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ROBERT CASTEL A ORDEM PSIQUIÁTRICA A idade de ouro do alienismo Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque Biblioteca de Filosofia e História das Ciências Vol. n° 4 2ª edição © Editions de Minuit, Paris Traduzido do original em francês L'ordre phychiatrique: l'âge d'or d'alienisme Capa Sônia Maria Goulart Direção: José Augusto Guilhon Albuquerque Roberto Machado CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Castel, Robert. C343o A Ordem psiquiatria: a idade de ouro do alienismo / Robert Castel; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. - Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. (Biblioteca de filosofia e história das ciências; 4) Tradução de: L'ordre psychiatrique: l'ge d'or d'alienisme Bibliografia 1. Psiquiatria I. Título II. Título: A Idade de ouro do alienismo III. Série 78-0511 CDD - 616.89 CD D - 616.89 1º edição: 1978 Direitos adquiridos por EDIÇÕES GRAAL Ltda. Rua Hermenegildo de Barros, 31 A Glória, Rio de Janeiro, RJ Tel.: (021) 252-8582 que se reserva a propriedade desta tradução. 1991 Impresso no Brasil/P/vntec/ in Brazil SUMÁRIO Prefácio ................................................................................................................................7 CAPÍTULO I O DESAFIO DA LOUCURA............................................................................................16 O Estado, a Justiça e a Família.......................................................................................16 A Soberania, o Contrato e a Tutela ................................................................................23 O Criminoso, a Criança, o Mendigo, o Proletário e o Louco.........................................27 O Juiz, o Administrador, o Pai e o Médico ....................................................................34 CAPÍTULO II O SALVAMENTO DA INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA................................................40 A Medicina se situa........................................................................................................41 Outro modelo de assistência ..........................................................................................45 Um compromisso reformista..........................................................................................51 Um operador prático ......................................................................................................57 A Tecnologia pineliana ..................................................................................................61 O estabelecimento especial: herança e inovação............................................................65 CAPÍTULO III A PRIMEIRA MEDICINA SOCIAL ................................................................................70 Nascimento de uma especialidade .................................................................................70 Um saber muito especial ................................................................................................73 Um sistema bem amarrado.............................................................................................80 A Nova paisagem da assistência ....................................................................................85 O Alienista, o Higienista e o Filantropo.........................................................................92 CAPÍTULO IV OS PERITOS PROVIDENCIAIS....................................................................................103 Os Novos Executivos ...................................................................................................105 Unificar para reinar ......................................................................................................110 Certidão não conforme.................................................................................................112 Os Monomaniacos e os Loucos....................................................................................117 Uma conquista que destrói suas próprias retaguardas..................................................122 CAPITULO V DA PSIQUIATRIA COMO CIÊNCIA POLÍTICA.........................................................128 A Caminho da Integração no Aparelho de Estado .......................................................128 O Medicalizável e o Administrável..............................................................................133 Os Operadores políticos ...............................................................................................139 O Compromisso da lei..................................................................................................146 CAPÍTULO VI A LEI E A ORDEM.........................................................................................................155 A Pseudo-aplicação da lei ............................................................................................156 Da eficácia: Real, administrativa e simbólica ..............................................................161 O paradigma da internação ..........................................................................................167 Público-privado............................................................................................................173 CAPÍTULO VII A PASSAGEM: DA IDADE DE OURO AO AGGIORNAMENTO..............................178 Primeiras dificuldades..................................................................................................178 1. A lei..........................................................................................................................179 2. O dispositivo institucional .......................................................................................181 3. O código teórico.......................................................................................................184 4. A tecnologia .............................................................................................................186 A Dupla linha de recomposição ...................................................................................189 OBRAS CITADAS..........................................................................................................197 Cronologia e lei de 30 de junho de 1838..........................................................................209 Lei de 30 de junho de 1838 sobre os alienados................................................................214 "Peço-vos perdão por vos cansar com tantos detalhes, mas o governo dos indigentes, dos criminosos e dos loucos não exige menos atenção do que o dos ricos e dos sábios, eis o que fui obrigado a aprender através de uma fastidiosa experiência. O bem público e o prazer de vos relatar o que se passa aliviarão esse fardo". Procurador Geral de Aguesseau Carta de 6 de janeiro de 1701, Mns. B. N. fr. 8123 "Esse assunto interessa às almas sensíveis visto que dele depende o destino da classe mais infeliz; porém, não ê menos interessante para o poderoso e o rico, já que a segurança de seus gozos é sempre inversamente proporcional aos sofrimentos e aos maus costumes do povo". Cabanis Observations sur les hôpitaux, 1790 Prefácio Em 27 de março de 1790 a Assembleia constituinte decretava, no artigo 9 da lei que abolia as Lettres de cachet: "As pessoas detidas por causa de demência ficarão, durante três meses, a contar do dia da publicação do presente decreto, sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogadas pelos juízesnas formas de costume e, em virtude de suas prescrições, visitadas pelos médicos que, sob a supervisão dos diretores de distrito, estabelecerão a verdadeira situação dos doentes, a fim de que, segundo a sentença proferida sobre seus respectivos estados, sejam relaxados ou tratados nos hospitais indicados para esse fim" 1 . Essa decisão da primeira Assembleia revolucionária circunscreve toda a problemática moderna da loucura. Pela primeira vez, todos os elementos que irão constituir, até hoje, as bases de seu encargo social e de seu status antropológico são dados em conjunto. Apesar de serem todos mencionados, sua ordenação definitiva ainda não fora encontrada. Tais elementos são quatro: 1. O contexto político do advento do legalismo. A questão moderna da loucura surge da ruptura de um equilíbrio tradicional de poderes, mais precisamente do desmoronamento da antiga base da legitimidade política. Sob o Antigo Regime, a administração real, o aparelho judiciário e a família repartiam entre si o controle dos comportamentos não conformes de acordo com procedimentos tradicionalmente regulados. Com a abolição das Lettres de cachet, uma peça essencial do dispositivo desaparece bruscamente, arruinando todo o edifício. No caso específico da loucura se, por um lado, sua repressão continua parecendo tão necessária, o recurso direto ao poder político para realizá-la é bloqueado, já que fica desqualificado enquanto manifestação do arbítrio real. 2. O surgimento de novos agentes. As instâncias encarregadas de preencher esse vazio são nomeadas desde logo: justiça (procuradores e juízes), administrações locais ("diretores de distrito") e medicina. À primeira vista, simplesmente, os aparelhos já instaurados são solicitados a estabelecer entre si novas relações. Entretanto, como tais, eles não poderão suprir imediatamente a autoridade que falta. Um longo processo de transformação de suas práticas e de renegociação de suas relações será necessário antes de poderem assumir sua nova tarefa. Um equilíbrio estável só será encontrado quando a medicina puder constituir sua viga-mestra. 