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Lima Junior - no prelo

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Universidade de Brasília 
Instituto de Física 
Introdução à análise e produção de 
materiais didáticos para o ensino de 
ciências: uma abordagem comunicativa 
Prof. Paulo Lima Junior 
O desafio da comunicação 
Um dos principais desafios do ensino de ciências é a comunicação. De fato, nós, 
professores de ciências, somos conhecidos por não nos comunicarmos bem com nossos 
alunos. 
E você? Como avalia sua capacidade de comunicação? 
O mais interessante de responder à pergunta acima é perceber que, por trás de cada 
resposta, existe uma imagem presumida de “bom professor” (Lima Junior et al., 2021). 
Quando você avalia sua capacidade de comunicação, em quem você pensa? Nos colegas 
mais eloquentes e desinibidos que escrevem terrivelmente mal? Nos colegas mais 
divertidos que não têm nada a dizer? Você acredita que uma pessoa tímida pode se uma 
boa comunicadora? 
No que você pensa ao avaliar sua capacidade de comunicação? 
De todos os equívocos típicos, o mais preocupante talvez seja a confusão que se faz entre 
comunicar e fazer comunicados (Freire, 1974). Quem comunica de verdade escuta o que 
foi dito antes, dirige-se aos outros, acolhe e valoriza as respostas, pensa a partir delas. Os 
que fazem comunicados estão cronicamente preocupados com questões de autoridade, 
correção, eloquência e aprovação. Não que essas questões devam ser ignoradas, mas 
não devemos estar cronicamente preocupados com elas. 
 
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
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Para os professores que só fazem comunicados, basta que estejam corretos em suas 
declarações e que sejam admirados pelo que dizem. Eles transformam a comunicação 
em uma experiência narcísica que só pode se protagonizada por eles mesmos. Quanto a 
isso, é importante lembrar que comunicados nem sempre são enfadonhos. Na verdade, 
eles podem se muito divertidos! O que lhes falta é abertura ao diálogo. Divertidos ou não, 
a maioria dos fazedores de comunicado pode ser substituída, com vantagem, por uma 
boa vídeo-aula no YouTube. 
E você? Consegue perceber a diferença entre comunicar fazer 
comunicados? 
A comunicação verdadeira não é solipsista nem ensimesmada. Todo comunicador supõe 
uma audiência à qual deve seu desenvolvimento e amadurecimento. Com silêncio e 
aplauso, com críticas ácidas ou irônicas, com sua admiração seletiva, o auditório participa 
ativamente do espetáculo. 
 
Na arte, o teatro não é o lugar de exposição de um ator pronto. Ele é a forja que inflama 
o ator. Se há brilho, é porque ele consegue arder, fundir-se e assumir novas formas. Ao 
nos comunicarmos verdadeiramente, somos todos postos à prova e transformados pelo 
olhar crítico do público, que nunca deixa de nos avaliar. Em última análise, assim como o 
auditório faz o apresentador, a escola faz o professor. 
Só pode ser um bom comunicador quem conhece sua audiência, 
quem travou muitas batalhas com ela e por ela. 
Igualmente, não pode ser um bom professor de ciências quem não enfrentou seus 
desafios: o desafio de entender e de se fazer entender, o desafio de fazer com que a 
ciência mobilize cidadãos fora da comunidade científica, o desafio de permitir que os 
estudantes se identifiquem como pessoas de ciências, o desafio da participação social... 
A lista não tem fim. 
E você? Quais lutas travou na escola e pela escola? Quais 
desafios do ensino de ciências ocupam seu horizonte? 
Neste texto, vamos explorar o caráter comunicativo dos materiais didáticos produzidos 
para o ensino de ciências. Ele está direcionado a professores em formação inicial ou 
continuada que tomaram para si o desafio de desenvolver seus próprios materiais. Vamos 
falar muito sobre diálogo, autoria e criatividade. De fato, todos os materiais didáticos 
ganham muito se não forem concebidos enquanto comunicados, mas como ferramentas 
Prof. Paulo Lima Junior (UnB) 
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de comunicação. Aqui, darei especial atenção a materiais baseados em textos orais ou 
escritos, tais como: 
1. livros didáticos ou paradidáticos; 
2. hipertextos e hipermídias; 
3. podcasts ou videoaulas. 
Nenhum professor ou professora se envergonha de estar em processo de formação. Só 
uma pessoa tola se considera acabada. O primeiro passo no processo de formação do 
professor-comunicador é a leitura, mas essa leitura precisa ser diferente da que vivemos 
quando alunos. Ela precisa ser mais atenta, crítica, analítica. Sendo assim, meu primeiro 
convite para quem deseja se tornar autor de seus materiais é o seguinte: 
Leia e analise muito atentamente os materiais produzidos por 
outras pessoas. 
Ao final deste texto, você encontrará um dispositivo analítico que poderá orientar sua 
leitura crítica de outros materiais didáticos antes que você parta para a produção de seus 
próprios materiais. 
 
