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GÊNEROS TEXTUAIS DIDÁTICOS E ANÁLISE DE MATERIAIS DIDÁTICOS DE LETRAS Fundamentos teórico- -metodológicos do ensino de língua materna: um panorama Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar os principais fundamentos teórico-metodológicos envol- vidos no ensino de Língua Portuguesa. Reconhecer esses fundamentos como diretrizes para a elaboração e avaliação de materiais didáticos de Língua Portuguesa. Analisar a importância da leitura, da oralidade e da escrita para o letramento. Introdução Os estudos linguísticos da enunciação constataram que a língua só existe no uso, ou seja, as situações de interação é que garantem a existência da língua. Dessa forma, a importância de se estudar a língua materna na escola está em aprimorar a competência comunicativa. Isso significa que as práticas de linguagem (oralidade, leitura, escrita e análise linguística) devem estar em conformidade com esses fundamentos. Eles estão pre- sentes nas diretrizes nacionais sobre o ensino de português e orientam a produção de materiais didáticos. Neste capítulo, você vai ler sobre os principais fundamentos teórico- -metodológicos envolvidos no ensino de Língua Portuguesa, a relação entre esses fundamentos e as diretrizes para a elaboração e avaliação de materiais didáticos de Língua Portuguesa e a ligação entre leitura, oralidade, escrita e letramento. 1 Fundamentos teórico-metodológicos envolvidos no ensino de Língua Portuguesa Uma breve refl exão sobre as necessidades atuais do ensino da língua por- tuguesa levará a uma constatação: os objetivos devem ser mais amplos e as práticas mais condizentes com as concepções de língua recentes. Dessa forma, professores poderão contribuir de forma mais signifi cativa com o desenvolvimento da competência dos alunos no uso da sua língua materna. Para tanto, há alguns pressupostos teóricos que podem auxiliar na orientação da atividade pedagógica de português. A concepção de língua é o primeiro passo para se identificar os principais fundamentos teórico-metodológicos. A atualidade pede uma noção de língua na dimensão interacional e discursiva para que o indivíduo possa ter condições de participar em diferentes situações no seu meio social. Nesse sentido: A linguagem tem um caráter fundador de realidade(s), e não de mera representação desta, como é sugerida nas demais concepções. É nesse sentido que, ao contrário do que entende, por exemplo, a visão estrutural; a concepção sociointeracionista compreende que as significações são distintas a cada ato de linguagem, pois são determinadas pelas condições de produção do discurso e pela conjuntura sócio- -histórica. É, portanto, por meio de uma relação mútua entre falante e ouvinte que se constroem os sentidos (BEZERRA; SIMÕES E LUNA, 2016, p. 39). Essa concepção de linguagem corresponde aos estudos linguísticos da enunciação que partem da ideia de que a língua existe apenas na interlocução. Nas práticas pedagógicas os estudos da língua estariam associados, dessa forma, à análise da língua em funcionamento. Nesse sentido, na sala de aula, não se podem ignorar as variedades linguísticas. Além disso, não se pode restringir as análises ao nível da sentença, das frases. Para Geraldi (2006, p. 44), nessa perspectiva, no ensino da língua, “[...] é muito mais importante estudar as relações que se constituem entre os sujeitos quando falam do que simplesmente estabelecer classificações e denominar os tipos de sentenças”. Nesse contexto, é preciso identificar os princípios teóricos que podem fundamentar um ensino de aula mais adequado às necessidades atuais. Para tanto, é necessário analisar as práticas de leitura, escrita, oralidade e reflexão sobre a gramática. O trabalho com oralidade na sala de aula deveria corresponder ao estudo e à explicitação dos gêneros orais da comunicação pública. No entanto, as atividades escolares costumam se concentrar na identificação dos padrões coloquiais de uso da língua na oralidade. As aulas de português, dessa forma, Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama2 excluem as convenções sociais e os registros formais da comunicação oral. Vale ressaltar que isso ocorre na melhor das hipóteses, pois, geralmente, há uma omissão quase completa da fala como objeto de estudo nas aulas de português. Em algumas situações a oralidade serve apenas de contraponto à