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Richard E. Palmer
HEDMENÊUTICA
O SABER DA FILOSOFIA
edições 70
Uma visão histórica, sintética e densa, do
problema e da constituição da Hermenêutica
e das implicações filosóficas fundamentais
da interpretação. R. Palmer analisa e expõe
com argúcia as linhas básicas do pensamento
de alguns dos principais hermeneutas:
Scheleierm acher, Dilthey, Heidegger e
Gadamer.
O SABER DA FILOSOFIA
edições 70
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Richard E. Palmer
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V
O SABER Q \ FILOSOFIA
edições 70
Q
O SABF.R DA FILOSOFIA
1 — A EPISTEM OLOGIA
Gaston Bacheland
2 - IDEO LOG IA E RA CIONALIDADE
NAS CIÊN CIAS DA VIDA
Georgcs Canguilhem
3 - A FILOSOFIA CR ÍTICA DE KANT
Gillcs Deleuze
4 — 0 NOVO ESPÍR ITO CIEN TÍFIC O
Gaston Bachclard
5 — A FILOSOFIA CH IN ESA
Max Kaltenmark
6 - A FILOSOFIA DA M ATEM ÁTICA
Am brosio Giacomo M anno
7 - PROLEGÓM ENOS A TODA A M ETA FÍSICA FUTURA
Immanuel Kant
8 - ROUSSEAU E MARX
Galvano Dclla Volpe
9 — BREVE HISTÓ RIA DO ATEÍSM O OCID EN TAL
James Thrower
10 — FILOSOFIA DA FÍSICA
M ario Bunge
II — A TR ADIÇÃ O INTELECTU AL DO OCID EN TE
J. Bronowski c Brucc Mazlish
12 - A LÓGICA COM O CIÊN CIA HISTÓ RICA
G alvano Dclla Volpe
13 — A HISTÓ RIA DA LÓGICA — DE ARISTÓTELES
A BERTRAND RUSSEL
Robert Blanché
14 — A RAZÃO
Gilles-Gaston Granger
15 - HERM ENÊUTICA
Richard E. Palmcr
16 — A FILOSOFIA ANTIGA
Emanuele Severino
17 - A FILOSOFIA M ODERNA
Emanuele Severino
18 — A FILOSOFIA CONTEM PORÂ NEA
Em anuel Severino
19 — EXPOSIÇÃ O E INTERPRETAÇÃO
DA FILOSOFIA TEÓ RICA DE KANT
Felix Grayeff
20 - TEO RIAS DA LINGUAGEM ,
TEO RIAS DA APRENDIZAGEM
M assimo Piattelli-Palm arini (org.)
21 — A REVOLUÇÃO NA CIÊN CIA 1500-1700
A. Rupert Hall
1 — INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA HISTÓ RIA DE HEGEL
Jean Hyppolite
23 — AS FILOSOFIAS DA CIÊN CIA
Rom Harre
24 - GA LILEU E NEW TON LIDOS PO R EINSTEIN
Françoise Balibar
25 — AS RAZÕES DA CIÊN CIA
Ludovico Geym onat/G iulio Giorello
26 — A FILOSOFIA DE DESCARTES
John Cottingham
27 — INTROD UÇÃ O A HEIDEGGER
G ianni Vattimo
HERMENÊUTICA
Título original: HERMENEUT1CS - INTERPRETATION
THEORY in Schleiennacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer
© Northwestern University Press, 1969
Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Capa de Edições 70
Todos os direitos reservados para língua portuguesa
por Edições 70, Lda.
Depósito legal n° 96840/96
ISBN: 972-44-0340-8
EDIÇÕES 70, LDA.
Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.” Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal
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procedimento judicial.
Richard E. Palmcr
HERMENÊUTICA
79491
edições 70
SISTEMA INTEGRADO DE BiBLIOTECAS
Pe. Inocente Radrizzam
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PREFÁCIO
Poderíamos ter chamado a este livro: «O que é a hermenêu
tica?» ou «O significado da hermenêutica», pois ele é, entre outras
coisas, um registo da busca feita pelo seu autor no que respeita
à compreensão de um termo imediatamente desconhecido para a
maior parte das pessoas cultas e ao mesmo tempo potencialmente
significativo para uma série de disciplinas relacionadas com a inter
pretação, especialmente com a interpretação de textos.
Este estudo emergiu de um projecto mais específico, que dizia
respeito ao significado que a teoria de Bultmann sobre a interpre
tação bíblica teve para a teoria literária: durante este estudo tor-
nou-se evidente a necessidade de uma clarificação fundamental do
que fossem o desenvolvimento, significado e âmbito da própria
hermenêutica. Uma clarificação desse tipo tornou-se de facto num
pré-requisito para o projecto original. À medida que prosseguia nesse
trabalho preliminar, as possibilidades ricamente sugestivas de uma
hermenêutica geral e não teológica (que, de facto, constituem a
base da teoria de Bultmann e da «nova hermenêutica») levaram-me
a focar apenas uma forma pré-teológica de hermenêutica, enquanto
diz respeito à teoria da interpretação literária.
Porque as fontes primitivas neste campo relativamente des
conhecido são essencialmente em alemão, vi-me obrigado a expô-las
de um modo bastante extenso. E porque a própria definição do
termo hermenêutica se tornou tema de uma acerba controvérsia,
foi necessário abordar com certa profundidade o problema da defi
nição, antes de discutir os quatro teóricos de maior nome neste
campo.
Por fim, reservou-se para um segundo volume o exame deta
lhado das implicações da hermenêutica na teoria literária, facto que
constituíra em primeiro lugar a justificação deste projecto, embora
o primeiro e os dois últimos capítulos deste trabalho possam dar ao
leitor interessado uma sugestão do que em seguida virá.
9
Talvez seja bom acrescentar uma nota técnica a explicar a
minha escolha do termo hermeneutics (hermenêutica) (*). James
M. Robinson em The New Hermeneutic sugeriu que. não há qual
quer justificação filológica para colocarmos um s no fim da palavra;
nem «aritmética» nem «retórica» requerem um 5 e ambas designam
um campo geral. Mais ainda, «hermeneutics» é um feminino singular
noutras línguas modernas — hermeneutik em alemão; herméneu-
tique em francês — e vem do latim hermeneutica. Robinson aventou
que a queda do s (no termo inglês) poderia também sugerir uma
nova orientação na teoria hermenêutica, aquilo que veio a desig
nar-se por a Nova Hermenêutica.
Não ponho em causa a irrefutabilidade filológica do argumento
defendido por este eminente teólogo americano. A minha utilização
do s em «hermeneutics» também não deve ser encarada como uma
rejeição da posição hermenêutica representada pela Nova Herme
nêutica. Pelo contrário, os contributos de Heidegger e de Gadamer
para a hermenêutica (hermeneutics) constituem os fundamentos da
Nova Hermenêutica e proponho afastar-me de uma abordagem
hermenêutica estritamente filológica, realçando o carácter frutífero
da perspectiva mais fenomenológica que estes autores defendem
face ao problema hermenêutico. Contudo, por razões meramente
práticas, decidi-me a deixar o termo hermeneutics no seu estado
de pecado filológico: a palavra é já de si suficientemente estra
nha e desconhecida, sendo desnecessário acrescentar-se-lhe mais
esta dificuldade.
Também ao reter o s há uma maior flexibilidade na utilização
do termo. Podemos, por exemplo, referir genericamente o campo da
hermenêutica (hermeneutics) e a teoria específica de Bultmann,
designando-a como a hermenêutica de Bultmann (Bultmann’s her
meneutic).
Para além disto, há o facto de a forma adjectiva poder ser
«hermenêutica» («hermeneutic or hermeneutical») como na teoria
hermenêutica ou na teologia hermenêutica. Porque «hermenêutica»
tende a soar como um adjectivo, a menos que seja acompanhado
do artigo «a» ou de qualquer outro modificador, e porque o s
sugere «regras» e «teoria», continuei a utilização estandardizada.
Agradeço ao American Council of Learned Societies a bolsa
que me concedeu (Post — Doctoral Study Fellowship) e que me
permitiu passar o ano de 1964-1965 no Institut für Hermeneutik,
na Universidade de Zurique e na Universidade de Heidelberg. Os
meus especiais agradecimentos vão para o Professor Gerhard Ebeling,
(*) O autor utiliza o termo hermeneutics e não hermeneutic. A nota
visa justificar esta distinção. Optámos em português pela designação genérica
de hermenêutica. (N. da T.)
10
então director do Instituto, e para o seu assistente Fricdricli IIn te l,
pelo facto de me terem permitido estudar e dactilografar o trubalho
a qualquerhora, não falando já da sua constante ainabilidudc c
assistência. Em Heidelberg, o Professor Gadamer permitiu amavel
mente que eu assistisse ao seu «Hegelkreiss» e que apresentasse uma
comunicação «Die Tragweite von Gadamers Wahrheit und Methude
fü r die Literaturauslegung»; as críticas e reflexões pessoais feitas
pelo Professor Gadamer nessa ocasião foram da maior utilidade.
Também gostaria de lhe agradecer o facto de me ter apresentado
a Heidegger e de agradecer ao Professor Heidegger a reacção favo
rável que teve à minha ideia de utilizar a sua teoria da compreensão
como a base de uma abordagem fenomenológica da interpretação
literária.
Os meus agradecimentos vão também para os administradores
do Mac M urray College, pelo subsídio suplementar que me conce
deram e que permitiu que a minha família se deslocasse comigo
para a Europa. Também lhes agradeço a recente ajuda no que
respeita às despesas de dactilografia do manuscrito final.
Os colegas que se seguem tiveram a amabilidade de ler e cri
ticar partes do manuscrito: Lewis S. Ford (Raymond College),
Severyn Bruyn (Boston College), William E. Umbach e William
W. Main (Universidade de Redlands), John F. Smolko (Catholic
University of America), Gordon E. Michalson (School of Theology,
Claremont), Karl Wright, J. Weldon Smith, Gisela Hess, Philip
Decker e Ruth O. Rose (todos do Mac Murray College) e James
M. Eddie (Northwestern University). Os meus especiais agradeci
mentos vão para os colegas que leram integralmente o manuscrito
em qualquer das suas fases de elaboração: Calvin Schrag (Univer
sidade de Perdue), Theodore Kisiel (Canisius College), Ruth Kovacs
(Mac Murray College) e de um modo especial Roger Wells (jubi-
lado de Bryan Mawr e actualmente em Mac Murray), cujas suges
tões editoriais muito apreciei. O autor deseja agradecer a Miss
Victoria Hargrave e a Mrs. Glenna Kerstein, da biblioteca de Mac
Murray, a sua assistência incansável. Também agradece aos seguin
tes estudantes de Mac Murray College pelas sugestões prestadas e
pelo trabalho de dactilografia: Jackie Menefee, Ann Baxter, Shamin
Lalji, Sally Shaw, Peter Brown e Ron Heiniger.
Por fim, minha mulher e os meus filhos suportaram sem uma
queixa todo o tempo que roubei à sua companhia. A minha mulher
fez a revisão de provas de todo o manuscrito. Também estou grato
a Edward Surovell, da Northwestern University Press, pela leitura
criteriosa que fez do meu manuscrito.
R. E. P.
Mac Murray College
Janeiro, 1968
11
PRIM EIRA PARTE
SOBRE A DEFINIÇÃO, ÂMBITO E SIGNIFICADO
DA HERMENÊUTICA
1
INTRODUÇÃO
Hermenêutica é uma palavra que cada vez mais se ouve nos
círculos teológicos, filosóficos e mesmo literários. A Nova Herme
nêutica emergiu como um movimento dominante na teologia
protestante europeia, defendendo a hermenêutica como o ponto
central dos actuais problemas teológicos f ) . Houve três conferências
sobre hermenêutica de âmbito internacional, na Drew University O
e é possível encontrar várias obras recentes em inglês sobre herme
nêutica num contexto teológico (3). Martin Heidegger, num conjunto
de ensaios recentemente publicados, discute o carácter persistente
mente hermenêutico do seu próprio pensamento, no que respeita
tanto ao primeiro como ao último Heidegger (*). A própria filo
sofia, afirma Heidegger, c (ou devia ser) «hermenêutica». E, em
1967, o esplêndido isolamento da crítica literária americana no que
respeita à hermenêutica foi destruído pela obra de E. D. Hirsch
Validity in Interpretation. O tratado de Hirsch é um ensaio com
pleto sobre hermenêutica, constituindo um desafio às ideias domi
nantes da crítica actual. Segundo Hirsch, a hermenêutica pode e
(') Ver a posição de Gcrhard Ebeling, que defende ser a hermenêutica
o Brennenpunkt (ponto central) dos problemas teológicos de hoje.
O Em 1962, 1964 e 1966. As comunicações da Conferência de 1962
foram publicadas em NH. Os encontros de 1966 foram publicados — «Inler-
pretation: The Poetry of Meaning», ed. Stanley R. Hooper and David L. Millcr.
A obra «The later Heidegger and Theology», ed. James M. Robinson e John
B. Cobb, Jr. está intimamente relacionada com as conferências.
(3) Acrescentando-se a NH, e mais recentemente a Robert W. Funk,
nLanguage, Hermeneutic and Word of God», veja-se o «Journal of Theology»
e as «Church series of books» editadas por Robert W. Funk e Gerhard Ebeling,
especialmente «The Bultmann School of Biblical Interpretation: New Direc-
tions»? e «History and Hermeneutics».
(') «Aus einem Gesprãch von der Sprache», US esp. 95-99, 120-32, 136,
150-55.
15
deve servir de disciplina fundamental, preliminar a toda a inter
pretação literária.
Com estas reivindicações contemporâneas da importância cen
tral de hermenêutica em três disciplinas humanísticas — teologia,
filosofia e interpretação literária — torna-se cada vez mais evidente
a importância que este domínio assumirá nas fronteiras do pensa
mento americano nos próximos anos. Mas o termo não é uma
palavra usual quer na filosofia quer na crítica literária; e mesmo
em teologia o seu uso aparece muitas vezes num sentido restrito
que contrasta com um uso largamente feito na «nova hermenêu
tica» teológica contemporânea. Daí o colocar-se frequentemente
a questão: que é a hermenêutica? O Webster Thircl New Inter
national Dictionary define-a como: o estudo dos princípios meto
dológicos de interpretação e de explicação; hermenêutica específica:
o estudo dos princípios gerais de interpretação bíblica. Uma defi
nição deste tipo poderá satisfazer aqueles que apenas pretendam
uma compreensão operatória da própria palavra; os que pretendam
alcançar uma ideia do campo da hermenêutica exigirão muito mais.
Infelizmente, não há por enquanto em inglês nenhum tratamento
completo de hermenêutica enquanto disciplina geral, não teológica.
No entanto, há uma necessidade premente no sentido de uma
abordagem introdutória à hermenêutica num contexto não teoló
gico, orientado para a clarificação do sentido e do âmbito do termo.
O presente trabalho pretende ir ao encontro desta necessidade.
Dar-se-á ao leitor uma ideia da fluidez da hermenêutica e dos
problemas complexos que se ligam à sua definição. Discutir-se-So
os problemas básicos que preocuparam quatro dos maiores pensa
dores sobre este tema. Também rerão dadas referências bibliográ
ficas básicas para uma exploração ulterior.
Contudo, para o seu autor, este livro situa-se no contexto de
um outro projecto — o de se orientar numa abordagem mais ade
quada da interpretação literária. Na teoria hermenêutica alemã,
podemos encontrar as bases filosóficas para um conhecimento radi
calmente mais amplo dos problemas da interpretação literária.
Assim, o objectivo de explorar a hermenêutica subordina-se neste
livro a uma outra finalidade: delinear a matriz das razões no âmbito
das quais os teóricos literários americanos poderão significativa
mente retomar a questão da interpretação, num nível filosófico
anterior a todas as considerações de aplicação a técnicas de análise
literária. Pondo a questão de um modo programático, a finalidade
deste livro é apelar para que a interpretação literária americana
reexplore num contexto fenomenológico a pergunta: o que é inter
pretação? Por fim, este estudo aponta uma orientação específica
para o problema: a abordagem fenomenológica. Vê na hermenêu
16
tica fenomenológica, contra outras formas, o contexto mais ade
quado para a questão ser explorada.
Na perspectiva da finalidade programática deste estudo rela
tivamente à interpretação literária, as duas secções que se seguem
apresentam algumas observações preliminares sobre a situação da
crítica literária americana e sobre a necessidade de uma reavaliaçflo
filosófica do pensamento literário americano.
Algumas conseqüências do senso comum.
A objectividadena critica literária americana
Filosoficamente falando, a interpretação literária em Inglaterra
e na América actua de um modo geral num contexto realista (*).
Tende a pressupor, por exemplo, que a obra literária está simples
mente «lá fora», no mundo, essencialmente independente daqueles
que a captam. A percepção que cada um tem da obra é considerada
separadamente da própria obra, e a interpretação literária tem
como tarefa falar da «própria obra». De igual modo, as intenções do
autor são consideradas enquanto rigidamente separadas da obra;
a obra é em si mesma «um ser», um ser com os seus próprios
poderes e a sua dinâmica. Um intérprete moderno típico defende
geralmente a obra literária como «um ser autônomo» e vê a sua
tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autônomo por meio
da análise textual. A separação preliminar de sujeito e objecto, tão
axiomática no realismo, torna-se o fundamento filosófico e o con
texto da interpretação literária.
Os frutos extraordinários de um contexto deste gênero tor-
nam-se patentes na arte altamente desenvolvida das recentes análises
de texto. Esta arte não tem ponto de comparação na história da
interpretação literária ocidental, no que respeita a poder técnico
e a subtileza. Chegou, no entanto, a hora de pôr em causa o fun
damento dos pressupostos sobre os quais assenta. E isto faz-se
melhor, não do interior da própria perspectiva realista, mas saindo
dela e inspeccionando-a. A fenomenologia é uma orientação do
pensamento europeu que submeteu as concepções realistas da
percepção e da interpretação a uma crítica radical. Ao fornecer
a chave para uma reavaliação dos pressupostos sobre os quais se
baseia a interpretação literária inglesa e americana, a fenomeno
logia poderia fornecer o ímpeto para um próximo e decisivo avanço
na teoria e na prática da interpretação americana.
Um estudo da fenomenologia tom a especialmente visível a
semelhança essencial entre o realismo e a perspectiva «científica»
(s) Ver Neal Oxenhandler, «Ontological Criticism in America and France»,
HLR, LV (1960) 17-18.
17
mostrando até que ponto a interpretação literária caiu num modo
científico de pensar: a sua objectividade operatória, a sua concep-
tuulização estática, a sua ausência de sentido histórico, o seu amor
l>ela análise. Porque, com todas as suas pretensões humanísticas
e a defesa inflamada que faz da poesia «numa era de tecnologia»,
a crítica moderna literária tornou-se cada vez mais tecnológica.
Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma
obra literária (mau grado a sua «existência autônoma») tende a ser
encarado como um objecto — um «objecto estético». O texto é
analisado numa total separação relativamente a qualquer sujeito
percepcionante, e a «análise» é considerada como sendo virtual
mente sinônima de «interpretação».
Mesmo a recente aproximação com a crítica social, numa
espécie de formalismo iluminado, apenas alarga a definição do
objecto, incluindo na análise o seu contexto social (*). A interpre
tação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada
como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem bio
lógica) do objecto (ou «ser») literário. É claro que como este ser
ou objecto «estético», pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais
«humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no en
tanto, a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como
ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação.
Nas aulas de literatura, diz-se mesmo aos estudantes que a expe
riência pessoal que têm de um trabalho extraliterário é uma espécie
de falácia irrelevante para q análise da obra Ç). Os professores, uni
dos em convênio gigantesco, lamentam ritualmente o facto de os
seus alunos acharem a literatura «irrelevante»; mas a concepção
tecnológica que têm da interpretação, com a sua metafísica de um
realismo envolvente, promove realmente a própria irrelevância que
eles tão ineficazmente lamentam. «A ciência manipula as coisas e
desiste de viver nelas», diz-nos o falecido fenomenologista francês
Maurice Merleau-Ponty (!). Isto resume numa frase o que aconteceu
à interpretação literária americana. Esquecemos que a obra literária
não é um objecto manipulável, completamente à nossa disposição;
é uma voz humana que vem do passado, uma voz à qual temos de
certo modo que dar vida. O diálogo, e não a dissecação, abre o
universo da obra literária. A objectividade desinteressada não é ade-
quávcl à compreensão de uma obra literária. É claro que o crítico
moderno defende a paixão — e mesmo a capitulação perante «a exis
tência autônoma da obra» —, mas, não obstante, vai trabalhando a
(*) í>, precioso o capítulo final da obra de Walter Sutton «Modem Ame
rican Crillcism» (a crítica como um acto social).
(’) listou a pensar na bem conhecida «falácia afectiva» como foi, por
mrmplo, apresentada na obra de William K. Wimsatt Jr., «The Verbal Icon».
(') «liyr and Mind», tradução Carleton Dallery, in Merleau-Ponty «The
1'rlriiin v nI 1‘trctption and other Essays», ed. James M. Edie, pág. 1S9.
18
obra, considerando-a como um objecto de análise. Contudo, iti
obras literárias serão consideradas mais perfeitamente não enquanto
objectos de análise mas como textos que falam, criados por seres
humanos. Há que arriscar o nosso «mundo» pessoal se queremos
penetrar no mundo vivo de um grande poema lírico, de um romance
ou de uma obra. E para isso, não precisamos de qualquer método
científico disfarçado, ou de qualquer «anatomia de uma crítica»,
com tipologias e classificações muito brilhantes e subtis f ) , mas sim
de uma compreensão humanística daquilo que implica a interpre
tação de uma obra.