O desafio dos textos didáticos e científicos 
A maneira como a maioria de nós aprendeu a consumir textos científicos geralmente 
subestima o fato de que todo texto é um elo na cadeia de comunicação (Bakhtin, 2016). 
Nas ciências da natureza, é bastante comum lidamos com textos especializados como se 
eles fossem o registro conciso de ideias consideradas, ao mesmo tempo, abstratas e 
objetivas. Em ciência, nós costumamos avaliar as afirmações como verdadeiras ou falsas, 
comparando-as com uma verdade científica idealizada. Mas até que ponto a ciência 
existe fora de suas situações concretas de comunicação? 
Obviamente, leis e teoremas são sempre declarados e aperfeiçoados por pessoas 
concretas, situadas na história, na cultura, na sociedade. Entre muitas outras coisas, o 
desenvolvimento científico depende de não encararmos todas as declarações científicas 
como definitivas. As mais relevantes são debatidas, confrontadas, aperfeiçoadas pela 
comunidade. Sendo assim, por solitário que o cientista possa se sentir, o processo de 
produção do conhecimento científico tem sempre a forma de um grande diálogo que, 
marcado pela crítica mútua, mobiliza várias pessoas da comunidade científica. 
https://www.youtube.com/watch?v=RhiKsHjHvok
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
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Da mesma maneira, se nós encararmos os livros didáticos como autoridade rígida, se 
assumimos que a única maneira de escrever sobre ciência é aquela por meio da qual 
apendemos, não nos restará muito a fazer senão repetir o que já está escrito. Em suma: 
O reconhecimento do caráter dialógico da ciência e de sua 
didática abre espaço para nossa participação. 
Pensar os textos didáticos e científicos como turnos de fala e não como registros estáticos 
de uma verdade objetiva exterior deve produzir um olhar bastante diferente sobre a 
natureza da ciência e do seu ensino. Nada tem que ser como é. Em princípio, tudo pode 
ser dito de outra maneira. 
A chave para toda a reflexão deste texto pode ser sintetizada na seguinte afirmação: 
Quem fala ou escreve sempre parte do que foi dito por outra 
pessoa, dirigindo-se a alguém. 
Essa ideia aparentemente elementar – de tratar todas as produções textuais como turnos 
de fala em um grande diálogo que começou antes de nascemos e se prolongará além da 
nossa morte – tem implicações muito especiais. Se todo texto didático é um elo na cadeia 
de comunicação, ele (Faraco, 2009): 
1. Não pode deixar de responder ao que foi dito no passado e; 
2. Não pode deixar de antecipar as respostas do futuro. 
Essa dupla orientação do texto (dialogando com o dito e antecipando o está por dizer) 
será chamada responsividade (Bakhtin, 2016). Ela tem implicações muito importantes 
que serão exploradas nas seções seguintes. 
Criatividade e descoberta científica 
Que escritor não quer ser criativo? Que cientista não aspira uma descoberta relevante? 
Não sei se vocês sentem da mesma maneira, mas eu tenho a impressão de que essas 
duas palavras tendem a mobilizar o que há de mais romântico em nós mesmos. Quando 
eu as ouço, lembro prontamente de algumas pessoas que conheci. Elas estufam o peito 
e, com ar triunfante, fitam o horizonte e, por um instante, parecem flutuar acima dochão. Em suas palavras, a criação e a descoberta são descritas como experiências 
individuais, íntimas, divinas, elevadas, excepcionais. Uma dádiva assim só poderia ser 
concedida a poucos. 
No entanto, mantendo os pés firmes sobre o chão, e tendo em vista a natureza dialógica 
da didática e da ciência, pergunto: 
O que significa criar e descobrir? 
Somente o Adão mítico teve a oportunidade de nomear um mundo sem nome (Bakhtin, 
2015). Nós, seres reais, chegamos a um mundo saturado de discursos, opiniões, teorias, 
coisas ditas. A linguagem (da ciência) já existia quando viemos ao mundo e sobreviverá à 
nossa morte. Nossa primeira atitude diante de qualquer linguagem é, portanto, um 
movimento de domínio e apropriação (de Pereira & Lima Junior, 2014): eu passo a 
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dominar ferramentas criadas por outras pessoas e, eventualmente, as assumo como se 
fossem minhas. 
O ponto de partida do escultor não é a criação de suas ferramentas. Ele aprende a 
dominar o martelo e o formão, inventados por outras pessoas em outro contexto. Já 
minha sobrinha-bebê, ela está aprendendo a falar algumas palavras bem simples: 
mamãe, água, comida... Elas funcionam como ferramentas de comunicação que 
auxiliarão a relação dela com os pais, que podem ser considerados seu primeiro auditório, 
sua primeira escola, seu primeiro espaço de formação. Algo muito parecido acontece nas 
aulas de ciências, quando apendemos conceitos e teoremas, colocando-os em prática em 
situações-problema. Por todos os lados, palavras são ferramentas. 
 