escrita: como se a fala fosse o espaço para as regras da gramática tradicional serem violadas. Antunes (2003, p. 24) alerta que: De acordo com essa visão, tudo o que é “erro” na língua acontece na fala e tudo é permitido, pois ela está acima das prescrições gramaticais; não se distinguem, portanto, as situações sociais mais formais de interação que vão, inevitavelmente, condicionar outros padrões de oralidade que não o coloquial. É evidente que oferecer espaço para as conversas e troca de ideias informais é fundamental para as aulas de língua portuguesa, porém não se pode opor- tunizar apenas esse tipo de abordagem para a oralidade. Daí a necessidade de trabalho com os gêneros textuais. O seminário, por exemplo, do qual em algum momento da vida de estudante os alunos participarão, exige escolhas lexicais mais formais e, muitas vezes, mais específicas. O estudo dessas questões não pode ser deixado de lado. Outra prática fundamental nas aulas de português é a escrita, ou melhor, a produção textual. Esse ponto costuma ser crítico, tanto para alunos quanto para professores: os estudantes se mostram desmotivados a escrever, afirmam que estão sem inspiração e que não sabem escrever; os docentes dedicam longas horas à correção das redações, às sugestões e não veem receptividade dos alunos às suas anotações. Certamente, parte desse problema surge da artificialidade da escrita na escola, ou seja, como a proposta de produção textual parte de uma simulação, é comum que haja desmotivação dos envolvidos. Nesse sentido, é importante que as atividades em torno da escrita não ignorem a interferência do aluno: seu registro revela as hipóteses que ele cria sobre a representação gráfica da língua. Portanto, o uso adequado de regras ortográficas, por exemplo, não pode ser parâmetro para avaliar se um texto está bem escrito. Isso significa que é preciso desmistificar a ideia de que saber escrever é saber as regras de ortografia e gramática. Esse tipo de abordagem acaba oportunizando a escrita artificial. A escrita significativa exige um contexto comunicativo para que haja intenções de comunicação que preenchem a escrita de sentidos. Dessa forma, o texto se constrói com textualidade e com resposta a um contexto social. Antunes (2003, p. 26) alerta que se pode constatar nas aulas de língua portuguesa: 3Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama [...] a prática de uma escrita sem função, destituída de qualquer valor intera- cional, sem autoria e sem recepção (apenas para “exercitar”), uma vez que, por ela, se estabelece a relação pretendida entre a linguagem e o mundo, entre o autor e o leitor do texto. Entretanto, se a proposta de produção textual for improvisada de tal forma que o objetivo seja apenas realizá-la, perde o significado e a finalidade de escrita. Afinal, os alunos não veem sentido em escrever algo que será lido apenas pelo professor, e para que ele possa, em muitos casos, apenas atribuir uma nota. Para dar conta desse problema, Geraldi (2006) propõe que os textos pro- duzidos pelos alunos ganhem visibilidade com publicações. O autor sugere que, na 5ª série, seja construída uma antologia das histórias produzidas; na 6ª série, se organize um jornal mural da turma para que os colegas possam ler todos os textos produzidos por eles; na 7ª série se organize um jornal que possa ser vendido na própria escola; e, na 8ª série, se publique uma antologia que possa receber um espaço num jornal local. No entanto, para que a produção de textosna escola se afaste da artificialidade, não basta encontrar um leitor definido nem garantir a circulação dos textos. É preciso também aproximar as propostas da realidade dos alunos. A prática de leitura, muitas vezes, se revela dissociada da interação verbal, pois é centrada apenas na decodificação da escrita ou na extração de informa- ções. Entretanto, a leitura se caracteriza pelo contato do leitor com o texto e, para que isso aconteça, é preciso vinculá-la aos diferentes usos sociais. Nesse caso, há uma relação muito próxima com os problemas de escrita: a leitura se revela como uma atividade exclusivamente escolar; algo para cumprir, desvinculada de um interesse. Essas propostas buscam recuperar apenas os elementos da superfície do texto. Quase sempre esses elementos privilegiam aspectos apenas pontuais do texto (alguma informação localizada num ponto qualquer), deixando