Interpretação literária, hermenêutica e Interpretação
de obras
A tarefa da interpretação e o significado da compreensão são
diferentes (uma mais indefinível, outra mais histórica) no que res
peita a uma obra e no que respeita a um «objecto». Um «objecto»
é sempre selado com um toque humano; a própria palavra o sugere,
porque uma obra é sempre a obra de um homem ou de Deus. Por
outro lado, um «objecto» pode ser uma obra ou pode ser um objecto
natural. Usar o termo «objecto» relativamente a uma obra é tornar
obscura uma distinção importante, pois temos necessidade de enca
rar a obra não como objecto mas como obra. A crítica literária
precisa de procurar um «método» ou «teoria» especificamente ade
quados à decifração da marca humana numa obra, ao seu «signi
ficado». Este processo de «decifração», esta «compreensão» do signi
ficado de uma obra, é o ponto central da hermenêutica. A herme
nêutica é o estudo da compreensão, é essencialmente a tarefa de
compreender textos. As ciências da natureza têm métodos para
compreender os objectos naturais; as «obras» precisam de uma her
menêutica, de uma «ciência» da compreensão adequada a obras
enquanto obras. É certo que os métodos de «análise científica»
podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo
estamos a tratar as obras como objectos silenciosos e naturais. Na
medida em que são objectos, são redutíveis a métodos científicos de
interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão
mais subtis e compreensíveis. O campo da hermenêutica nasceu
como esforço para descrever estes últimos modos de compreensão,
mais especificamente «históricos» e «humanísticos».
Como veremos nos próximos capítulos, a hermenêutica chega à
sua dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de
artifícios e de técnicas de explicação de texto e quando tenta ver
o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação
(") Especialmente a obra de Northorp Frye «Anatomy of Criticism».
19
geral da própria interpretação. Deste modo, implica dois pólos de
atenção, diferentes e interactuantes: 1) o facto de compreender
um textoe 2) a questão mais englobante do que é compreender e
interpretar.
Um dos elementos essenciais para uma teoria hermenêutica ade
quada e, consequentemente, para uma teoria adequada da interpre
tação literária, é uma concepção da própria interpretação que seja
suficientemente lata (” ). Consideremos por um momento a ubiqui-
dade da interpretação e a generalidade da utilização da palavra:
O cientista chama «interpretação» à análise que faz dos dados;
o crítico literário chama interpretação à análise que faz de uma
obra. Chamamos intérprete ao tradutor de uma língua estrangeira;
um comentador de notícias «interpreta» as notícias. Interpreta
mos — por vezes erradamente — uma observação de um amigo, uma
carta de familiares, ou um sinal da estrada. Na verdade, desde que
acordamos de manhã, até que adormecemos, estamos a «interpre
tar». Ao acordar, olhamos para o despertador e interpretamos o
seu significado: lembramos em que dia estamos e ao compreender
o significado desse dia estamo-nos já a lembrar do modo como nos
situamos no mundo e dos planos de futuro que temos; levantamo-nos
e temos que interpretar as palavras e os gestos das pessoas que con
tactamos na nossa vida diária. A interpretação é, portanto, talvez
o acto essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio
facto de existir pode ser considerado como um processo constante
de interpretação.
A interpretação ultrapassa o mundo lingüístico em que o homem
vive, pois a própria existência dos animais depende dela. Estes sen
tem o modo como se situam no mundo. Um pouco de comida em
frente de um chimpanzé, de um cão ou de um gato será interpre
tado pelo animal em termos das suas próprias necessidades e da
sua própria experiência. Os pássaros conhecem os sinais que os
levam a voar em direcção ao Sul.
É claro que há uma interpretação constante a muitos níveis lin
güísticos, tecidos pela convivência humana. Joachim Wach diz-nos
que podemos conceber a existência humana sem linguagem, mas
não a podemos conceber sem uma compreensão mútua de um
homem para outro — ou seja, não a podemos conceber sem inter
pretação. No entanto, a existência humana (“ ) tal como a conhe
cemos implica sempre a linguagem e, assim, qualquer teoria sobre
interpretação humana tem que lidar com o fenômeno da linguagem.
E entre os mais variados meios simbólicos de expressão usados pelo
homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer na flexibilidade e
(“ ) Ver o meu artigo «Toward a Broader Concepl of Interpretation» ISN
(Novembro 1967), 3-14, e a minha resenha de VII in JAAR, XXXVI (Setembro
1968) 243-46.
O1) V I, 1.
20
poder comunicativos, quer na importância geral que desempenha (” ).
A linguagem molda a visão do homem e o seu pensamento — simul
taneamente a concepção que ele tem de si mesmo c do seu mundo
(não sendo estes dois aspectos tão separados como parecem).
A própria visão que tem da realidade é moldada pela linguagem (1J).
Muito mais do que pensa, o homem veicula através da linguagem
as várias facetas da sua vida — aquilo que venera, aquilo que ama,
os comportamentos sociais, o pensamento abstracto; mesmo a forma
dos seus sentimentos é conforme com a linguagem. Se considerar
mos este tema em profundidade, torna-se visível que a linguagem é
o «medium» no qual vivemos, nos movemos e no qual temos o nosso
ser (“ ).
A interpretação é, portanto, um fenômeno complexo e universal.
E no entanto até que ponto o crítico literário compreende este fenô
meno de um modo complexo e profundo? Temos que nos interrogar
se os críticos não tenderão a equacionar análise e interpretação.
Temos que nos interrogar se acaso as asserções realisticamente meta
físicas e as suposições que estão na base de quase todas as formas
da crítica moderna não apresentarão uma visão da interpretação,
simplificada e mesmo distorcida. Uma obra literária não é um
objecto que compreendemos através da conceptualização ou da aná
lise; é uma voz que devemos ouvir, e «ouvindo-a» (mais do que
vendo-a) comprendemo-la. Como sugeriremos nos capítulos seguin
tes, a compreensão é simultaneamente um fenômeno epistemológico
e ontológico. A compreensão literária tem que se enraizar em modos
de compreensão mais latos e primordiais que têm a ver com o
nosso próprio ser-no-mundo. Portanto, compreender uma obra
literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge
da existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico
que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo.
A hermenêutica é o estudo deste último tipo de conhecimento.
Pretende juntar duas áreas da teoria da compreensão: o tema da
quilo que está envolvido no facto de compreender um texto e o
tema de o que é a própria compreensão, no seu sentido mais fun-
dante e «existencial». Enquanto corrente de pensamento alemão, a
hermenêutica acabou por ser profundamente influenciada pela feno-
mcnologia alemã e pela filosofia existencial. E é claro que- o signi
ficado que tem para a interpretação literária americana é realçado
pela aplicação desse pensamento aos problemas da interpretação
dc textos.
O esforço constante de lidar com o fenômeno da compreensão
naquilo em que ele ultrapassa a mera interpretação textual, dá à
(IJ) Ver Ernst Cassirer, «Philosophy of Symbolic Forms» e o capítulo sobre
lliiKUUKcm na sua obra «Essay on Man*.
(•*) Ver Benjamin Whorf, «Language, Thoughl and Reality».
(“ ) Ver mais adiante os capítulos sobre Heidegger e sobre Gadamer.
21
hermenêutica um significado potencialmente lato no que se refere
a todas as disciplinas habitualmente designadas por humanidades.
A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão
das obras humanas, transcende as formas lingüísticas de interpre
tação. Os seus princípios aplicam-se não só a obras escritas, mas
também a quaisquer obras de arte. Visto isto, a hermenêutica é
fundamental em todas as humanidades — em todas as disciplinas
que se ocupam com a interpretação das obras do homem. É mais
do que meramente interdisciplinar, porque os seus princípios in
cluem um fundamento teórico para as humanidades (“ ); os seus
princípios deviam colocar-se como um estudo essencial para todas
as disciplinas humanísticas.
O contraste acima feito entre uma compreensão científica e
aquilo a que chamámos uma compreensão histórica ou hermenêu
tica, torna mais claro o carácter distinto da tarefa interpretativa
nas humanidades. E, por contraste, também clarifica o carácter de
interpretação nas ciências. Através de um estudo da teoria herme
nêutica, as humanidades alcançam uma medida mais cheia de auto-
conhecimento e uma melhor compreensão do carácter da sua tarefa.
O presente estudo'tenta, no entanto, lançar os fundamentos filo
sóficos para explorar o significado da hermenêutica na interpretação
literária. Esses fundamentos deverão ser uma compreensão ade
quada do que é a própria hermenêutica. Na busca dessa compreen
são, este livro começa com as raízes grçgas da moderna palavra
«hermenêutica», traçando depois o desenvolvimento de certas con
cepções da teoria hermenêutica (tanto quanto se chamou a si pró
pria hermenêutica) nos tempos modernos. Finalmente, explora com
certo pormenor os problemas que inquietaram quatro dos principais
pensadores dessa área. A busca não é de modo algum exaustiva,
mas preliminar; não entra na utilização da hermenêutica na teo
logia contemporânea O , nem tenta discutir o incremento deste
tema que actualmente ocorre em França (17). Os capítulos finais dão
realmente algumas indicações sobre o significado da hermenêutica
fenomenológica no que respeita à interpretação literária, mas o pre
sente estudo é encarado essencialmente como uma introdução filo
sófica à hermenêutica, podendo servir simultaneamente de funda
mento para um segundo volume que discuta a hermenêutica na sua
relação com a teoria literária.C“ ) Ver HAMG e AAMG.
C*) A nota 3 acima mencionada faz uma listagem de referências nesse
campo.
(,T) Com uma pequena excepção que é a discussão no capitulo cinco
de D. I. de Ricoeur; ver também a sua «Exislence et Hermeneutique» Dialogue,
IV (1965-6) 1-25, e a sua obra «La Structure, Le Mot, VEvènement», M EW
I, (1968), 10-30.
22
2
HERM ENEUEIN E HERMENEIA:
O SIGNIFICADO MODERNO DO SEU ANTIGO USO
As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego her-
meneuein, usualmente traduzido por «interpretar», e no substantivo
liermeneia, «interpretação». Uma exploração da origem destas duas
palavras e das três orientações significativas básicas que elas veicula-
vam no seu antigo uso esclarece consideravelmente a natureza da
interpretação em teologia e em literatura e servirá no actual con
texto de introdução válida para a compreensão da hermenêutica
moderna.
Hermeneuin e hermeneia, nas suas várias formas, aparecem
inúmeras vezes em muitos dos textos que nos vieram da Antiguidade.
Aristóteles no Organon considerou que o tema merecia um trata
do importante, o famoso Peri hermeneias, «Da interpretação», (’).
A palavra aparece na sua forma substantiva em «Édipo em Co
lono», e muitas vezes em Platão. Encontram-se inúmeras forrnas do
termo na maior parte dos escritores antigos mais conhecidos, como
Xenofonte, Plutarco, Eurípedes, Epicuro, Lucrécio e Longino (J).
Poder-se-ia consagrar um estudo frutífero ao contexto de cada ocor
rência, para determinar em cada caso os matizes de significado;
neste capítulo, apenas notaremos a associação das palavras com o
deus Hermes, apontaremos três vertentes essenciais do seu signifi
cado e sugeriremos algo sobre o seu actual sentido, especialmente
no que respeita à interpretação literária e bíblica.
(') Aristóteles. The Basic Works, págs. 40-61. Tem interesse uma tradução
roccnte do tratado: Aristóteles, «Da interpretação», com comentário de S. Tomás
do Aquino e de Caetano, tradução e introdução de Jean T. Oecterle.
(a) Hermeneia e hermêneuein, G E L . Ver também Johannes Bhem, Er-
mrncuo, ermeneia in TDNT II, 661-66.
23
As origens e as três orientações significativas
de «hermeneuein» e «hermeneia»
A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo
de Delfos. Esta palavra, o verbo hermeneuein e o substantivo her
meneia, mais comuns, remetem paar o deus-mensageiro-alado
Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou
vice-versa?). E é significativo que Hermes se associe a uma fun
ção de transmutação — transformar tudo aquilo que ultrapassa
a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga
compreender. As várias formas da palavra sugerem o processo
de trazer uma situação ou uma coisa, da inteligibilidade à com
preensão. Os Gregos atribuíam a Hermes a descoberta da linguagem
e da escrita — as ferramentas que a compreensão humana utiliza
para chegar ao significado das coisas e para o transmitir aos outros.
M artin Heidegger, que vê a própria filosofia, enquanto «inter
pretação», relaciona explicitamente a filosofia-como-hermenêutica
com Hermes. Hermes «traz a mensagem do destino; hermeneuein
é esse descobrir de qualquer coisa que traz uma mensagem, na
medida em que o que se mostra pode tornar-se mensagem. Uma
tal descoberta torna-se numa explicação do que já fora dito pelos
poetas, que são eles próprios, segundo Sócrates no diálogo platônico
«Ion» (534 e) «mensageiros (Botschafter) dos deuses», hermenes eisin
tòn tehon (J). Assim, levada até à sua raiz grega mais antiga, a ori
gem das actuais palavras «hermenêutica» e «hermenêutico» sugere o
processo de «tornar compreensível», especialmente enquanto tal pro
cesso envolve a linguagem, visto ser a linguagem o meio por exce
lência neste processo.
Este processo de «tornar compreensível», associado a Hermes
enquanto ele é mediador e portador de uma mensagem, está implí
cito nas três vertentes básicas patentes no significado de herme
neuein e hermeneia, no seu antigo uso. As três orientações, usando
a forma verbal (hermêneuein) para fins exemplificativos, significam:
1) exprimir em voz alta, ou seja, «dizer»; 2) explicar, como quando
se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma
língua estrangeira C).
Os três significados podem ser expressos pelo verbo português
«interpretar», e no entanto cada um representa um sentido inde-
(») U S 121-122.
(') Relativamente a estas três orientações significativas, ver o precioso
artigo de Gerhard Ebeling «Hermeneutik» R G G III, 242.
24
pendente e relevante do termo interpretação. A interpretação ptule
pois referir-se a três usos bastante diferentes: uma recitaçflo oral,
uma explicação racional e uma tradução de outra língua quer
para grego quer para português. Podemos, no entanto, notar que
o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três casos, há
algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço
ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível;
há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é,
de certo modo, «tornado compreensível», «interpretado».
Para começar, podemos notar que a interpretação literária en
volve dois desses processos e muitas vezes um terceiro. A literatura
apresenta algo que deve tornar-se compreendido. O termo do texto
pode estar longe de nós no tempo, espaço, linguagem e pode haver
outros obstáculos à sua compreensão. Isto também se aplica à
compreensão de um texto bíblico. A tarefa da interpretação deverá
ser tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo
real, próximo e inteligível. Os diferentes aspectos deste processo
interpretativo são vitais e essenciais quer para a literatura quer
para a teologia. Examinemos, pois, cada um deles no que respeita
ao seu significado na interpretação literária e teológica. (É interes
sante notar como a maior parte dos críticos literários ignoram as
abordagens interpretativas existentes na teologia cristã contem
porânea.)
Hermeneuein como «dizer»
A primeira orientação fundamental do sentido de hermeneuein
é «exprimir», «afirmar» ou «dizer». Isto relaciona-se com a função
anunciadora de Hermes. Do ponto de vista da teologia, tem signi
ficado uma polêmica etimológica que nota estar a forma inicial
herme próxima do latim sermo, «dizer», e do latim verbum, pala
vra (’)• Isto sugere que o sacerdote ao apresentar a Palavra está
a «anunciar» e a «afirmar» algo; a sua função não é meramente
explicar, mas sim proclamar. O sacerdote, tal como Hermes, e tal
como o sacerdote de Delfos, traz notícias fiéis da divindade.
Naquilo que diz ou proclama, ele é, tal como Hermes, um- men
sageiro de Deus para com o homem. Mesmo o simples dizer, afirmar
ou proclamar é um acto importante de interpretação.
Ainda dentro desta primeira orientação significativa, há um
matiz vagamente diferente, sugerido pela frase «expressar», que
ainda mantém um sentido de «dizer», mas que é um dizer que é
(’) Ibidem. James M. Robinson nota, N H 2-3, que hermêneia era tam
bém usado antigamente para designar um trabalho de formulação lógica ou
de elocução artística, aquilo a que hoje se chama «interpretação oral».
25
cm si próprio interpretação. Por esta razão, somos orientados pelo
modo como uma coisa se exprime — o «estilo» de uma «perfor
mance». Usamos este cambiante da palavra «interpretação» quando
nos referimos à interpretação que um artista faz de uma canção
ou que um maestro faz de uma sinfonia. Neste sentido, a interpre
tação é uma forma de dizer. De igual modo, a dicção oral ou o
canto são interpretações. No tempo dos gregos, hermeneia podia
referir-se por exemplo a uma recitação oral de Homero.
No Ion de Platão, o jovem intérprete recita Homero e através
das suas entoações «interpreta-o», exprimindo-o e mesmo expli-
cando-o subtilmente, transmitindomais do que ele próprio cons
tata ou compreende. Assim, torna-se tal como Hermes, num veículo
da mensagem homérica.
É certo que Homero era ele próprio um intermediário entre os
deuses e o homem, um «intérprete» que nas palavras de Milton,
«justificava os caminhos de Deus para o homem». Assim, Homero
era um intérprete, no sentido mais primitivo da palavra, pelo facto
de que antes dele as palavras não tinham ainda sido ditas. (É óbvio
que as lendas já existiam; daí poder-se dizer que ele apenas «inter
pretava» e enunciava as lendas.) Dizia-se que o próprio Homero
fora inspirado pelos deuses; no seu «dizer», era um intérprete deles.
O dizer e a recitação oral enquanto «interpretação» recordam
aos literatos um nível que muitos deles tendem a desprezar ou
mesmo a esquecer. E, no entanto, a literatura faz derivar muito do
seu dinamismo, do poder da palavra falada. Desde tempos imemo
riais que as grandes obras da linguagem são feitas para serem ditas
em voz alta e para serem ouvidas. Os poderes da linguagem falada
deveriam recordar-nos um importante fenômeno: a fraqueza da
linguagem escrita. A linguagem escrita não tem a «expressividade»
primordial da palavra falada. Todos sabemos que a passagem de
uma língua a escrito a vai fixar e conservar, dando-lhe estabilidade,
constituindo as bases da história (e da literatura), mas ao mesmo
tempo sabemos que a enfraquece. Na sua Carta Sétima e também
no Fédro, Platão enfatiza a fraqueza e inutilidade da linguagem
escrita. Toda a linguagem escrita apela para uma reconversão na sua
forma falada; apela para um poder perdido. Escrever uma língua
é «uma alienação da língua» relativamente à sua vivacidade — é uma
Selbstentfremdung der Sprache (*), um autodistanciamento da fala.
(A palavra alemã para língua, Sprache, é sugestiva dessa forma
primordial da linguagem que é a de ser falada.)
As palavras orais parecem ter um poder quase mágico, mas ao
tornarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura
usa palavras de modo a tirar o máximo partido da sua «eficácia»,
mas, no entanto, muito do seu poder se esgota quando a audição
(•) Ver W M 370-71.
26
se converte num processo visual de leitura. Naturalmente que não
podemos hoje recuar para uma transmissão oral da literatura (e há
vantagens numa transmissão escrita), mas não deveríamos esquecer
que a linguagem na sua forma originária é mais ouvida do que
vista e de que há boas razões que fazem com que a linguagem oral
seja mais facilmente «compreendida» do que a linguagem escrita.
Consideremos o facto da leitura em voz alta. A interpretação
oral não é uma resposta passiva aos signos no papel, à maneira de
um fonógrafo que toca um disco; é um tema criativo, 6 uma «per
formance», semelhante à de um pianista que interpreta uma peça
musical. Qualquer pianista poderá dizer-nos que uma partilura
musical é como uma casca. Para interpretar a música é preciso
chegar ao «sentido» das frases. O mesmo se passa com a leitura da
linguagem escrita. Um intérprete oral tem apenas um envólucro do
original — «contornos» de sons sem indicação do tom, ênfase ou
atitude, e no entanto tem que reproduzir sons vivos. Mais uma
vez, aquele que reproduz tem que chegar ao sentido das palavras,
de modo a exprimir, mesmo que seja uma só frase. Mas como se
passa esta misteriosa apreensão de sentido? O processo é um para
doxo confuso: para lermos algo torna-se necessário compreender
previamente o que vai ser dito e, porém, esta compreensão
deverá vir da leitura. O que aqui começa a emergir é um complexo
processo dialéctico implicado em toda a compreensão, na medida
em que torna uma frase significativa e, de certo modo, numa orien
tação oposta, lhe fornece o alvo e o relevo. Só estes conseguirão
tornar significativa a palavra escrita. Assim, a interpretação oral
tem duas vertentes: é necessário compreender algo para o podermos
exprimir e, no entanto, a própria compreensão vem a partir de uma
leitura-expressão interpretativa.
Para quem profissionalmente esteja ligado à «interpretação lite
rária», particularmente para os professores de literatura, que sen
tido terá o facto da linguagem falada ser considerada em si mesma
como um fenômeno interpretativo? Fundamentalmente torna-se ne
cessário reexaminar o papel da interpretação oral em todo o ensino
da literatura. Pois não será a leitura de produções literárias (pelo
estudante) uma «performance» análoga à interpretação musical?
Precisamos de nos interrogar sobre quantas produções literárias
foram escritas directamente para serem lidas em silêncio. Os roman
ces foram-no nitidamente e alguns poemas recentes assentam oca
sionalmente sobre efeitos visuais; no entanto, mesmo nestes casos,
não é verdade que muitas vezes (e com toda a justiça) imaginamos
os sons à medida que os lemos?
Por exemplo, ao ler um romance de Dostoiévsky, não é que ou
vimos o diálogo por meio de uma «audição interna?» Não será pois
o sentido inseparável das entoações auditivas fornecidas de acordo
com «o círculo do sentido contextual» que se construiu no processo
27
de leitura da obra? (Isto, como veremos, é na realidade o «círculo
hermenêutico».) Aqui está novamente a vertente oposta da dia-
léctica: o leitor fornece a «expressão» de acordo com a sua com
preensão do texto. A tarefa da interpretação oral não é de modo
algum uma mera técnica que exprima um sentido totalmente co
piado; é uma tarefa filosófica e analítica e nunca pode divorciar-se
do problema da própria compreensão. Mais especificamente, «o
problema da compreensão», especialmente o da compreensão da
linguagem, é intrínseco a toda a «interpretação literária». É este
problema que constitui o tema da hermenêutica.
Tomemos isto como princípio: Toda a leitura silenciosa de um
texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral. E os
princípios de compreensão que se aplicam numa boa interpretação
oral também se aplicam à interpretação literária como um todo.
