcantes do mundo atual globalizado. 7.3 A multidisciplinaridade na educação contemporânea Uma das discussões mais marcantes da contemporaneidade, fortemente in- fluenciada pela globalização, diz respeito às identidades. Sabemos que todos nós agimos de acordo com nossas interpretações e visões de mundo, que muitas vezes são subjetivas. E, ao lado disso, como acabamos de ver, lidamos com as mudanças culturais, que muitas vezes são inevitáveis. Quando se fala em cultura, questões e temáticas que antes não faziam parte da pauta de discussão – como as questões de gênero, as relações étnico-raciais, o preconceito e outras – trazem para outro patamar a relevância da identidade. Esse tema tem estado presente especialmente em razão da fragmentação cultural e, como vimos anteriormente, em função das mudanças causadas pelos diversos processos sociais e da homogeneização das identidades globais. A identidade moderna não é mais fixa porque, segundo Hall (2006), surge da crescente cons- ciência e identificação com tradições, valores e crenças de países diferentes, de uma história de vida autoconstruída que não é mais sentida como determinada por classe, raça e gênero e de um questio- namento das tradições e dos estilos de vida por causa das interconexões globais. Para o autor, tantas e tão intensas mudanças pelas quais a sociedade passou e vem passando levaram a um sentimento de instabilidade e insegurança, o que gera um questionamento das práticas e tradições culturais. Ainda para Hall, a globalização pode levar à homogeneização, mas também ao fortalecimen- to de identidades locais ou à produção de novas identidades (2006, p. 80-84), o que é relevante para se pensar como tudo isso impacta no dia a dia dos indivíduos, sobretudo na educação. Você percebe o quanto a questão do outro, das identidades, da diversidade cultural estão presentes em nossa sociedade? Como os alunos estão chegando às salas de aula? Como estão sendo tratados? É consenso entre pensadores de váriasáreas do conhecimento que tudo isso traz para a educação enormes desafios, mas ao mesmo tempo podemos estar vivendo um momento de ruptu- ra. Isso porque podemos ter agora a grande oportunidade de reverter graves e históricas situações de desrespeito e exclusão. Vídeo Antropologia da educação122 A promoção do respeito às diferenças, com base no reconhecimento do outro em sua alteri- dade, se dará pela educação, ainda que outras instâncias da vida social possam atuar, assim como o novo papel dos Estados-nacionais. Hoje eles não conseguem mais dar conta de construir, reforçar ou mudar identidades nacionais pela força que ganharam as identidades de grupos e as culturas locais. Nesse caso, podemos lembrar de uma questão colocada em capítulo anterior: é preciso pensar em que tipo de país queremos construir ou em que modelo de educação será adotado. Mais do que nunca, esse projeto deve estar claro para que as políticas públicas voltadas à educação estejam em consonân- cia com esses novos tempos. A Antropologia da Educação nos mostra que a cultura se torna a grande lente pela qual vemos o mundo, ajuda-nos a entender os novos elementos que compõem esse novo mundo e qual seria o papel de cada um de nós diante de tantas, tão rápidas e profundas mudanças. Lembra quando afirmamos, no primeiro capítulo, que a Antropologia estuda o homem por inteiro? Era disso que estávamos falando: a cultura está em tudo o que fazemos, produzimos, pensamos e que determina como nos comportamos. Portanto, é essencial para que possamos nos entender e en- tender o que nos cerca. Assim, se hoje vivemos a interculturalidade, ela certamente está presente na educação, que deverá ter como base uma prática pedagógica fundamentada em conteúdos relevantes e pertinentes e numa ação que possibilite o contato e o diálogo entre culturas, além do compartilhamento de conhecimentos. E isso é construir cidadania! Esse cenário exige políticas educacionais responsáveis e realistas, especialmente no que se refere a seus princípios norteadores, que devem estar pautados pela consciência dessas transfor- mações pelas quais estamos passando e uma reflexão sobre as demandas que elas colocam. E uma das questões mais difíceis é como contemplar a unicidade (a nacionalidade, por exemplo) e as di- ferenças regionais. Temáticas como as previstas pelos temas transversais, como vimos, já foram um passo à frente na busca de uma educação mais plural e inclusiva, mas o caminho ainda é longo... O fim da soberania das culturas nacionais abriu espaço para as diferentes formas de viver, que adquirem cada vez mais visibilidade quanto a diferentes etnias, diversidade religiosa, variedade lin- guística, questão de gênero e outras manifestações do pluralismo cultural. O sentimento de perten- cimento hoje passa por outras instâncias além da nacionalidade. Se eu digo que sou brasileira, você entende o que estou dizendo, não? Irá supor que não sou, por exemplo, americana, não é mesmo? E que minha língua materna é o português. Mas eu posso dizer também que sou mulher, posso dizer se tenho (e qual é) minha crença religiosa, se sou branca, negra, parda ou oriental... enfim, há muitas maneiras de eu me “ver”. O que seria mais importante para dizer quem eu sou? O que efetivamente me define? Depende do contexto no qual me encontro e qual é o meu objetivo ao me definir para você! De qualquer forma, hoje talvez não seja mais a nacionalidade o traço mais importante para a minha identidade, ainda que eu me sinta e valorize o fato de ser brasileira. Mas se eu me tornar uma imigrante, for viver em outro país, provavelmente essa característica receberá mais destaque para mim e para o novo grupo no qual irei me inserir. Assim como se eu me tornar uma ativista do movimento feminista, por exemplo, a identidade de gênero será fundamental. A maior proximidade entre diferentes culturas num mesmo país ou região acirrou anti- gos ressentimentos e trouxe novos embates que acirram conflitos. As migrações, como vimos, O multiculturalismo 123 certamente ainda continuarão a exercer forte influência e exigirão novos posicionamentos e ati- tudes em relação à diferença, a começar pelo reconhecimento de que