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15 ARQUIVOS, DOCUMENTOS E PODER: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA MODERNA2 Joan M. Schwartz* e Terry Cook** Trad. Cylaine Maria das Neves; Maria Cristina Vendrameto; Pedro Condoleo de Queiroz Arquivos, documentos, poder: três palavras que agora ecoam por meio de uma gama de disciplinas acadêmicas e atividades profissionais. Individualmente, estes termos são freqüentemente desencadeadores de debates acalorados sobre valores sociais, identidades culturais, e responsabilidade institucional. Coletivamente, porém, "arquivos, documentos e poder" representam uma combinação improvável: o que têm haver arquivos velhos, empoeirados, armazenados em catacumbas, com poder? Durante muito tempo, os arquivistas foram vistos de fora, como "rachadores de lenha e tiradores de água", ou seja, como aqueles que recebiam documentos das entidades produtoras e apenas os disponibilizavam para os pesquisadores. Os arquivistas se consideravam neutros, objetivos e imparciais. De ambas as perspectivas, os arquivistas e seus documentos pareciam constituir a própria antítese do poder. Certamente, os textos recentemente produzidos, sobre instituições culturais, raramente abordaram o forte impacto dos arquivos e registros sobre a memória coletiva e a identidade cultural, ao contrário do papel atualmente atribuído aos museus de história natural e cultural, galerias de arte, bibliotecas, monumentos históricos, e, até mesmo, jardins zoológicos. Enquanto alguns escritores começam a explorar determinados aspectos do "arquivo" em seu sentido metafórico ou filosófico, quase sempre isso é feito sem uma mínima compreensão dos arquivos como uma instituição real, e a arquivologia, como uma profissão real (a segunda mais velha!) e como uma disciplina real com seus próprios referenciais teóricos, metodológicos e práticos. De modo geral, a literatura arquivística profissional é raramente citada pelos não-arquivistas que escrevem sobre "o arquivo". Não obstante, várias reflexões pós-modernas das últimas duas décadas deixam claro que os arquivos – como instituições – exercem poder sobre a administração, a lei, a responsabilidade fiscal dos governos, corporações e indivíduos, e se ocupa de debates importantes da política pública a respeito do direito ao conhecimento, à liberdade de informação, proteção à privacidade, direito autoral e propriedade intelectual e protocolos para o comércio eletrônico. Os arquivos – como registros – exercem poder sobre a construção do conhecimento histórico, da memória coletiva, e da identidade nacional, sobre como nós nos conhecemos como indivíduos, grupos e sociedades. E, por fim, na busca de suas responsabilidades profissionais, os arquivistas – como gestores de arquivos – detêm o poder sobre os próprios documentos essenciais à formação da memória e da identidade, por 2 Texto publicado originalmente, em inglês, na revista Archival Science. SCHWARTZ, Joan M; COOK, Terry. Archives, records, and Power: the making of moderny memory. Archival Science, Dordrecht (Netherlands), v.2, n.1-2, 2002, p.1-19. * National Archives of Canadá/Queen’s University. ** University of Manitoba/Clio Consulting. 16 meio da gestão ativa dos registros antes deles se tornarem arquivos, de sua avaliação e seleção como arquivos e, posteriormente, de sua descrição, preservação e uso em permanente evolução enquanto fonte histórica. Em conjunto, a contínua negação dos arquivistas a respeito do seu poder sobre a memória; o fracasso em explorar os muitos fatores que afetam profundamente os registros antes deles se tornarem arquivos; e a contínua crença dos muitos usuários dos arquivos, de que os documentos apresentados a eles não são discutíveis, contribuem para a esterilidade do debate. Quando o poder é negado, ignorado ou incontestado, isso é um erro na melhor e um perigo na pior das hipóteses. O poder reconhecido torna-se um poder que pode ser questionado, responsabilizado e aberto ao diálogo transparente e ao entendimento enriquecido. Este poder do arquivo – sua natureza subjacente, pressupostos teóricos, aplicações práticas, evolução histórica e conseqüências para os usuários – é o foco dos ensaios no primeiro dos 2 números temáticos especiais da Revista Archival Science sobre "Arquivos, Documentos e Poder"3. Construindo e desconstruindo arquivos Arquivos são construções sociais. Suas origens se sustentam na necessidade de informação e nos valores sociais dos ditadores, governos, negócios, associações, e indivíduos que os determinam e os mantêm. Apesar das mudanças em sua natureza, dos seus usos e da necessidade de preservá-los, os arquivos, desde os mnemons da Grécia Antiga são relacionados ao poder – à manutenção do poder, ao controle pelo presente daquilo que é, e será, conhecido sobre o passado e ao poder da lembrança sobre o esquecimento. Mas, como Maurice Halbwachs nos lembra, "nenhuma memória é possível fora dos contextos usados por pessoas vivendo em sociedade para determinar e recordar as suas lembranças". Arquivos são um elemento crítico desses contextos sociais e intelectuais. A recordação (ou re-criação) do passado pela pesquisa histórica em documentos arquivísticos não é simplesmente "a recuperação da informação armazenada, mas a reivindicação do sentido do passado por meio do contexto do conhecimento cultural compartilhado"4. Os próprios arquivos são parte da reivindicação e dessa forma moldam a compreensão. Quer por meio de idéias ou de sentimentos, ações ou transações, a escolha do que registrar e a decisão sobre o que preservar e dessa forma privilegiar – ocorre em contextos socialmente construídos, mas agora tidos como “naturais”, que determinam as significações daquilo que se tornará arquivo. Dentro deles, os princípios e as estratégias que os 3 Esta série de assuntos temáticos da Revista Archival Science (este volume e o seguinte) é dedicada em amizade a Hugh Taylor, o decano dos arquivistas canadenses. As idéias exploradas devem muito às suas reflexões na mídia, o significado relativo ao documento, as transformações tecnológicas, a evolução da oralidade e dos mnemônicos antigos e medievais (arquivistas como aqueles que lembram) por meio dos arquivos sem barreiras em um mundo onde a transmissão é feita por redes, para propósitos aparentemente bons (seu próprio impulso biorregional, ecológico, espiritual para o empenho da memória arquivística) ou propósitos aparentemente maus (uma mega corporação eletrônica mundial que poderia realizar o controle da exploração humana na revolução industrial parece ser uma comparação modesta). Nos desafios da arquivística tradicional, práticas e convenções, entre 1960 e a metade dos anos 90, se coloca o germe da sensibilidade pós-modernista nos editores). 