3. A atribuição do status de doente ao louco. Na medida em que as modalidades do encargo da loucura não devem mais ser homogêneas às que continuam a controlar os 1 Ministério do interior e dos cultos, Législation sur les alienes et les enfants assistes, t. I, Paris, 1880, p. 1 criminosos, os vagabundos, mendigos e outros "marginais", o louco é reconhecido na sua diferença a partir das características do aparelho que vai tratá-lo daí por diante. Entretanto, uma tal indexação coloca, inicialmente, mais problemas do que resolve. O código médico não é suficientemente apurado para dar um status científico a essa identificação. A tecnologia médica para com a loucura ainda não tem nada de específico. O lugar de uma especialização da medicina sob esse duplo registro teórico e prático é demarcado a partir desse novo mandato político, porém, ainda é um lugar vazio. 4. À constituição de uma nova estrutura institucional. A inscrição privilegiada dessas práticas nos "hospitais indicados para esse fim" também é prevista. Mais precisamente no momento em que essa instituição está marcada pelo descrédito atribuído aos lugares de segregação, dos quais, a administração real e a Igreja tinham feito os instrumentos de sua política de neutralização dos seus indesejáveis e dos seus inimigos; no momento também em que um movimento geral de desinstitucionalização da assistência desordena o antigo complexo hospitalar juntamente com as bastilhas do absolutismo político. A imposição do "estabelecimento especial" (ou asilo) como "meio terapêutico" supõe, portanto, a reconquista, pela nova medicina, de uma face da velha organização hospitalar carregada do ódio do povo e do desprezo dos espíritos mais esclarecidos. 1790, condenação do arbítrio político ― 1838, votação da lei, ainda em vigor, que regula o regime dos alienados: essa margem de tempo de quase quarenta anos entre os dois acontecimentos legislativos é de fato preenchida pelo lento caminhar das práticas alienistas. Através de seu desenvolvimento, o que a Assembleia Constituinte colocara como solução formal ― se não como escapatória em uma situação crítica ― institucionalizou-se como nova estrutura de dominação. O louco que surge como problema na ruptura revolucionária vai se ver dotado, no fim do processo, do status completo de alienado: completamente medicalizado, isto é, integralmente definido enquanto personagem social e tipo humano pelo aparelho que conquistou o monopólio de seu encargo legítimo. Primeira história a seguir, pois é a da constituição recíproca de uma nova medicina e de uma nova relação social de tutelarização. Velha história, dir-se-á, e bastante conhecida no que nos concerne. De fato, um gosto um tanto fácil pela simetria oporia uma espécie de utopia totalitária, paradigma da psiquiatria do século XIX, a uma utopia, digamos capilar, principal linha de fuga da medicina mental atual: enclausuramento/desenclausuramento; segregação das populações/tratamento no ambiente de vida; reclusão/"desinstitucionalização", asilo/setor; dualismo normal-patológico/fluidez das categorias psicopatológicas atuais; estigmatização brutal pelos rótulos nosográficos/vocação universalista dos novos códigos psiquiátrico-psicanalíticos; intervenções limitadas a domínios bem circunscritos (a patologia manifesta e a criminalidade)/iniciativas cobrindo o conjunto dos comportamentos e atravessando até mesmo as clivagens tradicionais entre o psicológico, o cultural, o social, o político; perícia especializada/perícia generalizada; autoritarismo, paternalismo, diretivismo/permissividade, acolhida, escuta; exercício solitário do poder/circulação das informações em equipe e, no extremo, reversibilidade dos papéis entre "agentes" e "pacientes" * etc. Nem tudo é falso nessas oposições, com a condição de que se observe de perto como, por que, e para quem elas funcionam. Um sistema é dito "ultrapassado" quando não tem mais defensores. Mas é frequentemente porque seus antigos operadores simplesmente se deslocaram, e começaram a fazer outra coisa que, todo o resto permanecendo igual, poderia não ser tão diferente. Por exemplo, a internação já não tem muitos adeptos: o "isolamento terapêutico" do século XIX parece suficientemente grosseiro para que a segregação social que ele opera possa ser-lhe identificada sem muita dificuldade ― sobretudo para aqueles que deixaram de praticá-lo. Ao contrário, o encargo psicanalítico ou o condicionamento behaviorista encontrarão muito mais defensores. Hipótese com a qual estes não estarão de acordo: é porque os mesmos profissionais que segregavam integram, que os que excluíam normalizam. Mas não se pode marcar hora para daqui a um século para ver como andarão as coisas. Donde a proposição feita aqui de tentar axiomatizar o sistema dos dados que constituem uma "política da saúde mental" e de seguir suas transformações. Tal política, quaisquer que sejam as racionalizações com que se recobre, articula um número finito de elementos: um código teórico (por exemplo, no século XIX, as nosografias clássicas); uma tecnologia de intervenção (por exemplo, o "tratamento moral"); um dispositivo institucional (por exemplo, o asilo); um corpo de profissionais (por exemplo, os médicos- chefes); um estatuto do usuário (por exemplo, o alienado definido como menor passível de assistência pela lei de 1838). Estamos simplificando: há também os pagantes, os intermediários, os promotores, os que demandam, etc. Esse grupo de variáveis forma uma constelação relativamente estável com conteúdo relativamente fixo. Assim, como veremos, a síntese asilar apresentou uma coerência extraordinária, sendo cada uma de suas partes construídaem relação às outras a partir da matriz comum da internação. Não se trata de uma hipótese funcionalista. Por um lado, essas dimensões não são elementos de uma estrutura, mas cristalização de práticas elaboradas num contexto histórico preciso, em relação a uma problemática social concreta. Por outro lado, a estabilidade relativa do conjunto não exclui nem os conflitos, nem as tensões, nem as crises, nem as derrapagens, nem os reequilíbrios, nem as mudanças. Mas é preciso distinguir uma mudança, mesmo se importante, dentro de uma série e a transformação do conjunto do dispositivo. Por exemplo, com relação às primeiras classificações do alienismo, a descoberta da monomania por Esquirol, posteriormente a da degenerescência por Morel, abalaram a crença na racionalidade das nosografias constituídas a partir do agrupamento dos sintonas (cf. capítulo IV). Contudo, essa crise pôde ser superada no quadro do sistema. Com relação ao quadro institucional, o interesse pelas colônias agrícolas, por volta de 1860, abriu uma brecha na supre- macia absoluta do asilo. Poder-se-ia dizer o mesmo a propósito da legislação, das terapêuticas, do regulamento do pessoal, etc. Não obstante, após um século, o edifício ainda se mantinha de pé. Evoluções, crises, mesmo muito importantes, podem originar * Em francês: "Soignants" ― "Soignés" (N. do T.) compromissos mais ou menos capengas e restabelecimentos mais ou menos instáveis. Elas podem até marcar um novo início, propiciando um novo alento a uma organização cansada. Assim, o triunfo do organicismo, no fim do século XIX, fundou pela segunda vez a permanência asilar. Por oposição às mudanças em série, chamaremos metamorfose a transformação do conjunto dos elementos do sistema. Uma metamorfose marca a passagem a uma outra coerência, é a expressão de uma outra política. Não se pode mais interpretá-la a partir da restruturação interna do dispositivo médico. E o produto de uma renegociação global das divisões de poder com as outras instâncias interessadas numa política de controle: a justiça, a administração central, as comunidades locais, a escola, as famílias, etc. Se, desde 1860, houve críticas ao asilo ou à lei de 1838 ou ao saber psiquiátrico ou aos tratamentos médicos, tão violentas e tão lúcidas como as dos modernos antipsiquiatras, foi somente nas últimas décadas que se esboçou um modelo alternativo global que se coloca como substitutivo para o antigo sistema, para assumir a totalidade de suas funções com algumas outras a mais. Vivemos, assim, a primeira metamorfose da medicina mental desde a santificacão da síntese asilar pela lei de 1838. Portanto, transformação decisiva. Mas a escolha da palavra metamorfose visa economizar um julgamento de valor sobre o sentido e as finalidades últimas da mudança. É precisamente o objetivo desta análise tentar tal avaliação. Não prejulguemos, portanto, o resultado. Trata-se de uma mutação, de uma revolução? Isto não é evidente por si mesmo. Metamorfose, segundo o dicionário Petit Robert: "Mudança de natureza, de forma ou de estrutura, tão considerável que o ser ou a coisa que a sofre não ê mais reconhecível", Portanto, tudo pode ser diferente. Porém, também Zeus transformado em bovino é sempre Zeus. Ele é/não é Zeus e é preciso ser mais esperto para reconhecê-lo. As mesmas funções podem realizar-se através de práticas totalmente renovadas, monopólios do mesmo tipo podem perpetuar-se, interesses idênticos podem introduzir-se. Resta ver. Seguindo essa lógica, em vez de pretender que a medicina mental fez sua revolução (se acreditarmos nos psiquiatras, aliás, estaríamos na terceira ou na quarta), faremos, mais prudentemente, a hipótese de que ela efetua o seu aggiornamento. Em primeiro lugar porque, metáfora por metáfora, a simbólica religiosa convém mais ao tipo de respeitabilidade de uma profissão médica. Mas sobretudo porque, pelo menos até o presente, os sumo-sacerdotes da psiquiatria