todos, independentemente de sua origem, etnia, raça, religião, orientação sexual ou condição socioeconômica têm o direito de existir! Devem ter também seus direitos civis, políticos e econômicos preservados, além de igualdade de oportunidades. Sendo ou não parte de alguma minoria, querendo ou não preservar suas tradições culturais, todos devem ter o direito de escolha e de acesso em relação ao que é con- siderado básico no que diz respeito a direitos humanos. O que temos visto é que muitas dessas minorias têm buscado em suas tradições culturais e em suas raízes étnico-raciais os elementos fortalecedores de suas identidades para resistirem à homogeneização e à hegemonia da cultura dominante, inclusive a identidade nacional. Um ponto importante para retomarmos aqui é o papel que a mídia e os meios de comunica- ção de massa exercem em todo esse processo. Vários pensadores vêm chamando atenção para esse fato desde a primeira metade do século XX, especialmente os intelectuais da Escola de Chicago1, que agregou estudiosos de várias áreas do conhecimento em torno da análise do período em que surgiu o rádio, a mídia impressa avançou e os totalitarismos (como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha) apareceram. Ao apresentarem diferentes formas de interpretar o mundo e a sociedade em que vivemos, os meios de comunicação de massa, especialmente aqueles de maior alcance, como a TV, exercem um papel importante se considerarmos o que está sendo discutido. Quer ver? Não é difícil encontrarmos editoriais de jornais, programas de TV e novelas nos quais as questões de gê- nero são apresentadas de forma pejorativa, caricata ou extremamente conservadora, considerando a heterossexualidade como norma e, portanto, o que é dado como aceito pela sociedade. Mas, então, como ficam as demais orientações sexuais? Elas aparecerão como desvios de comportamento e es- tigmatizadas, o que certamente levará ao aumento do preconceito e da discriminação. Ainda que a cultura hegemônica pregue a heterossexualidade, é preciso questionar essa normativa para construir uma sociedade mais inclusiva. Usar o poder da comunicação para a causa das minorias também exige espírito crítico, e isso pode se desenvolver numa escola inclusiva e de qualidade! Promover uma educação multicultural e interdisciplinar é uma das formas de se combater ati- tudes racistas, homofóbicas e intolerantes e, ao mesmo tempo, valorizar as lutas dessas minorias e sua resistência em se deixar aliciar, diminuir, apagar ou excluir. É nesse sentido que o multiculturalismo, visto como uma relação, confronta a cultura dominante e as demais manifestações culturais e suas tentativas de resistência. Isso significa reconhecer que é preciso abrir espaço na sociedade para ouvir suas vozes e garantir suas formas de ver e estar no mundo. Assim, é preciso construir na escola um espaço para uma relação dialógica entre a cultura dominante e as minorias étnicas, raciais, de gênero e/ou religiosas – sim, porque muitas vezes elas se sobrepõem, em muitos lugares do mundo, inclusive no Brasil! Caso contrário, indivíduos estarão muito mais sujeitos à exclusão e ao preconceito, como, por exemplo, um jovem negro e pobre que vive na periferia de uma grande cidade, na qual já existem vários estereótipos com os quais ele deve conviver. 1 Grupo de pesquisadores da Universidade de Chicago (EUA) que surgiu nos anos 1920 e, durante algumas décadas, proporcionou uma série de contribuições à Sociologia, à Psicologia Social e às Ciências da Comunicação. Antropologia da educação124 Costa (2010, p. 77) afirma que o multiculturalismo é a relação dialética entre o poder homogeneizador da cultura dominante e a resistência cultural de segmentos sociais que preservam diferentes formas de interpretar o mundo e de nele agir. Essarelação dialética não diz respeito apenas às oposições entre as culturas de classe, entre cultura erudita e popular, entre ideologia burguesa e proletária, mas também a conflitos que envolvem minorias étnicas, religiosas, raciais e de gênero. Para essa autora, se até há pouco tempo o que causava conflitos eram as disputas por ter- ritórios, hoje, cada vez mais, os fenômenos culturais, a produção simbólica e as diferentes visões de mundo – que envolvem diferentes grupos sociais e diversos processos simbólicos – são foco de embates e confrontos. E isso tudo é de difícil resolução e até mesmo difícil de equacionar. Se não for pela tomada de consciência e pela mudança de mentalidade, fica ainda mais complicado mudar esse quadro. Costa define o multiculturalismo como um processo simbólico complexo, difícil, mas importante para o momento que vivemos, no qual há uma “interpenetração de culturas, seja por intermédio de um mesmo signo disputado por diversos grupos e repertórios culturais, seja por meio de atritos que se evidenciam num mundo que coloca, cada vez em contato mais próximo, repertórios bastante diferentes” (COSTA, 2010, p. 74). Por outro lado, a própria globalização faz um duplo movimento, que ora promove a uni- ficação cultural, ora a fragmentação, numa relação dialética. Gera como resultado tanto a acul- turação quanto o reforço de tradições culturais e identidades individuais e coletivas. Sendo a cultura um produto do próprio homem e, portanto, não natural, mas flexível e dinâmica, todas as formas de ver e viver são por ela perpassadas e podem ser reinventadas, desconstruídas e re- construídas, preferencialmente em direção à possibilidade de coexistência pacífica e harmônica. Essa nova construção social e cultural tem como base o pluralismo cultural, que, de acordo com Dias, “ocorre quando há uma perfeita convivência entre grupos étnicos ou raciais numa mes- ma sociedade, com os grupos respeitando suas diferenças. Nas sociedades pluralistas cada grupo social cultiva suas próprias tradições, língua e costumes” (2005, p. 180). E como podemos vivenciar o multiculturalismo na escola? Um dos caminhos para promoção de uma educação intercultural é a multidisciplinaridade. Com o objetivo de promover o contato e o entendimento entre diferentes atores e culturas, a multidisciplinaridade abre a possibilidade de se pensar sobre as diferenças