17 4 Maurice Halbwachs, Sobre a Memória Coletiva, Lewis A. Coser (ed. e trad.), (Chicago, 1941, 1992), cap. 2, "Linguagem e Memória", p. 43. arquivistas adotam com o passar do tempo, e as atividades que desenvolvem – especialmente selecionar e avaliar o que se tornará de guarda permanente e o que será descartado – influenciam a natureza e ordenação dos conteúdos arquivísticos e, dessa forma, a memória da sociedade. Estes contextos culturais subjacentes são vitais para o entendimento da natureza dos arquivos enquanto instituições e enquanto lugares de memória social. Tais contextos também influenciam os arquivos no nível individual da criação e da sobrevivência de um único documento: a carta, a fotografia, o diário, o vídeo caseiro. Como os arquivos coletivamente, um documento individual não é somente portador de conteúdo histórico, mas, também um reflexo das necessidades e desejos do seu produtor, dos propósitos de sua criação, do seu usuário, do alcance legal, técnico, organizacional, social, e cultural-intelectual com o qual o produtor e o usuário operam, e no qual o documento tem significado, e a intervenção inicial e a mediação contínua dos arquivistas. A natureza do "arquivo" resultante tem assim sériasconseqüências para a responsabilidade administrativa, o direito dos cidadãos, a memória coletiva, e o conhecimento histórico, tudo isso moldado – tacitamente, sutilmente, às vezes inconscientemente, mas mesmo assim profundamente – pela aparente naturalidade, pelo poder invisível e raramente questionado dos arquivos. Recentemente, a palavra “arquivo” experimentou um ressurgimento muito além de sua conotação popular de porões empoeirados e pergaminhos velhos em estudos culturais, na rede mundial e em toda parte. Teóricos culturais, especialmente Michel Foucault e Jacques Derrida, vêem "o arquivo" como uma construção metafórica central sobre a qual basear suas perspectivas a respeito de conhecimento, memória, poder e busca por justiça. Inspirando-se em Foucault e sugerindo que informação, como poder, "não existe no vácuo", Thomas Richards, em O Arquivo Imperial, discute "o arquivo", como "um espaço utópico de conhecimento abrangente... não uma construção, nem até mesmo uma coleção de textos, mas a junção coletivamente imaginada de tudo que é ou pode se tornar conhecido”, e procura demonstrar como "o arquivo imperial foi uma fantasia de conhecimento coletada e unida a serviço do Estado e do Império"5. Constituindo-se na " microfísica do poder" imbricada em registros fotográficos produzidos por departamentos médicos, educacionais, sanitários e de engenharia, John Tagg declara, "Como o Estado, a câmara nunca é neutra. As representações que ela produz são altamente codificadas, e o poder que ela exerce nunca é dela mesma"6. O controle do arquivo – definido de várias maneiras – significa o controle da sociedade e assim de determinar os vencedores e perdedores da história. Verne Harris, inspirado em Derrida, mostrou contuldentemente como isso funciona sob o regime de Apartheid na África do Sul e seus arquivos nacionais cativos, e como esse poder que passa por natural pode ser diferente sob as condições pós- apartheid7. 5 Thomas Richards, O Arquivo Imperial: conhecimento e a fantasia do Império (Londres e Nova York, 1993), p. 73, 11, 6. 6 John Tagg, A responsabilidade da representação: ensaios sobre fotografias e histórias (Amherst MA, 1988), p. 63-64. Semelhante a Rosalind Krauss, Allan Sekula e outros que têm usado "o arquivo" como um "espaço discursivo" no qual registros fotográficos, tanto de paisagem quanto de pessoas têm o seu significado. Veja Allan Sekula, O corpo e o arquivo, e Rosalind Krauss, Espaço do discurso fotográfico, ambos em Richard Bolton (ed.), O debate sobre o significado: histórias críticas da fotografia (Cambridge MA, 1992), p. 286-301, 343-388. 18 7 Veja Verne Harris, "A redefinição dos arquivos na África do Sul: arquivos públicos e sociedade em transição, 1990-1996", Archivaria 42 (Fall 1996); e seu complemento "Reivindicando menos, opinando mais: uma crítica da formulação positivista sobre os arquivos na África do Sul", Archivaria 44 (Fall 1997); como também seu ensaio neste volume. Como qualquer um que visita a Internet sabe, no mundo da tecnologia da informação, "arquivo" é um substantivo que descreve um sítio de informações anteriores (qualquer coisa entre meses e uma hora atrás) legível por máquina; "arquivar" é também um verbo transitivo para transferir informação de computador a um lugar pouco freqüentado, por exemplo: Arquivar informações do disco rígido do computador em fitas de segurança ou CD-ROM. Enquanto tanto teóricos culturais como tecnólogos de informação abraçam a idéia do arquivo como um depósito de informação, aqueles concebem o arquivo como uma fonte de conhecimento e poder essencial para a identidade social e pessoal e estes como uma acumulação neutra, até mecânica, de informação para a própria segurança. Os ensaios nesses dois números confrontam os pressupostos mutáveis, contestados, mas pouco questionados subjacentes à natureza e significado dos arquivos na sociedade. Os autores procuram nos demonstrar que as teorias, princípios, natureza, e evolução histórica dos "arquivos" como instituições, e dos "registros" como documentos – coletivamente "o arquivo" – não são universais no espaço nem estáveis no tempo. A crescente literatura sobre a memória social ou coletiva sugere a necessidade de olhar novo sobre o arquivo à luz das mudanças na produção e preservação dos documentos, nos meios mutáveis de registro e na natureza do que é documentado e quem faz a documentação, assim como a necessidade de examinar o impacto dessas mudanças sobre a gestão de registros e sua prática, e sobre arquivos e sua prática. Enquanto estudiosos – historiadores, antropólogos, teóricos culturais, geógrafos históricos, sociólogos, e outros – cada vez mais descobrem e se concentram em contexto, é essencial reconsiderar a relação entre arquivos e as sociedades que os criam e usam. No centro dessa relação está no poder. Mas poder – poder para registrar certos eventos e idéias e não outros, poder para nomear, rotular e ordenar registros de acordo com as necessidades de negócios, governos e pessoas, poder para preservar e mediar o arquivo, poder sobre o acesso, poder sobre os direitos e liberdades individuais, sobre a memória coletiva e a identidade nacional – é um conceito muito ausente da perspectiva arquivística tradicional. Ironicamente, ao mesmo tempo em que o escrutínio acadêmico sobre um leque de disciplinas é treinado no poder do arquivo no sentido metafórico, as práticas arquivísticas perpetuam o mito central da profissão no século passado, o de que o arquivista é (ou deveria ser) um objetivo, neutro, passivo (ou passivo, e nesse caso auto- restritivo) guardião da verdade. De fato, há evidência de que muitos usuários aceitam essa auto-imagem sem questionar. A recusa da profissão arquivística em admitir as relações de poder embutidas em seu exercício carrega a abdicação da responsabilidade pelas conseqüências do uso desse poder, gerando sérias conseqüências para a compreensão e conclusão do papel dos arquivos num presente mutável, ou para um uso sutil e reflexivo dos arquivos no futuro. Nesse aspecto, é um cego conduzindo outro, em ambas as direções: estudiosos usando arquivos sem perceber as espessas camadas de intervenção e significado codificado nos registros por seus produtores e pelos arquivistas muito antes das pesquisas começarem; e arquivistas tratando seus arquivos sem sensibilidade para as marcas que estão deixando no registro arquivístico. Estudiosos e arquivistas percebem (e promovem) o arquivo como 19 coleção documental e pesquisa histórica indiferente, em vez de um lugar para contestação do poder, memória e identidade. Extrapolando os arquivos À luz de críticas recentes ao “arquivo” vindas de fora, os arquivistas deveriam considerar a rica e crescente literatura