tudo fizeram para guardar o controle das mudanças. Um concilio é um encontro com a história no decorrer do qual os próprios clérigos fazem o diagnóstico da crise, convidam os fiéis a de novo desposar o mundo, a transformar completamente os ritos, porém, para permanecer fiel ao espírito da doutrina. Acolher as mudanças exteriores, mas com a condição de poder reinterpretá-las na lógica do dogma e sob a autoridade de seus intérpretes qualificados. A psiquiatria francesa moderna promoveu seus concílios (as Journées de Saint-Anne em 1945, um certo colóquio em Bonneval, Bonnafé-Ey-Lacan, o de Sèvres em 1958...). Marxistas, psicanalistas, progressistas sacudiram os velhos alienistas-que chamavam um doente de alienado e que praticavam a exclusão em sã consciência. Foi importante. É necessário levar a sério as novas estratégias que eles definiram (o setor, a psicoterapia institucional, a escuta do doente, o serviço do usuário, etc.) Já que elas são ou serão do interesse de muita gente: elas são ambiciosas. Entretanto, saibamos também que esses especialistas não possuem a infalibilidade pontificai quando decretam que entramos numa era totalmente nova. Se cada uma das dimensões da problemática de saúde mental foi profundamente modificada (ou está em vias de transformação), sua articulação continua muito bem a circunscrever quase tudo o que se faz nesse domínio. Concedamos o máximo aos cantores da mudança: profissionais, que se multiplicaram, continuam atuando em instituições que, por sua vez, desarticularam códigos teóricos que se refinaram e tecnologias que se diversificaram, em direção a populações, cujo número aumentou e cujas características se tornaram mais sutis. É muita novidade. Mas não é o bastante para invalidar a hipótese de que um mesmo aparelho de dominação pudesse, por meio de sua modernização, remover seus prestígios, estender seu domínio e multiplicar seus poderes. É possível, portanto, que o discurso psiquiátrico-psicanalítico atual represente o ponto de honra espiritualista de uma transformação profunda das formas de imposição do poder dominante. Seus agentes poderiam ser os operadores da instauração dos novos dispositivos de controle, manipuladores-manipulados numa renegociação geral entre as instâncias de normalização. Em todo caso, ajudar a desenhar esse novo mapa das sujeições por meio da reorganização da assistência, do trabalho social, do encargo e da tutelarização, deveria ser o objetivo último de uma avaliação da atual medicina mental. Mas este é também o domínio diante do qual estamos mais desprovidos, numa deriva que carrega a todos. Se o século XIX propõe referências mais seguras não é somente porque permite axiomatizar a forma atualmente moribunda do sistema asilar. É também porque agora aparecem menos confusas as relações entre o dispositivo da medicina mental e os aparelhos judiciários, o estado do mercado de trabalho, a política em relação aos pobres, os desviantes e os marginais. Como as relações de força se deslocaram, somos menos solidários atualmente das do século XIX. Porque as antigas estratégias se desdobraram até o fim, manifestando assim sua trama, é possível perceber sua coerência acabada. O projeto de utilizar esses modelos para decifrar uma situação mais confusa em que o próprio analista, hoje em dia, está implicado, é a justificação "metodológica" deste longo desvio. Haverá, portanto, estreita solidariedade entre os dois lados deste díptico: a idade do ouro ou a instauração e o triunfo de uma nova instância oficial que conquista o monopólio do tratamento legítimo da loucura (por meio de quais estratégias, em detrimento de que instâncias, com a ajuda de quais outras, e para quem, etc); o aggiornamento, ou a modificação atual dessas práticas e o deslocamento de suas funções (a partir de que projeto, por meio de quais conflitos, a respeitode quais objetivos, etc). A análise da transformação dos mesmos campos de objetos ― esquematicamente: os códigos, as tecnologias, os dispositivos institucionais, os operadores profissionais e políticos, as regras dos usuários ― tecerá, entre as duas épocas, uma rede de relações que tentará sempre inscrever a medicina mental em seu contexto social específico. Primeira metamorfose: o momento em que a medicina mental se constitui na destruição revolucionária dos equilíbrios tradicionais entre os poderes para suprir suas carências, em harmonia com a nova concepção burguesa da legitimidade. Segunda metamorfose: o momento em que os aparelhos de controle transformam suas técnicas autoritárias-coercitivas em intervenções persuasivas- manipuladoras. Proporemos aqui o primeiro lado desse estudo, a idade do ouro, como a realização parcial de um velho projeto. Uma intenção não penetra assim através dos acontecimentos e dos homens sem contrair uma dívida a cada passo. Podemos apenas mencionar as que nos parecem essenciais. Inicialmente concebemos este projeto no quadro do programa de pesquisas do Centre de Sociologie Euro-péenne sobre as relações de inculcação simbólica. Os livros de Pierre Bourdieu e de Jean-Claude Passeron em particular, apresentam uma chave de interpretação dos aparelhos de dominação, cuja pertinência vai muito além da interpretação do sistema de ensino. Encontrar-se-á aqui mais do que simples vestígios. O leitor verá igualmente tudo o que este trabalho deve ao livro de Michel Foucault. A História da loucura, marcou, em relação ao etnocentrismo médico, uma ruptura em cujo rastro qualquer empreendimento deste gênero não pode deixar de se inscrever. Mas não se trata de uma fundação mítica. Consideramos aceitas numerosas análises do livro e tomamos emprestado às outras obras de Michel Foulcault certas categorias que comandam atualmente o acesso a uma teoria materialista do poder. A parte contemporânea tornará mais manifesto o que os membros franceses, ou não, da rede "Alternative à la psychiatrie" me ajudaram a compreender, particularmente os do antigo grupo constituído por Franco Basaglia, no momento em que estas hipóteses se formavam. Mas sua amizade me deixa esperar que a diferença crítica que mantive com respeito ao ponto de vista dos profissionais tecnocratas da medicina mental não está em contradição com a posição de todos aqueles que trabalham nesse setor. Essa distância em relação ao modelo dominante da psiquiatria pretende ser, em seu registro teórico, a mesma que outros se esforçam em estabelecer na sua prática. Gostaria, enfim, de agradecer aos que se dispuseram a ler o manuscrito e cuja vigilância não foi adormecida pela comunidade de pontos de vista, reforçada por longos intercâmbios. Uma palavra ainda, sobre o ritmo da demonstração, uma outra sobre seu tom e uma última sobre seu nível. O ritmo será lento. Trata-se de um risco calculado. Há alguns anos, o fato de mostrar que o asilo não é um meio integralmente terapêutico, que o mandato do psiquiatra não é inteiramente médico ou que o psicanalista não trata somente com o inconsciente, pôde causar impacto. Atualmente, que certos elementos dessa crítica passaram com o tempo, seu limiar deve ser elevado. Não para fazer uma teoria melhor em função da postura prática que agora sé impõe. Lutar contra os processos de sujeição e de expropriação desenvolvidos pela medicina mental exige uma consciência precisa sobre o modo de ação dessas novas tecnologias "brandas". Portanto, montar, remontar e desmontar suas articulações concretas. Talvez se tenha dito suficientemente que o saber psiquiátrico não era sério e que os procedimentos da psicanálise eram monótonos. Em todo caso, seus agentes não são nem ingênuos gozadores nem imprudentes usurpadores. Trata-se de técnicos sofisticados cuja jurisdição se estende e cujo poder aumenta. Hoje em dia aquele que tomar os atalhos de sua própria impaciência correrá o risco de ser simplório. Quanto ao tom de uma tal crítica frente aos agentes que propagam essas técnicas, cada um interpretará como quiser; recuso, porém, a da condenação moral e a posição de quem dá lições. O Slogan moderno do psiquiatra-policial, tomado ao pé da letra, é um non-sens. Se o psiquiatra e o policial tivessem exatamente a mesma função .e fizessem exatamente o mesmo trabalho por que teriam se desdobrando? Os primeiros alienistas eram jovens de boa vontade, ambiciosos, frequentemente pobres e com ideias "sociais". No fim de seu curso de medicina, eles "subiam para Paris" (frequentemente vinham do sul). Iam para a Salpêtrière, frequentavam assiduamente o seminário do mestre da época, Esquirol. Eram seduzidos por esse ensino que aliava o aparente rigor de uma ciência, as grandes aspirações da filantropia e os prestígios da parisianidade. Nisto não havia nada de maquiavélico nem de desonroso. Veja-se atualmente. Para os promotores de todos os gostos eis a história de um deles, Ulysse Trélat. Trélat possui o perfil de carreira dos melhores alienistas: antigo interno da Salpêtrière, discípulo de Esquirol, depois de muito tempo como médico-chefe de serviço na Sapêtrière, aposenta-se tranquilamente. Foi também Carbonário desde a fundação da Charbonnerie francesa em 1821, deputado da Loja central, membro titular da Suprema Loja de Paris. Até 1848 está em todas as conspirações, organiza a Charbonnierie nos departamentos, vai para as barricadas em 1830, opõe-se em seguida ao restabelecimento da realeza, vai várias vezes a julgamento. Diante da Câmara dos Pares, profere estas altivas palavras que lhe custarão três anos de prisão: "Justiça, que necessidade tendes dela? (...) A tirania possui suas baionetas, seus juízes e vossas golas bordadas; a liberdade tem por si a verdade. Condenai-me mas não me julgareis". Ele não cumprirá sua pena, mas permanecerá em prisão domiciliar em Troyes por causa de sua má saúde e após a intervenção de seu melhor amigo, François Leuret. Pois Trélat é ao mesmo tempo amigo íntimo de um dos quatro sargentos de La Rochelle e de Leuret que representa a versão mais violenta do paternalismo dos alienistas. A revolução de 1848 recompensa sua oposição intransigente, tornando-o ministro, porém, ele escreve em 1861 La folie lucide para prevenir as famílias contra os alienados, tanto mais perigosos quanto mais inofensivos pareçam: "Não somente nada se fez para melhorar a raça humana, como também ela fica deixada em toda liberdade, digamos mais, ignorância e cegueira, deteriorando-se, sem nunca fornecer-lhe qualquer aviso (...). Ao sangue que pode transmitir-se generoso e puro, não deixemos misturar o veneno". 