O simples fato de eu estar escrevendo em língua portuguesa, tentando respeitar a norma 
culta, já coloca em teste meu domínio de algumas ferramentas culturais. Em tudo o que 
eu falo e escrevo, devo muito às pessoas com quem eu apendi a falar e escrever. Esse 
aprender a falar e escrever, obviamente, não se limita ao código da língua, mas inclui 
todas as linguagens especializadas que conhecemos (Física, Matemática, Arte, Política). 
É como se, falando com vocês, todos os meus formadores falassem em mim. Portanto, 
Minha voz nunca é somente minha. Nada que eu digo ou 
escrevo é exclusivamente meu. 
Somente o Adão mítico teve a oportunidade de uma criação verbal livre (Bakhtin, 2015). 
Para nós, seres concretos, toda experiência criativa supõe o domínio de ferramentas 
culturais que já estavam disponíveis e que, criadas por outras pessoas, vinculam-nos a 
elas. Nesse sentido, criatividade e descoberta consistem em rearranjar o que já está 
disponível no mundo da cultura de maneira a produzir um resultado relativamente 
inédito. 
A criatividade artística e a descoberta científica supõem 
conhecer, dominar e confrontar o trabalho de outras pessoas 
vieram antes de nós mesmos. 
Ninguém cria no vazio. 
Diálogo e relações de oposição 
A presença do outro em nós pode ser percebida de maneiras mais interessantes. De fato, 
nossa relação com a voz dos outros nem sempre é de apropriação, mas pode ser de 
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complementariedade ou oposição (de Pereira et al., 2016). Esse fenômeno aparece mais 
estilizado na arte e na política, mas também ocorre nos textos escolares de ciência. 
 
Quando lemos um texto jornalístico de direita ou de esquerda, mesmo que eles se 
apesentem como peças publicadas em jornais isolados, há um diálogo visível. Glenn 
Greenwald (do Intercept Brasil) não faz menção a Eliane Cantanhêde (da Globo News), 
mas aposto que eles discordariam se conversassem! Ao mesmo tempo em que estão se 
dirigindo aos seus ouvintes, fazem afirmações que serviriam perfeitamente como críticas 
ácidas um ao outro. 
Relações tensas e de oposição estão contempladas naquilo que 
chamamos de diálogo. 
Talvez o leitor esteja intrigado. Afinal, será que esses dois jornalistas se conhecem? Sem 
verificar se eles se conhecem, como podemos afirmar que estão “dialogando”? Bem, 
ainda que eles provavelmente se conheçam, não se trata disso. O campo jornalístico é 
repleto de Cantanhêdes (e uns poucos Greenwalds) de tal maneira que não é preciso 
conhecê-los pessoalmente para polemizar seus pontos de vista. 
Basta conhecer e reconhecer as posições do campo para 
dialogar com todos os que compartilham a mesma posição. 
Nos livros didáticos essas tomadas de posição também ocorrem e são muito importantes 
para criar uma variedade de pontos de vista, de maneiras diferentes de ensinar. Contudo, 
esses confrontos costumam passar despercebidos aos olhos do leitor (que geralmente lê 
o livro de ciências como quem lê um manual – não como quem deseja analisá-lo 
criticamente, tendo em vista sua melhoria). Um professor que escreve seus próprios 
materiais não pode se dar esse luxo. 
Você, com certeza, já ouviu dizer que “Pessoas trans também são seres humanos”. Essa 
afirmação é a negação de outra (i.e., “... não são seres humanos”) e, por isso, só tem 
sentido em diálogo com aquilo que nega. Quando eu ouço essa declaração, logo me 
lembro das situações concretas de violência que dão sentido a ela. Pessoas trans são 
assassinadas diariamente no Brasil, mas sua morte sequer chega aos noticiários. 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Glenn_Greenwald
https://pt.wikipedia.org/wiki/Glenn_Greenwald
https://pt.wikipedia.org/wiki/Eliane_Cantanhêde
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Afirmações confrontacionais não são meras constatações. Dizer que “as mulheres 
cientistas são tão competentes quanto os homens” não é equivalente a dizer uma 
banalidade qualquer (tal como “o céu é azul”), pois marca uma tomada de posição diante 
de um debate. Como toda tomada de posição, ela receberá uma resposta (nem sempre 
amigável). Afirmações dessa natureza marcam um diálogo tenso, um conflito. 
Mais que meras constatações, declarações de conflito marcam 
uma tomada de posição. 
Se alguém disser que “Homens europeus também são seres humanos” poderíamos 
rapidamente questionar: “Por acaso, alguém sugeriu que eles não sejam?!”. Contudo, se 
muitas pessoas começam a repetir que “homens brancos e heterossexuais também 
devem ter seus direitos respeitados” vai se criando a ilusão de que esses direitos estão 
sendo ameaçados (afinal, em todo o espectro ideológico, o dito traz consigo o não-dito, 
toda afirmação traz consigo sua negação). De fato, a experiência mostra que os mesmos 
expedientes discursivos de enfrentamento das desigualdades são rapidamente 
apropriados e invertidos pelos dominadores, que os colocam em prática na criação de 
falsas polêmicas, simulacros de crítica. Por isso, a análise de um texto nunca deve tomar 
o texto pelo texto, mas precisa devolvê-lo às situações concretas de comunicação para 
que possamos perceber seus sentidos e intencionalidades. 
Algo muito semelhante acontece nos livros de ciência quando os autores marcam uma 
posição em um debate sem explicitar as controvérsias que fazem parte dele. Os leitores 
atentos saberão que o autor está tomando uma posição, geralmente discordando de 
outro autor (a quem vê como concorrente). Os leitores mais distraídos presumirão que o 
autor está fazendo uma mera constatação, uma declaração de fatos. 
Você já deve ter lido que a primeira lei de Newton não é um caso particular da segunda, 
pois a primeira lei definiria os chamados referenciais inerciais: 
Frequentemente encontramos a afirmação ‘A primeira lei de Newton é 
um caso particular da segunda lei, pois, para F = 0 temos a = 0 e, portanto, 
a velocidade será́ constante na ausência de forcas externas’. Essa 
afirmação é uma simplificação indevida da primeira lei, pois, na verdade, 
essa caracteriza, implicitamente, o que são referenciais inerciais e a 
segunda lei só́ se aplica a esses (Cabral, 1984, p. 4). 
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
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Eu sempre me surpreendi com esse tipo de argumento, recorrente em apostilas e livros 
empregados nas escolas. Quando eu o ouvi pela primeira vez, minha reação foi perguntar 
“Mas quem colocou isso em questão?!” O colega que me explicava anecessidade dessa 
afirmação deu a entender que os alunos poderiam me desafiar, questionando que, se for 
possível deduzir a primeira lei da segunda (e é possível) então as três leis de Newton 
estariam com um problema grave. Elas seriam, na verdade, duas! Eu não pude resistir em 
perguntar “Para quem o questionamento dos alunos representa um problema?!” Afinal, 
Não seria fabuloso se os alunos se percebessem capazes de 
apontar os limites de uma teoria científica? 
Desde o seu surgimento, a teoria Newtoniana foi duramente criticada; mas essa história 
não está contada nos livros (Lima Junior et al., 2015). A crítica que Newton recebeu foi 
tão profunda que a mecânica escolar guarda grandes diferenças conceituais da mecânica 
de Newton, incorporando as críticas feitas nos séculos seguintes como se Newton tivesse 
se antecipado a elas. Os nomes dos críticos de Newton geralmente são omitidos. Por 
exemplo, os tais “referenciais inerciais”, que justificariam a irredutibilidade da primeira 
lei à segunda, só foram propostos do século XIX, como solução para a derrocada da 
crença no espaço absoluto Newtoniano. Portanto, justificar a irredutibilidade da primeira 
lei de Newton à segunda com base na necessidade de definir referenciais inerciais é, no 
mínimo, anacrônico (Lima Junior et al., 2015). 
Além disso, se a recepção da teoria newtoniana sempre foi polêmica, 
Por que a ciência escolar precisa assumir a forma de uma 
declaração de axiomas e teoremas definitivos? 
É verdade que há muitas formas falaciosas e perniciosas de apontar limites à ciência (os 
movimentos terraplanista e antivacina são os principais exemplos). Também é verdade 
que a autoridade é um ingrediente importante da prosa científica, que tende a ser mais 
unívoca e linear que o romance (Bakhtin, 2015). No entanto, se desejamos proporcionar 
aos alunos uma experiência científica autêntica, investigativa e significativa, a obsessão 
com a autoridade presente nos materiais didáticos pode se tornar um obstáculo, pois: 
A autoridade mata o debate. 
 