sobre a natureza da história e da evidência, da memória coletiva e da formação de identidade; a relação entre representação e realidade; as culturas organizacionais e necessidades pessoais que influenciam a produção e manutenção dos registros; a necessidade psicológica de coletar e preservar arquivos; e o impacto do nosso conhecimento do passado sobre nossa percepção do presente, e vice-versa. Como os arquivos e Registros se situam em relação ao nexo de poder e conhecimento descrito por Foucault? Como são eles centrais aos estudos que traçam a evolução da memória coletiva ou da exteriorização da memória – isto é, as maneiras pelas quais a memória é mantida fora de sua faculdade humana – de forma oral, escrita, impressa, visual e eletrônica. Através dos tempos, novos meios de registro causaram mudanças no armazenamento e comunicação da informação, e também na nossa maneira de saber, pensar e articular nossa relação com o mundo a nossa volta. Essas revoluções na tecnologia da informação são de interesse, não só porque mudaram o que os arquivos colecionam, mas também porque mudaram o papel dos arquivos na sociedade. Não basta responder àqueles; é preciso considerar esta. Na crescente literaturasobre a história e memória, o poder do arquivo na sociedade é explicitado na discussão de Jacques Le Goff sobre as origens da consideração política central no antigo mundo sob um monarca e o estabelecimento dos primeiros arquivos para apoiar seu controle. O exame de Patrick Hutton sobre a exteriorização da memória da cabeça para o artefato mostra a transferência da memória individual para a coletiva como a base da coesão social8. Os arquivos medievais; revela Patrick Geary, eram coletados e depois torcidos e reconstruídos – não só para registrar transações legais e comerciais, mas também, e explicitamente para servir a propósitos sacros e simbólicos, mas apenas para os eventos e figuras julgadas dignas de celebração, no contexto do seu tempo9. Documentos ligados à Segunda Guerra Mundial foram moldados, sabe-se agora, para pôr as forças de combate na luz mais favorável possível e depois alterados para diminuir a culpa dos generais pelo morticínio no Fronte Ocidental10. Olhando os marginalizados pelo arquivo, Gerda Lerner traçou da Idade Média ao século XX, a sistemática exclusão das mulheres da memória da sociedade, inclusive nos arquivos11. De outra perspectiva, arquivistas de países em desenvolvimento questionam se conceitos arquivísticos clássicos vindos da cultura escrita das burocracias européias são adequados para preservar as memórias de culturas 8 Jacques Le Goff, História e Memória, Steven Rendall e Elizabeth Claman (trad.), (Nova York, 1992, originalmente publicado em 1986); Patrick Hutton, História como Arte e Memória (Hanover NH, 1993). 9 Patrick J. Geary, Fantasmas da lembrança: memória e esquecimento do fim do primeiro milênio (Princeton, 1994), p. 86-87, 177, e especialmente cap. 3, "Memória arquivística e a destruição do passado" e passim; e Rosamond McKitterick, Os carolíngios e a palavra escrita (Cambridge, 1989). 10 Veja Tim Cook, "Documentando a guerra e forjando reputações: Sir Max Aiken e os Arquivos Canadenses Oficiais sobre a Primeira Guerra Mundial", Guerra na História (o futuro admitido); Robert McIntosh, "A Grande Guerra, Arquivos, e Memória Moderna", Archivaria 46 (outuno de 1998); e Denis 20 Winter, O comando de Haig: uma revisão (Harmondsworth, 1991), especialmente a sessão final, "falsificando o documento". 11 Para mulheres e arquivos, veja Gerda Lerner, A criação da consciência feminista: da Idade Média ao século XVIII (Nova York e Oxford, 1993), passim, mas especialmente cap. 11, "A procura pela história das mulheres", veja também Anke Voss-Hubbard, "'Sem documentos – sem história': Mary Ritter Beard e a História inicial dos arquivos das mulheres", American Archivist 58 (inverno de 1995). Veja também as fontes citadas na nota 25. orais12. A comparação dos estudos coloniais e pós-coloniais com o pós-moderno ou da "virada histórica", como nos artigos de Ann Stoler e Jim O ́Toole sugere que, tratando registros e arquivos como locais controversos de poder, podemos trazer novas sensibilidades à compreensão de registros e arquivos como tecnologias dinâmicas de dominação que na verdade criam as histórias e realidades sociais que supostamente se limitam a descrever. Enquanto estudiosos das ciências sociais e humanidades, entre outras, lutam com questões de representação, verdade e objetividade, profissionais e usuários de arquivos tardam em reconhecer a natureza dos arquivos como instituições socialmente construídas, a relação dos arquivos com idéias de memória e verdade, o papel dos arquivos na produção do conhecimento sobre o passado, e principalmente o poder dos arquivos e registros para moldar nossas idéias de história, identidade e memória. Os ensaios nesses dois números de “Ciência Arquivística” visam corrigir este desequilíbrio. Expondo pressupostos sobre a natureza e o papel dos arquivos tidos por muito tempo como “naturais”, todos os ensaios encorajam uma maior consciência do impacto social e das conseqüências históricas dos arquivos em questões culturais e no entendimento humano. Paralelos entre museus e arquivos são óbvios e instrutivos. Certamente arquivos e registros, como museus e artefatos, “têm uma longa e complexa história que molda o que eles são hoje"13. Arquivos, como museus, certamente “incorporam e moldam as percepções do público do que é valioso e importante” e “são parte da história e filosofia do conhecimento nas humanidades e nas ciências, e essa história e filosofia é em parte criada por eles14". Consideremos como os arquivos refletem e constituem as necessidades de informação da sociedade. Seguindo o raciocínio de Stephen Kern15, qual é , por exemplo, o impacto sobre a produção, preservação e uso dos registros e arquivos desde meados do século XIX – o século que testemunhou o estabelecimento, profissionalização e crescimento do arquivo moderno – do surgimento da alfabetização geral, da educação pública, cartas, diários, serviços postais, o telégrafo, o telefone, o rádio, a fotografia, o filme e a televisão (e a literatura visual que eles engendram), da democracia, imposto de renda, sistemas de escritório, informatização, movimento feminista, pós-modernidade e muitas outras influências culturais e tecnológicas? 12 Para um de muitos escritos, veja Verne Harris e Sello Hatang, "Arquivos, Identidade e Lugar: um diálogo sobre O que (possa) pretende ser um arquivista africano", ESARBICA Journal 19 (2000), como também inter alia os artigos por Verne Harris e Evelyn Wareham nesses dois assuntos da Archival Science. 13 Veja, por exemplo, Susan Pearce, Museus, Objetos e Coleções (Washington, 1992), especialmente cap. 5, "Museus: a razão intelectual"; e Tony Bennett, O nascimento do museu: História, Teoria, Política (Londres e Nova York, 1995). Joan M. Schwartz nota que há "um importante paralelo entre museus e arquivos como 'instituições de memória'" em "'Nós construímos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos constroem'": Lições de fotografias para a prática, política, e poética da diplomática", Archivaria 40 (outono de 1995): 40- 74, e especialmente a referência na nota 115. 