Uma crítica literária que aspira a ser um «Enabling Act» (*), colo
ca-se em parte como um esforço para compensar a fraqueza e a
total debilidade da palavra escrita; tenta devolver à obra as dimen
sões do discurso oral. Consideremos a segunda questão: Não é ver
dade que um crítico literário avaliará diferentemente uma versão
oral de um soneto e um a versão escrita do mesmo? No caso da
interpretação oral, não estará ele na verdade a oferecer uma inter
pretação rival, uma comparação imaginária com a sua própria inter
pretação? No caso de ser escrita, não estará à procura de outras
palavras escritas (e por conseguinte igualmente castrantes, retendo
o seu conteúdo básico conceptual, visual e não auditivo) para subs
tituir o que se perdeu com o som das palavras? Não estará ele
num certo sentido a fornecer aquilo que uma boa interpretação
oral fornece por meio da pura sonoridade?
Especialmente na «nova crítica», é habitual imaginar que o texto
fala por si, sem a ajuda de dados biográficos, históricos ou psico
lógicos. O próprio texto tem o seu «ser» nas palavras, no seu
arranjo, nas suas intenções, e nas intenções da obra enquanto ser
de uma determinada espécie. Se assim é, não será que o crí
tico — que idealmente não domina mas que antes se rende ao ser
da obra (e é assim que deverá ser) — ajuda a restaurar a perda
implícita nas palavras escritas? Quando o crítico tom a patentes os
elementos conceptuais (as suas ferramentas) não estará a construir
um contexto significativo (um «círculo hermenêutico») a partir do
qual sairá uma «performance» oral mais apropriada, mesmo que
disfarçada de leitura silenciosa mais profundamente interpretativa?
Isto ainda cumpre a intenção da Nova Crítica que é preservar a
integridade da existência da própria obra, da «heresia da paráfrase»,
pois ela trabalha para que o texto fale por si mesmo. A esta luz, a
(*) Decretoque conferiu à Igreja Estabelecida (Established Church) uma
certa autonomia. (N. da T.)
28
Nova Crítica sem dúvida que concordaria que uma crítica verda
deira, «autônoma», é a que se orienta para uma leitura oral mais
adequada do próprio texto, de modo a que o texto possa existir
outra vez como um acontecimento significativo no tempo, um ser
que irradie pela sua verdadeira natureza e integridade.
A interpretação oral ajuda a crítica literária a lembrar-se da
sua intenção secreta, quando considera (de um modo mais cons
ciente) a definição da «existência» de uma obra, não como uma
coisa estática e conceptual, não como uma «essência» atemporal
que se coisificou enquanto conceito expresso por palavras, mas
antes como uma existência que realiza o seu poder de existir en
quanto acontecimento oral no tempo. A palavra tem que deixar
de ser palavra (i. e. visual e conceptual) e tornar-se «evento»; a
existência de uma obra literária é uma «palavra evento» que acon
tece enquanto «performance» oral O- Uma crítica literária ade
quada orienta-se para a interpretação oral da obra na qual se
concentra. Nada há na «autonomia existencial» da obra literária
que contradiga este princípio; pelo contrário, a autonomia da exis
tência está de acordo com ele (').
O poder da palavra oral é também significativo nessa religião
centrada no texto que é o Cristianismo. Tanto São Paulo como Lu-
tero são famosos por dizerem que a salvação vem pelos ouvidos. As
epístolas de São Paulo foram compostas para serem lidas em voz alta
e não silenciosamente. Lembremo-nos que a leitura rápida e silen
ciosa é um fenômeno moderno trazido pela Imprensa. A nossa era
de velocidade fez da «leitura rápida» uma virtude; é-nos extrema
mente custoso imprimir a semivocalização das palavras numa
criança que aprende a ler. E, no entanto, isto era perfeitamente
normal em épocas passadas. Santo Agostinho afirma que era assim
que lia. A teologia cristã tem que se lembrar de que a «teologia da
Palavra» não é uma teologia da palavra escrita mas sim da palavra
falada, a Palavra que nos confronta na «linguagem evento» das
palavras faladas. As Escrituras (especialmente na teologia de Bult
mann) são Kerygma, uma mensagem que deve ser proclamada.
É certo que a tarefa da teologia é explicar a palavra na língua e no
contexto de cada época, mas deverá também exprimir e proclamar
a Palavra no vocabulário da época. O esforço de propagação da
Bíblia impressa, auto-anular-se-á se a Bíblia for vista basicamente
como um contrato, como um documento legal ou como uma expli
cação conceptual do mundo. A linguagem bíblica actua de um
modo totalmente diferente de um manual de construção ou de uma
O Usei aqui intencionalmente o vocábulo familiar de teologia do «evento
discursivo» (speech-event theology); ver W F 295 n.° 313, 318-9 e passim.
(*) Algumas teorias modernas da interpretação oral orientam-se para a
centração numa palavra evento. Ver Don Geiger, «The Sound, Sense and Per
formance of Literature».
29
folha informativa; «Informação» é uma palavra significativa aponta
para uma utilização da linguagem diferente da que se encontra na
Bíblia. Apela para a faculdade racional e não para a personalidade
no seu todo; para compreendermos uma informação não temos que
recorrer à nossa experiência pessoal nem que tomar qualquer
risco — e a informação não é muito afectada por uma leitura silen
ciosa. Mas a Bíblia não é informação; é uma mensagem, uma «pro
clamação», e é suposto lê-la em voz alta e ouvi-la. Não é um
conjunto de princípios científicos; é uma realidade de uma ordem
diferente da verdade científica. É uma realidade que deve ser com
preendida como um relato histórico, é um acontecimento para ser
ouvido.' Um princípio é científico; um acontecimento é histórico.
A racionalidade de um princípio não é a de um evento. Neste sen
tido mais profundo da palavra «histórico», a literatura e a teologia
são, enquanto disciplinas, mais estritamente «históricas» do que
«científica» (9). Os processos interpretativos adequados à ciência,
são diferentes dos processos interpretativos adequados aos aconte
cimentos históricos, ou dos acontecimentos que a teologia e a
literatura pretendem compreender.
A presente abordagem da primeira orientação significativa do
antigo uso de hermeneuein — interpretação como dizer e como ex
primir — levou à afirmação de alguns princípios fundamentais de
interpretação, quer em literatura quer em teologia. Levou-nos à
forma e função primordiais da linguagem como som vivo, detentor
do poder de uma fala significativa. A linguagem, enquanto emerge
de um não ser, não é signo mas som. Perde algum do seu poder
expressivo (e por conseguinte do seu significado) quando se reduz
a imagens visuais — o mundo silencioso do espaço. Por conseguinte,
a teologia e a interpretação literária devem reconverter a escrita
em discurso. Os princípios de compreensão que permitem esta con
versão constituem uma preocupação dominante da moderna teoria
hermenêutica.
Hermeneuein como «explicar»
A segunda orientação significativa de hermeneuein é «explicar».
A interpretação como explicação dá ênfase ao aspecto discursivo
da compreensão; aponta para a dimensão explicativa da interpre
tação, mais do que para a sua dimensão expressiva. No final de
contas, as palavras não se limitam a dizer algo (embora também o
façam e isso seja um movimento fundamental da interpretação);
elas explicam, racionalizam e clarificam algo. Podemos exprimir
(s) Ver Car! Michalson «The Rationality of Failh».
30
uma situação sem a explicar; exprimi-la é interprctá-la, mas cxpli
cá-la é também uma forma de «interpretação». Consideremos hIku
mas das dimensões desta segunda e mais óbvia forma de interpre
tação e o seu significado actual.
As mensagens crípticas do oráculo de Delfos não interpretavam
um texto preexistente; eram «interpretações» de uma situação. (As
próprias mensagens precisavam de ser interpretadas.) Levavam algo
a exprimir-se (o que é a primeira e primordial orientação significa
tiva) mas o que levavam a exprimir-se era ao mesmo tempo a
explicação de algo — algo previamente inexplicado. Levavam o «sig
nificado» de uma situação à sua formulação verbal; explicavam-no,
por vezes, por meio de palavras que escondiam tante quanto revela
vam. Diziam em palavras, algo sobre uma situação, sobre a realidade.
O significado não estava escondido no estilo ou na maneira de dizer;
não era isso que constituía a sua preocupação dominante. Tratava-se
antes de uma explicação, no sentido de dizer algo sobre qualquer
outra coisa. Asskn, enquanto que num sentido os oráculos apenas
diziam ou enunciavam, enquanto explicação orientavam-se para
um segundo momento interpretativo — explicar ou dar conta de
algo.
O tratado de Aristóteles «Peri hermeneias» define a interpretação
como «enunciação». Uma definição deste tipo sugere a primeira
orientação significativa, «dizer» ou «anunciar». No entanto, se o
texto for aprofundado, como actualmente o podem fazer aqueles
que lêem inglês, devido a uma recente tradução com um extenso
comentário de S. Tomás (’°), a segunda orientação também se pode
aplicar.
Aristóteles define hermeneia referindo-se à operação da mente
que formula juízos que têm a ver com a verdade ou falsidade das
coisas. Neste sentido, a «interpretação» é a operação fundamental
do intelecto quando formula um juízo verdadeiro sobre uma coisa.
Um pedido, uma ordem, uma pergunta ou uma imprecação não são
juízos, segundo Aristóteles, mas derivam de juízos. Constituem for
mas secundárias de frases que se aplicam a situações que o intelecto
originalmente percebeu sob a forma de juízo. (É típico em Aristó
teles o facto do intelecto se aperceber do significado sob a forma de
juízo.) O juízo originário «a árvore é castanha» precede qualquer
juízo que exprimaum desejo ou uma utilização da mesma. Por
conseguinte, as «interpretações» não são juízos que tendam para
uma utilização — como é um pedido ou uma ordem — mas antes
juízos sobre algo que é verdadeiro ou falso. Aristóteles define-os
como «um discurso onde há verdade ou falsidade» (17 a 2). Uma
conseqüência desta definição de interpretação é que tanto a retó
(” ) Ver a nota (I).
31
rica como a poética estão fora do âmbito do tratado de interpre
tação, visto que tendem a comover o ouvinte (17 a 5).
A enunciação (interpretação) não pode, segundo Aristóteles con
fundir-se com a lógica, porque a lógica provém da comparação de
juízos formulados. A enunciação é a formulação dos próprios juízos,
não é um processo de raciocínio que parte do conhecido para o
desconhecido. De um modo geral, Aristóteles divide as operações
básicas da mente em 1) compreensão simples dos objectos 2) ope
rações de composição e de divisão, 3) operações de raciocínio
partindo do conhecido para o desconhecido. A enunciação, tal
como é discutida na obra Da interpretação é apenas lida com o
segundo sentido: a operação construtiva e divisiva de formular juí
zos susceptíveis de verdade ou falsidade. A enunciação não é por
tanto lógica, retórica ou poética, mas mais fundamental; é a
enunciação da verdade (ou falsidade) de uma coisa enquanto juízo.
O que fazer com esta definição específica de interpretação, restrita
mas contudo frutífera? Em primeiro lugar, é significativo o facto
de a enunciação não ser «a compreensão simples dos objectos» mas
de lidar com os processos implicados na construção de um juízo
verdadeiro. Actua ao nível da linguagem mas ainda não é lógica;
a enunciação alcança a verdade de uma coisa e incorpora-a como
juízo. O telos do processo não é agir sobre as emoções (a poética)
ou provocar uma actuação política (retórica) mas sim tornar com
preensível o juízo.
A enunciação, ao procurar exprimir a verdade de algo tal como
um juízo proposicional, inclui-se nas operações da mente mais altas
e puras, na teoria mais do que na prática; preocupa-se mais com
a verdade e falsidade do que com a utilidade. Não se tratará então
da primeira orientação significativa e não da segunda? Ou seja,
mais do que exprimir ou dizer, não se tratará antes de explicar?
Talvez assim seja; mas temos que ver que a expressão diz respeito
ao estilo, temos que notar que dizer era quase como que uma
operação divina: anunciava o divino mais do que enunciava o
racional. A enunciação para Aristóteles, não é uma mensagem da
divindade mas uma operação do intelecto racional. E como tal,
começa imperceptivelmente a transformar-se em explicação. Come
çamos já a compor e a dividir para encontrar a verdade de um juízo;
porque o dizer é pensado como juízo, começa já a afirmar-se o
elemento racional, a verdade torna-se estática e informativa, é um
juízo sobre uma coisa que corresponde à sua essência. Já a verdade
é «correspondência» e o dizer é «juízo»; imperceptivelmente, a ver
dade do «acontecer» transforma-se na verdade estática de princípios
e de juízos.
E, no entanto, Aristóteles teve razão ao situar o momento da
interpretação mais cedo do que os processos de análise' lógica. Isto
chama a atenção para um erro do pensamento moderno, que tende
32
demasiado depressa a fixar automaticamenle a interpretação no
momento da anáüse lógica. Os processos lógicos são também inter
pretação, mas a «interpretação» prioritária e fundante tem que ser
lembrada. Por exemplo, um cientista chamará interpretação às
análises de dados que faz; também seria correcto chamar inter
pretação à sua visão dos dados. Mesmo no momento cm que os
dados se tornaram juízos, ocorreu interpretação. Do mesmo modo
um crítico literário chamará interpretação à análise que faz de uma
obra; seria igualmente correcto chamar interpretação ao modo
como ele vê a obra.
Todavia, a «compreensão» que serve de base à interpretação
já molda e condiciona a interpretação — é uma interpretação preli
minar, mas uma interpretação que provocará toda a diferença
(mudança) porque coloca o palco para uma interpretação subse
quente. Mesmo quando um intérprete literário se volta para um
poema e diz: «Isto é um poema, vou compreendê-lo fazendo isto
ou aquilo», ele iá interpretou a sua tarefa e consequentemente já
moldou a sua visão do poema ("). E com o seu método, já moldou
0 significado do objecto. Na verdade, método e objecto não podem
separar-se: o método já delimitou o que veremos. Já nos disse o
que o objecto é enquanto objecto. Por este facto, todo o método
é já interpretação; é, no entanto, apenas uma interpretação e o
objecto, visto com um método diferente, será um objecto diferente.
Portanto, a explicação tem que ser vista no contexto de uma
explicação ou interpretação mais funda, a interpretação que já
ocorre no modo como nos voltamos para o objecto. A explicação
apoiar-sc-á certamente nas ferramentas da análise objectiva, mas
a selecção das ferramentas relevantes é já uma interpretação da
tarefa compreensiva. A análise é interpretação; sentir a necessidade
de análise é também uma interpretação. Assim, a análise não é
realmente uma interpretação básica mas sim uma forma derivada;
montou primeiro o palco com uma interpretação essencial e pri
mária, antes mesmo de começar a trabalhar com os dados. E isto
infelizmente é tão verdade no que respeita à «análise noticiosa»
que interpreta os acontecimentos do dia, como para a análise cien
tífica de laboratório ou para a análise literária feita na sala de
aula. O carácter derivado da lógica, enquanto dependente de propo
sições, é suficientemente claro; o carácter caracteristicamente deri
vado da explicação ou análise não é tão óbvio, mas não é menos
real.
Um uso interessante da palavra hermenêutica aparece no Novo
1 cstamento, em Lucas 24, 25-27. Jesus ressuscitado aparece:
(“ ) Isto é uma fraqueza inerente ao gênero crítica, por exemplo à tra-
b i^IIh. Hü observações brilhantes sobre este tipo de crítica, aplicadas a Ésquilo,
nrn H. D. F. Kitto, «Form and Meaning in Drama» e mais recentemente na
mm «Poitsis».
33
E disse-lhes: «Ó homens loucos, lentos em acreditar no que
os profetas disseram! Então não era necessário que Cristo
sofresse tudo isto antes de ser glorificado?» E começando
pelos livros de Moisés e por todos os profetas interpretou-
-lhes (diermeneusen) tudo o que acerca dele se dizia nas
Escrituras.
Repare-se que Cristo apelou para as faculdades dos discípulos:
«Então não era necessário?» Depois desvendou o significado dos
textos colocando-os no contexto do seu sofrimento redentor e colo
cando esse sofrimento no contexto das profecias do Antigo Testa
mento. Embora a utilização que o Novo Testamento faz do Antigo
Testamento tenha interesse em si mesma, deixemos de parte o
problema teológico e interroguemo-nos sobre o que o exemplo sugere
sobre a interpretação enquanto explicação. A citação é nitidamente
um exempio de explicação, porque Jesus estava a fazer algo mais
do que repetir ou reafirmar os textos antigos; explicou-os e expli-
cou-se a si mesmo em função deles. Aqui a interpretação envolve
a busca de um factor externo, Cristo, para designar o «sentido» dos
textos antigos. Só na presença deste factor é que os textos se tor
nam significativos. Por outro lado, Cristo é também visado para
mostrar que só à luz dos textos o seu sacrifício se torna significa
tivo enquanto cumprimento histórico do profetizado Messias.
O que é que isto sugere do ponto de vista hermenêutico? Sugere
que o significado tem a ver com o contexto; o processo explicativo
fornece o palco da compreensão. Um acontecimento só se torna
significativo dentro de um contexto específico. Mais ainda: Cristo
ao relacionar a sua morte com a esperança num Messias, relaciona
este acontecimento histórico com as esperanças pessoaise intenções
dos seus ouvintes. O seu significado torna-se o de um Redentor
pessoal e histórico. O significado está numa relação com os pró
prios projectos e intenções dos ouvintes; não é algo que Jesus pos
sua em si próprio, fora da história e fora da relação que tem com
os ouvintes. Podemos dizer que um objecto não tem sentido fora
de uma relação com alguém e que a relação determina o signifi
cado. Falar de um objecto independentemente de um sujeito que o
perceba é um erro conceptual causado por um conceito realistica-
mente inadequado, quer da percepção quer do mundo; mas mesmo
aceitando esse conceito, será pertinente falar de sentido e de signi-
fado fora de sujeitos que percepcionem?
Os teólogos gostam de realçar o aspecto pro nobis (para nós)
de Cristo, mas podemos afirmar que em princípio todas as expli
cações são «para nós», toda a interpretação explicativa assume inten
ções naqueles a quem a explicação se dirige.
Outro modo de dizer isto é afirmar: a interpretação explicativa
torna-nos conscientes de que a explicação é contextual, é «horizon
tal», (horizonal). Deve processar-se dentro de um horizonte de sig
34
nificados e intenções já aceites. Em hermenêutica, esta área de uma
compreensão pressuposta, é designada por pré-comprccnsão. Pode
mos frutiferamente perguntar que pré-compreensão é necessária
para podermos conhecer o texto (dado).
Jesus forneceu aos seus ouvintes os elementos necessários para
compreenderem os textos proféticos; isso fazia parte da explicação
necessária. Mesmo assim, tinha que assumir uma pré-compreensão
do que era a profecia e daquilo que ela poderia significar para eles
antes de poder explicar-se perante os seus ouvintes. Poderíamos
perguntar qual o horizonte interpretativo que um grande texto
literário habita e, depois, como é que o horizonte do próprio mundo
de intenções, esperanças e pré-interpretações de um indivíduo se
relaciona com ele. Esta fusão de dois horizontes deve ser consi
derada um elemento básico de toda a interpretação explicativa.
Uma forma de interpretação literária que, como foi sugerido,
tem como meta uma interpretação oral mais completa, não des
prezará as dimensões explicativas da interpretação. Longe disso, o
enquadramento do horizonte no qual se coloca a compreensão é
o fundamento de uma interpretação oral verdadeiramente comu
nicativa. (Lembremos que interpretação oral é o que todos fazemos
quando ao ler um texto procuramos fornecer todas as nuances do
seu significado; pode não ser em público ou mesmo em voz alta.)
Para que o intérprete faça uma «performance» do texto tem que o
compreender; tem que previamente compreender o assunto e a
situação antes de entrar no horizonte do seu significado. Só quando
consegue meter-se no círculo mágico do seu horizonte é que o
intérprete consegue compreender o seu significado. Esse é o tal
misterioso «círculo hermenêutico» sem o qual o sentido do texto
não pode emergir. Mas há aí uma contradição. Como pode um
texto ser compreendido, quando a condição para a sua compreensão
é já ter percebido de que é que o texto fala? A resposta é que,
de certo modo, por um processo dialéctico, há uma compreensão
parcial que é usada para compreendermos cada vez mais, tal como
ao manusear as peças de um «puzzle» adivinhamos o que dele
falta. Uma obra literária fornece um contexto para a sua própria
compreensão; um problema fundamental em hermenêutica é expli
car como é que um horizonte individual se pode acomodar ao hori
zonte da obra. É necessário um certo conhecimento prévio, sem
o qual não haverá qualquer comunicação. No entanto, esse conhe
cimento tem que ser alterado no acto de compreensão. A função
de uma interpretação explicativa na interpretação literária pode ser
vista neste contexto, como um esforço para colocar os fundamentos
numa pré-compreensão que permita compreender o texto.
À medida que consideramos estas duas orientações da interpre
tação (dizer e explicar), a complexidade do processo interpretativo
e o modo como ele se baseia na compreensão começam a aparecer.
35
A interpretação como «dizer», relembra a natureza da leitura como
«performance»; contudo, mesmo na «performance» que é ler um
texto literário, o actor tem que o «compreender». Isto implica expli
cação; mas aqui, mais uma vez a explicação se fundamenta numa
pré-compreensão, de modo a que anteriormente a qualquer expli
cação significativa ele tem que entrar no horizonte do tema e da
situação. Ele tem que, na própria compreensão do texto, agarrar
esse texto e ser agarrado por ele. A sua posição neste encontro,
a pré-compreensão do material e da situação a que tem que chegar,
numa palavra, todo o problema da fusão do seu horizonte com
preensivo com o horizonte compreensivo que vem ao encontro dele
no texto, nisto consiste a complexa dinâmica da interpretação.
É o «problema hermenêutico».
Considerar os elementos acima indicados do problema interpre-
tativo, não é, como alguns poderiam pensar, cair no «psicologismo».
Porque a perspectiva em que a acusação de «psicologismo» e a
atitude de antipsicologismo (pressuposta na acusação) ganham algum
sentido, pressupõe de base uma separação e um isolamento do
objecto e depois considera depreciativamente a reacção «subjectiva»
como se ela estivesse no campo intangível dos «sentimentos». No
entanto, a discussão aqui apresentada não lidou com sentimentos
mas com a estrutura e a dinâmica da compreensão, com as condi
ções em que o significado pode surgir na interacção do leitor com
o texto, com o modo como qualquer análise pressupõe já uma
definição formada da situação. Dentro do enquadramento destas
considerações, vemos como é verdadeira a observação de Georges
Gurvitch — que objecto e método nunca podem separar-se (“ ).