Ela varre as controvérsias para baixo do tapete, colocando a ciência numa situação mais 
frágil do que deveria. Se um professor afirma que o aquecimento global é um consenso 
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na comunidade científica (tentando abreviar a discussão), bastará ao estudante mostrar 
um único texto que, assinado por um cientista, diga o contrário. Um único caso bastará 
para refutar a tese do consenso e revelar a fragilidade do argumento do professor. A 
pretensão de consenso é o fundamento mais frágil da autoridade. 
Seria importante que nossos materiais didáticos fossem mais persuasivos, capazes de 
explorar as polêmicas e controvérsias da ciência ou que, no mínimo, você seja capaz de 
perceber o esforço hercúleo que muitos autores fazem para apresentar a ciência como 
aquilo que ela não é: um conjunto de certezas, um conhecimento definitivo e consensual. 
Em síntese, explícita ou implicitamente, materiais didáticos são marcados por lutas e 
disputas, por tomadas de posição. 
E você? Que lutas e disputas pretende travar como autor de 
seus próprios materiais? 
Antecipando as reações do leitor 
A redação científica teria muito a aprender com a linguística e a crítica literária, com os 
autores de romances e jornalistas. Há uma coisa que bons autores, na ciência e na arte, 
têm em comum: 
Dentro de certos limites, bons autores são capazes de antecipar 
(de maneira mais ou menos intuitiva) as reações do leitor. 
Considere um texto literário ou jornalístico que você tenha lido recentemente. Você 
consegue se lembrar das reações que teve? O que você pensou? Como se sentiu? Como 
você julgou o texto? Autores competentes são capazes de antecipar, de alguma maneira, 
várias dessas reações e, sem essa capacidade de antecipação, é difícil que alguém se 
comunique bem com sua audiência. 
 
As comunicações científicas são, em sua maioria, arbitradas por pares. Livros didáticos 
publicados em editora também são avaliados. Para que você tenha seu artigo publicado, 
para que você seja lido ou ouvido, precisa passar pelo crivo de outros especialistas. Esses 
outros são ditos “pares” porque não estão exatamente acima de você, mas são colegas 
que compartilham suas mesmas competências. Essas pessoas são, num sentido muito 
aproximado, seus “iguais”. Se você for completamente fracassado em antecipar as 
maneiras como seus pares reagirão ao seu texto, ele sequer será publicado. De fato, 
assim como em todas as formas de criação estética (Bakhtin, 2016), 
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As produções da arte, da ciência e do ensino de ciências 
envolvem a antecipação de um julgamento futuro. 
Quando tomamos um texto didático para ler, geralmente somos capazes de identificar 
algumas suposições que o autor faz com respeito a seus leitores. O que eles são capazes 
de entender? O que os motiva a estudar? O que eles esperam ler? Que críticas farão? O 
que lhes interessa? Ao escrever, é inevitável que o autor tente se antecipar, no texto, às 
apreciações do leitor. 
 