21 14 Pearce, Museus, objetos e coleções, p. 89. Para uma análise paralela da história arquivística, e como o passado transforma as idéias sobre o arquivo, sustentando tanto pensamentos, estratégias, e práticas diárias, como os arquivos se moveram do estado focalizado por um cliente – ou a aproximação focalizada do cidadão e, por meio disso, encontrando os seus valores, menos refletindo e servindo ao seu patrocinador do que à sociedade, veja Terry Cook, "O que é passado é preâmbulo: uma história das idéias arquivísticas desde 1898, e a mudança do paradigma futuro", Archivaria 43 (Primavera de 1997). 15 Stephen Kern, A cultura do tempo e espaço, 1880-1918 (Cambridge MA, 1983). Se fazemos essas perguntas sobre a função do arquivo na sociedade, devemos lidar com dois temas intimamente ligados, mas concebidos em separado: “o conhecimento e a moldagem dos arquivos” e “os arquivos e a moldagem do conhecimento"16. Imbricado nesses temas está o poder - o poder sobre a informação e o poder dos institutos de informação. Também está envolvida a crise da representação – o poder dos registros e arquivos como representações e a representação do poder nos registros e arquivos E a desestabilização pós-moderna dos nossos conceitos inflexíveis de realidade e objetividade coloca o poder e a representação sob exame, e de fato as nossas tradições profissionais, tão dependentes de idéias de neutralidade e objetividade, são abaladas pelas preocupações pós-modernas com conhecimento, alteridade, hibridismo, liminaridade e plurivocalidade. "Ciência" arquivística e verdade arquivística Assim como qualquer esforço para demonstrar que arquivos são construções lida com a idéia de arquivos como neutros e registros como inocentes, e arquivistas como objetivos, ele precisa confrontar a noção de “ciência arquivística”, já que a idéia de ciência mudou nas últimas décadas, questionandosua suposta neutralidade e objetividade para com a sociedade. Assim, o argumento de que o “arquivo” é uma “ciência” não mais o exime de ser uma construção social, uma vez que até a natureza “científica” (leia-se objetiva, natural, positivista) da ciência vem sendo desmitificada17. Enquanto a discussão da natureza da ciência evolui, “objetividade” é cada vez mais apreendida como “conhecimento situado” ou “perspectiva parcial”18 – ou contexto. Mas enquanto estudiosos externos à profissão descobrem e se concentram mais e mais no contexto, com o cuidado de reconhecer o chão que pisam e a parcialidade de suas perspectivas, os arquivistas – guardiães do contexto – evitam (com crescentes exceções) teorizar sobre arquivos e registros e as relações de poder que encerram, fugindo das perspectivas dinâmicas, mutáveis e interativas da relatividade pós-moderna em favor da posição confortável de observador isento19. 16 Veja Eilean Hooper-Greenhill, Museus e a configuração do conhecimento (Nova York, 1992); e Kevin Walsh, A representação do passado: museus e herança no mundo pós-moderno (Nova York, 1992). 17 Para a crítica da "ciência arquivística" como termo e conceito, como usado pelos arquivistas, veja Terry Cook, "Ciência arquivística e pós-modernidade: novas formulações para um antigo conceito", Archival Science: International Journal on Recorded Information 1.1 (2001), especialmente 11-16. A crítica central sobre dois pontos: a mistura de "ciência" e "pseudociência" para ganhar o status profissional e respeitabilidade e a deficiência do conhecimento em sustentar a crítica da ciência "pura" desde Karl Popper e Thomas Kuhn, deixa somente para a mais recente feminista e estudiosos pós-modernos. 18 Arquivistas devem considerar o capítulo de Dona Haraway, "Conhecimento situado: a questão da ciência para o Feminismo e o privilégio da perspectiva parcial", que começa: "Feministas acadêmicas e ativistas 22 tentam repetidamente distinguir as questões que podem significar, para os curiosos, o inescapável termo da 'objetividade'", "e concluem que 'objetividade não está relacionada ao descomprometimento". Veja Donna J. Haraway, Símios, Ciborgs e mulheres: A reinvenção da natureza (Nova York, 1991), p. 183-201. 19 Recentemente, arquivistas começaram a questionar o contexto amplo do "pós-modernista", o tradicional, neutro, passivo, positivista, e o estatuto "científico" de sua profissão. A primeira menção ao pós- modernismo (pelo menos em Inglês) por um arquivista em um título de artigo escrito por Terry Cook, em "Documentos eletrônicos, mentes de papel: a revolução em administração de informática e arquivos na era pós-custódia e pós-modernista", Archives and Manuscripts 22 (novembro de 1994). Os temas eram antecipados em sua "Mente sobre assunto: para uma nova teoria da avaliação arquivística", em Barbara Craig (Ed.), A imaginação da arquivística canadense: ensaios em honra de Hugh A. Taylor (Ottawa, 1992); e continuado em seu "O que é passado é prólogo: uma história das idéias arquivísticas", Archivaria, e dois artigos inter-relacionados: Coisas que mereceram a memória da sociedade (e dos arquivos) tem sido justificadas por conceitos como verdade, autoridade, ordem , evidência e valor. Mas, como a “ciência”, esses conceitos tem agora suas próprias histórias20. Qual o significado de arquivos cujo poder está em seu valor de verdade? Crenças tradicionais apresentam os arquivos como guardiães da verdade; os registros conteriam a cristalina evidência dos atos passados e dos "Ciência arquivística e pós-modernismo: novas formulações para antigos conceitos", Archival Science; e "Tolice moderna ou renascimento profissional: pós-modernismo e prática dos arquivos", Archivaria 51 (primavera de 2001). Dois arquivistas pós-modernos pioneiros anteriores à Cook, e também canadenses, Brien Brothman e Richard Brown. Entre outros trabalhos, veja por Brien Brothman, "Ordens de valor: sondando as condições teóricas da prática arquivística", Archivaria 52 (verão de 1991); "Os limites dos limites: a desconstrução de Derridean e a instituição arquivística", Archivaria 36 (outono de 1993); a revisão sondando a febre de arquivo de Jacques Derrida, em Archivaria 43 (Primavera de 1997), que foi muito profundamente em seu "Recusando Derrida: Integridade, tensegrity, e a preservação dos arquivos a partir da desconstrução", Archivaria 48 (outono de 1999); e "O passado que mantém os arquivos: memória, história, e a preservação dos arquivos", Archivaria 51 (Primavera de 2001); e por Richard Brown, "Estratégia de aquisição de arquivos e sua fundação teórica: o caso para um conceito da hermenêutica arquivística", Archivaria 33 (inverno de 1991-1992); "O valor da 'narratividade' na avaliação dos documentos históricos: fundação para uma teoria da hermenêutica arquivística", Archivaria 32 (verão de 1991); e "Morte de um documento guardião da Renascença: o assassinato de Tomasso da Tortona em Ferrara, 1385", Archivaria 44 (inverno de 1997). Outras declarações pós-modernas pelos canadenses incluindo Joan M. Schwartz, "'Nós construímos nossas ferramentas e nossas ferramentas nos constroem': lições de fotografias para a prática, política, e poética da diplomática", Archivaria; e "Documentos de simples verdade e precisão: fotografia, arquivos e a ilusão do controle", Archivaria 50 (inverno de 2000); Preben Mortensen, "O lugar da teoria em prática arquivística", Archivaria 47 (primavera de 1999); Tom Nesmith, "Ainda indistinto, mas mais preciso: alguns pensamentos sobre os 'fantasmas' da teoria arquivística", Archivaria 