e como elas podem ser tratadas no processo ensino-aprendizagem. O objetivo deve ser poder pensar a cultura como alguma coisa que é, ao mesmo tempo, global, local, heterogênea e plural, abrangendo as diferenças e as múltiplas vozes que ecoam e buscam visibilidade e reconhecimento das diferenças individuais e coletivas. Deve-se também abrir espaço para que os diferentes dialoguem, e, ao lado disso e da complexidade da contemporaneidade, são necessárias novas habilidades para analisar e dar conta dos problemas, conflitos e desafios que se apresentam. Uma formação que atenda a essas demandas só acontece se teoria e prática estiverem integradas e os conhecimentos forem significativos para os estudantes. O conceito de multidisciplinaridade diz respeito à integração de conhecimentos e áreas de pesquisa, começando pela associação de disciplinas, cada uma dando sua contribuição para um projeto comum, podendo passar pela utilização de diferentes referenciais teóricos, metodologias e O multiculturalismo 125 compartilhamento de espaços de pesquisa e aprendizagem. Trata-se de uma forma extremamente produtiva de incentivar o protagonismo do estudante na aprendizagem, com o desenvolvimento da criticidade e criatividade. Se quisermos que a escola possa formar indivíduos competentes tec- nicamente, críticos e éticos para dar conta da complexidade dos problemas que hoje se apresentam, é preciso rever o modelo de educação que estamos oferecendo para nossas crianças e jovens. E, nesse cenário, a Antropologia, com sua tradição humanista e preocupada com as dife- renças e a superação do etnocentrismo, ao lado da Pedagogia, tem a responsabilidade de integrar seus saberes para promover a discussão sobre a humanidade em suas muitas dimensões, numa perspectiva de formação integral e voltada para a autonomia e a cidadania. Por meio da multidis- ciplinaridade, da integração das disciplinas e da transversalidade, concretiza-se o diálogo entre cultura, educação e alteridade. Uma prática pedagógica que contemple a multidisciplinaridade faz com que a discussão sobre temas como cultura, etnia, etnocentrismo, racismo, preconceito, desigualdades e relações étnico-raciais, entre outros, torne possível a inserção de novos conceitos para a análise da reali- dade – alteridade, multiculturalismo, pluralidade cultural, relativismo cultural, identidade, tole- rância. Com essa prática também se pode conseguir a superação da antiga tese que afirma serem a Antropologia e a Pedagogia conflitantes, porque enquanto a primeira é eminentemente crítica, a segunda visaria à normatização e a manutenção de uma ordem social estabelecida. Neste momento da nossa caminhada, você já pode perceber que isso não é real e que, pelo contrário, são conheci- mentos que se complementam e juntos abrem caminho para o reconhecimento e a valorização da diversidade e a construção de uma sociedade mais crítica e democrática. Considerações finais Novos tempos demandam novos caminhos, novas perspectivas e indivíduos preparados para conseguir analisar o que vivem e perceber o que é preciso mudar para que a vida em sociedade siga em bases sólidas em termos de princípios éticos e valores que respeitem a dignidade humana. Vimos que o momento em que estamos vivendo é marcado por conquistas tecnológicas em várias áreas, tornando a vida no planeta mais confortável com a satisfação das necessidades básicas. Mas vimos também que esses ganhos não chegam a todos os indivíduos e a todos os lugares da mesma forma. A desigualdade ainda é grande e a exclusão dos mais pobres continua sendo uma realidade. Por outro lado, avançamos na discussão entre indivíduos, países, governos, instituições multilaterais (tais como a ONU e a Unesco), colocando luz em temas que até então eram deixa- dos em segundo plano. O foco na economia por muito tempo obscureceu aquilo que faz o dia a dia de um indivíduo tão cruel e difícil quanto a falta da satisfação de todas as suas necessidades materiais. Estamos falando de outras questões, ligadas à identidade, que se concretizam na in- teração social. Você já pensou, por exemplo, por que muitas travestis se prostituem nas ruas das nossas cidades? Já tentou conhecer um pouco melhor a vida e as dificuldades encontradas por elas em sua rotina para fazer parte da sociedade? Já pensou em quanta dificuldade encontram para conseguir estudar, conseguir um emprego e poder ter uma vida digna e seus direitos res- peitados? Pensou que a identidade de gênero delas pode ser o maior empecilho na sua inserção Antropologia da educação126 social? Que o fato de não atenderem aos padrões estabelecidos é o seu maior “defeito”, que as estigmatiza e gera preconceito e discriminação? Hoje, talvez mais do nunca, não há mais espaço para padronizações que excluem indivíduos e grupos. A percepção dos diferentes sistemas culturais, a proximidade entre eles, que hoje existe e que ainda poderá aumentar, além da facilidade de comunicação e circulação de pessoas, bens e culturas nos deixa uma tarefa gigantesca como educadores: a de aproximar de forma empática esses diferentes, promover a discussão, o diálogo, o entendimento e o reconhecimento pautados no respeito e na tolerância. Toda a comunidade escolar, ao compreender a importância dessa nova perspecti- va, dará sua contribuição no processo de inclusão daqueles que até hoje ainda lutam por seu espaço e por seus direitos. E vamos destacar novamente: o direito à educação é um dos di- reitos básicos do cidadão. Mas atenção: não se trata apenas de “tolerar” a sua existência! É mais do que isso. É efetivamente respeitar e incluir,criticando ideias, atitudes e comporta- mentos que segreguem, humilhem, discriminem e violentem alguém por ser “diferente”. É rever conteúdos e práticas pedagógicas que tratem temas como relações étnico-raciais, relações de gênero, sexualidade, intolerância religiosa, desigualdade socioeconômica de forma responsável e crítica, e não superficial ou anedótica. Lembra quando, no início desta obra, falamos na dualidade familiar versus exótico? É isso! O outro não pode ser tratado como se fosse algo exótico, como uma espécie animal vinda de outro continente e exposta no zoológico