2 Não escolhi essa imagem cândida para ilustrar a eterna oposição entre intenções e atos (aliás, em que direção se deveria entendê-la?). Mas ela pode ajudar a delimitar a dimensão política que este livro comporta. O registro da análise pouco tem a ver com as intenções subjetivas dos atores. Não pretende, também, denunciar programas maquiavélicos de política-ficção. Não existe Estado-Leviatã nem uma abstrata dominação de classe que imporia sua lei do alto através de aparelhos ideológicos ou outros, servidos por cínicos agentes. A rigor, poder- se-ia dizer que a medicina mental tornou-se, bem tarde e apenas em parte, uma peça de um aparelho centralizado de poder. Mas é porque ela já se tinha constituído como tecnologia específica, tinha criado caminhos privilegiados, investido sobre lugares estratégicos. Antes de sua inscrição no organograma oficial da distribuição do poder, e mesmo depois, ela conquista seu lugar ao sol por meio de iniciativas arrojadas e de tentativas empíricas. Práticas dispersas caminham lentamente, encontram-se e se enfrentam antes de se cristalizarem e adquirirem um caráter sistemático. Essa ordem de coerência é difícil de definir. Não obstante,é ela que caracteriza a eficácia política própria da medicina mental. Digamos ― e o objeto da análise será mostrá-lo ― que ela prove um novo tipo de gestão técnica dos antagonismos sociais. A psiquiatria é efetivamente uma ciência política já que ela respondeu a um problema de governo. Ela permitiu administrar a loucura. Mas deslocou o impacto diretamente político do problema para o qual propunha solução, transformando-o em questão "puramente" técnica. Se existe repressão, esta se deve ao seguinte: com a medicina, a loucura passou a ser "administrável". E, portanto essa constituição de um administrável (poderíamos dizer com mais ousadia de um "administrativável") que se trata de revelar: administrar a loucura no sentido de reduzir ativamente toda a sua realidade às condições de sua gestão em um quadro técnico. Uma longa alternância de posições, com múltiplos episódios, entre o médico e o administrador, domina toda a história da medicina mental. Os sucessivos equilíbrios de seu intercâmbio dão conteúdo concreto ao que se deve entender por estratégia de controle social: não como imposição brutal de um aparelho coercitivo, mas, instauração de dispositivos práticos por responsáveis bem intencionados. Os outros parceiros, um pouco afastados ― sobretudo o juiz e o policial ― fiscalizam a negociação. Eles também passaram a ser marginais: na medida em que a administração e a medicina liguem sua máquina, quando funciona bem, eles são desapossados. Quanto ao louco, nem se fala. Nesta lógica, efetivamente, não há grande coisa a dizer dele e ainda menos a deixá-lo dizer. 2 U. Trélat, La folie lucide, Paris, 1861, p. 320. Por que essa cumplicidade entre a medicina e a administração? Por que a privação correlativa da justiça e da polícia de um papel de intervenção direta? Sobre o pano de fundo da sociedade contratual instaurada pela Revolução Francesa, o louco é uma nódoa. lnsensato, ele não é sujeito de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de "servir", não entra no circuito regulado das trocas, essa "livre" circulação de mercadorias e de homens à qual a nova legalidade burguesa serve de matriz. Núcleo de desordem, ele deve, mais do que nunca, ser reprimido, porém, segundo um outro sistema de punições do que o ordenado pelos códigos para aqueles que voluntariamente transgrediram as leis. Ilha de irracionalidade, ele deve ser administrado, porém, segundo normas diferentes das que designam o lugar às pessoas "normais" e as sujeitam a tarefas em uma sociedade racional. Estas contradições introduziram uma prática de perícia no centro do funcionamento das sociedades modernas. Uma avaliação fundada na competência técnica vai impor, a certos grupos "marginais", um estatuto que terá valor legal embora seja constituído a partir de critérios técnico-científicos e não de prescrições jurídicas inscritas em códigos. Um processo de corrosão do direito por um saber (ou por um pseudo-saber, mas essa não é a questão), a subversão progressiva do legalismo por atividades de perícia, constituem uma das grandes tendências que, desde o advento da sociedade burguesa, opera os processos de tomada de decisão que engajam o destino social dos homens. Do contrato à tutelarização. A medicina mental foi um operador essencial dessa transformação. Como veremos, a máquina foi constituída a partir da questão da loucura. Produziu, como grande vitória de sua idade do ouro, o estatuto médico-jurídico-administrativo do alienado, sancionado pela lei de 30 de junho de 1838. Inícios modestos e transparentes: esta primeira etapa atingiu alguns milhares de loucos devidamente rotulados, confiados a algumas centenas de profissionais estritamente especializados. Tutelarização brutal, completa, implicando na minoridade e no total isolamento. Entretanto, a ruptura entre o normal e o patológico sobre a qual repousava uma tal operação deve ser lida nos dois sentidos: os "loucos" eram completamente loucos e os "normais" completamente normais. Certamente não era o ideal. Não obstante, começa-se talvez a suspeitar que não houve apenas vantagem em quebrar essa dicotomia rígida. Atualmente esta atividade de perícia generalizada está em vias de se tornar a verdadeira magistratura de nossos tempos. Um crescente número de decisões em setores cada vez mais numerosos da vida social e pessoal são tomadas a partir de avaliações técnico-científicas produzidas por peritos competentes. Sem dúvida não é possível estabelecer limite para esse progresso. Mas seria o mínimo ousar perguntar "quem te fez rei?" a quem te faz sujeito-submisso. CAPÍTULO I O DESAFIO DA LOUCURA No período revolucionário havia alguns milhares de loucos. Ainda em 1834 Ferrus enumera apenas dez mil. Isto é bem pouco se comparado aos dez milhões de indigentes, trezentos mil 1 mendigos, uns cem mil vagabundos, cento e trinta mil menores abandonados, etc. 2 Contudo, a maior parte desses "problemas sociais" agudos permanece sem solução legal, pelo menos até as primeiras "leis sociais" da Terceira República. A lei de 30 de junho de 1838, sobre os alienados, é a primeira grande medida legislativa que reconhece um direito à assistência e à atenção para uma categoria de indigentes ou de doentes. É a primeira a instaurar um dispositivo completo de ajuda com a invenção de um novo espaço, o asilo, a criação de um primeiro corpo de médicos- funcionários, a constituição de um "saber especial", etc. Por que a legislação relativa aos alienados antecipa em cinquenta anos e ultrapassa em sistematização todas as outras medidas de assistência? Que não se venha falar da necessidade de "recuperar uma força de trabalho", no momento em que centenas de milhares de indigentes, menos improdutivos, não têm ocupação, Que não se venha alegar o patético da loucura, quando as famílias ociosas nas tardes de domingo dão gorjeta aos guardas de Bicêtre para assistir às contorções dos furiosos. A loucura colocou um desafio à sociedade nascida nas convulsões da queda do Antigo Regime. E a sociedade o aceitou porque estava em jogo a credibilidade de seus princípios e do equilíbrio de seus poderes. Negócios burgueses e sérios de ordem, de justiça, de administração, de finanças, de disciplina, de polícia e de governo, nos quais o patos da loucura seria propriamente deslocado. Os debates em que o louco era objeto só colocaram em cena os "responsáveis" encarregados de controlá-lo. Começaremos, portanto, a analisar essa divisão de responsabilidades e a interrogar as responsabilidades desta partilha no momento em que ela se institui na crise revolucionária * . O Estado, a Justiça e a Família Antes da Revolução, o poder judiciário e o poder executivo compartilhavam as responsabilidades da sequestração dos insanos. Seus procedimentos complexos e mal 1 G. Ferrus, Des alienes, Paris, 1834. 2 Cf. H. Derouin, A. Gary, F. Worms, Trailé thérique et pratique de l'Assistence publique, Paris, 1914. Cf., também, do ministro do Interior de Gasperin, Rapport au Roi sur les hôpitaux, les hospices et les services de bienfáisance, Paris, 1837. * Não nos mantivemos, na exposição, numa ordem estritamente cronológica. Cf. em anexo o quadro da sucessão dos principais acontecimentos, quer os estritamente médicos quer os relacionados com a problemática geral da assistência.. unificados provocavam conflitos de competência, mas esses não colocavam em questão a base de direito das condutas repressivas. As "ordens de justiça" consistiam em embargos ou sentenças de sequestração, em geral de duração ilimitada, dadas por uma das numerosas jurisdições competentes (parlamentos, tribunais de bailiado ** , prebostados *** , tribunal do Châtelet em Paris, etc).