É claro que isto é uma verdade estranha ao modo realista de ver.
Hermeneuein como «traduzir»
As implicações da terceira orientação do significado de herme
neuein são quase tão sugestivas para a hermenêutica e para a teoria
da interpretação literária como as outras duas. Nesta orientação,
«interpretar» significa «traduzir». Quando um texto é na própria
língua de um autor, o choque entre o mundo do texto e o do seu
autor pode passar despercebido. Quando o texto é numa língua
estrangeira, o contraste de perspectivas e horizontes não pode ser
ignorado. No entanto, como veremos, os problemas daquele que
interpreta línguas não são estruturalmente diferentes dos do crítico
literário que trabalha com a sua própria língua. Permitem-nos ver
mais claramente a situação presente em qualquer interpretação
de texto.
(1J) Georges Gurvitch, «Diatectique el Sociologie».
36
A tradução é uma forma especial do processo básico intcrpre
tativo de tornar compreensível. Neste caso, tornamos compreensível
o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível, utilizando como
medium a nossa própria língua. Tal como o deus Hermes, o tradutor
é um mediador entre um mundo e outro. O acto de traduzir não
é uma simples questão mecânica de encontrar sinônimos. Os resul
tados ridículos das máquinas tradutoras tornaram isso por de mais
evidente. O tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes.
A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua
contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de
que a própria língua contém uma visão englobante do mundo, à
qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expres
sões individuais. A tradução apenas nos (orna mais totalmente
conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a nossa
visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de
que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existi
mos nesse medium e através dele; vemos através dos seus olhos.
A tradução da Bíblia pode servir de ilustração aos problemas
da tradução em geral ("). A Bíbliachega-nos de um mundo distante
no tempo, espaço e língua, um mundo estranho que temos que
interrogar (e que nos interroga). De certo modo, o horizonte do
nosso universo compreensivo deve encontrar-se e fundir-se com o
horizonte compreensivo do texto. Mediado não só pela língua mas
também pela história (um espaço de tempo de dois mil anos), o
Novo Testamento deve falar com palavras que sejam do nosso
mundo, que constituam o nosso medium para ver o que existe.
Como podemos esperar compreender acontecimentos que se passa
ram num contexto totalmente diferente da moderna cidade secular
de comunicação de massas, de conflitos mundiais, gás, napalm,
armas atômicas e guerra bacteriológica? Devemos manter a acção
literal do Novo Testamento ou apresentar o que seria o seu equi
valente nos tempos modernos? Eugene Nida, por exemplo, no seu
livro sobre ciência da tradução, cita o exemplo da frase caracte
rística de S. Paulo: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um santo
beijo.» O beijo era o cumprimento habitual nos termos do Novo
Testamento mas não o é nos dias de hoje. Uma versão do século XX
deverá dizer: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um "caloroso
aperto de mão?»
Este exemplo é um problema menor, comparado com as ques
tões mais fundas do choque entre toda a visão do mundo do Novo
Testamento e a visão do mundo moderno, científica e pós-deística.
É exactamente este o problema que o teólogo alemão Rudolf Bult
mann tentou encarar com o seu projecto controverso de desmito-
(ls) Eugene A. Nida, «Toward a Science oi Translating: with special refe-
rence to Principies and Procedures Involved in Bible Translating».
37
logização. Bultmann nota que a mensagem bíblica se coloca no
contexto de uma concepção cosmológica em que os céus são colo
cados em cima, a terra no meio e o mundo subterrâneo em baixo —
é um universo de três níveis. A resposta a tal situação é afirmar
que a mensagem do Novo Testamento não está dependente da sua
cosmologia. Esta é apenas o contexto de uma mensagem sobre a
obediência pessoal e a transformação num «homem novo». A desmi-
tologização é uma tentativa de separar a mensagem essencial da
«mitologia» cosmológica na qual nenhum homem moderno pode
acreditar.
Sejam quais forem os méritos teológicos da desmitologização
enquanto solução para este dilema interpretativo, o próprio projecto
aponta para um problema profundo: Como devemos «compreender»
o Novo Testamento? O que é que estamos a tentar compreender?
Até onde temos que penetrar no mundo histórico do pensamento
e da experiência próprios do Novo Testamento antes de o podermos
interpretar? Será de algum modo possível encontrar equivalentes
para a «compreensão» do Novo Testamento? Será que o nosso
mundo mudará tanto num século que o Novo Testamento se tor
nará ininteligível? Já hoje é mais difícil para os jovens dos centros
urbanos compreender Homero, devido aos componentes da vida
homérica — barcos, cavalos, charruas, lanças, machados, odres de
vinho — serem artigos que eles apenas conhecem de livros ou de
museus. Isto não é sugerir que Homero esteja fora de moda mas
sim que o esforço para o compreendermos se torna cada vez mais
difícil à medida que mecanizamos o nosso modo de vida.
Desmitologizar não é um problema meramente teológico; ocorre
com menos mas ainda significativa premência quando tentamos
perceber qualquer obra antiga. A actual teologia da «morte de
Deus» é uma outra forma de desmitologizar, mas clarifica um pouco
mais o problema da compreensão moderna da antiga tragédia grega:
Como é que por exemplo podemos considerar significativa uma
peça de Sófocles, se o antigo Deus da metafísica morreu e se o
Deus vivo das relações entre os homens ainda não nasceu? Será
essa peça de teatro um monumento a um Deus morto ou a um
conjunto de deuses mortos? Será, tal como disse o crítico Raleigh
acerca do Paraíso Perdido, um «monumento a ideias mortas»?
Como é que uma peça grega deverá ser traduzida para uma língua
moderna? Ou como é que devem ser compreendidos os antigos
termos? Como devemos evitar que as obras antigas se assemelhem
a meras comédias? O que muitos professores de clássicas têm feito,
é verdadeiramente desmitologizar quando defendem a relevância
de um trabalho na base do seu perene significado humano.
Mesmo assim, este «significado humano» tem que ser interpre
tado em termos de auditores modernos (a fase explicativa de inter
pretação), e para proceder deste modo temos que ser mais precisos
38
na determinação de como é que uma coisa é significativa. Uma
abordagem da interpretação literária que se concentre na enume
ração de imagens de um ou de outro tipo, ou que se focalize na
forma de uma obra. ou que faça uma análise temática de uma
obra ou de várias, deixa passar de facto o problema da «signifi
cação». Uma abordagem literária que encare a obra como um
objecto afastado dos sujeitos que a percepcionam, automaticamente
foge ao problema daquilo que na verdade constitui o significado
humano de uma obra. No entanto, é possível que a crítica literária
americana acorde uma manhã, descobrindo que, ao pôr de lado
a questão de tornar humanamente relevante uma grande obra atra
vés da interpretação da mesma, os exercícios complicados que faz
no domínio da imagem, da forma e da análise temática, acabaram
por se transformar num passatempo insípido para professores de
inglês. As suas dissecações perderam interesse; tal como Deus, a
«literatura morreu»; morreu porque os seus intérpretes estão mais
interessados em conhecer a sua estrutura e a sua função autônoma
do que em mantê-la viva e humanamente significativa. A literatura
(ambém pode morrer, morrer de fome pela ausência de uma rela
ção com o leitor. As interpretações teológica e literária terão que
ser humanamente significativas para os dias de hoje, caso contrário
perderão todo o valor.
Os professores de literatura têm que se tornar peritos em «tra
dução», mais do que em «análise»; a sua tarefa é transformar o
que é estranho, pouco comum e obscuro, em algo que tenha signi
ficado, que «fale a nossa língua». Isto não significa pressionar os
clássicos e apresentar Chaucer num inglês do século XX: significa
reconhecer o problema da existência de um conflito entre hori
zontes, significa prepararmo-nos para lidar com ele, mais do que
varrê-lo para debaixo do tapete, concentrando-nos em jogos analí
ticos. A visão do mundo implícita num poema ou pressuposta por
ele e portanto essencial para a sua compreensão, não devia ser
tratada como uma espécie de falácia de uma crítica histórica ultra
passada.
Por exemplo, um pré-requisito essencial para compreender a
Odisséia é o reconhecimento básico de que as coisas naturais são
dotadas de vida e de intenções, de que o universo é uma questão
de terra e de água até onde o podemos enxergar, de que cada
processo natural é o resultado da vontade de um ser sobrenatural,
c de que os deuses são chefes sobre-humanos com todas as fra
quezas dos seres humanos, sendo, no entanto, seres que actuam
mima versão mais elevada do código do herói grego, centrado na
honra. Só quando avançamos neste mundo que já não é o nosso
mundo real, é que nos centramos no homem dos estratagemas ili
mitados, esse herói que se aventura arrojadamente nas garras da
morte, esse inventor de contos que conseguia contar uma história
39
de modo a (quase) enganar a sua protectora Atena, esse pesquisador
insaciável de conhecimentos perigosos, Odysseus. O génio das aná
lises textuais de Erich Auerbach (lidando por exemplo com a cica
triz de Odysseus) não reside apenas na sua lealdade e capacidade
de resposta ao modo como a história é contada, mas também no
seu reconhecimento de que o sentido de realidade subjacente é uma
chave para a compreensão (“ ). Assim, o sentido de realidade e o
modo de estar no mundo patentena obra devem ser um ponto
central para uma interpretação literária «capaz», a base para uma
leitura da obra que pode «agarrar-nos» (e «ser agarrada») pela sig
nificação humana da sua acção. A metafísica (definição da reali
dade) 'e a ontologia (característica de estar no mundo) de uma obra
são fundantes para uma interpretação que torna possível uma
compreensão significativa.
A tradução consciencializa-nos, pois, do choque entre o nosso
universo de compreensão e aquele em que a obra actua. Enquanto
que a barreira da língua torna mais visíveis estes dois universos
compreensivos, eles estão presentes em qualquer interpretação de
uma obra escrita na nossa própria língua, e em qualquer diálogo
autêntico, especialmente entre interlocutores separados por dife
renças geográficas. Na literatura inglesa, mesmo um espaço de cem
anos produz algumas transformações na língua, de modo que os
problemas de interpretar Wordsworth, Pope, Milton, Shakespeare
ou Chaucer implica o encontro de dois mundos contrastantes, no
plano histórico e no plano lingüístico, e para americanos que nunca
visitaram Inglaterra a separação é ainda maior.
É-nos necessário um esforço de imaginação histórica e de «tra
dução» só para considerarmos o mundo da Inglaterra de Words
worth, na orla da industrialização mas ainda essencialmente rural.
Ver a Itália de Dante e mudar-nos para esse mundo ao compreen
dermos a Divina Comédia não é só uma questão de mera tradução
lingüística (embora a tradução nos diga muito); é uma questão de
tradução histórica. Mesmo com a melhor tradução inglesa, o pro
blema da compreensão implicado no encontro com um horizonte
distinto da compreensão da existência humana está sempre presente.
A desmitologização é um reconhecimento deste problema em ter
mos de interpretação bíblica; mas em princípio, como se observou,
a desmitologização deve ocorrer com qualquer leitura de documentos
históricos ou textos literários, mesmo que a desmitologização não
tente roubar a originalidade da sua imediatez dramática. Resu
mindo, uma explicação da visão do mundo implícita na própria
linguagem, c depois na utilização da linguagem numa obra literária,
é um desafio fundamental para a interpretação literária.
(H) «Odysseus Scar», Mimcsis, págs. 1-20.
40
A hermenêutica moderna encontra na tradução c na teoria
da tradução um reservatório imenso para explorar o «problema
hermenêutico». Na verdade, a hermenêutica no seu estádio histó
rico primitivo sempre implicou a tradução lingüística, quer como
hermenêutica filológica clássica quer como hermenêutica bíblica.
O fenômeno da tradução é o próprio cerne da hermenêutica: nele
se confronta a situação básica da hermenêutica, de ter que compor
o sentido de um texto, trabalhando com instrumentos gramaticais,
históricos e outros para decifrar um texto antigo. E, no entanto,
tal como dissemos, esses instrumentos apenas são formalizações
explícitas de factores implicados em qualquer confrontação com
um texto lingüístico, mesmo na nossa própria língua. Há sempre
dois mundos, o mundo do texto e o mundo do leitor, e por conse
qüência há sempre a necessidade de que Hermes «traduza» de um
para o outro.
Esta discussão sobre a origem de hermeneuein e hermeneia
e as três orientações significativas do seu antigo uso ocorreu no
contexto do problema hermenêutico em geral. Assim serve de
introdução a alguns dos problemas essenciais e alguns dos conceitos
de hermenêutica que aparecerão nos capítulos seguintes. As defi
nições modernas de hermenêutica darão ênfase quer a uma quer
a outra orientação do rico manancial de significado existente nas
raízes gregas das quais derivou o termo «hermenêutica». É bom que
o campo da hermenêutica volte constantemente ao significado das
três orientações significativas da interpretação como dizer, como
explicar e como traduzir.
41
3
SEIS DEFINIÇÕES MODERNAS DE HERMENÊUTICA
Porque evoluiu nos tempos modernos, o campo da hermenêutica
tem sido definido pelo menos de seis maneiras diferentes. Desde
ó começo que a palavra significou ciência da interpretação, refe-
rindo-se especialmente aos princípios de uma exegese de texto
adequada. Mas o campo da hermenêutica tem sido interpretado
(numa ordem cronológica pouco rigorosa) como: 1) uma teoria
da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma
ciência de toda a compreensão lingüística; 4) uma base metodo
lógica dos Geisteswissenschaften; 5) uma fenomenologia da exis
tência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação,
simultaneamente recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo
homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos.
Cada uma destas definições é mais do que um estádio histórico;
cada uma delas indica um «momento» importante ou uma abor
dagem ao problema da interpretação. Podiam ser chamadas de
ênfase bíblico, filológico, científico, geisteswissenchaftliche, exis
tencial e cultural (*). Cada uma representa essencialmente um ponto
de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada; cada uma
(') Todos estes adjectivos classificativos são de certo modo inadequados
e não satisfatórios; uso-os de um modo experimental e provisório para indicar
a alteridade entre as seis diferentes abordagens. A hermenêutica bíblica tem
muitas orientações diferentes; só no século dezoito incluía a gramática, a his
tória, o pietismo e outras escolas, e continuou a ser maximizada até aos dias
de hoje. A hermenêutica «Filológica» também gozou de um desenvolvimento
complexo no século dezoito. A «científica» é de certo modo ilusória no que
se refere a Schleiermacher pretendendo apenas sugerir a tentativa feita por este
autor de dar à hermenêutica uma base universal e sistemática. A geisteswissen-
schaflliche refere-se ao projecto de Dilthey A «existencial» cobre as concepções
hermenêuticas de Heidegger e de Gadamer. Por último a «cultural» sugere
imperfeitamente a riqueza das aplicações que Ricoeur faz da hermenêutica
na sua procura de uma filosofia mais adequada, centrada na interpretação dos
símbolos. A hermenêutica jurídica é, de um modo geral, omitida.
43
esclarece aspectos diferentes mas igualmente legítimos do acto da
interpretação, especialmente da interpretação de textos. O próprio
conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas mudan
ças de perspectiva. Um esboço destes seis momentos ilustrará este
tema e servirá de breve introdução histórica à definição da herme
nêutica.
Hermenêutica como teoria da exegese bíblica
O significado mais antigo e talvez ainda o mais difundido da
palavra' «hermenêutica» refere-se aos princípios da interpretação
bíblica. Há uma justificação histórica para esta definição, visto que
a palavra encontrou o seu uso actual precisamente quando surgiu
a necessidade de regras para uma exegese adequada das Escrituras.
Provavelmente, o primeiro registo da palavra enquanto título de
um livro foi a obra de J. C. Danhauer, Hermeneutica sacre sive
rnethodus exponendarum sacrarum litterarum , publicada em
1654 f).
Mesmo só pelo título do livro, percebemos que a hermenêutica
se diferencia da exegese enquanto metodologia da interpretação.
A distinção entre o comentário real (exegese) e as regras, métodos
ou teoria que o orientam (hermenêutica) data desta utilização pri
mitiva e permanece fundamental para uma distinção da herme
nêutica, quer na teologia quer, quando a definição foi ulteriormente
alargada, relativamente à literatura não bíblica.
Depois do aparecimento da obra de Danhauer, o termo parece
ter surgido cada vez mais frequentemente, especialmente na Ale
manha. Aí, houve círculos protestantes que sentiram vivamente a
necessidade de manuais de interpretação que ajudassem os sacer
dotes na exegese das Escrituras, dado que os sacerdotes estavam
desligados de qualquer recurso à autoridade daIgreja para decidirem
sobre questões de interpretação. Assim houve um ímpeto forte no
desenvolvimento de padrões viáveis e independentes para interpretar
a Bíblia; entre 1720 e 1820, não passava um ano que não aparecesse
algum novo manual para ajudar os pastores protestantes (’)•
Na Inglaterra e mais tarde na América, a utilização da palavra
«hermenêutica» seguiu a tendência geral de referência a uma exe-
gcsc especificamente bíblica. O primeiro uso registado no Oxford
Enulish Dictionary remonta a 1737: «Tomar tais liberdades com as
Sagradas Escrituras, que não são de modo algum permitidas por
(”) F.bcling, «Hermeneutik», R G G III, 243.
(J) Ver Ibid., 242; Heinrici, «Hermemeutik», R P T K VII, 719; e E.
I lolwrhül/., «Interprctation», ERE VII, 390-95.
44
quaisquer regras de uma hermenêutica sóbria e justa.» (*) Um
século mais tarde, Longfellow, no Hyperion, põe o Irmão BcrnunU)
a falar sobre «os meus papéis e a minha grande obra dc ílcrmc
nêutica Bíblica» (5).
Quando a utilização da palavra se alargou para se referir a tex
tos não bíblicos, repare-se que os textos são obscuros, como se pre
cisassem de métodos especiais para deles extrair um significado
oculto. Por exemplo, a referência a uma «aprendizagem da musa
hermenêutica» num caso (W. Taylor, 1807) (6), sugere uma inter
venção deste gênero, tal como «o método hermenêutico de um
significado profundo e oculto» (D. Hunter, traduzindo a obra dc
Reuss, Historical Canon, 1884) (7). De igual modo, a firmação dc
Edward Burnett Tylor em Primi:ivc Culture (1871): «Nenhuma
lenda, nenhuma alegoria ou rima infantil está a salvo da herme
nêutica de um teórico radical da mitologia» (*). Portanto, no seu
uso em inglês, a palavra pode referir-se a uma interpretação não
bíblica, mas nesses casos, o texto é de um modo geral obscuro ou
simbólico, requerendo um tipo especial de interpretação para que
se alcance o seu significado escondido. A definição mais geral de
hermenêutica manteve-se como sendo a de uma teoria da exegese
das escrituras.
Enquanto que o próprio termo «hermenêutica» apenas data
do século XVI], as operações de exegese textual e as teorias da
interpretação— religiosa, literária, legal — remontam à antiguidade.
Assim, uma vez aceite a palavra como designando uma teoria da
exegese, o campo que cobre estende-se geralmente (poderíamos dizer
que retroactivamente) na exegese bíblica, aos tempos do Antigo
Testamento, quando havia regras para se interpretar adequadamente
a Torah (9). Existe uma relação hermenêutica importante entre o
Novo e o Antigo Testamento pois Jesus explica-se a si próprio aos
Judeus, em termos de profecia bíblica. Os estudiosos do Novo
Testamento detectam nos Evangelhos (especialmente no Evange
lho de S. João) (10) e nas epístolas de S. Paulo, operações para
(*) V, 243.
(’) Henry Wadsworth Longfellow, «Prose Works», II, 309. «Hyperion» é
um romance em prosa, uma das duas únicas obras de ficção em prosa que
Longfellow pretendia conservar.
(•) O E D V, 243.
C) Ibid.
(*) «Primitive Culture», I, 319.
(“) O artigo final de Ebeling, acima citado, divide o desenvolvimento da
hermenêutica biblica em sete períodos históricos: Pré-cristão, Cristão Primitivo,
Patrística, Medieval, Reforma e Ortodoxo, Moderno, Contemporâneo. Também
nos dá referências bibliográficas abundantes para cada período.
(*“) Ver Frederik W. Herzog, «Historico-Ontological Hcrmeneutic in thc
Fourth Gospel», «Understanding God», págs. 65-68.
45
interpretar Jesus aos seus ouvintes de acordo com um certo sistema
de compreensão. A «teologia» já está em acção; num certo sentido,
a própria teologia enquanto intérprete histórica da mensagem bíblica,
é já hermenêutica. A história da hermenêutica bíblica podia tra
çar-se: através da Igreja primitiva; dos patriarcas; da interpretação
medieval quadruplicada da Bíblia; da luta de Lutero contra os
sistemas de interpretação místicos, dogmáticos, humanísticos e
outros; do aparecimento do método histórico-crítico no século XVIII
e do complexo de forças em actuação durante este período, que
rendo remodelar a interpretação das Escrituras; do contributo de
Schleiermacher; da escola da história das religiões relativamente
à interpretação; do aparecimento da teologia dialéctica nos anos
de 1920 e da Nova Hermenêutica na teologia contemporânea. Não
podemos apresentar aqui uma história com tantos pormenores;
limitar-nos-emos a apontar simplesmente dois pontos, um sobre
a natureza da hermenêutica indicada pelo exemplo da hermenêutica
bíblica, e outro sobre a questão do âmbito da hermenêutica.
Sem entrarmos em pormenores, será interessante notarmos a
tendência geral da hermenêutica bíblica de confiar num «sistema»
de interpretação a partir do qual as passagens individuais possam
ser interpretadas. Mesmo na «hermenêutica» protestante há uma
procura de um «princípio hermenêutico» que sirva de guia (u).
O texto não é interpretado em si mesmo; de facto, pode ser que
isto seja um ideal impossível. Por exemplo, no Iluminismo, o texto
bíblico é um receptáculo de grandes verdades morais; no entanto,
essas verdades encontram-se nele porque se moldou um princípio
interpretativo que as encontrasse. Nesse sentido, a hermenêutica
é o sistema que o intérprete tem para encontrar o significado oculto
do texto.