da cidade. Ele está ao nosso lado! Faz parte da nossa realidade, eventualmente também da nossa sociedade. É sob um olhar antropológico que se alcança a dimen- são e a perspectiva que deve ser levada para dentro da comunidade escolar e do sistema educativo – a perspectiva da alteridade. O multiculturalismo não pode ser apenas um modismo, mas deve oportunizar a superação de rótulos e conceitos que não dão mais conta da realidade que se apresenta dentro e fora da escola. Para que essa e outras realidades de indivíduos e grupos possam mudar, são necessárias políticas públicas e práticas pedagógicas que visem a uma educação multicultural. E, mais uma vez, precisamos reforçar que não se pode deixar de fora a formação de professores para que ações que fomentem o entendimento entre diferentes possa efetivamente acontecer em cada sala de aula. Professores que não se abram para o multiculturalismo e para a complexidade que os cerca terão grande dificuldade para promover uma educação cidadã, por meio da qual serão formados indivíduos que não vão se contentar com menos do que a cidadania plena, numa sociedade de- mocrática, justa e igualitária! De que lado você vai querer estar? Do lado dos que transformam e respeitam, se reinventam e se abrem para a diversidade, ou do lado daqueles que acreditam que uns são melhores e têm mais direitos do que outros na sociedade? Cabe a você escolher! A mudança que queremos não acontecerá se ela não começar conosco, em nossa atuação profissional e em nossas atitudes como cidadãos. E não será fácil, nem tranquila ou sem embates ou contradições, a caminhada que nos levará a um novo patamar de sociedade. O multiculturalismo 127 Atividades 1. Desde os anos 1980, o mundo tem passado por rápidas e intensas transformações que alte- raram estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais. Com base no que estudou, apre- sente o que caracteriza o fenômeno da globalização e algumas das críticas a esse processo que foram apontadas neste capítulo. 2. A globalização movimenta produtos, ideias e pessoas, deixando o mundo cada vez mais conectado e alterando as relações entre pessoas e comunidades. Em relação às culturas, valores, identidades e formas culturais se misturam e evoluem. Vimos que essas mudanças são as que mais interessam à Antropologia da Educação. Por quê? 3. No contexto da globalização, Antropologia e Sociologia analisam os desdobramentos dos contatos entre culturas e povos diferentes com base em dois processos, que dizem respei- to à cultura e à socialização. Ambos são importantes porque, ao mesmo tempo em que se percebe tentativas de homogeneização cultural, verifica-se também outros movimentos que reforçam as diferenças. Quais são esses processos e como eles se refletem na educação? 4. Um dos temas mais recorrentes nos estudos sobre educação é o multicultiralismo, visto como um processo dialógico que demanda uma prática que possibilite à escola se tornar um espaço promotor desse diálogo. Como podemos vivenciar o multiculturalismo na escola? Explique como esse conceito se relaciona com a multidisciplinaridade. Referências APPADURAI, A. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 1996. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. ______. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 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Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 8 A educação inclusiva: novos modelos educacionais Chegando ao final da nossa trajetória em busca das aproximações entre a educação e a Antropologia, passamos por vários conceitos, temas e problemas que são muito importantes para se pensar em mudanças que levem a um novo cenário e, para isso, é preciso discutir e analisar um pouco mais a problemática da identidade étnico-racial, religiosa e de gênero, pensando em quais são os caminhos para a implementação de uma prática docente que respeite as diferenças e fomen- te a tolerância no meio social no qual o professor se insere. Mas ainda precisamos refletir a respeito das relações sociais na escola, na perspectiva de categorias como etnia, gênero, classe social e direitos humanos, incorporando a discussão sobre a educação indígena, do campo, quilombola e de pessoas com necessidades especiais. 8.1 Racismo e outras formas de violência Ao longo da história se percebe a presença da diversidade, mas a consta- tação da sua existência não significa que ela seja aceita em todas as sociedades. Pelo contrário, o etnocentrismo tem sido uma constante, determinando atitudes e comportamentos excludentes e discriminatórios. Isso acabou se constituindo em um dos maiores problemas desde a modernidade, quando o contato com o outro se intensificou e se globalizou. Como estamos insistindo muito desde o início, o diálogo entre a Antropologia e a educação pode desempenhar um papel transformador, se levar a cabo a reflexão a respeito da persistência das práticas discriminatórias fundamentadas em sistemas culturais etnocêntricos, em especial na realidade brasileira. Além disso, é preciso incluir nesse diálogo a análise dos efeitos sociais dessas práticas e o seu impacto sobre a educação, particularmente sobre a escolaridade dos indivíduos que fazem parte dessas minorias. Já vimos que elas não têm as mesmas oportunidades que os demais cidadãos. Basta verificar as notícias todos os dias para encontrarmos exemplos de situações que re- tratam essa desigualdade ligada à noção de raça ou etnia. Infelizmente, vemos no Brasil e em vários outros lugares do mundo que as pessoas continuam a ser classificadas com base nesses critérios, o que acaba determinando também seu lugar na estrutura social, quase sempre em posições subal- ternas, com menos prestígio e reconhecimento. Mas provavelmente que você já percebeu que essa realidade pode ser mudada. Como educa- dores, precisamos acreditar que é possível a construção de uma sociedade baseada no respeito ao ser humano, na colaboração, na cooperação e na solidariedade, enfim, na ajuda mútua. Veja que essas são ideias que podem ser cultivadas na escola se quisermos viver numa democracia ética, na qual valores como justiça e direitos humanos não sejam apenas