Às vezes o enclausuramento era decidido por uma "ordem particular" de magistrado, porém, essa medida, suspeita de comportar riscos de arbítrio, tendeu a cair em desuso no fim do Antigo Regime. O procedimento judiciário mais elaborado era o da interdição que será adotado tal qual pelo código napoleônico. Após demanda apresentada pela família (excepcionalmente pelo procurador do rei), o juiz proferia o embargo após recolher os testemunhos, fazer comparecer os protagonistas e interrogar o louco. A pessoa reconhecida insana podia, então (mas isto não era obrigatório), ser sequestrada em uma casa de detenção e seus bens eram colocados sob tutela 3 . A complexidade desse processo, seu custo elevado, a publicidade dos debates, tão temidos para a "honra da família", tornavam tal medida relativamente pouco solicitada. Adicionando as interdições e os outros modos de intervenção por via judiciária, pode-se avaliar que a proporção das sequestrações por causa de loucura que, no fim do Antigo Regime, provinham das "ordens de justiça" 4 , situava-se por volta de um quarto. Os outros enclausuramentos, isto é, a maioria dentre eles, eram efetuados a partir de uma "ordem do rei" ou lettre de chachet. Essa ordem era outorgada por intermédio do ministro da Casa real, por iniciativa da autoridade pública ou por iniciativa das famílias. Deste forma, quando um insano perturbava a ordem pública, os serviços da chefia de polícia de Paris e os intendentes, nas províncias, podiam solicitar uma ordem de internação ao rei. Eles podiam até apoderar-se do louco, mas a sequestrarão provisória só passava a ser legal após a obtenção da lettre de cachet. Uma "ordem do rei'' podia também ser obtida por solicitação da família. Esta justificava, numa "petição", as razões pelas quais solicitava o enclausuramento do insano (ou mais geralmente do perturbador da ordem familiar: pródigo, libertino, devasso, etc). Se o rei, por intermédio do ministro de sua Casa, fornecia a ordem, o insano passava a ser um desses "prisioneiros de família" que representavam aproximadamente nove décimos das lettres de cachet sob o Antigo Regime 5 . O poder real desempenhava, assim, um duplo papel. Munido das prerrogativas do executivo ele intervinha para salvaguardar a ordem pública contra as perturbações causadas pelos insanos. Porém, frequentemente, ele era intermediário e um regulador no exercício do poder correcional das famílias. É ele quem legitima a demanda familiar e aprecia em última instância seus motivos. Algumas vezes a ordem não é dada apesar das ** N. do T. De bailio, antigo magistrado provincial. *** N. do T.: Antigos tribunais de justiça militar. 3 Cf. P. Sérieux, M. Trenel, "L´internement des alienes par voie judiciaire sous l´Ancien Regime", Revue historique de droit français et étranger, 4ª série, 10º ano, julho-setembro, 1931; P. Sérieux, "L´internement par ordre de justice des alienes et correctionnaires sous l´Ancien Regime", ibid., 4ª série, 11º ano, julho-setembro, 1932. 4 Cf. Ph. Chatelin, Contributions à l'étude des alienes et anormaux au XVII. et XVIII. siècle, Paris, 1923. 5 Cf. P. Sérieux, L. Libert, Les lettres de cachet, "prisionniers de famille" et "placements volontaires", Gand, 1912. "humildes súplicas" da família. Neste caso os agentes do rei podem solicitar um inquérito suplementar ou aconselham a família a mover um processo de interdição 6 . Certamente, um tal sistema não é simples. Mas também não é arbitrário. Expressa um equilíbrio, não isento de tensões, entre três poderes ― real, judiciário, familiar ― que se amparam mutuamente com diversas possibilidades de negociações, compromissos e permutações. Observa-se, assim, uma evolução significativa de suas relações durante as décadas que precedem a. queda do Antigo Regime. Em sua luta contra os Parlamentos a autoridade real tenta, inicialmente, impor sua hegemonia, ao mesmo tempo em relação à justiça e às congregações religiosas suspeitas de negociar, algumas vezes diretamente com as famílias, a sequestração de seus insanos e outros susceptíveis de correção. Assim, em 1757, o ministro da Casa real quer suprimir as "ordens particulares dos magistrados" suspeitos de arbítrio. Em 1767, o poder real cria um novo espaço de detenção, os depósitos de mendigos, submetidos à autoridade direta dos intendentes, sem controle judiciário, apesar da viva oposição dos parlamentos. Os depósitos de mendigos herdam uma parte das funções dos Hospitais Gerais, cada vez mais saturados de velhos pobres e adquirem o hábito de acolher um número crescente de alienados 7 . Em 1765, o poder real impõe um regulamento draconiano às numerosas casas de "caridade" (de fato detenções) dos Irmãos de São João de Deus, que dirigem, entre outras, Charenton. O artigo primeiro estipula "que não se receba quem quer que seja, sob nenhum pretexto, nas casas de detenção da Caridade a não ser aqueles conduzidos por ordem do Rei ou da Justiça 8 . Ponto de equilíbrio, portanto, onde poder executivo e poder judiciário controlam paritariamente a legitimidade das sequestrações. Entretanto, a partir de 1770, a oposição às lettres de cachet se reforça. Malesherbes, um dos principais artífices da campanha, quando ministro da Casa Real em 1775, cria os tribunais de família para dar uma caução judiciária ao maior número possível de enclausuramentos. No fim do regime, o conde de Bréteuil, ministro da Casa Real, edita em 1784, numa circular dirigida aos intendentes, diretrizes precisas para a promulgação das lettres de cachet e distingue, com mais cuidado, as categorias às quais eles podem se aplicar: "No que concerne às pessoas cuja detenção seja pedida por causa de alienação do espírito, a justiça e a prudência exigem que proponhais as ordens somente quando houver uma interdição pronunciada por julgamento; a menos que as famílias estejam absolutamente impossibilitadas de pagar os gastos do processo que deve preceder à interdição. Mas, neste caso, será necessário que a demência seja notória e constatada por esclarecimentos bem exatos" 9 . A nova orientação, desde antes da queda do Antigo Regime é, portanto, fazer passar o máximo de práticas de reclusão, da jurisdição real para a autoridade judiciária, 6 Cf. A. Joly, Du sorl des alienes en Basse Normandie avant 1789, Caén, 1869. 7 Cf. Ch. Paultre, De la répression de la mendicité et du vagabondage sous l'Ancien Regime, Paris, 1906. 8 Citado in P. Sérieux, L. libert, "Le regime des alienes en France au XVIII. siècle", Annales médico-psychologiques, 1914, II, p. 97. 9 Circular Bréteuil, março de 1784, citada in F. Funck-Brentano, Les lettres de cachet à Paris, Paris, 1903, p. XLIV. tendência que prepara a tentativa de fazer garantir, pela interdição, todas as reclusões de alienados. Mas essas garantias, recentemente exigidas, dependem da possibilidade de engajar um processo de interdição e, portanto, da fortuna das famílias. Aos demais, aplicam-se as regras resumidas por Des Essarts em seu Dictionnaire universel de police: "Aqueles que têm a infelicidade de serem atingidos por essas doenças devem ser guardados por seus parentes, ou às suas custas, de maneira que a tranquilidade pública não seja perturbada por esses desafortunados. Quando as famílias não têm condições para pagar uma pensão, os oficiais encarregados da manutenção da ordem devem conduzir essas espécies de doentes para os hospitais ou outros lugares destinados pelo governo para recebê-los. Os parentes podem ser processados a fim de reparar os danos ocasionados pelas pessoas loucas, furiosas ou dementes; mas só se pode mover contra eles uma ação civil". 10 Existe, portanto, uma oscilação entre a legitimação das reclusões pelo poder real e pelo poderjudiciário, e passagem da preponderância do primeiro para o segundo. Mas de certa forma eles permanecem complementares pelo esboço de uma divisão do trabalho: garantias da justiça para os ricos e repressão pelos agentes do executivo para os pobres. E, sobretudo, sob estas mudanças o espírito geral da legislação da loucura no Antigo Regime continua a fazer da loucura, na medida do possível, uma "questão de família". E só negativamente, na ausência, na carência ou impotência da família ou, positivamente, sob sua demanda, é que uma instância exterior intervém. Mais precisamente, três casos podem se apresentar. Primeiro caso, a família assume totalmente a tarefa de manutenção e de neutralização do louco. Este caso faz parte, avant la lettre, da categoria dos "alienados intratáveis" que os psiquiatras construirão quando um sistema unificado de assistência for instaurado na primeira metade do século XIX. Por enquanto, trata-se de um anacronismo: esses "alienados intratáveis" são de fato, normalmente assistidos ou pelo menos tolerados por seus grupos primários de participação, família e circuitos de vizinhança; Eles escapam melhor a um "encargo" pelo exterior quanto mais rica for a família e/ou mais integrada, quanto maior número de redes de clientelas e de linhas de conivência existirem em torno dela. Donde esta implicação decisiva: pretendendo propor uma política global e "democrática" de assistência; sob a forma de um serviço público, a medicina mental, de fato, visará prioritariamente categorias particulares da população: os indigentes mais do que os ricos, os errantes mais do que os integrados, os urbanos mais do que os rurais. Segundo caso: a família não quer ou não pode assumir essa função de vigilância porque a presença do louco lhe coloca problemas demasiado difíceis em função de seus meios de controle (caso dos "furiosos", por exemplo), ou então porque as iniciativas irresponsáveis do insano