Como todos os textos são responsivos (i.e., não podem evitar o fato de que se dirigem a 
uma audiência que os avalia), resulta que o leitor suposto está sempre presente no texto, 
participando de sua composição (Faraco, 2009). Por exemplo, falar com a minha mãe e 
falar com vocês são experiências muito diferentes. Com ela, eu abordo temas e emprego 
estilos de linguagem que não fazem sentido ou não são adequados com vocês. Essas 
variações de linguagem em função do ouvinte (ou leitor) suposto mostram como o 
auditório participa, mesmo que silenciosamente, da produção verbal (oral ou escrita). 
Essa participação não se dá imediatamente, tomando a caneta da mão do escritor, mas 
é mediada pelas impressões que o auditório deixou no autor, nas antecipações de suas 
reações. 
Quando você toma um texto didático, pode sempre perguntar: A quem ele se dirige? 
Tendo em vista várias características do texto, podemos reconstruir a imagem (mais ou 
menos inconsciente) que o autor assumiu dos seus leitores ao escrever. Alguns autores 
dirigem-se a adolescentes como se fossem crianças de quatro anos; outros tratam 
estudantes da escola como se fossem cientistas já formados. Essa percepção só é possível 
porque: 
O leitor suposto está expresso no texto. 
De fato, um texto traz muito mais que uma mensagem, um conteúdo, um quedizer. Ele 
é um elo na cadeia de comunicação e carrega as marcas de todas as pessoas ali 
encadeadas (Faraco, 2009). Todos aqueles que, no passado, contribuíram para sua 
formação e informação; todos aqueles que, no futuro, e apreciarão sua produção textual 
(com ironia, desdém ou admiração). Todas essas pessoas estão presentes naquilo que 
escrevemos. 
Além disso, é muito comum que os textos didáticos sejam produzidos antecipando usos 
concretos bem definidos. Afinal, será que os alunos têm acesso a um laboratório 
equipado? Quantas horas-aula por semana são dedicadas a esse componente curricular? 
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Quais são as condições de realização das atividades propostas? Como serão conduzidas 
as avaliações? 
Em alguns textos, pode acontecer que o autor se justifique ou que se mostre preocupado 
com críticas que não estão sendo feitas. Noutros casos, deixam sem respostas as 
perguntas que você gostaria que ele tivesse respondido. Os autores podem sugerir 
atividades que demandam uma infraestrutura indisponível, podem presumir que os 
alunos têm conhecimentos que não têm. 
O ajustamento entre o leitor suposto (no texto) e os leitores de 
carne-e-osso é um dos objetivos mais críticos do texto didático. 
Muitas vezes vamos ouvir, em abstrato, que “um bom material didático deve ser claro, 
interessante e desafiador”. Mas o que pensam os leitores? Todas essas qualidades 
abstratas só existem para leitores concretos em contextos específicos da comunicação 
humana. A depender do público ou da situação em que ele se encontra, a apreciaçãodo 
texto muda radicalmente. Um texto claro passa a ser considerado confuso; um texto 
interessante passa a ser desinteressante. 
As qualidades de um texto (tais como clareza, elegância, 
interesse) só podem se avaliadas com relação a leitores e 
contextos específicos. 
Diferente das conversas cotidianas (entre amigos e familiares), algumas comunicações 
são direcionadas a um público muito amplo e heterogêneo. Isso faz com que a maioria 
das produções literárias, jornalísticas, didáticas e científicas assumam uma forma mais 
complexa que a comunicação cotidiana (Bakhtin, 2016). Nessas formas mais complexas 
de comunicação, o autor não está antecipando as reações de um leitor individualmente 
bem definido. A exigência de que o autor deve conhecer o seu leitor só faz sentido 
figurativamente, pois 
O texto didático-científico não se dirige a um leitor singular, mas 
a vários leitores muito diferentes uns dos outros. 
Ao escrever um texto (ou gravar uma vídeo-aula, um podcast), o autor está antecipando 
a reação de um auditório muito heterogêneo e mais ou menos desconhecido. Considere, 
por exemplo, todos os estudantes de uma escola ou de uma rede de ensino: eles são 
muito diferentes uns dos outros! Eles não têm as mesmas capacidades e dificuldades, 
não vivem a mesma realidade, têm interesses próprios e não reagirão da mesma maneira 
ao texto. Alguns o entenderão, outros o julgarão difícil. Alguns se sentirão desafiados, 
outros humilhados ou entediados. 
 