retórica, mas se concretizem na realidade de cada indivíduo, seja ele quem ou como for. Vídeo Antropologia da educação130 Desde o século XV vivemos um paradoxo intrigante: o mundo se expandiu, as frontei- ras foram se alargando e hoje estamos mais próximos uns dos outros. Como? Pelas razões que apresentamos ao longo dos capítulos anteriores: avanços tecnológicos, meios de comunicação de massa, economia mundializada, maior interdependência entre os países, organismos mul- tilaterais, enfim, as várias mudanças ocorridas desde aquela época. Um dos resultados dessa aproximação foi o contato também cada vez mais próximo com povos e culturas diferentes. E isso não tem acontecido sempre sem conflitos. Hoje, não se pode mais negar o fato de que o mundo é plural, as sociedades são diferentes umas das outras e, mesmodentro de cada uma delas, podemos encontrar a diversidade. Somos plurais, multiculturais; muitas etnias, línguas, religiões, gêneros, enfim, muitas culturas. Porém acreditamos que você já tenha entendido que a diversidade tem outros desdobramen- tos no que diz respeito às relações sociais: de alguma forma, condicionam posições na estrutura e na organização social, implicam em relações de poder e dominação e, por conta disso, podem legitimar padrões que, ao longo do tempo, foram se tornando hegemônicos. Isso significa dizer que muito do que acreditamos ser “natural” não é tão natural assim. Quer um exemplo? A crença de alguns indivíduos e grupos de que a raça branca é superior à negra, ou a de que ser heterossexual é o normal – mas “normal” com base em qual parâmetro? Para quem acredita nisso, pode haver várias explicações, mas todas sem fundamentação que não sejam aquelas pautadas em crenças, valores e princípios construídos dentro de uma lógica cultural. Assim, são visões de mundo que acabam gerando sofrimento, preconceito, discriminação, dor e exclusão para aqueles que não se enquadram nesses padrões estabelecidos pela cultura hegemônica. Discutir as desigualdades é discutir e questionar discursos e práticas sociais que impedem que essa realidade marcada pelo etnocentrismo seja superada, e um dos caminhos para que isso não ocorra é o multiculturalismo. O diálogo entre os diferentes, uma narrativa plural e que con- temple os vários discursos é fundamental para a construção do pensamento antropológico desde sua origem. Daí o enorme serviço que a Antropologia pode prestar à educação. O volume de informações, o intercâmbio de pessoas, bens de consumo e culturas e o mo- vimento de homogeneização cultural tornam o multiculturalismo ainda mais relevante. E mais: quando se coloca a questão do confronto decorrente da diversidade cultural, não podemos deixar de fora uma dimensão sem a qual não construiremos uma sociedade mais justa e igualitária: a ética, que sempre esteve presente no desenvolvimento da Antropologia como ciência, uma vez que estuda o homem por inteiro e o seu objeto de estudo é outro ser humano. Vimos que essa trajetória sempre foi marcada por questionamentos éticos que trouxeram essa ciência até aqui, ainda que tenha passado por momentos nos quais o outro foi visto de forma etnocêntrica. Mas a crítica sobre a teoria antropo- lógica se deu exatamente pela noção da alteridade, base do seu referencial teórico. Na educação ou nas humanidades em geral, a articulação entre diversidade, multiculturalis- mo e ética já aparece há algum tempo, fortalecendo-se à medida que avançam os estudos culturais. Na educação, essa temática se faz presente em documentos e diretrizes que orientam o sistema educacional, sejam eles políticas públicas, currículos, materiais didáticos, cursos de formação de professores (inicial e continuada), e em debates com sociedade como um todo. Entretanto, isso não A educação inclusiva: novos modelos educacionais 131 significa que as questões e os temas relacionados a pluralidade cultural, sexual, religiosa, de gênero etc. estejam bem equacionadas na escola e/ou na sociedade. Um dos exemplos mais presentes na nossa realidade é a persistência do racismo. Como explicar que, caminhando para a terceira déca- da do século XXI, ainda estejamos discutindo um dos maiores flagelos da história brasileira e de tantos outros países? O que leva as pessoas a serem racistas? Quais são as justificativas para esse modo de ver o mundo? Não é mais possível silenciarmos sobre essa prática que ocorre na vida de milhões de indiví- duos. Até porque as consequências do racismo afetam todas as instâncias da vida social e, obviamente, também aparecem na escola. E com isso estamos falando de desigualdades de acesso e permanência das pessoas afetadas à escola, bem como o direito a uma educação de qualidade, que efetivamente tenha como objetivo a formação de cidadãos críticos, conscientes e mobilizados para a construção da cidadania plena. Sendo a Antropologia da Educação mais do que apenas uma disciplina acadêmica, mas também formadora de uma visão de mundo, de um pensar e de uma atitude que são pauta- dos pelo reconhecimento e valorização da diversidade, ela pode nos ajudar a analisar a questão do racismo. Qual a importância de se adotar uma atitude antropológica ao analisarmos o racis- mo? Trata-se de estar aberto a aprender sobre as relações étnico-raciais e seus desdobramentos na sociedade, especialmente para a população afrodescendente. Como futuro educador, é importante você saber que um dos requisitos básicos para o exercício da atividade docente é estarmos sempre abertos a aprender, ao longo de toda a vida e, nesse caminhar, rever conceitos, pontos de vista, comportamentos, enfim, sermos eternos apren- dizes! Até porque não se ensina nada a quem não quer aprender, não é mesmo? Pesquisas indicam que a maioria da população brasileira afirma não ser racista. Mas, então, de onde vem o racismo que marca a nossa sociedade? Não lhe parece inconsistente? Diversos indi- cadores mostram que a questão racial é importante para se analisar as desigualdades no Brasil. Por exemplo, a análise de microdados do Censo 2010 e de outras pesquisas relacionadas mostra que quase 70% dos homicídios no Brasil têm como vítimas pessoas negras. E mais: a maioria dessas pessoas são