ameaçam a salvaguarda do patrimônio familiar. Ela tem, então, 10 Des Essarts, Dictionnaire universal de police, Paris, 1789, t. IV, artigo "Folie, fureur, démence". a escolha entre duas possibilidades que são de fato dois modos de delegação de seu poder mas, através de procedimentos dentro dos quais ela conserva a iniciativa. Pode dirigir-se à autoridade judiciária para obter uma ordem de internação, e mesmo solicitar a interdição. Esse procedimento leva a uma situação clara de tutelarização do louco pela qual a gestão de seus bens cabe à família. Essa solução era escolhida, de preferência, pelas famílias mais ricas e era até necessária quando o objetivo consistia em obter uma tutelarização civil do louco sem sequestração, pois a interdição não impunha a internação fora da família. Segunda possibilidade: a "ordem do rei" permitia obter a sequestração através de um processo mais sumário. Em sua solicitação, a família propunha em geral o lugar da internação, em função sobretudo do total da pensão que ela consentia em pagar. Através desse procedimento a família se poupava da "desonra" (e dos custos) de um processo de interdição. Mas a lettre de cachet representava o contrário de um ato arbitrário já que era requisitado pelos parentes, juízes naturais dos interesses familiares. Terceiro caso: o louco escapava completamente ao controle familiar, ou porque não possuísse família, ou porque fosse surpreendido a "vagar" fora do seu âmbito de vigilância. Neste caso a iniciativa da repressão incumbia às autoridades responsáveis pela manutenção da ordem pública. Estas (em Paris e nas grandes cidades, os serviços de polícia; em outros lugares, os dos intendentes) podiam solicitar uma "ordem do rei". O mais frequente é que interviessem primeiro e, em seguida, solicitassem a ordem que legalizava sua intervenção. Isto, em princípio. De fato, a legalização dessas internações compulsórias precoces, através do recurso direto à autoridade real não parece ter sido a norma. Por exemplo, Piersin, "guarda dos loucos" em Bicêtre, em uma carta à Comissão das Administrações Civis e dos Tribunais que inquiria (10 frimário, ano III) sobre as modalidades de internações dos insanos detidos desde o Antigo Regime, constata somente vinte e três, em duzentos e sete, admitidos por "ordem do tirano" (e somente cinco por "decreto do ex-parlamento") 11 . A maior parte dos outros insanos era internada por iniciativa dos administradores da polícia ou dos estabelecimentos hospitalares. Mas não existe aí nada de escandaloso: sob o Antigo Regime, frequentemente, os agentes do executivo assumiam, através de delegação implícita, as prerrogativas do poder real. O importante é a legitimidade que essas intervenções extraem da antiga síntese entre o administrativo e o judiciário. Isso está claro em Des Essarts: "Deve-se distinguir, no chefe de polícia, o magistrado e o administrador. O primeiro é homem da lei, o segundo é homem do governo" 12 . Antes que a revolução denuncie, nesta justaposição, o escândalo do despotismo, ela funda em direito as práticas de reclusão dos loucos no Antigo Regime. 13 11 Cf. A. Tuetey, C Assislence publique à Paris pendant la Révolution, documents inédits. t. III, Paris, 1898, p. 368. 12 Des Essarts, Dictionnaire de police, op. cit. 13 Des Essarts faz, em 1789, uma autocrítica bastante significativa: "Ao reler, no mês de abril de 1789, esse artigo redigido em 1784, devo acrescentar que a nação almeja que essa parte da administração seja destruída, ou pelo menos modificada, de forma que a liberdade dos cidadãos seja assegurada da maneira mais inviolável". Por essa razão não deve surpreender que as mesmas disposições valham para os loucos e para as outras categorias de pessoas susceptíveis de correição: pródigos, libertinos, e mesmo espiões ou jansenistas. As "ordens" são tomadas contra o desvio familiar ou contra ameaças à segurança pública: crimes de Estado, indisciplina militar ou religiosa, questões de polícia. Os problemas referentes aos insanos representam apenas uma sub-espécie dessa categoria de delitos que provocam a intervenção do poder executivo. Os diferentes tipos de desvio são, portanto, menos confundidos do que reunidos sobre a base da repressão comum que eles exigem. Da mesma forma não deve surpreender que esses diferentes tipos de pessoas susceptíveis de correição se encontrem reunidas nos mesmos estabelecimentos já que "ordens" comuns aí as colocam. O que deve causar surpresa é o fato de descobrir neles o esboço de uma diferenciação dos regimes internos, ao passo que as medidas legais de admissão dos reclusos proporcionavam-lhes um mesmo estatuto. Não obstante, a indiferenciação do grande enclausuramento nunca foi absoluta. Desde 1660, ou seja, quatro anos apenas após a fundação do Hospital Geral, o parlamento de Paris decidia que um pavilhão especial estaria reservado à "reclusão dos loucos e das loucas" 14 . A partir do início do século XVIII, distinções cada vez mais apuradas começam a operar no seio da categoria geral de insano 15 . Mas tais diferenciações dizem respeito às exigências de gestão e de disciplina interna e não à preocupação de realizar diagnósticos e tratamentos. Se, portanto, uma percepção de tipo médico não é estritamente incompatível com o sistema de repressão da loucura sob o Antigo Regime, as finalidades e o equilíbrio interno deste último não dependem de seu grau de medicalização. Os objetivos que ele procura e as tensões que o atravessam são de ordem social, jurídica e política. Quando a pedra de toque do edifício for derrubada é que a coexistência dos elementos que o constituem passará a ser antagônica. A referência médica terá, então, um sentido inteiramente diverso: de subordinada passará a ser preponderante jáque constituirá o eixo do novo equilíbrio. Esquematicamente pode-se identificar três focos de ruptura mantidos pela coerência da antiga síntese: 1. A dualidade das instâncias responsáveis pela sequestração. O executivo e o judiciário compartilham, portanto, o direito de baixar "ordens" legitimando o enclausuramento. Tratando-se também da loucura, a concorrência que os opõe, no final do Antigo Regime, origina inúmeros conflitos. Mas o antogonismo não explode em contradição de princípio enquanto permanece, no cume da pirâmide dos poderes, a instância de soberania capaz de arbitrar em último recurso. "Toda justiça provém do rei", mesmo que ele delegue suas prerrogativas a seus "oficiais". Assim, em seu Traité des 14 Decreto citado in J. C. Simon, L´Assistence aux malades mentaux, histoire et problèmes modernes, tese de medicina, Paris, 1964. 15 Cf. M. Foucault, Histoire de la folie, Paris, 1961, 111, cap. II, "Le nouveau partage". seig-neuries (1613) Loiseau coloca no primeiro plano dos quatro direitos soberanos da realeza (os regulia) o de "ser a última alçada na justiça" (os três outros são: "fazer leis", "criar oficiais", "arbitrar a paz e a guerra". 16 Por exemplo, quando, em 1757, o ministro da Casa Real quer abolir as "ordens particulares dos magistrados" que permitiam às famílias negociar, diretamente com os juízes, a reclusão de um de seus membros, sem controle do executivo, justifica assim a medida: "Sua Majestade julga que a liberdade é um bem demasiado precioso para que algum dos seus súditos possa dela ser privado extra-judiciariamente sem que, ela própria, tenha ponderado as causas". 17 O imperium real pode, portanto, em uma última instância, "ponderar as causas" de uma derrogação do direito que, por isso, deixa de ser ilegal. Os parlamentos protestam ou mesmo não tomam conhecimento. Mas enquanto subsiste o princípio da monarquia absoluta o conflito ainda não é uma contradição aberta. 2. A dualidade dos gêneros de estabelecimento onde são enclausurados os insanos e as pessoas passíveis de correições. Além dos hospitais de tratamento como o Hôtel- Dieu pode-se identificar, no final do Antigo Regime, quatro ou cinco tipos de estabelecimentos que acolhem os insanos: fundações religiosas (as numerosas casas de "caridade" dos Irmãos de São João de Deus e também os conventos dos Cordeliers, dos Bons-fils, dos Irmãos das Escolas cristãs, da casa de São Lázaro fundada por São Vicente de Paula etc, e mais uma dúzia de conventos de mulheres recebendo ao mesmo tempo pessoas passíveis de correição, loucas e "moças arrependidas"); prisões do Estado como a Bastilha ou a fortaleza de Hâ; Hospitais Gerais, sobretudo Bicêtre e a Salpêtrière, onde são enclausurados mais da metade dos loucos do reino; enfim, pensões mantidas por leigos, em Paris existiam mais ou menos vinte, dentre as quais a mais famosa foi a pensão Belhome onde Pinel travou suas primeiras batalhas. 18 Contudo existe um princípio de clivagem entre essas fundações que não está, de forma alguma, em seu caráter mais ou menos médico, mas sim em sua direção ou em seu controle mais ou menos público ou privado. Certas prisões do Estado, os Hospitais Gerais e os depósitos de mendigos são fundações reais, colocadas sob o controle direto dos agentes reais e administradas por um pessoal leigo. As outras instituições são geralmente fundadas e geridas por congregações religiosas que aceitam com má vontade as diversas modalidades de controle pelos parlamentos e pelos serviços dos intendentes ou do chefe de polícia. Essa dualidade institucional autoriza diferentes políticas, particularmente no que diz respeito à iniciativa deixada às famílias. Já nesse momento o poder do Estado tenta homogeneizar tanto os processos de admissão quanto de vigilância. Mas as disparidades subsistirão por muito tempo, provocando conflitos cujas implicações modernas se manifestarão nas discussões da lei de 1838. 