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
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Como se não bastasse esse desafio de dar conta da heterogeneidade dos estudantes, as 
comunicações (orais e escritas) da educação em ciências nunca são dirigidas estritamente 
a eles. Lembro-me que, nas minhas primeiras aulas, eu me sentia um pouco inseguro 
(“Será que estou explicando da maneira correta? O que meus professores pensariam do 
que estou dizendo aqui”). Quando gravamos uma videoaula pública, esse medo fica ainda 
mais visível. Afinal, qualquer pessoa poderá ver, agora ou no futuro: alunos, colegas, 
concorrentes, formadores. Em meio a essa insegurança, eu percebi que: 
A comunicação do professor nunca se dirige somente aos 
alunos, mas leva em consideração o julgamento de outros 
personagens virtualmente presentes – sobretudo seus 
formadores e colegas de profissão. 
De fato, o primeiro leitor do material didático não é o aluno, mas outro professor. Para 
ser bem-sucedido e incorporado à escola, o material precisa convencer primeiramente 
os professores. No âmbito do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), livros didáticos 
precisam passar pelas comissões de avaliação das editoras e do Ministério da Educação, 
precisam mostrar que estão de acordo com os documentos curriculares vigentes. A 
audiência de uma produção didático-científica é, portanto, bastante variada em suas 
formas de apreciação. O “auditório” é composto por estudantes, professores, gestores 
educacionais, associações de pais. 
Ao enfrentar o auditório, o autor tem diante de si uma grande 
heterogeneidade de reações possíveis. 
Como é possível dar conta de um desafio dessa magnitude e escrever para tanta gente 
diferente? 
 
Como nasce um escritor? 
Para muitos autores (cientistas, artistas, jornalistas, produtores de materiais didáticos), a 
experiência de escrever é fundamentalmente expressiva. Eles não estão obcecados em 
antecipar as reações do auditório, mas expressam-se de maneira mais ou menos intuitiva. 
Eles não falam para agradar, mas como se tivessem o “dom” de escrever. Eles não 
parecem estar fazendo um grande esforço para serem compreendidos. É como se a 
clareza de comunicação tivesse nascido com eles. Você mesmo deve ter ouvido muitas 
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vezes que, para escrever, é necessário encontrar sua “voz interior”, sua autenticidade. 
Esse conselho, por mais romântico que seja, não está completamente equivocado. 
 
Na maturidade, vários autores descrevem sua escrita como fluida, livre, prazerosa ou 
espontânea. Hoje em dia, para mim, a escrita não é um sofrimento, mas uma atividade 
agradável. Eu não escrevo obcecado com o que as pessoas vão pensar. Digo o que quero, 
como quero e (geralmente) tenho meus trabalhos aceitos. Como isso é possível? 
Uma coisa é segura: quanto mais você estiver tenso e obcecado em dar conta das reações 
de cada leitor, mais sofrida será sua experiência de escrita. Você será como aquele aluno 
que não consegue colocar uma linha no papel de tanto medo que sente da avaliação que 
receberá. Estar atento às reações do leitor e estar obcecado com elas são duas coisas 
bem diferentes. 
A escrita pode ser vivida como a externalização de uma 
interioridade. 
A sensação de escrever costuma ser a de pôr para fora algo que já está mais ou menos 
elaborado do lado de dentro (na sua mente, nos seus sentimentos, nas suas convicções). 
Quando eu escrevo, já tenho um projeto, uma ideia aproximada do que quero dizer. Eu 
não paro na frente do computador para criar. Quando começo a digitar, a criação, de 
alguma maneira, já aconteceu. Ela só precisa ser externalizada. 
Como somos todos seres socialmente configurados (nas nossas maneiras de ser e agir no 
mundo), a autenticidade do texto não está separada de um conjunto de experiências 
vividas pelo autor com outras pessoas no passado. Conforme já discutimos, nenhuma 
palavra minha é exclusivamente minha. Ela sempre se deve, em parte, aos acordos e 
conflitos que vivi com outras pessoas. 
A externalização da interioridade supõe, portanto, a 
internalização da exterioridade. 
É muito comum entre alguns jovens reclamar que a correção de seus formadores os 
oprime. Muitos vivem a ilusão de que, na ausência das avaliações corretivas do professor, 
seriam capazes de produções mais criativas e brilhantes. Reclamam que suas 
https://www.youtube.com/watch?v=KwskxexIteo
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
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competências intelectuais e artísticas não são compreendidas. É como se a avaliação 
negativa que recebem os ofuscasse. Sempre tive a impressão de que essas pessoas, 
aparentemente muito sensíveis, são, na verdade, vaidosas. Consideram-se prontas. 
Quando criticadas, sentem-se injustiçadas. Dramatizam a crítica como se fosse resultado 
de uma violência gratuita do avaliador. 
 