jovens, homens e com baixa escolaridade. Além disso, a cor de pele também é um indi- cador importante quando é avaliada a probabilidade de um indivíduo ser morto em várias regiões do país: a porcentagem aumenta significativamente se ele for negro1 (IPEA, 2017). Em relação à educação, os dados também indicam que a população afrodescendente sofre com vários empecilhos que não podem ser explicados por outra variável além da questão étnico-racial. Apesar de ter havido um aumento da presença de negros e pardos em todos os níveis da educação, ocorreu de forma ainda tímida, sobretudo na graduação e pós-graduação. Essa situação pode ser ex- plicada pela dificuldade de acesso da população afrodescendente à educação de qualidade, o que aca- ba excluindo-a nos processos seletivos para ingresso nas instituições públicas de educação superior. Acabam ocupando essas vagas os estudantes oriundos da escola privada, de classe média e brancos. Será uma coincidência? Claro que não! 1 Veja mais a esse respeito no Atlas da Violência 2017 (IPEA, 2017, p. 31). Antropologia da educação132 Observe a figura a seguir, que apresenta alguns exemplos das desigualdades que afetam a população afrodescendente no Brasil. Veja que estamos falando de reflexos no mundo do trabalho, na educação e na exposição à violência. São dados muito importantes para se entender melhor o país em que vivemos. Figura 1 – O reflexo do racismo no Brasil Negros representam 50% da população, porém 20% do PIB. 60,8% dos presos no Brasil são negros. Nilo Procópio Peçanha foi o primeiro e único presidente negro do Brasil. Estatísticas O racismo representa 80% das causas da morte de negros. Negros são 132% mais mortos que brancos no Brasil. Aumenta em 2,6 a chance de uma pessoa morrer se ela for negra. Mortes Um trabalhador negro chega a receber cerca de 57,4% do salário de um branco, ambos desenvolvendo a mesma atividade: Salários Desemprego: Mulheres negras – 12% Mulheres brancas – 9,2% Os negros são só 18% em cargos de des- taque no Brasil. Patrões negros chegam a ganhar 25% menos de seus salários em comparação a brancos. Negros R$ 1.374,79 Brancos R$ 2.396,74 Em 2012, 91% dos negros estavam fora da universidade. Apenas 28,9% dos alunos da pós-gradu- ação são negros. Educação Fonte: Innovare Pesquisa, 2016. Mas por que chegamos a essa situação? Sendo os negros um dos grupos formadores da população e da cultura brasileiras, tão importante quanto indígenas, brancos europeus e outros imigrantes, como explicar que até hoje estejam nessa posição minoritária quando pensamos em acesso a seus direitosmais fundamentais e exercício da cidadania? Não somos conhecidos como um dos países mais miscigenados do mundo? Como vimos no capítulo anterior, as várias etnias e culturas que formaram o Brasil ao longo do tempo se aculturaram. E isso, vale a pena lembrar, só nos enriqueceu. Então, por que ainda existem o racismo e o preconceito? Fomos o último país a abolir a escravidão, o que não pode ser ignorado. Nossas estruturas social, política, econômica e cultural estavam fundamentadas nessa instituição, que deixou marcas profundas na mentalidade de gerações de brasileiros, sobretudo as elites que não queriam que nada mudasse. A associação dos negros ao trabalho braçal e pouco qualificado colabo- rou para a ideia de que eram seres inferiores. Veja que até o termo escravo era por aqui mal utilizado. Ninguém nasce escravo! Um indivíduo é transformado em escravo. Assim, devemos nos referir a essa população como negros africanos escravizados. E por todas as regiões do país por onde os africanos passaram, deixaram sua marca na cultura brasileira, que deve ser resgatada, conhecida e valorizada. Daí o contexto no qual surgiu a Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), da qual falamos anteriormente. Vimos que, na sua origem, a Antropologia adotou, especialmente por conta do darwinismo social e do evolucionismo, critérios ligados à noção de raça e/ou etnia para analisar as sociedades não europeias e não civilizadas, numa analogia às ciências biológicas, mas substituindo os organis- mos vivos pelos grupos sociais. Mas, sendo uma categoria de análise construída ao longo do tem- po, o próprio processo de consolidação da nova ciência foi criando as condições necessárias para sua superação. E, além disso, ao servir de base para a construção de identidades (de indivíduos A educação inclusiva: novos modelos educacionais 133 e grupos sociais), esses conceitos são extremamente importantes para a análise social, tanto pela Antropologia quanto pela Sociologia. Mas como podemos definir raça e racismo? Segundo Dias (2005, p. 181), “utilizamos o termo raça, do ponto de vista social, para identificar uma população que apresenta determinadas características físicas, e pelas quais ela é socialmente identificada. O critério de escolha da raça é da sociedade e não tem uma base científica”. Entretanto, é importante saber que qualquer análise que coloque indivíduos em oposição em razão de suas diferenças reforça e reproduz o dualismo que temos discutido aqui desde o início desta obra: nós e eles. Conceitos como os de raça, etnia ou cultura não podem ser utilizados para legitimar essa oposição. A construção de numa nova sociedade, antirracista, dependerá dessa atitude de não alimentar confrontos com base em ca- racterísticas físicas e/ou culturais de qualquer tipo. Carneiro (2000, p. 22) nos apresenta as duas teorias que fundamentaram o racismo a partir do século XIX: o arianismo e a eugenia. Quadro 1 – Arianismo e eugenia Arianismo É uma doutrina que justifica a desigualdade entre os homens e adverte contra o cruzamento das raças. Arthur de Gobineau (1816-1882), seu mais importante teórico, faz distinção entre as raças semita e ariana. Classifica a primeira como física, moral e culturalmente inferior à ariana – que seria o europeu puro – e rotula os semitas de inassimiláveis e pervertedores. Os semitas seriam uma raça híbrida, branca, mas abastardada por uma mistura com os negros. [...] As ideias de Gobineau foram retomadas e divulgadas por Houston Chamberlain (1855-1927), um dos maiores teóricos do pensamento racista do século XX e fervoroso defensor da superioridade germânica.