16 Cf. P. Goubert, L´Ancien Regime, t. II, Les pouvoirs, Paris, 1973. 17 Citado in F. Funck-Brentano, op. cit., p. XXXIII. 18 Cf. por exemplo, P. Sérieux, L. Libert, "Le regime des alienes en France au XVIII siècle", loc. clt.; "Un asile de súreté sous L´Ancien Regime", Annales de la Société médicale de Gand, junho de 1911; A. Bigorre, L´admlssion du maladè mental dans les établissements de soin de 1789 à 1838, tese de medicina, Dijon, 1967. 3. A dualidade das "superfícies de emergência" da loucura. O louco é um pertubador por quem o escândalo se manifesta, seja no espaço familiar, seja no social. Isto origina duas políticas bem diferentes a respeito da loucura. Esta coloca um problema de ordem pública, por causa da "divagação" dos insanos, em um no man's land social. Um vaguear perigoso que suscita uma intervenção, na maioria das vezes violenta, em nome da segurança das pessoas, da salvaguarda dos bens da decência, etc. Mas coloca também um problema de repressão privada, cuja eficácia poderia economizar' custosos recursos face ao fato consumado da desordem. Donde a questão da instauração de controles familiares e do controle dos controles familiares. A forma mais insatisfatória da relação entre essas duas superfícies é aquela pela qual a família, incapaz de fazer à sua própria polícia, toma a iniciativa de delegar seu poder a uma instância exterior, administrativa ou judiciária. A medicalização do problema introduzirá a uma dialética muito mais sutil entre o que é prerrogativa dos parentes e o que cabe ao poder do Estado na tarefa de conservar e de reproduzir a ordem sócio-familiar. O conceito de prevenção como verá mais tarde, será portador dessa esperança médica que consiste em intervir antes que seja necessária a repressão pela força pública e antes que a própria família se despoje de seu poder, e isto simultaneamente. Essa mesma concepção da prevenção desqualificará também a intervenção da justiça, cujo formalismo exige que somente se sancione fatos consumados. Dessa forma, todo o sistema passará da repressão de atos cometidos para a antecipação de atos a serem cometidos, e a reparação de uma desordem objetiva para o encargo de estruturas subjetivas em vias de alteração. O resultado desse longo processo suporia a subordinação dos três poderes, jurídico, administrativo e familiar à instância médica. Antes desta última, esses poderes compartilhavam a responsabilidade de neutralizar a loucura. Mas é neste ponto que o processo tem início, no momento em que esse quarto poder se insere em cunha na falha aberta pelo desequilíbrio político dos outros três. A Soberania, o Contrato e a Tutela Assim, o dispositivo de controle da loucura, no século XVIII, só parece tosco se o medirmos com o metro do monopólio médico. Mas ele é frágil porque reparte as responsabilidades entre aparelhos concorrentes por meio de procedimentos complexos e desarmônicos. Essa síntese barroca irá, portanto, se desfazer no momento em que a instância de arbitragem, o poder real, for qualificada de arbitrária. Trata-se aqui, de um ponto fundamental: inicialmente não são tanto as práticas que serão levadas a mudar mas seu princípio de legitimação; e a impossibilidade de legitimar as antigas práticas enquanto tais suscitará as novas ― ou imporá antigos procedimentos, que até então só tiveram um papel subalterno, no centro do sistema ― assegurando dessa forma, por meio de um longo desvio, o triunfo da medicalização da loucura. Apressado em abolir as lettres de cachet, Luís XVI dirige-se aos Estados Gerais em 23 de junho de 1789 nos seguintes termos: "O Rei, desejoso de assegurar a liberdade pessoal de todos os cidadãos, de maneira sólida e durável, convida os Estados Gerais a procurar e proporcionar-lhe os meios mais convenientespara conciliar a abolição das ordens conhecidas pelo nome de lettres de cachet, com a manutenção da segurança pública e com as precauções necessárias, seja para poupar em certos casos a honra das famílias, seja para reprimir com presteza inícios de sedição, seja para defender o Estado contra os efeitos de uma coalisão criminosa com as potências estrangeiras". 19 O problema é, portanto, efetivamente colocado: não, suprimir o conjunto das práticas repressivas cobertas pelo poder real com sua legitimidade, mas contornar a suspeita de arbítrio que, a partir daí, recai sobre as formas empregadas. Além disso, o artigo 1º da lei que decreta a supressão das lettres de cachet permanece bem restritivo quanto às categorias de "vítimas do despotismo" que libera pura e simplesmente: "No espaço de seis semanas após a publicação do presente decreto, todas as pessoas detidas nas fortalezas religiosas, casas de detenção, de polícia ou quaisquer outras prisões, através das lettres de cachet ou por ordem dos agentes do poder executivo, a menos que sejam legalmente condenadas ou sentenciadas de aprisionamento, que tenha havido queixa contra elas na justiça por crimes passíveis de pena de mortificação, ou que seus pais, mãe, avós, ou outros parentes reunidos tenham solicitado e obtido sua detenção de acordo com solicitações e relatos apoiados em fatos graves, ou enfim que elas sejam enclausuradas por loucura, serão colocadas em liberdade". 19bis Portanto, só são diretamente invalidadas as sequestrações por negócios de Estado, ou seja, pouquíssimos casos. Por exemplo, em mil lettres de cachet promulgadas em Paris em 1751, Funck- Brentano encontra apenas um ou dois a terem classificados sob esta rubrica. No essencial as "ordens do rei" fundavam em direito intervenções cuja necessidade permanece urgente aos olhos dos contemporâneos, mesmo após terem perdido sua justificação legal. Se a abolição das lettres de cachet libera algumas inocentes "vítimas do arbítrio", ela coloca sobretudo o difícil problema de justificar em direito a manutenção do maior número de sequestrações. Assim, logo após o decreto de 27 de março de 1790, o prefeito de Paris, Bailly, escreve à Assembléia Constituinte solicitando, pelo menos, prorrogar sua aplicação: "Não seria perigoso, neste momento, devolver à Cidade dos homens, sem refletir, aqueles que dela foram afastados, sem legalidade é verdade, mas quase sempre com justos motivos?". 20 A falta de pressa em liberar os loucos é igualmente nítida. Em janeiro de 1790, havia em Charenton, segundo um comunicado do prior à Assembléia Nacional, noventa e dois detidos por "ordem do rei", rotulados de "imbecis", "loucos", "loucos periódicos", "loucos perigosos", "loucos maus", "loucos furiosos", "em demência", "alienados". Somente um fora detido por "má conduta" e um outro por "causa desconhecida". O nonagésimo terceiro é o marquês de Sade a propósito de quem o prior havia anteriormente "suplicado à Assembléia livrá-lo de semelhante pessoa". Em novembro de 1790 permanecem oitenta e nove detidos. Sade foi liberado desde 27 de 19 Citado por F. Furtck-Brentano, op. cit., p. XLV. 19bis Ibid. Salvo menção em contrário, as passagens sublinhadas são do autor. 20 Citado in A. Tuetey, l´Assistence publique à Paris pendant la Révolution, op. cit., I, p. 200. março. Uma comissão de inspeção vai a Charenton após uma queixa do Comitê das lettres de cachet junto à municipalidade de Paris relatando internações arbitrárias. Presidida por um médico, a comissão só assinala um caso suspeito, para o qual solicita liberação: o que havia sido internado sob a rubrica "causa desconhecida". Tratava-se, de fato, de um cidadão italiano suspeito de cumplicidade num caso de falsificação de moeda e detido sem julgamento havia quatro anos. Assim, em Charenton, em noventa e três sujeitos internados no pavilhão dos alienados, por ordem do rei só serão liberados pelo decreto de março de 1790, Sade (e não por muito tempo), um suspeito de trapaça e talvez dois outros detidos, a menos que não tenham morrido entre-mentes. 21 Trata-se, pois, de um problema quantitativamente sem importância, mesmo se se objetar que Charenton era particularmente bem administrado. Mas é problema crucial, na medida em que questiona os fundamentos da nova ordem social. Na sua solução está em jogo a possibilidade de passar de um equilíbrio de poderes que repousa, em última instância, sobre a soberania real, para uma sociedade contratual. Por esta razão a questão da loucura se revestiu de importância capital no fim do século XVIII e no início do século XIX. Ela se situou no centro de uma contradição insolúvel para a nova ordem jurídica que se instaurava. Aparentemente, a loucura não deveria constituir um grande problema social já que vários outros problemas eram mais importantes e mais urgentes: a mendicância, a vagabundagem, o pauperismo, os menores abandonados, os doentes indigentes, etc, constituem, como já dissemos, populações infinitamente mais numerosas e em grande parte, igualmente perigosas. Contudo, os alienados "beneficiaram-se" do primeiro encargo sistemático, reconhecido como direito e sancionado por uma lei que antecipa toda a "legislação social" que virá cinquenta anos depois. Não se compreenderia esta originalidade se não a situássemos na linha divisória de uma problemática fundamental para a sociedade burguesa nascente. Sobre a questão da loucura, por intermédio de sua medicalização, inventou-se um novo estatuto de tutela essencial para o funcionamento de uma sociedade contratual. Uma revolução política não faz tabula rasa do passado. A restruturação do poder de Estado que sancionará a nova ordem burguesa esboçou-se progressivamente a partir da Idade Média quando, por sob as relações de fidelidade entre súdito e soberano, instaurou-se, pouco a pouco, uma estrutura administrativa