de lado os elementos de fato relevantes para sua compreensão global (como seriam todos aqueles relativos à ideia central, ao argumento principal defendido, à finalidade global do texto, ao reconhecimento do conflito que provocou o enredo da narrativa, entre outros) (ANTUNES, 2003, p. 28). A função da escola é dar subsídios ao aluno para que ele possa ler em outros espaços sociais. Dessa forma, não se pode oferecer uma leitura que não coincida com o que se precisa ler fora dos portões da escola. Em muitas aulas de língua portuguesa, o trabalho de leitura está à serviço das questões gramaticais, assunto que ocupa a maior parte do tempo dessas Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama4 aulas. Mas o que realmente se deve trabalhar na análise linguística? Para come- çar, a gramática deve ser tratada como algo vinculado aos usos reais da língua (escrita e falada). Isso significa que a gramática precisa estar contextualizada, isto é, não se podem apresentar frases soltas, sem sujeitos interlocutores, para que se possa propor um exercício apenas. Afinal, a gramática fragmentada não contribui com o desenvolvimento da competência comunicativa dos falantes e não se encontra nos contextos mais previsíveis de uso da língua. Antunes (2003, p. 32) afirma: Vale a pena lembrar que, de tudo o que diz respeito à língua, a nomenclatura é a parte menos móvel, menos flexível, mais estanque e mais distante das intervenções dos falantes. Talvez, por isso mesmo, seja a parte “mais fácil” de virar objeto das aulas de língua. Vale a pena lembrar também que a gramática de uma língua é muito mais, muito mais mesmo, do que o conjunto de sua nomenclatura, por mais bem elaborada e consistente que seja. Dessa forma, a análise linguística ou o ensino de gramática só tem sentido se ocorre com o apoio de textos reais. Assim, a preocupação não pode ser com a prescrição e com as normas que indicam o certo e o errado. É preciso se dedicar à escrita sobre o que se diz, como se diz e se o aluno tem algo a dizer (ANTUNES, 2003). Afinal, há muitos aspectos linguísticos relevantes, como os discursivos, e deter-se apenas à correção significa reduzir os estudos da língua. Como se nota, as práticas de oralidade, leitura, produção de texto e análise linguística exigem um trabalho de interação, na perspectiva da enunciação. Algumas teorias e metodologias fundamentam essa relação, como o intera- cionismo sociodiscursivo (ISD) e o letramento. O interacionismo sociodiscursivo foi desenvolvido por Jean-Paul Bron- ckart. Sua proposta principal foi levar a linguagem para os princípios do Interacionismo social, inserindo-a como elemento central. Bronckart (2006, p. 9) afirma que: O ISD aceita todos os princípios fundadores do interacionismo social, como a contestação do corte atual das ciências humanas/sociais: nesse sentido, ele não pode constituir uma corrente propriamente “linguística”, mais que uma corrente “psicológica” ou “sociológica”; ele se quer uma corrente da ciência do humano. Mas, de uma maneira que é apenas aparentemente contraditória com o que precede, o ISD considera que a problemática da linguagem é absolutamente central ou decisiva para essa mesma ciência do humano. No prolongamento da tese de fato compartilhada por Saussure e Vigotski, segundo a qual os signos linguísticos (langagier) estão nos fundamentos da constituição 5Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama do pensamento consciente humano, visa a demonstrar, mais geralmente, que as práticas de linguagem situadas (quer dizer, os textos-discursos) são os instrumentos maiores do desenvolvimento humano, não somente sob o ângulo dos conhecimentos e dos saberes, mas, sobretudo, sob o das capacidades de agir e da identidade das pessoas. Portanto, de acordo com os estudos do ISD, a atividade da linguagem se organiza em discursos e em textos, e os textos organizam-se em gêneros. Daí a necessidade de trabalhar a aula de português a partir da diversidade textual, dos gêneros. Veçossi (2014, documento on-line) resume as ideias do ISD da seguinte forma: Em síntese, a articulação dos três autores no escopo do ISD leva-nos à seguinte relação: os signos (na acepção saussureana do termo), com seus significados (arbitrários), comungados historicamente pela comunidade de falantes, adquirem determinados sentidos (carregados ideologicamente) ao serem atualizados no interior de