[...] Entre os principais estudiosos dessa corrente destacou-se o inglês Herbert Spencer (1820-1903), responsável pela forma mais radical do evolucionismo sociológico. Introduziu a expressão sobrevi- vência do mais apto e popularizou, entre 1860 e 1890, o termo evolução. Dois outros importantes filósofos evolucionistas foram Thomas H. Husley (1825-1895) e Ernst Haeckel (1834-1919). Porém, a formulação mais elaborada do evolucionismo social encontra-se na obra de Lewis Henry Morgan (1818-1881), que distingue três estágios de evolução da humanidade: selvageria, barbárie e civilização. Eugenia A palavra deriva do grego eu (bom) e genesis (geração). Pretensa ciência fundamentada nas ideias de Francis Galton, conhecido pela descoberta das impressões digitais. Galton defendia a necessi- dade de o Estado formular um plano com o objetivo de selecionar jovens aptos a procriarem os mais capazes. Propunha a escolha de uma boa raça (a mais pura) ou do bom nascimento, chegando ao extremo de defender a esterilização de doentes, criminosos, judeus e ciganos. A eugenia incentivou experiências desse tipo no Terceiro Reich, que se propôs a elaborar um plano de purificação racial, marca do holocausto judeu. Fonte: Carneiro, 2000, p. 22. No Brasil, vários intelectuais desenvolveram teorias racistas baseadas nessas doutrinas. Carneiro (2000, p. 27) faz uma síntese dessas teorias: Importando o racismo Intelectuais brasileiros Ideias racistas Sílvio Romero: Aponta como mestre Spencer, Darwin e Gobineau. Analisa a formação de uma sub-raça no Brasil, resultante de uma união da raça branca Antropologia da educação134 com as demais, que acabariam por desaparecer por um processo de seleção natural. Prevaleceria a raça pura, fortalecida pela imigração europeia, compen- sando a degeneração provocada pelo clima e pelos negros. Nina Rodrigues: Professor de medicina legal na Bahia, considera os negros e os índios como raças inferiores. Diz que os mestiços, por terem mentalidade infan- til, não poderiam receber no código penal o mesmo tratamento que os brancos Francisco Adolfo de Varnhagem: Afirma que os índios, em função de sua orga- nização física, não poderiam progredir no meio da civilização, estando conde- nados a viver nas trevas. Se fossem colocados na luz (símbolo da civilização) morreriam ou desapareceriam. Euclides da Cunha: Autor de Os sertões (1902), interpreta a história a partir do determinismo do meio e raça. Subordina a evolução cultural de um povo à evolução étnica, considerando a mestiçagem prejudicial. Os mestiços são vis- tos como retrógrados, raquíticos e neurastênicos, incapazes de concorrer para o progresso brasileiro. Só poderiam superar seus “defeitos” se fossem segrega- dos, evitando-se novas fusões com o sangue negro. Euclides os diferencia dos sertanejos, homem da caatinga, de raça forte. Francisco José de Oliveira Viana: Adepto do arianismo, dividia a sociedade em raças superiores e inferiores. Considerava o sangue branco mais puro e dizia que o destino dos arianos seria sempre dominar as outras raças. Entendia por isso que a aristocracia era a melhor expressão da superioridade ariana. Para ele, a mestiçagem era causa da decadência da raça pura. Via os mulatos, mamelucos e cafuzos como ralé. (CARNEIRO, 2000, p. 27) Perceba que o mito da democracia racial não se sustenta quando analisamos a realidade brasileira em relação à questão das relações étnico-raciais. Sobre o racismo no Brasil, Guimarães afirma que: “cor”, tal como a usamos no dia a dia, é um atributo de grupo social, ou seja, [...] a classificação de alguém como “negro”, “preto”, “branco” ou “pardo” não é algo objetivo, independentemente dos sujeitos e das relações em que estão envolvidos; que classificá-lo numa categoria de cor equivale a incluí-lo em grupos que parti- lham certas características imaginadas – físicas, psicológicas e morais. Ainda que tal classificação seja diferente de uma classificação racial, que, na maioria das ve- zes, carrega consigo uma doutrina racialista mais ou menos explícita, parece claro que as classificações de cor não apenas sugerem as mesmas doutrinas, pois afinal usam a mesma nomenclatura, como dificilmente mantêm-se sem serem contami- nadas com expressões abertamente raciais, tais como “mulato” ou “mestiço”. [...] A classificação por cor pode mesmo passar a conotar não apenas “raças” – gruposdemarcados por crenças na comunalidade de sangue e hereditariedade – mas também etnias, ou seja, grupos cujas fronteiras são delimitadas por remissões a comunalidade de origem geográfica, religiosa, regional ou cultural (“baianos”, “nordestinos”, “judeus”, etc.). (GUIMARÃES, 2012, p. 42-43) Se o que nos caracteriza é a miscigenação e a diversidade, a luta pela igualdade deve ter na escola um espaço de discussão, pois, como dissemos anteriormente, só leis não bastam para construir uma sociedade justa. Com a Constituição de 1988, a legislação antirracismo Lei n. 7.716 A educação inclusiva: novos modelos educacionais 135 (BRASIL, 1989) – e o aumento da pena para o racismo e a injúria racial2, já conseguimos várias conquistas, mas seremos nós, cidadãos, que faremos as mudanças acontecerem! A educação voltada para a formação integral e a cidadania, oportunizando a discussão so- bre esse tema desde a Educação Infantil até a graduação, passando pela formação docente (e por isso a importância da disciplina de Antropologia da Educação nos currículos), é o caminho para a conscientização sobre o racismo e suas implicações. Combater a discriminação (ainda que sutil), o racismo velado e a intolerância é o objetivo que devemos perseguir como educadores, ainda que seja preciso enfrentar resistência e todo tipo de dificuldades, inclusive em relação à implementação da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003). Diante do grande desconhecimento em relação à história e à cultura da África, os professo- res cobram que sejam realizados mais investimentos para sua formação continuada. Entendem que essa é uma condição para que também possam estudar, conhecer a aprender mais sobre esse tema, num contexto de educação para as relações étnico-raciais. Com isso