Gostemos ou não, a sensação de que somos capazes de nos comunicar livremente só é 
possível ao final de um grande processo de correções. Em algum momento, fomos 
desafiados pelos nossos professores a escrever segundo as regras da gramática e da 
ciência. Nas nossas experiências em sala de aula, somos (ou seremos) interpelados pelos 
nossos alunos a nos comunicar de maneira que a ciência faça sentido para eles. Por algum 
tempo, nós preservaremos a lembrança de sermos corrigidos. Mas lembranças somem; 
ficam os efeitos da correção. É como se a voz dos nossos formadores estivesse finalmente 
incorporada à nossa. Eu mesmo já não me lembro de ser corrigido pelos meus 
professores. Em sínese: 
Se a escrita é vivida como a externalização de uma interioridade, 
o processo anterior que produz o escritor é, fundamentalmente, 
a internalização de uma exterioridade esquecida. 
Essa internalização costuma ser apagada das nossas memórias1. Quanto maior for esse 
apagamento, mais temos a impressão de que bons escritores foram agraciados por um 
dom divino. Na verdade, a formação do escritor começa bem cedo e envolve ler, reler, 
escrever, ser corrigido e reescrever várias vezes. O “dom da escrita” é uma falácia 
perniciosa que nos faz acreditar que escrever é para poucos. 
Assim como a história de formação do professor começa em suas experiências de 
estudante, a história de formação do escritor começa em suas experiências de leitura. 
E você? Como são suas experiências de leitura? Quando você lê 
um texto, o que é capaz de extrair dele? 
 
1 Vide o problema do comportamento fossilizado (VIgotski, 1998) segundo o qual algumas funções 
psicológicas vão se tornando operacionais, automáticas.Quando isso ocorre, não se consegue mais 
recuperar mais a gênese dessas funções. Por exemplo, quando olhamos para um adulto falando, andando 
e pensando, isso nos dá uma ideia muito limitada do processo que produziu suas capacidades de falar, 
andar e pensar. Com a escrita ocorre o mesmo. Olhar a atividade do escritor experiente não nos ajuda a 
entender como ele chegou lá. 
Prof. Paulo Lima Junior (UnB) 
 15 
Imagino que nossa relação com textos didático-científicos vai mudando com o passar do 
tempo. Eu mesmo, quando era mais jovem, lia os textos escolares para entender o 
conteúdo. Em geral, nós temos à nossa disposição livros didáticos muito parecidos em 
sua estrutura com pequenas variações de estilo – o que nos leva a acreditar que há 
somente uma sequência por meio da qual é possível ensinar e aprender ciência. 
Aprendemos a acreditar que a mecânica deve começar sempre pela cinemática, que a 
eletrodinâmica deve começar pelo campo elétrico da carga puntiforme... Essas crenças 
são todas falsas, mas muito justificáveis entre os leitores que não são escritores, ou entre 
alunos que não são professores. 
Para escrever materiais didáticos, passei a consultar livros e textos produzidos sob 
propostas curriculares diferentes. Isso abriu muito a minha mente para perceber o 
universo de textos possíveis que envolve cada produção didático-científica. 
Sem conhecer o universo dos materiais didáticos possíveis é 
muito difícil escolher quais caminhos seguir. 
Posso usar uma abordagem formalista, conceitual, contextualizada, sociocientífica, 
histórica, filosófica, experimental, lúdica... As opões são diversas, mas é preciso conhecê-
las um pouco. Para mim, foi necessário voltar aos livros didáticos não com o olhar do 
aluno (que desejava aprender o conteúdo), mas como um professor-autor, que precisa 
levar várias outras coisas em consideração. Como escritor dos meus próprios textos, eu 
preciso ler o que outras pessoas estão escrevendo para saber que opções eu tenho, quais 
caminhos são mais frutíferos e originais, quais foram repisados e não merecem a minha 
atenção. 
Nesse processo, a filosofia da linguagem do círculo de Bakhtin cumpriu um papel 
fundamental na minha formação de leitor-analista-escritor. Seus conceitos permitiram 
dar nome e chamar atenção a aspectos da produção textual que precisam se observados 
por qualquer autor em potencial. 
 
Do sistema da língua para a ciência 
Redescoberta na década de 1960, na Europa, e nos anos 1980, no Brasil, a filosofia da 
linguagem do círculo de Bakhtin inspirou muitas pesquisas sobre os usos da linguagem 
em contextos e grupos específicos. Ela se opõe tanto à tendência estruturalista de pensar 
a língua como um sistema sem sujeitos (objetivismo abstrato) quanto à tendência 
https://www.youtube.com/watch?v=6_IwkSdoGHo
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
 16 
romântica de pensar a ação individual independente dos contextos concretos da 
atividade humana (subjetivismo idealista) (Voloshinov, 2017). 
É bastante curioso que os campos da linguística e das ciências da natureza tenham 
enfrentado desafios filosóficos semelhantes. Para muitos linguistas da primeira metade 
do século XX, a ideia de um sistema da língua (abstrato, objetivo e despersonalizado) 
tinha grande apelo (Faraco, 2009). Da mesma maneira, muitos de nós rezam na igreja da 
ciência objetiva, como se ela não dependesse de pessoas concretas para existir. Em 
realidade, sem a nossa ação no mundo (nós, cientistas e professores de ciências), a 
ciência sequer existiria. Afinal, se nós, cientistas, professores e estudantes de ciências 
morrermos e queimarmos nossos livros, a ciência não morrerá conosco? 
É ilusória a crença de que tanto a língua quanto a ciência 
existam fora de nós, de nossa atividade concreta no mundo. 
Há uma classe de ilusões muito populares que vêm montadas no cavalo do objetivismo 
científico. São elas: a separação entre ideologia e técnica (como se existisse técnica sem 
ideologia), a crença de que a ciência descreve o mundo sem colocar nele o seu acento, a 
ilusão da neutralidade científica. 
Todos nós já ouvimos os noticiários nomearem uma “ala técnica” do governo (composta 
por militares e economistas), em oposição a uma “ala ideológica”. Muitos jornalistas 
repetem isso como um mantra. No fundo dessas distinções está a crença ilusória de que, 
onde a técnica entra, a ideologia sai; que uma parte do governo é obtusa enquanto outra 
deve ser respeitada. Afinal, a técnica e a ciência existem sem pessoas, mas a política não... 
Tudo isso não é obviamente falso? Não foi justamente nas alas consideradas técnicas que 
surgiam as maiores imoralidades e escândalos de corrupção desse governo?2 Em que 
medida a neutralidade da ciência não funciona como um disfarce conveniente nesses 
momentos de crise? 
 