centralizada obedecendo a critérios de racionalidade técnica. Setores de atividade cada vez mais preponderantes ― extração das riquezas pelo imposto, circulação dos bens pelo comércio, coleta dos conhecimentos por meio dos grandes inquéritos estimulados pelo poder central, etc. ― passam, dessa forma, a ganhar autonomia. Em última análise, o poder de Estado constituiria apenas o garante desses intercâmbios estabelecidos por contatos. Mito liberal da separação completa do social e do econômico que asseguraria o livre jogo das leis do mercado. A essa autonomia das leis que regem a troca das riquezas e a produção de bens, corresponde a racionalização dos mecanismos que presidem à circulação dos homens, à organização técnica de suas atividades, ao controle de suas iniciativas. Mito de uma 21 Documentos in A. Tuetey, op. cit., t. III, p. 229-238. perfeita territorialização dos cidadãos que é paralelo ao de uma perfeita circulação dos bens e que o Estado Napoleônico tentará incarnar instaurando uma vasta estrutura administrativa subdividida em tantos setores quantos forem as atividades sociais do sujeito, de tal sorte que em sua existência de cidadão ele se veja destinado a quadros geográficos encaixados uns nos outros, administrado por responsáveis dependentes do poder central, vigiado permanentemente na realização da totalidade de seus deveres sociais. A ficção jurídico-administrativa sobre a qual repousa todo este edifício, como sabemos, é o contrato. Cada cidadão é sujeito e soberano, ou seja, é, ao mesmo tempo, assujeitado a cada um de seus deveres cuja não obediência é sancionada pelo aparelho de Estado e, sujeito que participa das atividades regida pela lei e retira seus direitos dessas práticas, cuja realização define sua liberdade. Assim, um perfeito cidadão jamais encontrará a autoridade do Estado sob a sua formarepressiva. Assumindo seus deveres, ele desenvolve sua própria soberania e reforça a do Estado. Dizer que se trata aí de uma simples "ideologia" pela qual a sociedade burguesa nascente tenta justificar em direito seu funcionamento de fato ― ficção das liberdades formais, realidade da exploração econômica ― é deixar escapar o essencial. Em primeiro lugar, se há ficção não se trata de uma qualquer mas sim, daquela que abre um espaço autônomo necessário ao livre desenvolvimento de uma economia de mercado. Intervindo no quadro dos contratos para garanti-los, o Estado, de fato, garante a propriedade privada e a circulação das riquezas e dos bens, fundamento de uma economia mercantil. Em segundo lugar, administrando os indivíduos em quadros objetivos cuja intercambialidade se opõe à fixação territorial, fundamento das antigas relações de soberania e de clientela, o Estado organiza uma "livre" circulação dos homens paralela à "livre" circulação dos bens e necessária para alimentá-la. Mas como essa liberdade é regida pelas leis, o Estado pode assumir ao mesmo tempo suas tarefas de vigilância e de polícia na base de um esquadrinha-mento racional gerenciável tecnicamente pelo menor custo. Em terceiro lugar, o "não-intervencionismo" dos teóricos liberais adquire, assim; o seu sentido preciso que não é de forma alguma o da atenuação do poder coercitivo do aparelho de Estado, mas sim, o da delimitação precisa das situações em que ele pode e deve intervir, e isso tanto mais impiedosamente porquanto assim elimina qualquer arbítrio e pronuncia o direito. O Estado deve respeitar a liberdade dos cidadãos, seus contratos fundados sobre a propriedade privada, a livre realização das trocas sob as leis do mercado. Inversamente, ele pode e deve sancionar qualquer transgressão dessa ordem jurídico-econômica. Sua função de conservação social e de repressão política realiza-se fazendo respeitar a estrutura contratual da sociedade. Esta última não é a ordem do direito no seio do qual consciências soberanas fazem a experiência de sua intercambialidade. Ela é a matriz jurídica através da qual se exerce a violência do Estado e se impõe a exploração econômica. Não obstante, apesar de seu caráter formal, nem todos os súditos da república entram sem problema nesse quadro contratual. A verdadeira especificidade do louco é a de resistir a essa redução, a tal ponto que, para inscrevê-lo na nova ordem social, será preciso impor-lhe um estatuto diferente e complementar àquele, contratual, que rege a totalidade dos cidadãos. O Criminoso, a Criança, o Mendigo, o Proletário e o Louco Em relação a essa concepção do direito, cinco grupos de indivíduos colocam problemas especiais. 1. Inicialmente os criminosos. Michel Foucault mostrou de que maneira a transformação do direito de punir, no início do século XIX, efetuou-se em torno do nascimento da prisão. 22 A novidade da forma-prisão não deve, contudo, dissimular o fato de que as inovações jurídicas se inscrevem em uma evolução dos fundamentos do direito que precede à época revolucionária. Essa evolução colocou a responsabilidade pessoal em primeiro plano 23 , O ato criminoso é o resultado de um cálculo pelo qual um indivíduo escolhe seu interesse pessoal contra os direitos de outrem. Cálculo errôneo se o criminoso se deixar prender, mas cálculo racional pelo qual é totalmente responsável. A sanção que o atinge está, portanto, fundada em direito, seu objeto é a transgressão de contratos que a lei tem por função garantir. A abolição das lettres de cachet não coloca, portanto, nenhum problema de princípio para transferir do executivo ao judiciário a parte de repressão criminal que o primeiro ainda exercia. Dessa forma, sob ò Antigo Regime, uma "ordem do rei" poupava, às vezes, o escândalo de um processo, permitindo enclausurar sem julgamento um indivíduo (geralmente de boa família) cujo caso, de fato, seria da alçada dos tribunais. Assumindo-os por si sós, doravante, estes nada mais fazem do que retomar a plenitude de suas prerrogativas. Os novos problemas colocados pela reestruturação do direito de punir se devem às dificuldades em instaurar uma tecnologia eficaz da sanção e não em inventar-lhe um fundamento legal. Deter, vigiar, corrigir, reeducar o criminoso. E mesmo medicalizá-lo, aspiração que aparece muito cedo como revela Cabanis: "Não ignorais que a natureza de várias espécies de prisões as aproxima muito da dos hospitais: tais são, por exemplo, as casas ditas de correição, onde as disposições viciosas da juventude são submetidas a tratamento regular: tais serão, um dia, as prisões para os indivíduos condenados a uma reclusão mais ou menos longa pelos tribunais criminais. De fato, essas prisões poderão 22 M. Foucault, Surveiller et punir', Paris, 1975. 23 Cf. C. B. Beccária, Traité des délits et dês peines, trad. francesa, Lausanne, 1766. tornar-se facilmente verdadeiras enfermarias do crime: nelas se tratará essa espécie de doença, com a mesma segurança de método e com a mesma esperança de sucesso que as outras perturbações do espírito. 24 Texto extraordinário para uma época em que a medicina mental não tinha ainda nascido oficialmente. Contudo, não deve induzir-nos em erro. A lógica que conduz à medicalização do criminosos é diferente, em seu princípio, daquela que vai impor a medicalização do louco. Se o direito de punir pretende humanizar-se, pedagogizar-se e mesmo medicalizar-se, trata-se de variantes em relação a um direito de corrigir, perfeitamente fundado a partir de seus axiomas iniciais: o equilíbrio entre os delitos e as sanções inscreve-se em um sistema racional porque o criminoso é responsável por seus atos. O louco coloca um problema diferente. Nenhum vínculo racional une diretamente a transgressão que ele realiza com a repressão a que é submetido. Não poderia ser sancionado mas sim, deverá ser tratado. Sem dúvida o tratamento será, frequentemente, uma espécie de sanção. Mas ainda que seja sempre assim com o louco, doravante a repressão só pode progredir disfarçada. Ela deve ser justificada pela racionalização terapêutica. É o diagnóstico médico que se supõe impô-la, ou seja, que lhe fornece a condição de possibilidade. Diferença essencial: em um sistema contratual, a repressão do louco deverá construir para si um fundamento médico, ao passo que a repressão do criminoso possui imediatamente um fundamento jurídico. Somente muito mais tarde (após a medicalização ter inicialmente sido imposta sob a forma de um estatuto do alienado diferente do criminoso e, posteriormente, ter começado a se generalizar, patologizando os setores mais diversos do comportamento, ou seja, por volta do fim do século XIX) é que a medicalização do criminoso, por sua vez, mudará de sentido. Ela não será mais uma intervenção a posteriori para ajudar a melhor aplicar a sanção, mas sim uma tentativa de fundar a legitimidade da punição a partir de uma avaliação psicopatológica da responsabilidade do criminoso (cf. infra, cap. IV). Por enquanto, são os legalistas que bloqueiam a via da descoberta da nova solução. Pretendendo dar ao aparelho judiciário a prepoderância (cf. abaixo os debates sobre a necessidade de uma interdição preliminar à sequestração dos insanos), travam de fato um combate de retaguarda e serão progressivamente ultrapassados pelo desenvolvimento das novas práticas legitimadas do ponto de vista médico, a respeito da loucura. A analogia entre as instituições (prisão-asilo) e as tecnologias de disciplinarização (reeducação penal - tratamento moral) não deve, portanto, dissimular o antagonismo de princípio entre o direito de punir e o dever de dar assistência. A solução do problema social da loucura não pode ser encontrada no prolongamento daquela que vai prevalecer
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