produções situadas socio-historicamente (Cf. BAKHTIN, 1997; 2004). Tais produções, sempre vinculadas a esferas de atividade verbal humana, ocorrem sob a forma de enunciados, concretos e únicos, os quais, por sua vez, atualizam, sob a forma de textos, os gêneros em uso em determinada comunidade (na acepção bakhtiniana do termo). Pensando no nível ontogenético, os gêneros funcionam como instrumentos (Cf. a noção vygotskiana) que, ao serem internalizados em meio a atividades sociais, propiciam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores nos indivíduos, permitindo que estes ultrapassem o aspecto biológico e atinjam a dimensão sócio-histórica, que é típica do humano. O ISD propõe, portanto, que os textos sejam analisados na perspectiva das múltiplas atividades para que, a partir das análises, se compreenda o humano. Assim, é possível aliar a leitura e a escrita ao ensino gramatical. A concepção de letramento dialoga com esses fundamentos. O letramento que considera a linguagem como interação dedica-se não só ao ler e ao escrever, mas também ao uso do ler e do escrever, e isso se refere às demandas de leitura e de escrita impostas pela sociedade. Essa concepção social da linguagem enfatiza o trabalho com gêneros textuais. Fuza et al. (2011, p. 493) afirmam que: “No processo de ensino e aprendizagem da língua materna, os gêneros são tomados como objetos de ensino (Brasil, 1998) e, por isso, são responsáveis pela seleção dos textos que serão trabalhados como unidades de ensino”. Em suma, a concepção de linguagem como meio de interação inclui o contexto social de construção de sentidos dos textos e cria a necessidade de práticas pedagógicas que privilegiem o estudo da língua a partir do texto para ampliar a competência comunicativa dos alunos. Para tanto, as práticas Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama6 de oralidade, escrita, leitura e análise linguística devem estar associadas ao estudo do texto. 2 Diretrizes para a elaboração e avaliação de materiais didáticos de Língua Portuguesa A noção de que a linguagem funciona apenas para que as pessoas possam interagir socialmente e que as aulas de língua portuguesa devem ser planeja- das e executadas com base nesse fundamento já é seguida em algumas ações governamentais. Esse é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Guia do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). O privilégio à dimensão interacional e discursiva da língua se articula no uso da língua oral e escrita e na reflexão sobre esses usos. Portanto, surge no tratamento da oralidade,da produção de textos, da leitura e da análise linguística. Observemos como essas relações aparecem nas diretrizes dos documentos orientadores nacionais? Os PCNs determinam que não é papel da escola ensinar alguém a falar ou a falar bem. Assim, o trabalho com a oralidade requer atividades sistemáticas de fala, escuta e reflexão sobre a língua. Veja (BRASIL, 1997, p. 39): São essas situações que podem se converter em boas situações de aprendizagem sobre os usos e as formas da língua oral: atividades de produção e interpretação de uma ampla variedade de textos orais, de observação de diferentes usos, de reflexão sobre os recursos que a língua oferece para alcançar diferentes finalidades comunicativas. Para isso, é necessário diversificar as situações propostas tanto em relação ao tipo de assunto como em relação aos aspectos formais e ao tipo de atividade que demandam — fala, escuta e/ou reflexão sobre a língua. Note que o foco está no desenvolvimento da competência comunicativa e na reflexão sobre a língua de forma contextualizada. Para tanto, são necessárias atividades associadas à resolução de problemas, às necessidades oriundas de conflitos surgidos no ambiente escolar (algo a ser resolvido), como: “[...] exposição oral, sobre temas estudados apenas por quem expõe; descrição do funcionamento de aparelhos e equipamentos em situações onde isso se faça necessário; narração de acontecimentos e fatos conhecidos apenas por quem narra, etc.” (BRASIL, 1997, p. 39). 7Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama A BNCC (BRASIL, 2017) reitera a necessidade de incluir a oralidade como prática social que deve ser contemplada nas práticas pedagógicas e alerta que o componente de Língua Portuguesa deve ampliar os letramentos. Dessa forma, a oralidade se revela na BNCC como uma habilidade que permeia todos os campos da área de língua portuguesa. Aliás, nesse documento, aparecem de forma mais clara os tipos de textos orais a se trabalhar e a relação dessa habilidade com as tecnologias atuais de informação e comunicação. O Eixo da Oralidade compreende as práticas de linguagem que ocorrem em situação oral com ou sem contato face a face, como aula dialogada, webcon- ferência, mensagem gravada, spot de campanha, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista, declamação de poemas (com ou sem efeitos sonoros), peça teatral, apresentação de cantigas e canções, playlist comentada de músicas, vlog de game, contação de histórias, diferentes tipos de podcasts e vídeos, dentre outras. Envolve também a oralização de textos em situações socialmente significativas e interações e discussões envolvendo temáticas e outras dimensões linguísticas do trabalho nos diferentes campos de atuação (BRASIL, 2017, p. 74–75). Além disso, a BNCC prevê o aumento da complexidade do tema oralidade (BRASIL, 2017), conforme o aluno avança nos estudos. Assim, se nos anos iniciais se privilegiam os momentos de fala e de escuta e a produção de textos orais curtos, nos anos seguintes o aluno começa a ser desafiado a planejar textos orais e a compreendê-los para, nos anos finais, ser capaz de produzir textos mais longos e a participar de discussões orais de temas controversos de interesse da turma e/ou de relevância social. O Guia PNLD (BRASIL, 2020) orienta que a produção de materiais didáticos contribua com a compreensão dos alunos sobre as modalidades escrita e oral da língua na produção e na análise de textos. Quanto às práticas de leitura, há consenso entre todas as normas para que se abandonem as propostas que visam a extrair significados superficiais dos textos e que camuflam as intenções de análise gramatical na extração de exemplos do texto. Os PCNs (BRASIL, 1997, p. 41) fornecem uma orientação Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama8 direta sobre o tratamento didático que a leitura deve receber nas aulas de língua portuguesa: A leitura na escola tem sido, fundamentalmente, um objeto de ensino. Para que possa constituir também objeto de aprendizagem, é necessário que faça sentido para o aluno, isto é, a atividade de leitura deve responder, do seu ponto de vista, a objetivos de realização imediata. Como se trata de uma prática social complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso significa trabalhar com a diversidade de textos e de combinações entre eles. Significa trabalhar com a diversidade de objetivos e modalidades que carac- terizam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês” [...]. Nesse sentido, a leitura se insere na perspectiva do letramento, que se preocupa com a dimensão coletiva da leitura. Isso significa que essa prática deve estar associada à interação: do autor com o leitor, do leitor com o texto, confirme indica a BNCC (BRASIL, 2017, p. 67): O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem que decorrem da in- teração ativa do leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação, sendo exemplos as leituras para: fruição estética de textos e obras literárias; pesquisa e embasamento de tra- balhos escolares e acadêmicos; realização de procedimentos; conhecimento, discussão e debate sobre temas sociais relevantes; sustentar a reivindicação de algo no contexto de atuação da vida pública; ter mais conhecimento que permita o desenvolvimento de projetos pessoais, dentre outras possibilidades. Note que a diversidade textual é contemplada, revelando que os gêneros textuais devem servir de base para o desenvolvimento das habilidades ligadas à leitura. Da mesma forma, as práticas de produção textual compreendem dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão. Assim, se reitera o lugar de sujeito autor, que desconecta a produção de textos de uma atividade mecânica e sem autoria. Além disso, há espaço para diferentes gêneros, inclusive os não tradicionais, que podem ser uma tendência revelada na palavra multissemiótico, que também demonstra a variedade de olhares para um mesmo texto: tanto na questão de recepção quanto na de produção. Aliás, a multimodalidade também aparece no Guia do PNLD (BRASIL, 2020, p. 130): A Produção Textual (escrita, oral ou multimodal) embasa-se nas concepções de gêneros discursivos e de linguagem como