47 (primavera de 1999); Bernadine Dodge, "Lugares separados: arquivos se dissolvendo no tempo e no espaço", Archivaria 44 (inverno de 1997); Theresa Rowat, "Os arquivos e o repositório como uma forma cultural de expressão", Archivaria 36 (outono de 1993); Robert McIntosh, "A grande guerra, arquivos, e memória moderna", Archivaria; Carolyn Heald, "Há espaço para arquivos no mundo pós-moderno?" American Archivist 59 (1996); e Lilly Koltun, "A promessa e a ameaça de opções digitais em uma idade da arquivística", Archivaria 47 (Primavera de 1999). Os escritores não canadenses da arquivística pós-moderna incluem Eric Ketelaar, "Archivalisation e arquivando", Archives and Manuscripts 27 (maio de 1999); "Procurando os arquivos no Rose Garden", Arkhiyyon. Reader in Archival Studies and Documentation, Israel Archives Association 10-11 (1999): XXVII-XLII, e "Narrativas tácitas: os significados dos arquivos", Archival Science 1.2 (2001): 143- 155, entre outros trabalhos, e especialmente Verne Harris, "Reivindicando menos, entregando mais: uma crítica da formulação positivista em arquivos da África do Sul: arquivos públicos e sociedade em transição, 1990-1996", Archivaria; Explorando arquivos: uma introdução às idéias e práticas arquivísticas na África do Sul, 2. ed. (Pretoria, 2000); "Um raio na escuridão: Derrida no arquivo", em Carolyn Hamilton et al. (eds.), Reconfigurando o arquivo (Cape Town, 2002); "Sobre a odisséia arquivística", Archivaria 51 (primavera de 2001): 2-14; e, com Sello Hatang, "Arquivos, identidade e lugar", ESARBICA Journal, entre muitos outros escritos; Elizabeth Kaplan, "Nós somos o que colecionamos, nós colecionamos o que somos", American Archivist 23 63 (primavera / verão de 2000); e Francis X. Blouin Jr., "Arquivistas, mediação e construção da memória social", Archival Issues 24 (1999). Esta lista parcial é constantemente acrescida com autores estabelecidos e novos, como esses dois assuntos temáticos da Archival Science. 20 Steven Shapin, Uma história social da verdade: civilidade e ciência na Inglaterra do século XVII (Chicago, 1994); Mary Poovey, Uma história do fato moderno: problemas do conhecimento nas ciências da riqueza e da sociedade (Chicago, 1998). O trabalho acima citado de Brien Brothman, bem como o novo artigo no segundo dos dois assuntos temáticos da Archival Science, expõe a natureza construída e mediadacomo evidência do conceito arquivístico, ordem, memória e valor. Veja também Terry Cook, "Arquivos, evidência e memória: pensamentos em uma tradição dividida", Archival Issues 22 (1997); e Joan M Schwartz, "Arquivos como simples verdade e precisão: fotografia, arquivos e a ilusão do controle", Archivaria. Em noções variáveis de "valor" em arquivos com o passar do tempo, e em como os arquivistas buscaram preservar a evidência e a ordem dos arquivos, veja novamente Terry Cook, "O que é passado é prólogo: uma história das idéias arquivísticas", Archivaria. fatos históricos21. Mas e a verdade dos próprios arquivos? E quais as conseqüências para a história do que eles acatam? Responder a isso exige a compreensão de que os arquivos se originam das necessidades de informação e dos valores sociais dos governantes, negócios e indivíduos que os estabelecem e mantém. Arquivos não são depósitos de documentos empilhados, mas um reflexo e uma justificação da sociedade que os produziu. Com a crescente complexidade de sociedade, de seus meios de comunicação e de suas necessidades de informação, as práticas dos que produzem registros, assim como as instituições de memória coletiva, vêm mudando. Mas a percepção dessas mudanças se arrasta, com conseqüências para os que tentam compreender o passado. Confrontando "a idéia de que natureza é construída, não descoberta – que a verdade é feita, não encontrada", Donna Haraway argumenta que: “O conhecimento racional não pretende se isentar: vir de toda parte e de nenhum lugar, ser despojado de interpretações, de representações, de ser auto-contido e moldável. O conhecimento racional é um processo contínuo de interpretação crítica entre “campos” de intérpretes e decodificadores. É uma conversação sensível ao poder”22. Também os arquivos e registros não pretendem se isentar; eles precisam se sujeitar a um processo “interpretação crítica contínua” entre produtores, guardiões e usuários de 24 arquivos e documentos; e a relação entre os arquivos e documentos e a sociedade é uma forma de “conversação sensível ao poder”. Assim, mudanças na cultura da ciência têm acontecido num clima contemporâneo de relatividade, já há algum tempo. Essa corrente filosófica, como as mais recentes feminista e ecológica, desenvolveram-se ao longo de importantes mudanças na sociedade23. A crescente preocupação com o nexo poder/conhecimento e com as relações entre representação e realidade, história e memória, lugar e identidade, vem produzindo uma grande e crescente literatura que os arquivistas podem extrapolar para melhor entender a historicidade e especificidade da relação entre a prática arquivística e as necessidades da sociedade e avaliar as relações de poder inerentes às teorias e práticas arquivísticas e à natureza dos registros e sua manutenção. Arquivos do poder, o poder dos arquivos Os arquivos sempre foram sobre o poder, seja o do estado, da igreja, da corporação, da 21 Nesta consideração, a articulação clássica está em Hilary Jenkinson, arquivista sênior do Arquivo Público da Inglaterra na primeira metade do século XX: "O credo dos arquivistas, a santidade da evidência; sua Tarefa, a conservação de cada fragmento de evidência que se prende aos documentos confiados a seu cargo; seu objetivo é prover sem discriminação ou malícia, para todos que desejem conhecer, o significado do conhecimento... O bom arquivista é talvez o mais abnegado à Verdade produzida pelo mundo moderno. Para uma discussão (com citações) das visões de Jenkinson dentro do seu contexto histórico, e seu impacto, veja Cook, "O que é passado é prólogo", 22-26. 22 Haraway, "Conhecimento situado: a questão da ciência para o Feminismo e o privilégio da perspectiva parcial", em seu Símios, Ciborgs e mulheres: A reinvenção da natureza, p. 196. Aqui, Haraway faz referência a Katie King, "Cânones sem inocência" (Tese de PhD, Universidade da Califórnia em Santa Cruz, 1987). 