A outra questão envolve o campo da hermenêutica. Mesmo se
assegurarmos a legitimidade de incluir retroactivamente na herme
nêutica bíblica toda a teoria da exegese do tempo do Antigo Tes
tamento ao nosso tempo há sempre a questão de saber se a her
menêutica inclui uma teorização explícita — regras de exegese niti
damente expressas — ou uma teoria não formulada, implícita, da
exegese, revelada através de uma prática. O teólogo Gerhard
Ebeling, por exemplo, fez um estudo sobre «a hermenêutica de
Lutero» (” ). Lidar-se-á aqui apenas com as afirmações de Lutero
no que respeita à interpretação bíblica, ou também com a sua
prática exegética revelada pela análise dos seus sermões e de outros
escritos? O estudo de Ebeling inclui ambas as perspectivas.
(" ) Ver «Dai hermeneutische Prinzip der theologischen Exegese», F H
111- 118.
(” ) nEvangelische Evangelienauslegung: Eine Untersuchung zu Luthen
Hermeneutik».
46
Isto aumenta grandemente o âmbito da hermenêutica blblun, <■
de imediato a tarefa de escrever, por exemplo, uma histórlu tia
hermenêutica bíblica alarga-se da consideração dc fontes relativa
mente controláveis que discutem o problema hermenêutico, m>
exame dos sistemas de interpretação implícitos em todos os grandes
comentadores da Bíblia, desde os tempos antigos até aos nossos
dias (13). Uma história deste tipo, transforma-se essencialmente em
história da teologia (“ ).
Levando as implicações deste âmbito mais lato da hermenêutica
(enquanto sistema simultaneamente implícito e explícito de interpre
tação) para uma definição de hermenêutica que se aplique à litera
tura bíblica e não bíblica, o perímetro da hermenêutica não-bíblica
torna-se historicamente tão vasto que fica incontrolável. Quem por
exemplo poderia pensar em escrever uma história da hermenêutica
assim definida? O sistema interpretativo implícito em todo o comen
tário de texto (jurídico, literário, religioso) no pensamento ociden
ta l— de resto porque não incluir também os sistemas Orientais? —
teria que ser incluído. Na sua obra-prima de dois volumes (“ ) Emílio
Betti deu uma contribuição essencial para a apresentação de um
cruzamento de várias disciplinas interpretativas numa perspectiva
actual de interpretação; no entanto, este esforço possante é ape
nas uma fracção daquilo que uma tal «história da hermenêutica»
implicaria.
Podemo-nos ainda interrogar se, quer uma história completa da
hermenêutica quer uma síntese inclusiva das muitas diferentes teo
rias disciplinares da interpretação (partindodo princípio que ambas
as perspectivas seriam possíveis) constituiriam, na verdade, uma res
posta adequada ao problema hermenêutico actual. Ambos os pro
jectos olham para o que já foi realizado, no passado ou no presente,
e como tal, representam um esforço de conservação e de consolida
ção. Mas para inovar e para avançar com perspectivas ainda inexis
tentes, é preciso mais do que uma perspectiva histórica, ou científica.
Tão necessário como cada uma das perspectiva referidas (e ninguém
(ls) Há vários e excelentes estudos sobre hermenêutica bíblica que nos dão
pormenores históricos, como por exemplo: E. C. Blaokman, «Biblical Interpre-
tation»; Frederic W. Farrar, «History of Inlerpretalion»; Robert M. Grant,
«A Short History of lhe Inlerpretation of lhe Bible»; Stephen Neill, «The Inter-
pretation of lhe New Testament»; 1861-1961-, B. Smalley, «The Study of lhe
Bible in the Middle Ages»\ e James D. Wood, «The Inlerpretation of lhe Bible».
Em alemão, há a obra recente de Lothar Steiger, «Die Hermeneutik ais
dogmatische Problem» recomendável pelo tratamento que faz da hermenêutica
teológica desde Schleiermacher.
(14) Ver Gerhard Ebeling, «Kirchengeschichte ais Geschichte der Ausle-
gung der Heiligen Schrift».
(“ ) T G I, traduzido para alemão pelo seu autor e reduzido a um terço
como AAMG. Ver também o contributo de Joachim Wach para este projecto,
V, uma história da hermenêutica no século dezanove, em três volumes.
47
nega o valor que têm) é uma compreensão mais funda do fenômeno
da própria interpretação, uma compreensão que seja filosoficamente
adequada, quer epistemológica quer ontologicamente. As histórias
da teoria da interpretação em disciplinas específicas são certamente
vitais para a busca contínua de uma compreensão mais funda da
interpretação, como são as sínteses das várias abordagens discipli-
nares; mas não são em si mesmas, suficientes.
A hermenêutica como metodologia filológica
O desenvolvimento do racionalismo e, concomitantemente, o
advento da filologia clássica no século dezoito teve um efeito pro
fundo na hermenêutica bíblica. Surgiu então o método histórico-crí-
tico na teologia (>s); tanto a escola de interpretação bíblica «grama
tical» como a «histórica», afirmavam que os métodos interpreta-
tivos aplicados à Bíblia, eram precisamente os que se aplicavam às
outras obras. Por exemplo, Ernesti, no seu manual de hermenêutica
de 1761, defendia que «o sentido verbal das Escrituras deve ser
determinado do mesmo modo como é considerado noutros
livros» (” ). Com o aparecimento do racionalismo, os intérpretes sen
tiram-se obrigados a tentar ultrapassar juízos prévios. «A norma da
exegese bíblica, segundo Spinoza, consiste na luz da razão, comum
a todos os homens» (” ). «As verdades acidentais da história nunca
se poderão transformar em provas de verdades necessárias da razão»
disse Lessing (’*); assim é um desafio à interpretação tornar a Bíblia
relevante para o homem racional do Iluminismo.
Este desafio, tal como Kurt Frõr observou no seu livro sobre
hermenêutica bíblica, levou à «intelectualização das afirmações bí
blicas» (20). Porque as verdades acidentais da história eram encara
das como inferiores às «verdades de razão», os intérpretes bíblicos
defendiam que a verdade das Escrituras estava acima do tempo e
da história; a Bíblia não diz ao homem nenhuma verdade que ele
(*•) Ver Hans-Joachim Kraus, «Geschichte der historisch-kritischen Er-
forsehung der Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwarth»,
esp. cap. 3, págs. 70-102.
(H) F. W. Farrar, «History of Interpretation», pág. 402, citando Johan
August Ernesti IINT. Fizeram-se duas traduções inglesas do tratado, no co
meço do século xix (Ver Bibliografia).
(**) «Traclatus iheologico-policitus», (1670) cap. VII; citado em Ebeling
«Hermeneutic», RGGIII, 245.
('•) Ober den Beweis des Geistes und der Kraft» (1777): «Zufãllige Ges-
chlchtswahrheiten kõnnen der Beweis von notwendingen Vernuftswahrheiten
nie wrrden», citado cm Kurt Frõr, Biblische Hermeneutik: Zur Schriftauslegung
in Predlgt und llnterricht, pág. 26. Ver «On the Proof of the Spirit and of
Power», In Lessing's Theological Writings, ed. Henry Chadwick, págs. 51-56.
(,0) Ibid.
48
não pudesse ter reconhecido pelo uso da razão. Trata-se npcniis >l<
uma verdade racional e moral, revelada antes dc tempo. A titrrfu
da exegese era pois entrar profundamente no texto, usando as fri
ramentas da razão natural e encontrando aquelas grandes verdades
morais que os escritores do Novo Testamento pretendiam, verdades
escondidas sob diferentes termos históricos. Essas escrituras defen
diam a suficiência de uma compreensão histórica manifesta, sus
ceptível de captar o espírito (Geist) subjacente à obra e dc o tra
duzir em termos aceitáveis para uma razão esclarecida. Podemos
chamar a isso uma forma esclarecida de «desmitologização», embora
o termo no século vinte signifique interpretar e não simplesmente
purgar os elementos míticos no Novo Testamento.
Para além da fé Iluminista nas «verdades morais» que levou ao
que hoje parece uma distorção da mensagem bíblica, d e um modo ;t c -
ral, as conseqüências na hermenêutica e na investigação bíblica foram
salutares. A interpretação bíblica fez desenvolver tccnicas de análise
gramatical de grande requinte (**), e os intérpretes compromete
ram-se mais do m;e nunca rum conhecimento teta! do contexto
histórico das narrações bíblicas. J. S. Semler defende por exemplo
que o intérprete «deve ser capaz de falar sobre esses temas (bíblicos)
de um modo adaptado às diferentes épocas e às diferentes circuns
tâncias» (” ). A verdadeira tarefa do intérprete torna-se uma tarefa
histórica.
Com todos estes progressos, os métodos da hermenêutica bíblica
tornaram-se essencialmente sinônimos de uma teoria secular da
interpretação — isto é, da filologia clássica. E. pelo menos, desde
o Iluminismo até aos nossos dias os métodos de investigação bíblica
têm estado sempre ligados à filologia. Assim a designação «Herme
nêutica Bíblica» substituiu a de hermenêutica enquanto referência à
teoria da exegese bíblica. O termo «hermenêutica», inalterável, tor
nou-se virtualmente idêntico a uma metodologia filológica. Num
outro capítulo exploraremos mais especificamente o conteúdo da
filologia no começo do século dezanove, discutindo dois grandes
filólogos do tempo de Schleiermacher, Friedrich August Wolf e
Friederich Ast. Aqui basta-nos simplesmente dizer que a concepção
de uma hermenêutica estritamente bíblica, se transformou gradual
mente na de uma hermenêutica considerada como conjunto de
regras gerais da exegese filológica, sendo a Bíblia um objecto entre
outros de aplicação dessas regras.
(” ) Ernesti, IINT, é um exemplo excelente.
(” ) Ver H.-J. Kraus, op. cit., págs. 93-102, sobre Semler. O sentido das
Escrituras é satisfeito, dizia Semler, quando «der historisch Verstehende nun
auch imstande ist, von diesen Gegenstànden auf eine solche Weise jetzt zu
reden, ais es die verànderte Zeit und andere Umstande der Menschcn neben
uns erfordem».
49
A hermenêutica como ciência da compreensão
lingüística
É característica de Schleiermacher ter repensado a hermenêu
tica como «ciência» ou «arte» da compreensão. Visto que lhe dedi
cámos todo um capítulo, aqui apenas notaremos que uma tal con
cepção de hermenêutica implica uma crítica radical do ponto de
vista da filologia, pois procura ultrapassar o conceito de hermenêu
tica como conjunto de regras, fazendo uma hermenêutica sistemati
camente coerente, uma ciência que descreve as condições da com
preensão,. em qualquer diálogo. O resultado não é simplesmente uma
hermenêutica fiíológica mas uma «hermenêutica geral» (allgemeine
Hermeneutik) cujos princípios possam servir de base a todos os
tipos de interpretação de texto.
Esta concepção de umahermenêutica geral marca o começo da
«hermenêutica» não disciplinar, tão importante para a presente
discussão. Pela primeira vez a hermenêutica define-se a si mesma
como estudo da sua própria compreensão. Quase podemos dizer que
o que aqui é típico da hermenêutica emerge historicamente do seu
parentesco com a exegese bíblica e com a filologia clássica.
A hermenêutica como base metodológica
para as «geisteswissenschaften»
Wilhelm Dilthey foi um biógrafo de Schleiermacher e um dos
grandes filósofos do século passado. Dilthey viu na hermenêutica a
disciplina central que serviria de base a todas as Geisteswissenscha
ften (i. e. todas as disciplinas centradas na compreensão da arte,
comportamento e escrita do homem).
Dilthey defendia que a interpretação das expressões essenciais
da vida humana, seja ela do domínio das leis, da literatura ou das
Sagradas Escrituras, implica um acto de compreensão histórica, uma
operação fundamentalmente diferente da quantificação, do domínio
científico do mundo natural; porque neste acto de compreensão his
tórica está em causa um conhecimento pessoal do que significa ser
mos humanos. Acreditava ser necessário nas ciências humanas uma
outra «crítica» da razão, crítica que faria para a compreensão his
tórica o que a crítica kantiana da razão pura tinha feito para as
ciências naturais — «uma crítica da razão histórica».
Num estádio primitivo do seu pensamento, Dilthey procurou
fundamentar a sua crítica numa versão transformada da psicologia;
mas, como a psicologia não era uma disciplina histórica, os seus
esforços foram dificultados desde o começo. Dilthey encontrou na
hermenêutica — disciplina centrada na interpretação, e especifica
mente na interpretação de um objecto sempre histórico, um
50
texto — a base mais humana e histórica para o seu próprio esforço
de formulação de uma metodologia verdadeiramente luimanística
das Geisteswissenschaften.
A hermenêutica como fenomenologia do Dascin
e da compreensão existencial
Martin Heidegger, ao tratar do problema ontológico, voltou-se
para o método fenomenológico do seu mentor, Edmund Husscrl, e
empreendeu um estudo fenomenológico da presença quotidiana do
homem no mundo. Esse estudo Ser e Tempo (1927), é hoje reco
nhecido como a sua obra-prima, como a chave para toda a com
preensão adequada do seu pensamento. Chamou à análise apre
sentada em Ser e Tempo uma «hermenêutica do Daseim>.
Neste contexto, a hermenêutica não se refere à ciência ou às
regras da interpretação textual nem a uma metodologia para as
Geisteswissenschaften mas antes à explicação fenomenológica da
própria existência humana. A análise de Heidegger indicou que a
«compreensão» e a «interpretação» são modos fundantes da exis
tência humana. Assim a hermenêutica heideggeriana do Dasein,
transforma-se também em hermenêutica, especialmente na medida
em que apresenta uma ontologia da compreensão; a sua investigação
é de carácter hermenêutico, quer nos conteúdos quer no método.
O aprofundamento que Heidegger faz da hermenêutica e das
características hermenêuticas em Ser e Tempo é um outro ponto
de viragem no desenvolvimento e na definição quer da palavra quer
do campo da hermenêutica. A hermenêutica é relacionada de uma
só vez com as dimensões ontológicas da compreensão (e com tudo
aquilo que isso implica) e simultaneamente com a fenomenologia
específica de Heidegger.
O professor Hans-Georg Gadamer, seguindo a liderança de
Heidegger, desenvolveu as implicações do contributo de Heidegger
para a hermenêutica (tanto as do Ser e Tempo, como as de ulte-
riores obras) num trabalho sistemático sobre hermenêutica filosófica
(Wahrheit und Methode 1960). Gadamer traça detalhadamente o
desenvolvimento da hermenêutica, de Schleiermacher até Dilthey
e Heidegger, fornecendo o primeiro relato histórico adequado da
hermenêutica englobando a perspectiva do contributo revolucionário
de Heidegger e reflectindo sobre ele. Mas Wahrheit und Methode
é mais do que uma história da hermenêutica; é um esforço dc
relacionação da hermenêutica com a estética e com a filosofia do
conhecimento histórico. Apresenta de uma forma bem estruturada
a crítica heideggeriana da hermenêutica, no velho estilo dc Dilthey,
c retrata parte do pensamento hermenêutico de Hegel c dc llci-
dcgger, no conceito de consciência «historicamente operativa»,
51
actuando dialecticamente com a tradição enquanto transmitida atra
vés do texto.
A hermenêutica avança ainda mais um passo entrando na sua
fase lingüística, com a controversa afirmação de Gadamer de que
«um ser que pode ser compreendido é ilnguagem.» A hermenêu
tica é um encontro com o Ser através da linguagem. Ultimamente,
Gadamer defendeu o caracter lingüístico da própria realidade hu
mana, e a hermenêutica mergulha nos problemas puramente filo
sóficos da relação da linguagem com o Ser, com a compreensão, a
história, a existência e a realidade. Ela coloca-se no centro dos
problemas filosóficos de hoje; não pode fugir às questões episte-
mológicas e ontológicas pois a própria compreensão é defendida
como um tema epistemológico e ontológico.
A hermenêutica como um sistema de interpretação:
recuperação de sentido «versus» iconoclasmo
Paul Ricoeur em De 1'Imerprétaiion (1965) adopta uma defini
ção de hermenêutica que remonta a uma centração na exegese tex
tual considerando-a o elemento distinto e central na hermenêutica.
«Por hermenêutica entendemos a teoria das regras que governam
uma exegese, quer dizer, a interpretação de um determinado texto
ou conjunto de sinais susceptíveis de serem considerados como
textos» (” ). A psicanálise, e particularmente a interpretação dos
sonhos, é muito obviamente uma forma de hermenêutica; todos os
elementos de uma situação hermenêutica estão nela contidos: o
sonho é o texto, um texto cheio de imagens simbólicas, e o psica
nalista usa um sistema interpretativo para produzir uma exegese
que traga à superfície o significado oculto. A hermenêutica é o
processo de decifração que vai de um conteúdo e de um significado
manifestos para um significado latente ou escondido. O objecto de
interpretação, i. e., o texto no seu sentido mais lato, pode ser cons
tituído pelos símbolos de um sonho ou mesmo por mitos e sím
bolos sociais ou literários.
O estudo de Ricoeur distingue entre símbolos unívocos e equí
vocos; os primeiros são signos de sentido único, como os símbolos
(” ) «Ainsi, dans la vaste sphère du langage, le lieu de la psychanalyse
se précise: c’est à ia foi le lieu des simboles ou du double sens et celui ou
s’affrontent les diverses manières d’interpréter. Cette circonscription plus vaste
que la psychanalyse, mais plus étroite que la théorie du langage total qui lui
sert d‘horizon, nous 1’appellcron désormais le ‘champ herméneutique’; nous
entendrons toujours par herméneutique la théorie des règles qui président à
une cxégèse, c’est à dire à 1’interprétation d’un texte singutier ou d’un ensemble
de signes susceptible d’être considéré comme un texte» (Dl 18).
52
da logica simbólica, enquanto os últimos são o verdadeiro ccnlro
da hermenêutica. Porque a hermenêutica tem a ver com textos
simbólicos com múltiplos significados; estes podem constituir uma
unidade semântica que tem (como os mitos) um significado super
ficial totalmente coerente, tendo ao mesmo tempo uni significado
mais fundo. A hermenêutica é o sistema pelo qual o significado
mais fundo é revelado, para além do conteúdo manifesto.
Contudo, a operação de encontrar um sentido oculto em sonhos
e em lapsos de linguagem, demonstra na realidade uma desconfiança
na superfície, ou realidade manifesta; o empreendimento de Freud
foi tornar-nos desconfiados do conhecimento consciente que temos
de nós mesmos, e em última instância pedir-nos que destruíssemos
os nossos mitos e ilusões. Mesmo as nossascrenças religiosas, como
Freud pretende demonstrar em O Futuro de uma Ilusão, são de
facto ilusões infantis. A função da hermenêutica freudiana é por
tanto iconoclástica.
Isto leva Ricoeur a sustentar que nos nossos dias há dois síndro-
mas muito diferentes da hermenêutica; um, representado pela des-
mitologização de Bultmann, lida amorosamente com o símbolo esfor
çando-se por recuperar o significado que nele se oculta; o outro
procura destruir o símbolo enquanto representação de uma reali
dade falsa. Destrói máscaras e ilusões num esforço racional e inces
sante de «aesmitificação». Ricoeur destaca como exemplo desta
última forma de hermenêutica, três grandes desmitificadores: Marx,
Nietzsche e Freud. Cada um destes três homens interpretou como
falsa a superfície da realidade e avançou com um sistema de pen
samento que destruiu essa realidade. Os três combateram activa-
mente a religião; para os três, o pensamento verdadeiro era um
exercício «de suspeita» e de dúvida. Minaram a confiança piedosa
que o indivíduo depositava na realidade, nas suas próprias crenças
c motivações; cada um defendeu uma transformação de pontos de
vista, um novo sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos
nossos mundos — uma nova hermenêutica.
Devido a estas duas abordagens antitéticas da actual interpre
tação dos símbolos, Ricoeur defende que não pode haver regras
universais para a exegese, apenas teorias separadas e opostas, rela
tivas às regras de interpretação. A desmitologização trata o símbolo
ou o texto como uma abertura para uma realidade sagrada; os
desmitificadores tratam os mesmos símbolos (ou seja, os textos
bíblicos) como uma falsa realidade que deve ser destruída.
A abordagem que Ricoeur faz de Freud é ela própria um exer
cício brilhante do primeiro tipo de interpretação, pois recupera e
Interpreta o significado de Freud de um modo inovador para o
momento histórico actual. Ricoeur tenta contemplar tanto a racio
nalidade da dúvida como a fé de uma interpretação passada, numa
53
filosofia reflexiva que não se refugia em abstracções nem degenera
cm simples exercício de dúvida, uma filosofia que aceita o desafio
hermenêutico de mitos e símbolos e que tematiza reflexivamente
a realidade que está por detrás da linguagem, do mito e do símbolo.
A filosofia hoje já se centra na linguagem; já é, num certo sentido,
hermenêutica; o desafio é fazê-la criativamente hermenêutica.
54
4
A LUTA CONTEMPORÂNEA SOBRE HERMENÊUTICA:
BETTI «VERSUS» GADAMER
As seis definições de hermenêutica atrás abordadas, inter-rela-
cionadas e muitas vezes sobrepostas, transpcrtam-nos de 1654 até
aos nossos dias. As seis ainda se encontram, em graus variáveis, no
spectrum do pensamento hermenêutico contemporâneo; no entanto,
hoje há uma nítida polarização. Temos, por um lado, a tradição de
Schleiermacher e de Dilthey, cujos partidários encaram a herme
nêutica como um corpo geral de princípios metodológicos que
subjazem à interpretação. E temos, por outro, os seguidores de Hei
degger que vêm a hermenêutica como uma exploração filosófica
das características e dos requisitos necessários a toda a compreensão.
Os representantes mais conhecidos destas duas posições básicas
são Emílio Betti, autor de uma obra sobre teoria da interpretação (’)
e Hans-Georg Gadamer cuja Wahrheit und Methode foi breve
mente discutida no capítulo anterior. Betti, na tradição de Dilthey,
pretende dar-nos uma teoria geral do modo como «as objectivações»
da experiência humana podem ser interpretadas; defende veemente
a autonomia do objecto de interpretação e a possibilidade de uma
«objectividade» histórica na elaboração de interpretações válidas.
Gadamer, na seqüência de Heidegger, orienta o seu pensamento para
a questão mais filosófica do que é a interpretação em si mesma;
defende de um modo igualmente convincente que a compreensão é
um acto histórico e que como tal está sempre relacionada com o
presente. Sustenta que é ingênuo falarmos de «interpretações objec-
tivamente válidas», pois fazê-lo implicaria ser possível uma com
preensão que partisse de um ponto de vista exterior à história.