poderão realizar projetos que contemplem o multiculturalismo por meio da inter e multidisciplinaridade. O Estado vem promovendo ações de combate à exclusão causada pelo preconceito étnico- -racial por meio também das políticas públicas e ações afirmativas. Para garantir maior igualdade e justiça social para a população afrodescendente, essas ações têm como objetivo a promoção do acesso e permanência no sistema educacional, do emprego e dos serviços sociais. Uma das estraté- gias utilizadas é o estabelecimento de cotas para esses indivíduos. Isso tem gerado muita discussão e polêmica em razão das diferentes visões sobre o tema. Entre argumentos contra e a favor, temos: os argumentos usados para defender as políticas de ações afirmativas no Brasil têm invariavelmente girado em torno das desigualdades raciais no Brasil e da persistência dos preconceitos e discriminações raciais de que os negros são ví- timas ao longo da vida. [enquanto] os argumentos contrários às “cotas” fazem, sem grande sucesso, sua linha de defesa em nome da democracia racial e da modernidade brasileira.[...] Seus principais argumentos apelam para o esclare- cimento do público e para o medo da segregação racial. O seu grande problema é não tocar de modo direto e convincente, buscando soluções, nos interesses imediatos das partes envolvidas – os setores negros em ascensão social, os pro- fessores universitários, a classe média branca. (GUIMARÃES, 2012, p. 125-126) E você, como se posiciona em relação às políticas afirmativas? Já refletiu sobre os argumen- tos que justificam os dois posicionamentos? 8.2 O conceito de direitos humanos Como destacamos no capítulo anterior, pensar o multiculturalismo na edu- cação implica em repensar tudo o que envolve o processo ensino-aprendizagem, as práticas sociais e culturais que se desenrolam no ambiente escolar e não esco- lar, tendo como objetivo maior a luta por uma sociedade igualitária, inclusiva e 2 Injúria racial é um crime de ofensa à honra baseado em questões referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem. “A acusação de injúria permite fiança e tem pena de no máximo oito anos, embora geralmente não passe dos três anos. [...] Para o crime ser considerado racismo, tem que menosprezar a raça de alguém” (RACISMO NO BRASIL, 2018). Vídeo Antropologia da educação136 democrática. O combate a toda e qualquer forma de exclusão e discriminação e a luta contra a opressão hoje passam pelo conceito de direitos humanos, tema que se impõe na atualidade e que deve ser incluído de forma mais efetiva nos cursos de formação de professores. Candau, discutindo o multiculturalismo na escola, reforça que as relações entre cotidiano escolar e cultura(s) ainda constituem uma perspec- tiva somente anunciada em alguns cursos de formação inicial e/ou continuada de educadores/as e pouco trabalhada nas nossas escolas. No entanto, considero que esta perspectiva é fundamental se quisermos contribuir para que a escola seja reinventada e se afirme como um locus privilegiado de formação de novas identidades e mentalidades capazes de construir respostas, sempre com caráter histórico e provisório, para as grandes questões que enfrentamos hoje, tanto no plano local quanto nacional e internacional. (CANDAU, 2010, p. 35) Ao se posicionar favorável à inter-relação entre diferentes grupos culturais, à permanente renovação das culturas, ao processo de hibridização das culturas e à vinculação entre questões de diferença e de desigualdade, a autora também concebe a escola como um espaço de cruzamento de culturas, ainda que até hoje se constate nela a dificuldade em lidar com a diferença. Mas, se iden- tidade é um dos temas mais relevantes na discussão sobre a diferença, não é mais possível aceitar que essas diferenças sejam silenciadas ou neutralizadas. Para que essas discussões se concretizem na escola, é preciso promover uma educação em direitos humanos, que não dizem respeito apenas à defesa do direito à vida e representam mais do que a luta contra a tortura ou tratamento cruel. Constituem um horizonte amplo de defesa da dignidade do ser humano, em suas diferentes necessidades e reivindicações. Dentre eles, in- cluem-se os direitos sociais, civis, ambientais, e muitos outros que surgiram, e continuam surgindo, como construção histórica, a partir das lutas pelas liberda- des e contra as diversas formas de opressão. (AFONSO; ABADE, 2013, p. 13-14) Esse é um tema recente e compreender o alcance do conceito de direitos humanos e a im- portância da educação é um dos objetivos da Antropologia da Educação em seu diálogo com a educação. Além disso, Afonso e Abade ressaltam que o Brasil é signatário de todos os pactos internacionais pelos direitos humanos. Portanto, o Estado brasileiro deve ser responsável pela promoção, pela defesa e pela garantia dos direitos humanos no país. E é claro que essa responsabilidade precisa ir além de uma mera retórica política. Ou seja, as declarações e conven- ções sobre direitos precisam ser acompanhadas de políticas públicas efetivas e outras estratégias de proteção, promoção e defesa dos direitos humanos. Dentre essas estratégias está a educação, em todos os seus níveis e âmbitos. (AFONSO; ABADE, 2013, p. 14) Um dos documentos mais importantes e que fundamentou todos os demais relacionados a essa temática é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (ONU, 1948), aprova- da em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, diante das tantas atrocidades cometidas, sobretudo o holocausto, o mundo estava em busca de um novo propósito e de formas de prevenir e impedir que eventos A educação inclusiva: novos modelos educacionais 137 desse tipo se repetissem. Foram acontecimentos que agrediram todas as formas de civilidade que até então haviam pautado a vida em sociedade, em especial depois do que já havia sido definido pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada com a Revolução Francesa. O objetivo maior da DUDH era a defesa da dignidade humana e foi vista como a motivação que faltava para que esse tema passasse definitivamente a fazer parte da pauta de discussão nas relações internacionais e demais instâncias da vida