prática em sociedade, cujas 9Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama ações, ao propiciarem reflexões sobre as situações comunicativas, atendem às expectativas dos alunos no que se refere à inserção social. Os PCNs (BRASIL, 1997), embora publicados há mais tempo, já demons- tram a necessidade de um trabalho integrado, voltado aos diferentes gêneros textuais, pois afirmam que um escritor competente sabe selecionar o gênero mais apropriado a seu discurso. As práticas de análise e reflexão sobre a língua exigem um afastamento das ideias tradicionais de ensino de gramática. A intenção dessas atividades deve ser melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos alunos. Os PCNs (BRASIL, 1997) revelam a imbricação que existe entre a análise linguística e a prática textual: orientam que se associem as atividades de compreensão de textos à prática de análise e reflexão sobre a língua. Essa proposta implica uma formulação constante de hipóteses a respeito do funcionamento da língua e instiga os alunos à experimentação de novas formas de escrever. Mas essa não costuma ser uma realidade das aulas de português brasilei- ras. Aliás, os livros didáticos, que são o principal material didático utilizado nas escolas do Brasil, mostram-se frágeis quanto à adequação da análise linguística aos fundamentos teóricos atuais. É o que revela o Guia PNLD (BRASIL, 2020, p. 23): Nesse eixo as propostas de atividades deveriam ser totalmente contextualizadas e voltadas para despertar nos(as) estudantes a reflexão sobre como tais recursos ajudam no funcionamentoda língua, isto é, fazê-los(as) pensarem sobre quais efeitos de sentido o emprego de determinados recursos linguísticos e semi- óticos provoca. No entanto, na maioria das coleções aprovadas, as propostas ainda se valem de textos a partir dos quais são apresentados exercícios de identificação e de classificação de elementos ou termos gramaticais de forma conceitual, normativista e tradicional. Por essa razão, tais propostas recebem a classificação mais baixa de grau de contemplabilidade das habilidades. Entretanto, algumas obras conseguiram desenvolver atividades com certa conexão com textos trabalhados nas seções de leitura, ou iniciados a partir de novos textos inseridos para esse fim. Nestes casos, os textos são explorados do ponto de vista da compreensão de leitura e a reflexão linguística aparece como recurso construtivo para a leitura do texto. A BNCC (BRASIL, 2017,) compartilha dessa ideia de que a análise linguís- tica está atrelada à produção e à compreensão de textos e utiliza a expressão “análise consciente” para nomear as estratégias utilizadas pelos alunos nas práticas de leitura e produção de textos. Isso significa que a análise linguística Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama10 deve estar a serviço da materialidade do texto, ou seja, as escolhas linguísticas interferem diretamente nos efeitos de sentido. Portanto, para a disciplina de Língua Portuguesa, por estar associada ao ensino e ao estudo de língua, é preciso assumir uma visão sobre a língua e estabelecer uma relação com essa língua. A visão que o Ministério da Educação aponta segue a tendência interacionista, que propõe práticas de reflexão sobre o objeto de estudo no contexto da enunciação. 3 Importância da leitura, da oralidade e da escrita para o letramento A concepção da linguagem como interação pressupõe que a situação discursiva que permeia a leitura de um texto inicia antes mesmo da decodifi cação das palavras escritas, ou melhor, pressupõe que, para ser texto, não precisa utilizar linguagem verbal. Aliás, essa abordagem considera que a leitura de mundo antecede a leitura da palavra. Nessa perspectiva, diferentes leitores podem produzir diferentes leituras para um mesmo texto em diferentes situações discursivas. Da mesma forma, podem ser produzidos diferentes textos sobre o mesmo tema, conforme os interesses dos leitores e os objetivos do escritor, ou seja, um mesmo tema pode gerar diferentes gêneros. Nesse contexto, se situa a defi nição de letramento: “Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2009, p. 18). Esse indivíduo letrado passa a se relacionar com os demais de forma di- ferente, pois se insere no campo da cultura. Além disso, assume uma postura cognitiva também diferente: o acesso a uma diversidade de informações e pontos de vista aliado à