Os teólogos da desmitologização — Rudolf Bultmann e os dois
líderes da Nova Hermenêutica, Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs
podem associar-se enquanto aliados da abordagem de Gadamer,
(■) T G I e A A M G.
55
essencialmente heideggeriana e fenomenológica. Esta identificação
da Nova Hermenêutica com Gadamer é explícita e recíproca; na
sua obra C) Gadamer cita aprovadoramente Ebeling e Fuchs, e os
teólogos aconselham os seus discípulos a que estudem cuidadosa
mente a obra de Gadamer (’). Também os teólogos e filósofos que
criticam a Nova Hermenêutica, tal como Wolfhart Pannenberg ('),
a relacionam explicitamente com a posição de Gadamer. Betti ata
cou Bultmann, Ebeling e Gadamer como sendo inimigos da objec-
tividade histórica no seu panfle'o de 1962, Die Hermeneutik ais
allaemeine Methodik der Geisteswissenschaften, e E, D. Hirsch,
posteriormente, repetiu e de certo modo ampliou o protesto num
artigo sobre a teoria da interpretação em Gadamer (5).
Certamente que é um problema discutível saber quem ataca e
quem defende, ou saber quem é que iniciou o ataque. Poderia pare
cer que Betti e Hirsch criticam toda a visão hermenêutica de Hei
degger e da Nova Hermenêutica ('). E, no entanto, há vozes de
ataque e de defesa, apelando para um retorno à «objectividade»,
reafirmando que o estudo da história implica o abandono do ponto
de vista actual do historiador; a hermenêutica, alegam, deve fun
cionar de modo a fornecer os princípios de uma interpretação
objectiva. Gadamer sustenta, em autodefesa, que está simplesmente
ligado à descrição do que é, a cada acto de compreensão; está a
fazer ontologia e não metodologia O-
O problema surge pelo facto da ontologia de Gadamer pôr em
causa a possibilidade de um conhecimento histórico objectivo. Do
ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são cs críticos des
trutivos da objectividade, que pretendem mergulhar a hermenêu
tica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a in‘e-
gridade do próprio conhecimento histórico que está a ser atacada
e é preciso defendê-la com firmeza.
(’) W M 313.
(3) O Professor Ebeling orientou um seminário semestral sobre esta obra
na Universidade de Zurique, pouco depois de ela ter sido publicada. Guardou-se
o protocolo habitual do curso (actas). Este terá interesse numa avaliação da
relação Ebclins/Gadamer.
(4) Ver «Hermeneutics and Universal History» H H 222-5; originalmente
ZT hK LX (1963) 90-121.
(5) HAMG; e Hirsch «Gadamer’s Theory of Interpretation» RM XVIII
(1965), 488-507, reimpressa em VII 245-64.
(•) Betti discute Bultmann, Ebeling e Gadamer em HAMG, e Hirsch
refere-se á WM de Gadamer como a «summa» da Nova Hermenêutica em
teologia.
Õ) Carta a Betti, incluída cm HAMAG 51 n. Esta carta é posteriormente
citada no artigo de Gadamer, «Hermeneutik und Historismus», PhR IX (1962),
248-9. O assunto é clarificado no Prefácio da segunda edição dc WM. Ver
também a discussão de Robinson sobre sobre esta importante carta em NH 76.
Ver Niels Thulstrup, «An Observation Concerning Past and Present Herme
neutics» OL XXII 24-44, para uma comparação entre Gadamer e Betti.
56
Para compreendermos os ataques das objecções de Betti e de
Hirsch à hermenêutica de Bultmann, Ebeling c Gadamer, tornu nc
necessário esboçar muito ao de leve as abordagens feitas por
Bultmann e por dois dos seus discípulos, Gerhard Ebeling c lirnst
Fuchs.
A hermenêutica em Bultmann, Ebeling e Fuchs
Rudolf Bultmann é sobejamente conhecido como um dos
maiores teólogos protestantes deste século. Embora o seu nome
esteja as mais das vezes associado ao controverso projecto de des
mitologização, a sua fama como eminente estudioso do Novo Tes
tamento estava já confirmadamuito antes de publicar o seu famoso
ensaio Jesus Chríst and Mythology, em 1941 (*).
Contudo, as linhas essenciais da sua orientação existencialista
em teologia, eram já patentes desde 1926, no seu JesusC) e con
tinuaram desde então. Esta orientação é ela própria um esforço
que pretende confrontar de um modo mais significativo o problema
hermenêutico da interpretação do Novo Testamento com o homem
do século xx.
«Desmitologizar» é talvez um termo infeliz. Pode sugerir que
o Novo Testamento, tal qual está, é encarado como falso (i. c.
mítico) e que a sua mensagem terá que ser acomodada à nova visão
do mundo pós-deística. Traça-sé demasiado facilmente o retrato de
um teólogo engenhoso, pronto a deitar fora os elementos míticos
como não sendo significativos e a apresentar uma Bíblia resumida
onde só se manteriam os elementos mais dignos de crédito. Ora
não é isto que se passa. Pelo contrário, a desmitologização não pre
tende apagar nem ignorar os elementos míticos do Novo Testa
mento, mas sim realçar neles o seu significado original e salvífico.
Longe de ser um esforço de acomodação dos Evangelhos a uma
mentalidade moderna, a desmitologização ataca a literaüdade super
ficial patente num ponto de vista moderno, ataca a tendência que
os leigos, e mesmo os teólogos têm de considerar a linguagem como
mera informação e não como o meio pelo qual Deus confronta os
homens com a possibilidade de um autoconhecimento radicalmente
novo (não grego, não naturalista, não moderno). A desmitologização
(*) As obras mais importantes de Bultmann estão traduzidas em inglês,
como por exemplo «The History of the Synoptic Tradition (1921); «Jesus and
lhe Word (1926); e «Theology of lhe New Testament», I (1941) e II (1951).
11;\ também duas colecções de artigos: «Essays: Philosophical and Theological»;
o «Exislence and Faith», trad. e ed. Schubert M. Ogden. (As datas entre parfin-
lc»ls são das edições alemãs e não das traduções.)
(*) Ver especialmente págs. 11-19; «Introduction, Viewpoinl and Mcthod».
57
não 6 um instrumento de desmitificação racionalista e iconoclástico
à maneira de Freud, Nietzsche ou Marx (para mencionarmos a dis
tinção de Ricoeur entre desmitificação e desmitologização); não
procura atacar e destruir o símbolo mítico, antes o encara como
abertura para o Sagrado. Interpretar o símbolo é relembrar o seu
sentido original e autêntico, agora escondido.
A tônica da desmitologização de Bultmann reside na transfor
mação do conhecimento de cada um. No que respeita ao auto-
conhecimento existencial, Bultmann está nitidamente em dívida
para com Heidegger, a quem esteve estreitamente ligado em meados
de 1920 na Universidade de Marburgo, quando este coligia Ser
e Tempo. A influência que Heidegger teve sobre Bultmann é tão
conhecida que por vezes é mesmo vista de um modo exagerado.
Contudo, enquanto que a tentativa de construir uma analogia total
entre os conceitos de Heidegger e os de Bultmann (como John
Macquarrie fez) (10) pode ser devida tanto ao carácter inconsciente
mente religioso do modelo ontológico de Heidegger, como à dívida
de Bultmann, é justo dizer-se que Heidegger foi uma força decisiva
no pensamento de Bultmann no que respeita ao problema herme
nêutico. Isto reflecte-se na desmitologização, que é essencialmente
um projecto hermenêutico da interpretação existencial.
Assim, por exemplo, não só o conceito que Bultmann tem do
homem como ser histórico orientado para o futuro, está muito perto
do que se defende em Ser e Tempo como há também pelo menos
três aspectos específicos em que a teologia de Bultmann segue Hei
degger: 1.° Na distinção entre a linguagem usada como mera infor
mação que se deve interpretar objectivamente como um facto e a
linguagem plena de contributos pessoais e de poder de impor obe
diência que se assemelha ao conceito heideggeriano do carácter
derivativo das asserções (especialmente lógicas) ("). 2.° Na ideia
de que Deus (o Ser) confronta o homem enquanto Palavra, enquanto
linguagem, que se assemelha à tônica crescente dada por Heidegger
ao carácter lingüístico do Ser quando se apresenta ao homem, 3.9
Também no conceito de que o Kerygma como a palavra das pala
vras, fala por uma autocompreensão existencial. O Novo Testa
mento em si ríiesmo, diz Bultmann, visa um novo (autêntico) conhe
cimento de nós próprios; a função de proclamar o Novo Testamento
é trazer este novo conhecimento ao homem moderno a quem ele
hoje se dirige. A Palavra do Novo Testamento é, portanto, algo
como uma actualização da chamada de consciência que Heidegger
descreve em Ser e Tempo (1J).
C°) «An Existencialist Theology: A Comparison of Heidegger and Bult
mann*.
(*>) S Z § 33.
(») Ibid., § 60.
58
Certamente que a chamada de atenção para uma nova maneira
de nos conhecermos a nós próprios é uma afronta ao nosso modo
actual de estar no mundo. Bultmann não tem qualquer desejo de
afastar «o escândalo» do Novo Testamento, pretende sim colocar
esse escândalo no seu devido lugar: não é considerando literalmente
os mitos como verdades de fé, não é acreditando numa informação
cosmológica manifestamente falsa, mas sim apelando para uma obe
diência radical, para uma abertura à Graça, à liberdade na fé.
A discussão que Bultmann faz do problema hermenêutico indica
especificamente que para ele a hermenêutica é sempre definida em
termos de exegese de um texto, transmitido historicamente. Por
muito que deva a Heidegger, continua a ver a hermenêutica mais
como uma filosofia que deve orientar a exegese, do que como uma
teoria da compreensão «per se». Em The Problem of Hermeneutics
(1950), reafirma a insistência liberal dos Protestantes na total liber
dade de investigação — o método histórico-crítico — e vai ao
ponto de dizer novamente que a Bíblia está sujeita às mesmas con
dições de compreensão, aos mesmos princípios filológicos e histó
ricos aplicáveis a qualquer outro livro (“ ). O «problema hermenêu
tico» embora sempre relacionado com a exegese, é encarado não
enquanto distinta e especificamente teológico mas como um pro
blema existente em toda a interpretação de textos, seja ela de
documentos jurídicos, obras históricas, literatura ou Escrituras.
É claro que a dificuldade do problema está em definir o que
constitui a compreensão histórica de um texto. Para Bultmann, a
questão hermenêutica é «como compreender os documentos histó
ricos deixados pela tradição», que por seu lado assenta na questão:
«Quais as características do conhecimento histórico?» O'1) É a este
problema que dedica a segunda parte das suas Gifford Lectures
(1955) e é precisamente a análise que nelas apresenta que Betti
mais tarde irá violentamente pôr em causa (1!).
Bultmann assinala que toda a interpretação da história ou todo
o documento histórico é orientado por um certo interesse, que por
sua vez se baseia numa certa compreensão preliminar do assunto.
A «questão» molda-se a partir deste interesse e desta compreensão.
Sem eles nenhuma questão se formularia e não haveria qualquer
interpretação. Por conseguinte, toda a interpretação é guiada pela
«pré-compreensão» do intérprete (” )• [Mais uma vez esta análise da
(13) «Die Interpretation der biblischen Schriften unterliegt nicht anderen
Bedingungen des Verstehens ais jede andere Literatur». G&V II, 231. O artigo
apareceu como «Das Problem der Hermeneutik» ZT h K XLVII (1950), 47-69,
e mais tarde traduzido em «Essays: Philosophical and Theological», págs. 234-61.
(») HE 110.
(1J) Ver HAMG 19-36.
('•) HE 113. Ver a crítica de Betti a «essa palavra ambígua que é melhor
evitar». HAMG 20-21.
59
compreensão se relaciona nitidamente com a delimitação feita por
Heidegger de Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff (") em Ser e Tempo,
como condições prévias de interpretação.] Aplicado à história, isto
significa que o historiador escolhe sempre um certoponto de vista,
o que por seu lado significa que ele é essencialmente receptivo ao
aspecto do processo histórico aberto às questões que surgem a partir
desse ponto de vista. Por muito objectivo que pretenda ser ao abor
dar um tema, o historiador não pode escapar à compreensão que
dele tem: «Já na escolha de um ponto de vista está em acção aquilo
a que posso chamar o encontro existencial com a história. A história
só ganha sentido quando o próprio historiador está dentro da histó
ria e toma parte nela» ('*). Bultmann cita então R. G. Collingwood
para o facto de que os eventos têm que ser refeitos na mente
do historiador. Eles são, portanto, objectivos e conhecidos apenas
porque também são subjectivos (’*). Dado que o significado apenas
surge da relação que o intérprete tem com o futuro, segundo
Bultmann torna-se impossível falar de um significado objectivo —
quer dizer destituído de qualquer ponto de vista — e como hoje já
não se afirma que se sabe o fim e a meta da história «a questão
do sentido da história (como um todo) deixa de ter significado» (J0).
Podemos aqui ver como actua de um modo radical o «princípio
de Heisenberg» ou teoria de campo; isto é, que o objecto ao ser
observado é subtilmente alterado, pela simples condição de estar
a ser observado. O historiador é uma parte do próprio campo que
observa. O conhecimento histórico é ele próprio um evento histó
rico; o sujeito e o objecto da ciência histórica não existem indepen
dentemente um do outro (” ). Isto, de acordo com Bultmann tem
implicações na fé cristã, especialmente porque através do momento
escatológico, o cristão é elevado para além da história e reingressa
nela com um novo futuro. Por conseguinte a história reveste-se de
um significado novo. Podemos aqui referir que Bultmann procura
ir mais longe que Collingwood no conceito que defende de escato-
logia, usando uma abordagem teológica (escatológica) para a ques
tão do sentido da história (” ). Mas a argumentação central de
Bultmann é clara (e é esse mesmo problema que Betti põe em
causa): em história não podemos falar de sentido objectivo porque
a história não pode ser conhecida excepto através da subjectividade
do próprio historiador.
(lr) SZ § 32. Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff podem ser traduzidos um
pouco literalmente por posse prévia, visão e concepção.
(“ ) HE 119.
(l9) R- G. Collingwood, «The Idea of History», pág. 218.
(«) HE 120.
(Jl) Ibid., 133.
(” ) Ibid-, 136.
60
Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs seguem Bultmann quando colo
cam o problema hermenêutico no centro do seu pensamento. Tnl
como ele continuam a agarrar-se à nítida disparidade entre a visflo
moderna do real e a visão em que assenta o Novo Testamento.
Como Bultmann, opõem-se à visão literal da linguagem e continuam
a tentativa feita por este, de restaurar para a Palavra o seu poder
original. Como ele, centralizam-se no significado do Novo Testa
mento enquanto testemunho mais do que no seu carácter factual;
acentuam que o intérprete está sempre no meio da história que ele
quer interpretar e que o sentido da história está em relação com
a compreensão que o intérprete tem do futuro.
Ebeling e Fuchs levaram ainda mais longe as concepções de
Bultmann relativamente à história, à linguagem e à desmitologiza
ção, dando-lhes uma interpretação ainda mais radical. Se a herme
nêutica de Bultmann se centra na autocompreensão existencial do
homem e vai directamente para a análise do que isso significa em
termos da Palavra revelada, Ebeling e Fuchs voltam-se para a pró
pria linguagem e para a sua relação com a realidade. O problema
hermenêutico nessa perspectiva não é simplesmente uma questão de
ajustar a proclamação da Palavra à realidade que ela veicula em
termos de uma autocompreensão existencial; é lingüístico, i. e..
«como é que uma palavra (palavra evento) que aconteceu, chega a
ser compreendida» (” ). Como Ebeling sustenta em Word of God
and Hermeneutics: «a existência é existência através da palavra e
na palavra; (...) a interpretação existencialista significaria interpre
tação do texto relativamente à palavra evento» C21).
Tanto Ebeling como Fuchs fizeram da palavra evento o centro
do seu pensamento teológico. Este foi designado por «teologia da
palavra evento». A hermenêutica, dizem eles, tem que encontrar o
seu apoio na palavra evento; «o objecto da hermenêutica» diz
Ebeling, «é a palavra evento enquanto tal» (” ). Contudo, a herme
nêutica não procura compensar qualquer deficiência da Palavra
Bíblica através da paráfrase, antes tenta facilitar «a função her
menêutica» (de provocar a ocorrência da compreensão) da própria
palavra. É a própria palavra que abre e mediatiza a compreensão:
«O fenômeno primário no domínio da compreensão não é çi com
preensão da linguagem mas a compreensão através da lingua-
nem.» (” ) Ou ainda, para reavivar o caracter lingüístico de tal teo
logia: «A hermenêutica enquanto teoria da compreensão deve
portanto ser a teoria da palavra.» (” ) Fuchs põe a questão de
(") WF 313.
(*) Ibid., 331.
(” ) Ibid., 319.
(") Ibid., 318; citado em HAMG 36.
(”) WF 319.
61
um modo sucinto no começo da sua Hermeneutik: «A Herme
nêutica no campo da teologia é a doutrina da fé da linguagem
(Sprachlehre).» (” )
Do ponto de vista de uma definição de hermenêutica há duas
questões com interesse nesta abordagem. Primeiro, a referência à
«função hermenêutica» das palavras remonta ao sentido mais pri
mitivo de interpretação como mediação directa da compreensão,
atribuindo assim à hermenêutica a finalidade de «remoção dos
obstáculos à compreensão» ("). Isto é, uma focalização salutar dos
objectivos da hermenêutica, embora não altere o facto de tendermos
a utilizar, consciente ou inconscientemente, sistemas de interpre
tação, mesmo nos actos de mediação mais directos. O segundo ponto
refere-se ao historicismo: a focalização na linguagem evento que
continua a sustentar o «carácter lingüístico» da realidade, encara a
história não como um museu de factos mas como uma realidade
que se exprime por palavras. Assim, as perguntas adequadas não
são tanto «Quais eram os factos?» ou «Como podemos explicar este
facto?», mas «O que é que se exprimiu neste facto ou neste mito?»,
«O que é que está a ser mediatizado?» (3°). O historicismo em teo
logia dá origem a um uso incorrecto da linguagem, a uma «visão
falsificada da palavra» que a abstrai do evento que é a palavra
viva e a trata como um mero enunciado. Daí resulta o falhanço do
intérprete em compreender a palavra revelada, à luz das suas carac
terísticas de palavra evento (").
A ênfase dada em teologia à palavra evento, tem como con
seqüência irazer a filosofia da linguagem para o centro da herme
nêutica. A finalidade da hermenêutica ainda é uma finalidade prá
tica, de remoção de obstáculos à palavra evento, mas a focalização
do problema hermenêutico está sem dúvida na interconexão da
linguagem com o pensamento e com a realidade. Dado que a her
menêutica não pode ser considerada separadamente da moderna
epistemologia, da metafísica e da filosofia da linguagem, ultrapassa
nitidamente os limites de um conjunto de meras regras práticas de
interpretação. Ao afastar-se da objectividade realista dos «factos
históricos» chamou a crítica para o terreno da teologia, especial
mente a partir de Wolfhart Pannenberg (” ) e para fora da teologia,
a partir de Emilio Betti.
(«) WF 318-19.
(") WF 318-19.
(” ) Ibid., 295.
(>') Ibid.
(” ) «Hermeneutics and Universal History» HH 122-152.
62
A hermenêutica de Betti
Emílio Betti, historiador de Direito, fundou em 1955 um ms
tituto para a teoria da interpretação (” ). Publicou em 1962 um
livrinho com o título Hermeneutik ais allgemeine Methodik der
Geiteswissenschaften. Surgido pouco depois da obra-prima de
Gadamer, de 1960, este ensaio avança com uma crítica nítida einequívoca à abordagem que Gadamer fizera a este tema — tal
como às abordagens de Bultmann e de Ebeling. Em termos muito
simples, as objecções que Betti faz à obra de Gadamer são: cm
primeiro lugar, que esta não serve como metodologia ou como
auxiliar de metodologia dos estudos humanísticos e, em segundo
lugar, que ela põe em risco a legitimidade de nos referirmos ao
estatuto objectivo dos objectos de interpretação e que portanto torna
discutível a ob.iectividade da própria interpretação.
O livrinho começa com um lamento:
A hermenêutica como problemática geral da interpre
tação. essa grande disciplina geral que tão nobremente se
originou no período Romântico" como preocupação comum
a todas as disciplinas, que ocupou a atenção de muitos espí
ritos eminentes do século dezanove — como por exemplo
Humboldt na filosofia da linguagem, August Wilhelm
von Schlegel o grande historiador literário. Bõckh o filó-
logo e enciclopedista, Savigny o jurista, e historiadores como
Niebuhr, Ranke e Droysen — essa venerável forma mais
antiga de hermenêutica parece estar a desaparecer da
moderna consciência alemã (” ).
Numa sua primeira obra enciclopédica — Teoria' generale delia
interpretazione (S!) — Betti procurou renovar a tradição alemã, já
antiga mas ricamente significativa.
Os leitores alemães tiveram acesso ao pensamento geral de Betti
desde 1954, quando ele publicou o seu curto «manifesto hermenêu
tico»— Zur Grundlegung einen allgemeinen A uslegungsleher (!e),
uma antecipação densamente documentada do seu magnus opus
de 1955, do qual surgiu finalmente uma tradução em 1967 (” )•
Esta obra de maior fôlego, produto de sete ou mais anos de tra
balho, remonta à sua conferência inaugural de Maio de 1948. De
facto, o manifesto de 1954 é uma versão alargada desta primeira
apresentação. Em 1962, Betti escreveu com tristeza que, apesar
(” ) Ver HAMG 6-7 n.
(») HAMG.
(” ) TGI.
(") Apareceu originalmente em «lesischrijt für Ernst Rabel», II, 79-168,
publicado no mesmo ano.
(” ) AAMG.
63
da sua publicação de 1954, na Alemanha dera-se pouca impor
tância ao seu trabalho (” ). Pelo contrário, o fascínio pela filosofia
heideggeriana continuou a exercer influência na teologia protestante
e na filosofia, surgindo uma visão completamente diferente de
hermenêutica.