23 Para uma mistura estimulando destes três fluxos, veja Richard Tarnas, A paixão da mente ocidental: entendendo as idéias que têm proporcionado nossa visão do mundo (Nova York, 1991). família, do público ou do indivíduo. Os arquivos têm o poder de privilegiar ou de marginalizar. Podem ser uma ferramenta de hegemonia ou de resistência. Ambos refletem e constituem relações de poder. São um produto da necessidade de informação da sociedade, que se reflete na abundância e circulação de documentos. Eles são a base e a validação das histórias que nós contamos, das narrativas que dão coesão e significado aos indivíduos, grupos e sociedades. Os arquivos têm sido a intersecção de passado, presente e futuro – as "interfaces" de Margaret Hedstrom. Nesses espaços de poder, o presente controla o que o futuro saberá do passado. Portanto, os arquivistas devem enfrentar o desafio do pós-modernismo e estar preparados para a continuidade e as mudanças nos conceitos, necessidades e usos do passado, da memória, da informação, do conhecimento, pois está em jogo a relevância dos arquivos para a sociedade, o poder do registro, a força do presente e a vitalidade futura da profissão de arquivista. Os arquivistas detêm enorme poder, embora muitos arquivistas e acadêmicos relutem, em admitir. Mas esse poder não é estável; ele muda em resposta a muitos fatores, dentro e fora do mundo dos arquivos, incluindo mudanças na natureza dos arquivos e sua capacidade para armazenar e comunicar informação, e mudanças na natureza da manutenção dos registros conforme a tecnologia, a cultura organizacional e as exigências 25 da sociedade. O poder dos arquivos e registros tem mudado no tempo e espaço em resposta a eventos históricos: conflitos religiosos, guerras civis, revoluções políticas, dominação imperial, e levantes de gênero, raça e classe, e ainda a circunstâncias geográficas: distância, transporte e comunicação. As suspeitas pós-modernas que recaem sobre as metanarrativas e universalidades exige que consideremos a historicidade e a especificidade dos arquivos como instituições, como documentos, e como profissão. Os documentos são sobre poder. Sobre a imposição de controle e ordem nas transações, eventos, pessoas e sociedades pelo poder legal simbólico, estrutural e operacional da comunicação documentada. Seu desenho e formato; sua metodologia de classificação; sua organização, participação e lugar dentro de sistemas de informação maiores; seu uso para fortalecer organizações e indivíduos poderosos em suas operações e subseqüentes recursos legais; o uso (ou não uso, como em testemunhos orais) de mídia específica de documento; a sofisticação técnica (e o custo) de sua produção e manutenção, incluindo o treinamento de uma elite especializada, (dos antigos escribas e monges medievais aos modernos especialistas em mídia audiovisual e computadorizada): esses e outros fatores (reais e simbólicos) permitem a alguns criar e manter registros, e não a outros; a algumas vozes serem ouvidas e outras não; a algumas idéias sobre a sociedade serem privilegiadas enquanto outras são marginalizadas. Mais tarde, uma fração mínima dos documentos é selecionada, avaliada e memorizada como arquivo; a vasta maioria não é. Escolhas sobre como descrever esse fragmento arquivístico reforça valores e impõe ênfase e ordem. Critérios sobre o que disponibilizar ou não criam filtros que influenciam a percepção dos arquivos e, portanto, do passado. Mesmo termos profissionais usados antes e depois dos documentos chegam ao “arquivo (histórico)” para descrever esses processos - “evidência”, “gestão”, “administração”, “confiabilidade”, “autenticidade”, “controle” etc. – sugerem um processo natural, orgânico, e reforçam a neutralidade e objetividade profissional. Essa inclinação lingüística mascara o exercício de poder sobre a memória e a identidade, tornando o poder mais eficaz. Todos esses temas – nos quais os artigos desses números temáticos tocam coletivamente – envolvem o exercício do poderou seu reflexo na sociedade. Mas afirmar que os arquivos e registros são apenas sobre poder, sobre impor o controle e a ordem é uma visão incompleta 24. Não sugerimos que arquivistas tradicionais conspiram conscientemente, menos ainda que aspirem ao poder. Sistemas humanos (incluindo suas manifestações em documentos e arquivos) são projetados em função do controle, ordem e regulamentos por algum fenômeno social. Mas tais sistemas são mais eficientes quando planejados e executados com disciplina – enquanto a história da produção e manutenção de arquivos é caótica, excêntrica, inconsistente e subjetiva tanto quanto é caracterizada por ordem, seqüência e conformidade – como fica claro nos ensaios de Barbara Craig e Ciaran Trace neste número de “Archival Science”. Além disso, os pontos de vista nos arquivos e registros não são só os pontos de vista privilegiados e dominantes dos poderosos, pois os mesmos arquivos criados pelos privilegiados podem ser desconstruídos por novos pensadores que se opõe ao ou ironizam o poder. Sem contar os arquivos singulares criados e mantidos por microcosmos de poder (por exemplo, grupos ou indivíduos resistentes) destinados a maior visibilidade no futuro. E certamente sistemas de classificação podem se espalhar sem impor um significado ou refletir um poder privilegiado. Enquanto a ordem alfabética é criação ocidental e largamente utilizada no Ocidente, ela não se limita ao uso dos poderosos. Pode ser um instrumento útil na documentação marginal tanto quanto na oficial. 26 Feitas essas ressalvas, as relações de poder contidas nos arquivos e registros têm que ser reconhecidas neste momento. Por um lado, as características revolucionárias dos registros computadorizados, as estratégias dos arquivos e arquivistas para lidar com elas, as definições e a retórica usadas para discutir registros eletrônicos e descrevê-los nos arquivos e os contextos rapidamente mutáveis de suas produções, tudo isso significa que se o poder não tomar medidas corretivas agora, só alguns tipos de informação e portanto de pessoas e organizações na sociedade serão privilegiados na nossa memória social por este novo meio25. Por outro lado, a capacidade revolucionária e a velocidade da informação tecnológica para transmitir informações através de todas as mídias a públicos geográfica, social e culturalmente dispersos dota os arquivos de poder para tornar os registros acessíveis a um público empobrecido por esse mesmo acesso. O poder eletronicamente aumentado dos arquivos para prover acesso aos registros amplifica o poder tradicional dos arquivos para mediar o acesso aos registros. Através de práticas descritivas e arquitetura de sistemas, de seleção – em todos os níveis – para o acesso on- line, da produção de exibições virtuais, os arquivos exercem poder sobre o que será conhecido do que foi preservado. As relações de poder nos arquivos estão implicadas no foco obsessivo na identidade, caracterizado na atitude intelectual frente às disciplinas desde os anos 8026. Esse discurso 24 Agradecemos a Lilly Koltun por valorizar esses assuntos conosco. 25 Para uma crítica mais detalhada ao longo dessas linhas, veja Terry Cook, "O impacto de David Bearman sobre o pensamento da arquivística moderna: um ensaio sobre assuntos pessoais de reflexão e de crítica", Archives and Museum Informatics 11.1 (1997): 15-37; e o ensaio por Brien Brothman no segundo desses dois assuntos temáticos. 