capacidade de reflexão crítica fazem com que o letrado se diferencie dos analfabetos ou iletrados. Esse lugar diferenciado é acessado pela leitura, pela oralidade e pela escrita, pontos essenciais ao letramento. Quem é letrado torna a escrita sua propriedade: pode usá-la como quiser, conforme revela Soares (2009, p. 44): [...] letramento é um estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a lei- tura e a escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita. 11Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama Com essa perspectiva, o letramento é visto como prática social, pois, à medida que o indivíduo se torna letrado, constrói sua identidade. Essa identi- dade interferirá na construção de sentidos tanto no processo de leitura quanto no de escrita e na construção da identidade dos interlocutores. Dessa forma, se exigem práticas de letramento na escola diferentes das tradicionais, pautadas na alfabetização e na codificação e decodificação dos textos. Afinal, o letramento não está preso às paredes da escola: ele ocorre fora da sala de aula também, garantindo interações e comunicações entre interlocutores. Nesse sentido, os significados não estão no texto; por isso não é possível propor práticas de letramento na escola que se limitem a decodificar textos. A necessidade passa a ser de propostas pedagógicas de construção de sentidos em negociações intersubjetivas. Para tanto, as práticas de linguagem devem permitir trocas entre os sujeitos, construção de relações intertextuais com textos orais e escritos, entrecruza- mento de culturas etc. Assim, leitura, oralidade e escrita revelam-se imbricadas. Aliás, a própria BNCC (BRASIL, 2017, p. 85) determina a relação entre todos esses eixos e sua associação com os diferentes letramentos: Assim, no Ensino Fundamental — Anos Iniciais, no eixo Oralidade, aprofun- dam-se o conhecimento e o uso da língua oral, as características de interações discursivas e as estratégias de fala e escuta em intercâmbios orais; no eixo Análise Linguística/Semiótica, sistematiza-se a alfabetização, particularmente nos dois primeiros anos, e desenvolvem-se, ao longo dos três anos seguintes, a observação das regularidades e a análise do funcionamento da língua e de outras linguagens e seus efeitos nos discursos; no eixo Leitura/Escuta, amplia-se o letramento, por meio da progressiva incorporação de estratégias de leitura em textos de nível de complexidade crescente, assim como no eixo Produção de Textos, pela progressiva incorporação de estratégias de produção de textos de diferentes gêneros textuais. Note que a orientação está destinada aos anos iniciais do Ensino Fun- damental, logo, a importância da leitura, da oralidade e da escrita para o processo de letramento surge desde os primeiros contatos do aluno com o mundo escolar. Isso significa que o aluno não precisa ser alfabetizado para se inserir no mundo letrado. Afinal, na vida, ele está inserido em práticas que também preservam enunciados orais e escritos que o auxiliam a viabilizar a consciência do mundo letrado. Portanto, o letramento envolve tanto a leitura quanto a escrita. Como afirma Soares (2009, p. 68–69): Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama12 A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura como uma "tecnologia"), é um conjunto de habilidades linguísticas e psico- lógicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos. [...] Assim como a leitura, a escrita, na perspectiva da dimensão individual do letramento (a escrita como uma "tecnologia"), é também um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, mas habilidades fundamentalmente diferentes daquelas exigidas pela leitura. Enquanto as habilidades de leitura estendem-se da habilidade de decodificar palavras escritas à capacidade de integrar informações provenientes de diferentes textos, as habilidades de es- crita estendem-se da habilidade de registrar unidades de som até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor potencial. Vale destacar que, no contexto social atual em que os significados es- tão sendo construídos, os processos de leitura e escrita estão ocorrendo no universo da cibercultura. Assim, a comunicação pode ocorrer de diferentes formas (além da oral e da escrita) e em diferentes tempos, logo as práticas de letramento deverão de adaptar a essas demandas conforme o contexto social. A BNCC (BRASIL, 2017, p. 65) orienta sobre a importância de se dar espaço a novas mídias: Não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso nem de deixar de considerar gêneros e práticas consagradospela escola, tais como notícia, re- portagem, entrevista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas de contemplar também os novos letramentos, essencialmente digitais. A orientação reforça uma tendência: a necessidade de incluir os multile- tramentos nas práticas de linguagem adotadas nas aulas de português. Afinal, não basta ser letrado no mundo das letras e iletrado no mundo digital se este está ocupando grande parte dos espaços de comunicação, interação e troca de informações. Essa variedade de discursos midiáticos e de mensagens multissemiotizadas deve ser também preocupação da escola, que precisa estar em sintonia com a realidade dos estudantes, como indica a BNCC: “Dessa forma, a BNCC procura contemplar a cultura digital, diferentes linguagens e diferentes letramentos, desde aqueles basicamente lineares, com baixo nível de hipertextualidade, até aqueles que envolvem a hipermídia” (BRASIL, 2017, p. 66). 13Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama O termo multiletramento se refere a uma multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais contem- porâneos (ROJO, 2013). Portanto, as atividades de leitura, escrita e oralidade devem estar em sintonia com a pluralidade cultural da sociedade contemporânea. Rojo (2013) alerta que a educação linguística atual deve levar aos alunos projetos de futuro em três dimensões: 1. diversidade produtiva (âmbito do trabalho); 2. pluralismo cívico (âmbito da cidadania); 3. identidades multifacetadas (âmbito da vida pessoal). Isso significa que, com novos gêneros discursivos e novas tecnologias de leitura e escrita, já não basta a leitura do texto escrito. As outras modalidades de linguagens deverão dividir espaço com a linguagem verbal. A pedagogia dos multiletramentos é defendida pelo Grupo de Nova Londres, que se organizou para debater as relações entre pedagogia e letramento. A ideia de multile- tramento surgiu para se opor ao mero letramento, isto é, para ratificar que no processo de construção de significados na contemporaneidade há diferentes possibilidades (THE NEW LONDON GROUP, 1996). Para que essas práticas se efetivem, é preciso haver condições para o letramento e para o multiletramento. Soares (2009) afirma que deve haver escolarização real e efetiva da população e disponibilidade de material de leitura. Podemos imaginar que a concretização de práticas de multiletramentos exige, no mínimo, disponibilidade de computadores e acesso à internet. Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama14 Não se pode mais tratar apenas de letramento do texto impresso. Isso significa que o professor e a escola devem oportunizar o acesso dos alunos a outros textos. Aliás, a televisão e a internet, por exemplo, fornecem material para a leitura crítica, para a análise das questões ideológicas, isto é, para o letramento crítico. Assim, os discursos midiáticos presentes nos variados meios de comunicação podem servir de objeto de estudo nas aulas de língua também. Certamente, tanto a demanda de multiletramento quanto a de acesso a textos multimodais pressionarão a escola a vincular o estudo da língua ao contexto social. E essa pressão problematizará as práticas pedagógicas que não costumam considerar as questões sociais, psicológicas, culturais e ideológicas que permeiam a comunicação. Assim, as propostas de letramento devem provocar forte impacto no processo de ensino-aprendizagem. ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. 6. ed. São Paulo: Parábola, 2003. BEZERRA, R. G.; SIMÕES E LUNA, T. S. Concepções de linguagem: uma análise prelimi- nar do discurso docente e das práticas em sala de aula. Encontros de Vista, v. 16, n. 1, p. 31-50, jan./jun. 2016. Disponível em: http://www.encontrosdevista.com.br/Artigos/ art_03_152.pdf. Acesso em: 15 abr. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc- -reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 15 abr. 2020. BRASIL. 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Os links para sites da web fornecidos neste livro foram todos testados, e seu funciona- mento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama16
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