Um dispositivo analítico 
Ainda que a filosofia da linguagem de Bakhtin seja riquíssima, não pretendo mergulhar 
nela aqui ainda que várias ideias-chave tenham sido antecipadas intuitivamente. Vou 
 
2 Vide os desvios nas compras de vacina no Ministério da Saúde, onde muitos militares estão implicados, 
as aplicações em moeda estrangeira do Ministro da Economia e os escândalos do ex-juiz Sérgio Moro na 
vaza-jato. Todos os maiores descalabros de nosso tempo foram protagonizados por personagens 
considerados, em algum momento, técnicos e imparciais. 
https://www.youtube.com/watch?v=KShoiF1XI3A
Prof. Paulo Lima Junior (UnB) 
 17 
direto ao que considero ser o elemento mais instrumental para a análise de textos 
didáticos. Observe o seguinte fragmento: 
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da 
linguagem. [...] O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais 
e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele 
campo da atividade humana. [...] Todos esses três elementos – o conteúdo 
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente 
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela 
especificidade de um determinado campo da comunicação. (Bakhtin, 2016) 
Ai, temos alguns elementos mínimos que podem ajudar em todas as nossas análises. 
Segundo Bakhtin, o uso da linguagem dá-se por meio de enunciados concretos e únicos. 
Esses enunciados podem ser analisados observando: 
• Conteúdo temático. É aquilo que o texto diz. 
• Estilos de linguagem. Recursos lexicológicos e gramaticais empregados. 
• Construção composicional. Forma de organização do todo do texto. 
Todos esses três elementos estão conectados entre si e ligados à esfera da atividade 
humana, ao contexto da comunicação. Por tudo o que foi dito até aqui, só conseguimos 
entender o que uma obra comunica se nós a devolvermos para seu contexto de 
produção, observando as especificidades da esfera da atividade humana em que essa 
obra foi produzida, por quem foi escrita e para quem. 
E se nós tentarmos ler os materiais didáticos segundo essa perspectiva? Para simplificar 
o nosso trabalho, vou propor que sejam respondidas as seguintes perguntas: 
1. Qual é o conteúdo do texto? 
2. Quais são os estilos de linguagem empregados? 
3. Como a construção composicional pode ser descrita? 
4. O que sabemos sobre a situação concreta de comunicação? 
5. Como todas as perguntas anteriores se relacionam mutuamente? 
Em nossas análises, vamos tentar responder a todas essas perguntas. Evidentemente, 
essas perguntas não serão respondidas de maneira mecânica, mas levando em 
consideração tudo o que foi discutido até aqui. 
Referências 
Bakhtin, M. (2015). Teoria do romance. Editora 34. 
Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Editora 34. 
Cabral, F. (1984). A primeira lei de Newton é um caso particular da segunda lei. Caderno 
Catarinense de Ensino de Física, 1(1), 4–7. 
de Pereira, A. P., & Lima Junior, P. (2014). Implicações da perspectiva de Wertsch para a 
interpretação da teoria de Vygotsky no ensino de Física. Caderno Brasileiro de Ensino 
de Física, 31(3), 518–535.https://doi.org/http://dx.doi.org/10.5007/2175-
7941.2014v31n3p518 
de Pereira, A. P., Lima Junior, P., & Rodrigues, R. F. (2016). Explaining as Mediated Action: 
An Analysis of Pre-service Teachers??? Account of Forces of Inertia in Non-inertial 
Introdução à análise e produção de materiais didáticos 
 18 
Frames of Reference. Science and Education, 25(3–4), 343–362. 
https://doi.org/10.1007/s11191-016-9806-x 
Faraco, C. A. (2009). Linguagem & Diálogo – as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. 
Parábola Editorial. 
Freire, P. (1974). Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. 
Lima Junior, P., Anderhag, P., & Wickman, P.-O. (2021). How does a science teacher 
distinguish himself as a good professional? An inquiry into the aesthetics of taste for 
teaching. International Journal of Science Education, 1–18. 
https://doi.org/10.1080/09500693.2021.1958392 
Lima Junior, P., da Silveira, F. L., Ostermann, F., & Pinheiro, N. C. (2015). A Física como 
uma construção cultural arbitrária : Um exemplo da controvérsia sobre o status 
ontológico das forças inerciais. Revista Brasileira de Pesquisa Em Educação Em 
Ciências, 15(1), 195–217. 
VIgotski, L. S. (1998). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos 
psicológicos superiores. Martins Fontes. 
Voloshinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do 
método sociológico na ciência da linguagem. Editora 34. 
 
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