26 Para "dar um gosto" somente, veja, por exemplo, Eric Hobsbawn e Terence Ranger (eds.), A invenção da tradição (Cambridge, 1983); David Lowenthal, O passado é um país estrangeiro (Cambridge MA, 1985); Michael Kammen, Cordas místicas da memória: a transformação da tradição na cultura americana (Nova York, 1991); John Bodnar, Refazendo a América: memória pública, comemoração e patriotismo no século XX abrange exames da formação e das manifestações de identidades nacionais, étnicas, raciais e de gênero, classe e comunidades locais. O debate se divide em duas posições: uma visão essencialista da identidade (como “real”, intrínseca a indivíduos e comunidades, até biológica) e uma visão da identidade como construção (não menos “real”, mas criada culturalmente por razões políticas, sociais e históricas). Conscientemente ou não, os arquivistas são artífices das políticas de identidade. Eles avaliam, coletam e preservam os suportes das noções de identidade. Estas são confirmadas e justificadas como documentos históricos validados pela autoridade da “evidência”. Enquanto as relações entre arquivos e identidade ocorrem em diversos contextos históricos e culturais, questões comuns envolvendo o poder sobre os arquivos ligam as crises de identidade experimentadas por vários grupos subalternos que procuram construir uma identidade viável, autêntica e coesiva. Assim, o papel dos arquivos e arquivistas deve ser examinado contra esse pano de fundo de discurso sobre a identidade. A natureza sexista do arquivo através dos tempos é um forte exemplo de que os arquivos não são (nunca foram) neutros e objetivos na sociedade. Desde suas origens no antigo mundo, eles sistematicamente excluem registros sobre e por mulheres e, como instituições, têm sido agentes da criação do patriarcado ao apoiar os poderosos contra os marginalizados. Como Bonnie Smith mostra em The Gender in History: Men, Women 27 and Historical Practice (O Gênero na História: Homens, Mulheres e a Prática Histórica ), o surgimento da história “profissional” no século XIX (que coincide com a profissionalização dos arquivistas – treinados como historiadores), baniu a narrativa, o fantástico e o psíquico, o espiritual e o feminino ( e, claro, as arquivistas “amadoras”), em favor de homens (exclusivamente) buscando uma história “científica” e “profissional” nos arquivos e nos campos de batalha dos seminários universitários. Esses historiadores (e arquivistas) ignoraram a vida real das famílias, fazendas, das histórias e experiências de mulheres, das comunidades locais, entre outros, em favor da política nacional, da administração, diplomacia, guerra, e das experiências dos homens no poder. Esses historiadores (e arquivistas) veneravam e justificavam seus métodos e conclusões “científicos” como baseados em fatos, objetivos, neutros, frios – um meio de resgatar a Verdade sobre o passado27. O poder sobre o registro documental (????), e por extensão sobre a memória coletiva dos membros marginalizados da sociedade – sejam mulheres, não-brancos, gays e lésbicas, crianças, pobres, presidiários ou analfabetos – e sobre sua representação e integração nas metanarrativas da história, reside nas decisões que arquivistas e curadores de manuscritos tomam ao solicitar e avaliar as coleções, o modo de distribuir recursos institucionais para a (Princeton, 1992); John Gillis (ed.), Comemorações: a política da identidade nacional (Princeton, 1994); e Jonathan Vance, Morte tão nobre: memória, significado e a Primeira Guerra Mundial (Vancouver, 1997). 27 Veja Bonnie G. Smith, O gênero da história: homens, mulheres e a prática histórica (Cambridge MA e Londres, 1998). Em A criação da consciência feminista (1993), Gerda Lerner devota um capítulo inteiro para mostrar de que maneira as mulheres têm procurado recuperar a sua própria história por meio da mudança do caminho da recolha de arquivos e descrição de documentos, freqüentemente tendo que patrocinar os arquivos elas mesmas. Veja também A criação do patriarcado (Nova York, 1986); Riane Eisler, A taça & a espada San Francisco, 1987); e Leonard Shlain, O alfabeto versus a deusa: o conflito entre a palavra e a imagem (Nova York, 1998) para críticas relevantes da natureza patriarcal do empreendimento arquivístico através dos séculos. procuração e processamento das coleções e a prioridade dada a sua difusão através de guias, publicações, exibições e sites. E quando os documentos desses grupos e indivíduos marginalizados chegam ao arquivo, osintegralistas e reformistas não são favorecidos contra os elementos mais radicais e segregacionistas? Os homens contra as mulheres? O urbano contra o rural? A questão é complexa, pois a culpa é às vezes do sexismo (ou racismo, ou classismo), mas às vezes é da ignorância ou indiferença. Mas sempre os arquivistas devem exercer seu poder para considerar a relevância histórica e a multiplicidade de vozes sem se submeter às agendas e prioridades em voga. Não se trata de “correção política”, pois os marginalizados por algumas funções na sociedade (e nos registros) podem ser corporações de negócios de direita em vez de sindicatos de direita, construtoras em vez de ambientalistas, o centro em vez das regiões, homens em vez de mulheres, racistas em vez de reformistas. O ponto é que os arquivistas devem procurar as vozes ocultas, pela complexidade das atividades humanas e organizacionais em estudo, para que os arquivos possam refletir as múltiplas vozes e não, por omissão, apenas as dos poderosos. Cautela aqui: É importante, como nota Verne Harris, não romantizar os marginalizados e não se auto-congratular por salva-los do esquecimento. Alguns não querem ser “resgatados” por arquivos oficiais e alguns se 28 sentirão mais marginalizados ao serem nomeados como tal.28. Esses dilemas morais devem ocupar, mas não paralisar os arquivistas. Eles só podem acatar e respeitar o “Outro” e tentar contar a história mais completa possível, através de avaliação, descrição e alcance, “usando registros e locais de criação de registros como matérias-primas essenciais”. Claro, apesar de pesquisas cuidadosas e do “vigoroso exercício da razão”, arquivistas sensíveis sempre saberão “que outras histórias poderiam ter sido escolhidas para contar"29. Conclusão A memória, como a história, tem raiz nos arquivos. Sem eles, a memória falha, o conhecimento das realizações se apaga, o orgulho de um passado compartilhado se dissipa. Os arquivos combatem essas perdas. Eles contêm a evidência do que se passou. Especialmente no mundo moderno. Com o desaparecimento da aldeia, do prolongamento da família, compartilhar narrativas não é mais possível. O arquivo é a fundação restante do entendimento histórico. Eles ratificam nossas experiências, percepções, narrativas e histórias. Arquivos são nossas memórias. Mas o que acontece neles é pouco conhecido. Seus usuários (historiadores e outros) e moldadores (produtores e gestores de documentos, e arquivistas) acrescentam camadas de significado que se tornam “naturais”, internalizados e incontestados. Essa falta de questionamento é perigosa porque implicitamente apóia o mito arquivístico de neutralidade e objetividade e sanciona a já forte predileção dos arquivos e arquivistas por documentar primordialmente a cultura oficial e os documentos dos poderosos. Ela privilegia as narrativas oficiais do Estado sobre as narrativas dos indivíduos. Suas regras de evidência e autenticidade favorecem documentos textuais, dos quais essas regras foram derivadas, em detrimento de outras formas de experimentar o presente e ver o passado. Sua 28 Veja especialmente Verne Harris, "Vendo por meio da cegueira: África do Sul, Arquivos e paixão por justiça", ensaio esboçado para a apresentação aos arquivistas da Nova Zelândia, agosto de 2001. 