Este desenvolvimento não estava na grande corrente da tra
dição que remonta a Schleiermacher passando por Humboldt, Stein-
thal, Lazarus Bockh, Dilthey, Simmel, Litt, Joachim Wach e Nicolai
Hartmann. Foi esta corrente que ocupou a atenção de Betti na sua
resolução de retomar o projecto de formulação de uma teoria
metodológica geral da interpretação (” ). Foi a influência da feno
menologia e da ontologia heideggerianas, ligadas ao interesse geral
pela filosofia da linguagem, que constituiu a força condutora do
interesse renovado que os alemães demonstraram pela hermenêutica
(Gadamer afirma que um outro impulso dado ao seu pensamento
foi o profundo descontentamento que experimentou relativamente
à teoria estética dominante nos anos de 1930 e seguintes) O9).
Como vimos, em teologia, o desenvolvimento da hermenêutica
estava intimamente ligado à desmitologização. A desmitologização
é a maneira de defrontar o problema profundo de tornar a Bíblia
relevante e significativa para os actuais ouvintes da Palavra.
Enquanto historiador de Direito, o interesse de Betti não partiu
do desejo filosófico de uma avaliação mais adequada da verdade
de uma obra de arte (como aconteceu com Gadamer) ou de um
desejo de chegar a uma compreensão mais funda do Ser (como
aconteceu com Heidegger) ou da obrigação de alcançar a total
compreensão da palavra bíblica (como em Bultmann e em Ebeling).
Betti queria distinguir os diferentes modos de interpretação das
disciplinas humanas e formular um corpo básico de princípios com
os quais se interpretasse as acções do homem e os objectos.
Se há que fazer uma distinção entre o momento de compreender
um objecto por si mesmo e o momento de ver o significado exis
tencial do objecto através da nossa própria vida e do nosso futuro,
então podemos dizer que este último ponto de vista é nitidamente
a preocupação de Gadamer, de Bultmann e de Ebeling, enquanto
a preocupação de Betti tem sido determinar a natureza da inter
pretação «objectiva».
Betti de modo algum pretende omitir da interpretação o mo
mento subjectivo ou mesmo negar a sua necessidade em toda a
interpretação humana. Mas o que pretende afirmar é que. qualquer
(“ ) HAMG 6.
(" ) Ibid.
(w) Dc acordo cora observações feitas por Gadamer sobre a gênese de
WM, muna abordagem que segue a minha comunicação *Die Tragweile von
Gadumrrs II'M fiir dir Literaiurauslegung». Heidelberg, 14 de Julho de 1965.
64
que seja o papel da subjectividade na interpretação, o o h ja lo
mantém-se objecto e podemos tentar fazer dele e realizar com clr
uma interpretação objectivamente válida. Um objecto fala, c pode
ser ouvido de um modo correcto ou incorrecto, precisamente por
que nele há um significado objectivamente verificável. Se o objecto
não é diferente do seu observador, e se não fala por si mesmo,
para quê então escutá-lo? (4I)
Betti defende que a recente hermenêutica alemã se tem dc tal
modo ocupado com o fenômeno do Sinngebung (a função do intér
prete na atribuição de sentido ao objecto) que acabou por se equa
cionar com a interpretação. No começo de Die Hermeneutik ais
allgemeine Methodik der Geiteswissenschaften (1962), Betti sus
tenta que é seu objectivo, em primeiro lugar clarificar a distinção
entre Auslegung (interpretação) e Sinngebung. Precisamente porque
esta interpretação é ignorada, diz Betti, toda a integridade de resul
tados objectivamente válidos nas humanidades (die Objectivitàt der
Auslegungsergebnisse) é posta em risco.
A defesa que Betti faz da objectividade é ilustrada com alguns
exemplos de regras de hemenêutica e com objecções à posição dc
Gadamer. Para Betti, o objecto a interpretar é uma objectivação
do espírito humano (Geist) expressa de uma forma sensível. A inter
pretação, portanto, é necessariamente um reconhecimento e uma
reconstrução do significado que o seu autor foi capaz de incorporar,
usando um determinado tipo de materiais. Isto significa evidente
mente que o observador tem que ser traduzido para uma subjec
tividade que lhe é estranha e, por meio da inversão do processo
criativo, tem que voltar à ideia ou à «interpretação» que é incor
porada no objecto O . Assim, como Betti observa, é perfeitamente
absurdo falar de uma objectividade que não envolva a subjectividade
do intérprete. Porém, a subjectividade do intérprete deve pene
trar a estranheza e a alteridade do objecto, ou então o intéprete
apenas consegue projectar a sua própria subjectividade no objecto
de interpretação. Assim é fundamental (é mesmo a primeira regra
de toda a interpretação), afirmar a autonomia essencial do
objecto (“ ).
Uma segunda regra é a do contexto do sentido, ou seja, a
totalidade no interior da qual as partes individuais são interpretadas.
Há uma relação íntima de coerência entre as partes individuais de
um discurso devido a uma totalidade sobreposta, construída com
as partes individuais C14). Numa terceira regra geral, Betti reconhece
(“ ) HAMG, 35.
(«) Ibid., 11-12.
(4>) Ibid., 14.
(**) «Kanon des slnnhaften Zusammenhanges (Grundsatz der Ganzholt)»
OU «Kanon der Totalitãt», ibid., 15.
65
■
o «carácter tópico» (Actualitãt) do significado, isto é, a relação
com a própria posição e com os actuais interesses do intérprete
que toda a compreensão envolve. O intérprete de um aconteci
mento passado, necessariamente o interpretará em termos daquilo
que experienciou. Do lado subjectivo não há fuga possível à
compreensão e à experiência de cada um. Betti está longe de ima
ginar que a comprensão é uma questão de receptividadepassiva;
antes a considera sempre como um processo de reconstrução que
envolve a própria experiência que o intérprete tem do mundo (“ ).
Pode-se mesmo dizer que Betti reafirma «em princípio» o conceito
de compreensão prévia enunciado por Bultmann.
Para este, devido à historicidade da compreensão prévia, a ideia
de que é possível ter um conhecimento histórico objectivo é uma
«ilusão do pensar objectivado» (die lllusion emes objektivierenden
Denkens) (“ ). Diz Betti: «O texto a que um pré-conhecimento dá
sentido não existe simplesmente para fortalecer a opinião que pre
viamente sustentávamos; pelo contrário, temos que partir do prin
cípio de que o texto tem algo a dizer-nos, que nós ainda ignoramos
mas que existe, independentemente da acção de o compreendermos.
É precisamente aqui que ganha luz a discutibilidade de uma foca
lização subjectiva; esta é obviamente influencida pela filosofia exis
tencial contemporânea e luta pela junção de uma explicação
(Auslegung) e de uma compreensão (Sinngebung), tendo como con
seqüência o facto de que a objectividade dos resultados do processo
interpretativo nas humanidades, é totalmente posta em causa» (")•
As críticas de Betti a Gadamer levantam sérias objecções à
«intersubjectividade» existencial e à historicidade da compreensão,
defendendo que Gadamer não conseguiu produzir métodos norma
tivos que permitissem distinguir uma interpretação certa de uma
interpretação errada, e de que ele considera conjuntamente pro
cessos muito diferentes de interpretação (**). Betti defende que o
historiador não está muito preocupado com uma relação prática
com o presente, estando sim submerso contemplativamente no texto
que está a estudar; por outro lado, o advogado na relação que sus
tenta com um texto, tem em mente a sua aplicação prática ao
presente. Como conseqüência, os dois processos de interpretação
têm características diferentes; a afirmação de Gadamer de que
cada interpretação implica uma aplicação ao presente, é verdade
para uma interpretação legal mas não para uma interpretação
histórica (“ ).
(" ) Ibid.. 19-22.
('•) HE, 121.
<‘r) HAMG, 35.
(*■) Ibid., 43-44.
(*•) Ibid., 45-49.
66
Gadamer respondeu a estas objecções numa carta a llrltl
Declarou não estar a propor um método mas sim a tentar csnvvci
aquilo que é... «Procuro pensar os acontecimentos para além du
conceito de método da ciência moderna, de um modo explicit»
mente universal» (s0). Betti publicou a carta de Gadamer como notu
de rodapé do próprio panfleto onde ataca Gadamer. É evidente que
Betti não ficou satisfeito com a resposta. Para ele, Gadamer per
deu-se numa subjectividade existencial sem quaisquer regras. No
prefácio ã edição de Wahrheit und Methode de 1965, Gadamer
mais uma vez responde a Betti, dando agora relevo ao carácter
não subjectivo da compreensão. A tônica ontológica da sua obra
(que Betti deplora) leva Gadamer a encarar o funcionamento da
«consciência historicamente operante» (” ) não como um processo
subjectivo mas sim ontológico:
«O significado da minha investigação não é, de modo algum,
apresentar uma teoria geral da interpretação com especificações
que avaliem os diferentes métodos das disciplinas particulares,
como E. Betti tão excelentemente fez, mas sim procurar o que há
de comum em todas as vias de compreensão e mostrar que ela
nunca é um procedimento subjectivo relativamente a um dado
‘objecto’ mas que petrence à história operacional (Wirkungsgesch-
ichte) — quer dizer, ao ser daquilo que é compreendido» (” )•
A questão visada por Gadamer será ulteriormente examinada
nos capítulos dez e onze, mas torna-se agora nítido o contraste
fundamental entre Betti e Gadamer. Deparam-se-nos duas con
cepções, muito diferentes quanto ao âmbito e à finalidade da her
menêutica, quanto aos métodos e tipos de pensamento que lhe
são próprios e quanto ao carácter essencial da disciplina como
campo de estudo. Mediante duas definições muito diferentes, assen-
tanto em fundamentos filosóficos distintos, os dois pensadores
definem a hermenêutica com vista a objectivos também muito
diferentes. Betti, seguindo Dilthey na busca de uma disciplina de
base para as Geisteswissenschaften, procura o que é prático e útil
para o intérprete. Pretende normas que distingam uma interpre
tação certa de uma interpretação errada, que diferenciem um tipo
e outro de interpretação. Gadamer, seguindo Heidegger, faz per
guntas tais como: Qual é o carácter ontológico da compreensão?
Que espécie de encontro com o Ser está implicado no processo
hermenêutico? Como é que a tradição e a transmissão do passado,
entram no acto de compreensão de um texto histórico e o podem
moldar?
(” ) Ibid., 51 n.
(’*) «Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein»; ver WM 325-60.
(” ) Ibid., Prefácio à 2.» ed., XVII.
67
Que dizer deste conflito de definições? Como desenvolverei no
próximo capítulo, as duas posições não são totalmente antagônicas.
Pelo contrário, os dois pensadores trabalham em diferentes aspectos
do problema hermenêutico. Obviamente que há que fazer uma
opção básica entre uma perspectiva realista e uma perspectiva
fenomenológica; no entanto, podemos admitir que para a herme
nêutica como um todo, ambas as posições filosóficas permitem
importantes abordagens ao problema hermenêutico.
E. D. Hirsch — A hermenêutica como lógica
da validação
Em 1967, E. D. Hirsch publicou Validade na Interpretação,
o primeiro tratado completo de hermenêutica geral escrito em
inglês. Sem dúvida que nos anos vindouros, este trabalho virá a
ocupar um lugar entre as obras americanas mais significativas sobre
teoria da interpretação. De um modo sistemático e com uma argu
mentação cuidadosa, o livro põe em causa algumas das asserções
mais apreciadas que desde há quatro décadas têm orientado a inter
pretação literária. Por exemplo, Hirsch sustenta que a intenção
do autor deve ser a norma pela qual devemos avaliar a validade
de qualquer «interpretação» (explicação do significado verbal de
uma passagem). Argumenta ainda que essa intenção é uma deter
minada entidade sobre a qual podemos concluir uma evidência
objectiva e que, quando estamos seguros da evidência, podemos
fazer uma delimitação do significado que pode ser universalmente
reconhecida como válida. O sonho de Dilthey de uma interpretação
objectivamente válida, parece ter-se realizado.
Evidentemente que «o significado verbal» de uma passagem
enquanto determinada por uma análise filosófica intensiva (quer
da obra quer de toda a evidência interna patente na intenção do
seu autor) e o significado que a mesma obra possa ter hoje, são
duas coisas diferentes. Mas a posição de Hirsch é precisamente esta:
criar-se-á uma confusão sem limites se identificarmos «sentido ver
bal» e «significado» (significação para nós). Este é o pecado que
ele atribui a Gadamer, a Bultmann e aos teólogos da Nova Her
menêutica (**). Na linguagem usada por Betti ao abordar este tema,
Bedeutung (sentido) tem que ser considerado separadamente de
Bedeutsamkeit (significado) (’*)• Caso contrário a filosofia ruirá e
desaparecerá a possibilidade de obtermos resultados objectivos e
válidos. É nessa distinção que reside a integridade da filologia e
a possibilidade da objectividade.
(” ) VII 246.
(” ) HAMG 28-29.
68
O objectivo da hermenêutica, diz Hirsch, nflo 6 cnconlrni o
«significado» que uma passagem pode ter para nós, mas sim i'l«
rificar o seu sentido verbal. A hermenêutica é a disciplina filosófica
que estabelece as regras com as quais podemos atingir determinuçflcs
válidas do sentido verbal de uma passagem. Segundo Hirsch, Gada
mer e os seguidores de Bultmann não só fizeram considerações
erradas, extrínsecas à tarefa real da hermenêutica, como também
professaram uma posição filosófica que vai ao ponto de perguntar
se é mesmo possível esperar um sentido objectivamentedetermi-
nável.
Basicamente Hirsch argumenta que se defendemos que o sen
tido de uma passagem (o seu sentido verbal) pode mudar, então
não há qualquer norma fixa para avaliarmos se a passagem está
a ser correctamente interpretada. Só se alguém reconhecer o «sapa-
tinho dc cristal» do primitivo sentido verbal pretendido pelo autor,
haverá possibilidade de separar a «Gata Borralheira» das outras
raparigas (” ). Isto faz de novo lembrar a objecção de Betti a
Gadamer: que Gadamer não nos dá um princípio normativo estável
pelo qual o sentido «correcto» de uma passagem possa ser valida
mente determinado. Hirsch toma como norma o sentido verbal
pretendido pelo autor e chega ao ponto de caracterizar o sentido
verbal como imutável, reprodutível e fixo. Uma curta citação ilus
trará o seu raciocínio, dando-nos também algo do sabor aristotélico
da sua exposição: «Quando portanto afirmo que um sentido verbal
é fixo, quero dizer que ele constitui uma entidade idêntica a si
própria. Mais, pretendo também dizer que é uma entidade que se
mantém sempre a mesma, de um momento para o outro — que é
portanto imutável. Na verdade, estes critérios estavam já implicados
na afirmação de que o sentido verbal é reprodutível, que ele é
sempre o mesmo nos diferentes actos de interpretação. O sentido
verbal é portanto aquilo que é e não qualquer outra coisa, man
tendo-se sempre o mesmo. A isto chamo determinação (determi-
nacy) (").
Aqui a hermenêutica atribui-se a si própria a tarefa de fornecer
a justificação teórica para a determinação do objecto de interpre
tação e de colocar normas com as quais o sentido determinado,
imutável e idêntico a si mesmo pode ser compreendido. Natural
mente que a tarefa é também dizer que bases temos para preferir
mos um sentido e não qualquer outro; é esta a questão da validade.
Do ponto de vista de Hirsch, hermenêutica que não lide com
a validade não é hermenêutica mas qualquer outra coisa. Tal como
Betti, levanta a objecção de que a corrente heideggeriana em her-
(*») VII 46.
(" ) Ibid.
69
im-néuticu põe dc lado o problema da validade sem o qual não
pode de modo algum haver uma ciência da interpretação e um
método de obtermos interpretações correctas.
À objecção de que a hermenêutica deveria lidar com o signi
ficado que o texto hoje tem para nós e com as estruturas ou me
canismos pelos quais o sentido verbal se torna significativo para
nós, Hirsch responde que esse é o domínio da crítica literária e
dc outras áreas afins ("). De um ponto de vista restrito, a herme
nêutica é «o esforço filológico, modesto e antiquado que visa encon
trar o que um autor pretendia» ("). Este é o único fundamento
válido para a crítica (” ) mas não é crítica; é interpretação. A her
menêutica bem pode fazer uso da análise lógica, da biografia e
mesmo do cálculo de probabilidades (para determinar quais as mais
prováveis entre várias interpretações possíveis), mas mantém-se
essencialmente filologia. Contudo, mesmo com esta restrição, é
ainda largamente significativa e interdisciplinar; é ainda uma disci
plina de base que enuncia princípios gerais de interpretação para
qualquer documento escrito, seja ele legal, religioso, literário ou
mesmo culinário.
Quer dizer desta última definição de hermenêutica como con
junto de regras constitutivas do esforço, modesto mas no entanto
básico, de determinar o sentido verbal de uma passagem? O que
mais nos choca nesta definição é aquilo que ela deixa de fora; a
hermenêutica não tem a ver com o processo subjectivo de com
preensão, como em Schleiermacher e Dilthey, nem com a relação
que um sentido já compreendido possa ter com o presente (crítica)
mas sim com o problema de uma arbitragem entre sentidos já
compreendidos, de modo a tomar posição entre possíveis interpre
tações conflituais. É um guia para o filólogo, que tem que decidir
entre várias possibilidades qual é o sentido mais adequado de uma
passagem.
Portanto para Hirsch, o problema hermenêutico não seria o
da «tradução» — o de como preencher a distância histórica entre,
digamos, o Novo Testamento e os dias de hoje, de modo que o
texto se possa tornar significativo para nós; o problema é simples
mente o problema filológico de determinar o sentido verbal pre
tendido pelo autor. Certamente que Hirsch aceitaria como problema
real, a relacionação do texto com o presente, mas negaria a per-
(” ) Ver especialmente a distinção crucial no capítulo 4 de VII, inti
tulado «Compreensão, interpretação c crítica». A hermenêutica enquanto lógica
da validação, exclui por um lado a «compreensão» e por outro lado a crítica;
é uma ciência ou um conjunto de princípios destinados a uma averiguação
válida do sentido verbal do texto; i. e. da sua interpretação.
(” ) Ibid., 57.
(»•) Ibid.
70
tença de tal problema ao campo da hermenêutica. É claro que para
tomar esta posição ele tem que afirmar que o sentido verbal 6
algo independente, imutável e determinado, que podemos estabelecer
com uma certeza objectiva. Tal concepção de sentido verbal assenta
em pressupostos filosóficos específicos, essencialmente realistas,
talvez os do primeiro Husserl das «Investigações Lógicas» que Hirsch
cita para justificar que o mesmo objecto intencional pode ser foco
de muitos actos intencionais diferentes (M). Neste caso, o objecto
mantém-se o mesmo, uma ideia ou uma essência independente.
Embora a crítica detalhada dos pressupostos de Hirsch ultra
passe o âmbito deste trabalho, é necessário observar que, quando
o problema hermenêutico é definido simplesmente como problema
filológico, então todo o complexo problema do pensamento actual
sobre a compreensão histórica é posto de lado como irrelevante
para a determinação prática do sentido verbal. A hermenêutica
torna-se um conjunto de princípios filológicos de interpretação que
o professor de línguas, o padre ou o advogado podem usar sem
perder tempo com problemas actuais sobre filosofia da linguagem,
fenomenologia, epistemologia ou antologia heideggeriana. Quem
tem que se importar com Hegel, Heidegger ou Gadamer para coligir
dados sobre a «verdadeira intenção», o «sentido verbal imutável»
do Lycides de Milton? Que fazer do problema da compreensão do
que Lycides pode ou deve significar para nós hoje em dia? Isso é
assunto para o crítico literário, diz Hirsch. Mas é claro que o crí
tico literário «não desdenhará» a tarefa técnica modesta, efectuada
pelo «intérprete» — «a única base da crítica»— tal como o intér
prete aprecia a pureza primitiva do sentido imutável, supra-histórico,
isolado do seu significado actual.
De facto, o problema hermenêutico não é simplesmente um
problema filológico, e não é possível relegar para o limbo a his
tória e as definições aristotélicas, o grosso da teoria da compreen
são em Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, para não
falarmos já dos contributos (quer dentro quer fora da teologia)
dados para uma definição da compreensão histórica. Hirsch defende
que o sentido verbal é de facto separável do significado, visto que
l.!) podemos de facto distinguir o que a obra significou para o seu
autor e o que ela significa para nós e 2.°) de outro modo, tornar-
-se-ia impossível um sentido objectivo e repetível. Mas até que
ponto este argumento é satisfatório? O facto de um objecto mental
podes ser encarado sob várias perspectivas não o torna historica
mente imutável e eterno; e argumentar que de outro modo a
objectividade seria impossível, é um círculo vicioso, visto que o
(*•) Ver o interessante apendice III dc Hirsch «An Excursis on Typo.s»,
ibid. 265-74.
71
que está eni causa é a possibilidade de um conhecimento an-histó-
rico e objectivo. Contudo, toda a validade do tratado de Hirsch
depende da validade desta distinção entre sentido e significado.
Contudo, será que a compreensão actua do modo mecânico queHirsch pretende? Ou será esta separação entre sentido e significado
uma operação estritamente reflexiva, construída depois do acto de
compreensão? Não será talvez esta forma de hermenêutica uma
crítica de texto disfarçada — uma metodologia para distinguir refle
xivamente entre uma e outra forma de compreensão? Não será
apenas um sistema ou estrutura para o crítico ou o filólogo usar
quando avalia se um dos poemas de Wordsworth a Lucy (para usar
o exemplo citado por Hirsch) reflecte uma visão da vida sombria
ou positiva?
Certamente que uma tal teoria hermenêutica não propõe mas
antes pressupõe uma teoria de como é que a própria compreensão
ocorre. (E é preciso questionar até que ponto esta teoria da com
preensão é adequada.) Digamos que ela só começa depois da com
preensão. Como Hirsch nota: «O acto de compreensão é primei
ramente uma adivinha genial (ou completamente errada), e não há
métodos para fazer adivinhar, como não há regras para produzir
intuições. A actividade metodológica da interpretação começa
quando começamos a testar ou a criticar as nossas adivinhas.» O
Ou mais explicitamente: «A disciplina da interpretação compreende
a produção de ideias e a verificação das mesmas... Baseia-se não
numa metodologia da construção mas antes numa lógica da vali
dação» (°). Para Hirsch, a hermenêutica já não é teoria da inter
pretação; é lógica de validação. É a teoria pela qual podemos dizer:
«O que o autor pretendeu dizer foi isto e não aquilo.»