29 Verne Harris, Explorando arquivos, p. 45. coloração positivista e “científica” inibe os arquivistas de adotarem múltiplas formas de ver e conhecer. A ordem original é imposta em vez de se procurarem novas ordens ou desordens entre os documentos e arquivos. E desorienta os arquivistas lidar com documentos eletrônicos, onde a intervenção ativa dos arquivistas, em vez do recebimento passivo de arquivos criados há tempos e depois descartados, é a única esperança de que a história de hoje possa ser escrita amanhã. Este par de números temáticos da “Archival Science”, no presente volume e no próximo, é uma colaboração que pretende impulsionar a profissão arquivística a pensar no que arquivos, registros e arquivistas fazem no nível teórico e filosófico, no poder que eles detêm, no impacto que produzem. É uma incursão num excitante terreno intelectual onde princípios positivistas encontram teorias pós-modernas, onde “verdades” arquivísticas têm conseqüências históricas. Eles exploram as “interfaces”, na sugestiva metáfora de Margaret Hedstrom, entre arquivos, documentos, e poder, e seu contexto cultural e tecnológico. Não se engajar nesse debate é uma forte opção pelo status quo, implicando 29 apoiar o poder oficial. Gerando discussão e reação, esperamos forçar os mantenedores e os usuários dos arquivos a confrontar, com decisão, as atuais preocupações com intencionalidade, instrumentalidade, representação e poder30. TITLE Archives, Records, and Power: The making of modern memory. TITRE Archives, Documents et Pouvoir: La construction de la mémoire moderne. RESUMO Este artigo serve de introdução geral pelos autores convidados para o primeiro de dois assuntos temáticos da Revista Archival Science que irão explorar o tema "arquivos, documentos e poder". Arquivos como instituições e registros como documentos geralmente são vistos por acadêmicos e outros usuários e pela sociedade em geral, como recursos passivos a serem explorados por vários propósitos culturais e históricos. Historiadores desde a metade do século XIX, ao dotarem de cientificidade a história, necessitaram de um arquivo que fosse um depósito neutro de fatos. Até muito recentemente, os arquivistas foram obrigados a exaltar o mito da sua própria imparcialidade, neutralidade e objetividade. Contudo, os arquivos são determinados pelos poderosos para proteger e destacar sua posição na sociedade. É por meio dos arquivos que o passado é controlado. Certos fatos históricos são privilegiados e outros marginalizados. E os arquivistas são parte integrante desta forma de contar histórias. No projeto dos sistemas de arquivamento, na avaliação e seleção de um minúsculo fragmento dentre todos os possíveis documentos para fazer parte do arquivo, nos enfoques para subseqüente e sempre mutável descrição e preservação do arquivo, e em seus padrões de comunicação e uso, os arquivistas continuamente reformatam, reinterpretam, e reinventam o arquivo. Isso representa enorme poder sobre a memória e a identidade, sobre os modos fundamentais pelos quais a sociedade busca a 30 Leitores notem que: os co-editores convidados unificaram a ortografia e a gramática para conformar o estilo canadense-inglês; entretanto, os estilos variados de notas de rodapé foram respeitados e somente foram feitos dentro de cada artigo, mas não para todos os artigos. evidência de quais foram e são seus valores centrais, de onde ele veio, e para onde está indo. Arquivos, então, não são depósitos passivos de coisas velhas, mas lugares ativos onde o poder social é negociado, contestado, confirmado. O poder dos arquivos, dos documentos e dos arquivistas não deveria continuar a ser neutralizado ou negado, mas estar aberto ao debate vital e à responsabilidade transparente. ABSTRACT This article serves as the general introduction by the guest editors to the first of two thematic issues of Archival Science that will explore the theme, “archives, records and power.” Archives as institutions and records as documents are generally seen by academic and other users, and by society generally, as passive resources to be exploited for various historical and cultural purposes. Historians since the mid-nineteenth century, in pursuing the new scientific history, needed an archive that was a neutral repositories of facts. Until very recently, archivists obliged by extolling their own professional myth of impartiality, neutrality, and objectivity. Yet archives are established by the powerful to protect or enhance their position in society. Through archives, the past is controlled. Certain stories 30 are privileged and others marginalized. And archivistsare an integral part of this story- telling. In the design of record-keeping systems, in the appraisal and selection of a tiny fragment of all possible records to enter the archive, in approaches to subsequent and ever- changing description and preservation of the archive, and in its patterns of communication and use, archivists continually reshape, reinterpret, and reinvent the archive. This represents enormous power over memory and identity, over the fundamental ways in which society seeks evidence of what its core values are and have been, where it has come from, and where it is going. Archives, then, are not passive storehouses of old stuff, but active sites where social power is negotiated, contested, confirmed. The power of archives, records, and archivists should no longer remain naturalized or denied, but opened to vital debate and transparent accountability. RESUMÉ Cet article sert d’introduction générale par les auteurs invités pour le premier des deux sujets thématiques de la Revue Archival Science qui devra exploiter le thème “archives, documents et pouvoir”. Archives comme instituitions et registres comme documents sont généralement vus par l’académicien et par la societé en général comme ressources passives d’être exploités avec des objectifs culturels et historiques. Les historiens, dès la moitié du XIX siècle, ont donné du cientificisme à l’histoire et ont eu besoin de l’archive qui était vu comme un “dêpot” neutre des faits. Jusqu’à très peu de temps, les archivistes ont été obligés d’exalter le propre mythe de l’impartialité, neutralité et objectivité. Les archives n’étaient pas encore determinés par son pouvoir de protéger et réléver ses positions dans la societé. C’est par rapport les archives que le passé est controlé. Certains faits historiques sont privilegiés et d’autres sont mis à l’écart. Et les archivistes sont partie importante de ce discours historique. Dans le projet d’archivage, dans l’avaliation et sélection d’un miniscule fragment dans tous les possibles documents qui puissent faire partie de l’archive, avec point de vues variables pour ultérieure déscription et préservation de l’archive, et dans ses manières de communication et usage, les archivistes refont continuellement , réinterprètent et inventent de nouveau l’archive. Cela répresente énorme pouvoir sur la mémoire et l’indentité, sur les manières fondamentales sur laquelles la societé cherche l’évidence de que ses valeurs sont et ont été centrales, d’où ils sont venus et où ils vont. Les archives, alors, ne sont pas les depôts passifs de choses anciennes, mais lieux actifs où le pouvoir social est négociable, contesté et confirmé. Le pouvoir des archives, des documents et des archivistes ne devrait pas continuer à être nié, mais être ouvert au débat transparent et à la responsabilité. P ALAVRAS-CHAVE Teoria arquivística; arquivos e relações de poder; formação de identidade; representação e realidade; memória social. KEYWORDS Archival theory; archives and power relationships; identity formation; representation and reality; social memory. MOTS-CLÉS Théorie archivisthique; connexion entre archive et pouvoir; formation d’ identité; répresentation et réalité; mémoire sociale. 31 Rebeca Gontijo
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