Hirsch alcançou brilhantemente o seu objectivo: construiu um
sistema único de chegar a um sentido objectivamente verificável.
Mas a que preço? Em primeiro lugar, para que o significado se
mantenha o mesmo, defende que a intenção do autor deve ser
sempre a norma ou a regra. Em segundo lugar, para que esse
significado seja objectivo, terá que ser reprodutível e imutável.
Assim, Hirsch defende que o sentido verbal, enquanto sentido, é
sempre o mesmo, sendo separado e separável do sentido que tem
para nós quando o interpretamos. Mas será possível aceitar estas
asserções? Muitas delas assentam em posições basicamente aristo-
télicas e numa teoria do sentido, que se coloca ela própria sobre
bases filosóficas.
A redefinição que Hirsch faz de hermenêutica como sendo uma
lógica de validação terá realmente contribuído para uma compreen
(•') Ibid., 207.
(") Ibid.
72
são do problema hermenêutico em toda a sua amplitude c com
plexidade, ou terá apenas simplificado o problema? Ebeling defende
que «o objecto da hermenêutica é a palavra evento enquanto tal»;
assim a hermenêutica chega de um modo profundo à questão da
realidade e à natureza da nossa participação na linguagem. O que
acontece a essa visão do problema hermenêutico? Poderá ser rele
gado para qualquer outro campo, como a filosofia da linguagem?
O à-vontade com que Hirsch ignora as implicações da teoria da
compreensão e da filosofia da linguagem leva a que pensemos que
a especialização que ele propõe para hermenêutica é desaconse-
lhável. O problema hermenêutico da teologia actual seria muito
mais limitado se propusesse simplesmente estabelecer o provável
significado verbal pretendido pelo autor! Mas imediatamente surge
a questão de qual é, por exemplo, a natureza do significado da figura
de São Paulo; estaria ele a tentar comunicar uma nova maneira de
nos compreendermos? E as normas para chegarmos a esta conclusão
estarão no próprio Paulo? Se essas normas fossem supostamente
encontradas, com que bases poderíamos decidir se eram ou não
válidas? Estamos novamente no presente. E é justamente esse
ponto que tem que ser realçado; mesmo as regras de e para a
objectividade são manufacturadas a partir de um fabrico histórico
actual. Reconhecer isto é reconhecer algo da complexidade do pro
blema hermenêutico, uma complexidade que o intérprete é subtil
mente encorajado a ultrapassar, devido a uma definição restritiva
de hermenêutica.
E assim continua o problema hermenêutico. De um lado estão
os defensores da objectividade e da validação, que consideram a
hermenêutica como a fonte teórica das normas de validação; do
outro estão os fenomenólogos do evento da compreensão, que
realçam o carácter histórico desse «evento», e consequentemente
as limitações de todas as pretensões a um «conhecimento objec-
tivo» e a uma «validade objectiva»
73
5
SIGNIFICADO E ÂMBITO DA HERMENÊUTICA
Que concluir relativamente às seis definições em causa e ao
conflito contemporâneo entre duas concepções radicalmente dife
rentes quanto ao âmbito e à finalidade de hermenêutica? Podere
mos categorizar num só termo todas essas definições (algumas das
quais contraditórias) e essas duas concepções conflituais de her
menêutica?
Penso que a resposta é afirmativa. As seis definições esclarecem
aspectos diferentes mas todos eles importantes do problema herme
nêutico. E há lugar para uma hermenêutica orientada para o mé
todo e para a validade, tal como há lugar para uma hermenêutica
centrada na historicidade da compreensão — mesmo que as duas
se baseiem em pressupostos aristotélicos e não estejam de acordo
no problema da objectividade. Pode haver diferenças entre as várias
formas de hermenêutica, mas há também muitas semelhanças
subjacentes. As diversas orientações na teoria hermenêutica ilustram
;m si mesmas um princípio hermenêutico: a interpretação é mol-
Jada pela questão a partir da qual o intérprete aborda o seu tema.
é bom que reconheçamos que as diferentes orientações da herme
nêutica, não são mais do que tematizações de respostas às questões
jue os diferentes intérpretes levantaram.
Dado que Hirsch procura o tipo de hermenêutica que fornece
interpretações válidas, o problema da validade molda logo desde o
início o curso das interrogações. O que acontece então quando a
pergunta orientadora já não é «Como obter interpretações válidas?»
mas sim «Qual a natureza da própria compreensão?». A preocupa
ção com a validade dos juízos leva à questão de quais os elementos
implicados na compreensão que deverão ser ignorados; de igual
modo, uma centração na natureza essencial de toda a compreensão
tenderá a deixar de lado o aparecimento necessário de sistemas que
permitam distinguir uma interpretação válida de uma não válida.
75
Ambas as questões são pertinentes, e a sua exploração contribui
para a compreensão do problema hermenêutico.
Creio que o problema hermenêutico, como um todo, é dema
siado importante e demasiado complexo para se tornar oropr'edade
de uma única escola de pensamento. Definições de hermenêutica
unívocas e restritivas podem servir fins delimitados, mas devemos
ter cuidado em não as tornar absolutas. É claro que é válido o
debate sobre problemas específicos, como por exemplo sobre as
características da compreensão histórica e da objectividade; mas a
exigência feita por Betti e Hirsch de que a hermenêutica de Gada
mer deve fornecer uma norma objectiva que distinga as interpre
tações válidas das não válidas, não responde à intenção básica do
pensamento de Gadamer: examinar a dinâmica da própria com
preensão. Se Gadamer tivesse querido mostrar uma falha de objec
tividade desse tipo, podia ter perguntado porque é que Betti omite
a discussão do caracter ontológico da linguagem ou porque é que
Hirsch não faz uma avaliação adequada do facto complexo que é a
própria compreensão. Tais críticas implicariam uma teoria que
fizesse aquilo que nunca é feito em primeiro lugar; são debates
essencialmente indirectos sobre a natureza e o âmbito da própria
hermenêutica. Em si mesmas não invalidam a teoria oposta. A her
menêutica, apesar do conflito contemporâneo, deve manter-se um
campo de estudo e uma área problemática com continuidade, aberta
aos contributos de muitas e diversas tradições, algumas das quais
estão mesmo por vezes em conflito.
O duplo foco de hermenêutica:o fenômeno
da compreensão e o problema hermenêutico
O desenvolvimento histórico da hermenêutica como um campo
independente parece compreender dois focos diferenciados: um visa
a teoria da compreensão em sentido geral, o outro visa o que está
implicado na exegese dos textos lingüísticos, o problema herme
nêutico. Estes dois focos não precisam de ser quer reciprocamente
eliminatórios quer absolutamente independentes. No entanto, é me
lhor tratá-los separadamente, de modo que um possa esclarecer
o outro.
Ao apoiar-se numa teoria geral da compreensão lingüística a
hermenêutica mantém-se fiel ao seu passado grandioso, com
Schleiermacher e Dilthey: É propensa a examinar qual a natureza
da compreensão e a colocar de um modo genérico a questão: O que
é compreender? O que acontece quando afirmo que «compreendo»?
Esta última interrogação destina-se especificamente realçar o carác
ter eventual da compreensão. Uma teoria da compreensão torna-se
extremamente significativa quando considera a experiência vivida
76
— o evento da compreensão — como seu ponto de partida. Deste
modo, o pensamento orienta-se para um facto, um evento em toda
a sua concreticidade, mais do que para uma ideia; torna-se uma
fenomenologia do evento da compreensão Uma fenomenologia da
compreensão deste tipo não pode ser encarada de um modo estreito
e doutrinário, mas sim enquanto se abre a todos os outros campo»
que possam contribuir para uma apropriação mais funda do que 6 ’■
compreensão e de como é que ela ocorre, tais como a epistcmologia,
ontologia, a fenomenolgia da percepção, a teoria da aprendizagem
a filosofia dos símbolos, a análise lógica e assim por diante.
O segundo foco, designado como «problema hermenêutico» é
uma instância específica do evento da compreensão: envolve sempre
a linguagem, a confrontação com um outro horizonte humano, um
acto de penetração histórica do texto. A hermenêutica precisa de
entrar cada vez mais fundo neste acto complexo da compreensão;
tem que lutar para formular uma teoria da compreensão lingüística
e histórica tal como funciona na interpretação do texto. Uma teoria
deste tipo deve harmonizar-se e relacionar-se com uma fenomeno
logia geral da compreensão; ao mesmo tempo, ela própria dará
contributo para um campo tão geral.
Esta interpretação lata do problema hermenêutico encara o
evento da compreensão de um texto como incluindo sempre um
momento de relação com o presente; de facto, a ausência desta
relação tornar-se-ia imediatamente um problema hermenêutico.
A visão do problema hermenêutico apresentada por Hirsch deixaria
de lado o próprio momento da compreensão e centrar-se-ia na
necessidade de julgar entre vários tipos de compreensão; a herme
nêutica já não é uma fenomenologia da compreensão, mas sim uma
lógica da validação. A finalidade da hermenêutica reduzir-se-ia a
uma mera determinação de «o que é que o autor pretendia dizer»,
excluindo a questão de como é que isso se torna significativo para
nós. Enquanto que a lógica de validação tem que ser considerada
como uma parte legítima do problema hermenêutico, o problema
hermenêutico, entendido no seu sentido mais lato, coloca um desafio
fundamental: o de «agarrar» e ser «agarrado» pela significação do
texto. O problema mais fundo é portanto em primeiro lugar o de
conseguir um diálogo significativo com um texto, c deve basear-se
na definição mais completa possível do que significa compreender
um texto; não é simplesmente uma arbitragem entre interpretações
rivais.
Potencial contributo que outras áreas dão
à hermenêutica
Quando os focos da hermenêutica se definem pela inclusão de
uma fenomenologia geral da compreensão e de uma fenomenologia
77
específica do evento da interpretação do texto, então o âmbito da
hermenêutica torna-se realmente vasto. No entanto, como foi dito
o âmbito do problema hermenêutico é tal que a hermenêutica não
se pode isolar como um campo fechado e especializado. Na verdade,
um dos grandes impedimentos do desenvolvimento histórico da her
menêutica não especializada foi o facto de ela não se radicar em
nenhuma disciplina estabelecida. Enteada da teologia, fruto imper
feito da filologia, a hermenêutica não teológica só agora aparece
como área determinada. Mas como o interesse por este tf ma foi
movimentado pela Nova Hermenêutica, por Betti, Gadamer. Hirsch,
Ricoeur e o último Heidegger, há razões para esperar um futuro
melhor.
Se assim for, a hermenêutica pode realmente estar num estádio
inicial do seu desenvolvimento como disciplina geral. É certo que
a exploração daquilo que outras áreas poderiam dar à teoria herme
nêutica ainda mal começou de um modo sistemático. O excelente
estudo de Ricoeur sobre Freud mostra o contributo frutífero que
pode dar a exploração de um sistema interpretativo. A obra monu
mental de Betti cobre um corte transversal das disciplinas interpre-
tativas humanísticas. O ensaio de Gadamer sobre hermenêutica
filosófica pode encarar-se como revelação do impacte frutífero da
análise ontológica de Heidegger sobre a compreensão.
No entanto, há muitos outros campos que precisam de ser explo
rados pelo significado que poderiam ter para a teoria hermenêutica.
Por exemplo, as muitas áreas de estudo relacionadas com a lingua
gem, tais como a lingüística, a filosofia da linguagem, a análise
lógica, a teoria da tradução, a teoria da informação e a teoria da
interpretação oral (discurso). A crítica literária — não só a sua
variante fenomenológica em França e as obras de Roman Ingarden,
como também a Nova Crítica contextualista e a crítica do mito —
precisam dc ser exploradas pelo significado que têm para uma teoria
geral da interpretação. E a fenomenologia da linguagem é indispen
sável para a teoria hermenêutica, não só os trabalhos recentes de
Merleau-Ponty, Gusdorf, Kwant e outros, mas também o contributo
de Husserl, incluindo as primitivas Logische Untersuchungen.
É um facto que muitas áreas, não especificamente relacionadas
com a linguagem, apresentam uma importância potencial conside
rável para a hermenêutica. Não podemos ignorar todo o problema
da filosofia da mente e o debate sobre epistemologia no nosso século.
A obra de Cassirer nesta área, tal como a sua filosofia geral das
formas simbólicas, é importante para a teoria hermenêutica. As
várias formas de fenomenologia — da percepção, da compreensão
musical, da estética — ajuaam a mostrar a temporalidade e as raízes
existenciais da compreensão.
A filosofia da interpretação do direito, da história e da teolo
gia especialmente a recente Nova Hermenêutica e o projecto pri
78
mitivo de desmitologização — todos eles trazem clcmcnlos impor
tantes ao fenômeno da interpretação. As questões da novidade c da
criatividade na estética tal como foram exploradas por liausmun c
outros, são contribuições relevantes para a tarefa hermenêutica de
compreender o que está fora do nosso actual horizonte de com
preensão. Toda a questão da metodologia na filosofia da ciência, as
experiências com métodos de observação participativa cm Socio
logia, a psicologia da aprendizagem e da imaginação, todas elas são
ricamente sugestivas para novas orientações do pensamento sobre
esse processo a que chamamos interpretação. Poderíamos nomear
muitas outras áreas, mas estas são suficientes para sugerir que a
hermenêutica se poderia tornar num cruzamento interdisciplinar
para o pensamento significativo que permitisse a alguns destes cam
pos perspectivar as suas áreas problemáticas própria num contexto
mais compreensivo. São necessários muitos estudos concretos para
desenvolver e clarificar o significado destas áreas para a teoria her
menêutica. A presente obra não pode levar isso a cabo, mas incluí
mos na secção C da Bibliografia algumas obras dos campos men
cionados.
Proponho-me nos capítulos seguintes clarificarde certo modo
a amplitude e a complexidade do problema hermenêutico, e apontar
para um conceito de hermenêutica mais lato do que qualquer um
até agora em vigor na língua inglesa. As obras do Professor Hirsch
tornaram acessível uma definição altamente restritiva da interpre
tação, em termos de lógica da validação. Muitas das recentes obras
que explicam a Nova Hermenêutica, tendem a abordá-la num con
texto essencialmente teológico. O aparecimento do livro de Gada
mer em inglês, será decisivo para o alargamento do conceito cor
rente de hermenêutica. Contudo, espero que o presente ensaio ajude
a clarificar o significado desse acontecimento previsto, pois a herme
nêutica deve ser considerada como mais do que uma lógica da
validação filológica, como mais do que um novo movimento vital,
dentro da teologia contemporânea. É uma área ampla centrada no
evento da compreensão textual com todas as suas ramificações. As
presentes abordagens do tema são insuficientes para sugerir as
possibilidades de uma hermenêutica basicamente filológica, como foi
sugerido pela tônica fenomenológica neste campo, em Heidegger c
em Gadamer. Será talvez possível colocar os fundamentos de uma
concepção mais ampla de hermenêutica e iniciarmos uma apreciação
do seu significado potencial, através da apresentação da hermenêu
tica, em quatro pensadores que professam a mesma abordagem lata
por mim defendida.
79
SEGUNDA PARTE
QUATRO GRANDES TEÓRICOS
6
DOIS PRECURSORES DE SCHLEIERMACHER
Para podermos apreciar a natureza e magnitude do contributo
de Schleiermacher para o desenvolvimento da teoria hermenêutica,
é necessário atendermos ao estado da hermenêutica no seu tempo,
e particularmente às concepções avançadas por dois grandes eru
ditos da filologia coeva, Friedrich Ast e Friedrich August Wolf.
Schleiermacher desenvolveu o seu conceito de hermenêutica a
partir de tentativas iniciais formuladas sob forma de aforismos, em
1805 e 1806, num diálogo mais ou menos explícito com Ast e Wolf.
Na abertura das suas conferências sobre o tema, em 1819,
apelou para uma nova concepção de hermenêutica, referindo-se
logo nas primeiras frases a dois célebres filólogos (*); aliás, o título
das suas Akademiereden de 1829 era «Sobre o conceito de herme
nêutica nas suas relações com as Indicações de F. A. Wolf e com
o manual de Ast» (J). Assim, o conhecimento de algo da obra de
Wolf e de Ast torna-se um pré-requisito para a compreensão de
Schleiermacher. Como veremos, muitas das suas concepções conti
nuaram a ser importantes em hermenêutica, dignas só por si da
atenção de todo aquele que pretende penetrar nas várias orienta
ções e na complexidade da hermenêutica como um todo.
Friedrich Ast
Friedrich Ast (1778-1841) publicou dois trabalhos de relevo
sobre filologia em 1808: Grurtdlinien der Grammatik, Hermeneutik
(') Die Hermeneutik ais Kunst des Verstehens existirI noch nichl atlge-
mein sondern nur mehere specielle Hermeneutiken. Asts Erkl., S. 172, Wolf
S. 37 (H 79).
(a) Über den Begrijj der Hermeneutik, mit Bezug au/ /•’. A. Wolfs
Andeulungen und Asts Lehrbuchs, ibid., 123.
83
und Kritik (Elementos básicos de Gramática, de Hermenêutica e
de Crítica) e Grundriss der Philologie (Esboços de Filologia). Dado
que Schleiermacher se refere ao primeiro, a presente discussão irá
focá-lo. Grundlinien der Grammatik, Hermeneutik und Kritik
esclarece a finalidade e o objecto do estudo filológico e foi origi
nalmente concebido como uma introdução a Grundriss. Para Ast,
o objectivo essencial é captar o «espírito» da antiguidade, revelado
com nitidez na herança literária (3). As formas externas da antigui
dade, apontam todas para uma forma interna, para uma unidade
intrínseca do ser, harmoniosa nas suas partes, podendo ser desig
nada como o Geist da antiguidade. A filologia não é uma questão
de manuscritos poeirentos e de pedantismo gramatical árido; não
aborda o factual e o empírico como fins em si mesmos mas como
meios para alcançar o conteúdo externo e interno de uma obra,
como uma unidade. Essa unidade aponta para uma unidade maior
do «espírito», fonte de uma unidade intrínseca de obras indivi
duais— uma ideia obviamente derivada do conceito de Volksgeist
de Herder, tratando-se aqui do Volksgeist da antiguidade grega
ou romana. Devido a este encontro com o «espírito», o estudo da
filologia tem valores «espirituais»; serve uma finalidade «peda-
gógico-ética»: assemelhar-se aos gregos. «A antiguidade não só é
o paradigma (M ustef) da cultura artística e científica mas sim da
vida em geral,» (*)
Mas não podemos captar o espírito da antiguidade sem termos
em conta as palavras que usa; a linguagem é o principal meio de
transmissão do espiritual. Temos que estudar os escritos da antigui
dade, e para o fazer precisamos de gramática, o que justifica o pri
meiro termo do título: Grammatik. Acrescentaremos ainda que a
leitura dc um autor antigo pressupõe alguns princípios fundamen
tais para o compreendermos e explicarmos correctamente «e assim
o estudo das línguas antigas tem que estar sempre ligado à herme
nêutica» (5). Aqui a hermenêutica é claramente separada do estudo
da gramática. Ela teoriza o modo como se extrai o significado espi
ritual (geistige) do texto. A nossa participação comum no Geist é
a causa que permite apreender o significado de escritos transmitidos
desde a antiguidade. Geist é o ponto central de toda a vida e é o
princípio que permanentemente a enforma (*). Ast pergunta: «Ser-
-nos-ia possível compreender os pontos de vista, os sentimentos e
as ideias mais estranhos e menos conhecidos se tudo aquilo que é
(’) VI, 33. A breve discussão que faço de Ast e de Wolf i largamente
devedora dos capítulos de Joachim Wach em V I: 31-62 sobre Ast e 61-62
sobre Wolf.
(<) Ibid., 36.
(5) Ibid., 37.
(«) GGHK 7; citado em VI, 38.
84
e pode ser não estivesse de um modo primordial ligado ao ( lrl.il)’
É ele que os revela, como uma luz eterna quando se reporte cm
milhares de cores» O-
O conceito de unidade espiritual das humanidades (Elnheit </<•.«
Geistes) é a base do conceito de Ast de círculo hermenêutico. Isto
é, porque o Geist é a fonte de todo o desenvolvimento e dc toda
a mudança, encontramos nas partes individuais a marca do espírito
da totalidade (Geist des Ganzen); a parte é compreendida a partir
de todo e o todo a partir da harmonia interna das partes (*). Apli
cado à antiguidade, isto significa que «Só podemos captar correc
tamente a complexa unidade do espírito da antiguidade se captar
mos as suas revelações individuais em obras antigas individuais,
e por outro lado, o Geist de um autor individual não pode ser
captado se não o colocarmos na relação que sustenta [com o
todo]» (’).
A tarefa da hermenêutica torna-se então a de clarificar a obra
através do desenrolar interno do seu significado e a de relacionar
cada uma das partes entre si e mais latamente com o espírito da
época (*•). Ast divide explicitamente essa tarefa em três partes ou
formas de compreensão: 1) a compreensão «histórica», isto é, a
compreensão relativamente ao conteúdo da obra, que pode ser
artística, científica ou de carácter geral; 2) a compreensão «gra
matical», ou seja, a compreensão na sua relação com a linguagem;
e a compreensão «geistige», isto é, compreender a obra na sua
relação com a visão total do autor e com a visão total (Geist) da
época. As duas primeiras «hermenêuticas», nas suas diferentes
relações e possibilidades, foram já abordadas, como vimos, respec
tivamente por Semler e Ernesti O1)- A terceira forma de herme
nêutica é o contributo específico de Ast, posteriormente desenvol
vido por Schleiermacher e pelo garnde filólogo do século xix,
August Bõckh. Em Ast encontramos já algumas das confecções
básicas da hermenêutica de Schleiermacher: o círculo hermenêutico,
a relaçãoda parte com o todo, a metafísica do génio ou da indi
vidualidade. Da individualidade? Sim porque o geistige, de acordo
com Ast, torna-nos conscientes não só do espírito geral da época
como também do espírito específico do indivíduo (genius), o espí
rito do autor.
O GGHK 166; VI, 38-39.
(*) É com razão que Schleiermacher atribui a Ast a defesa do princípio
básico do círculo hermenêutico, H, 141. GGHK 178; VI, 41.
(•) GGHK 179; VI, 44.
(«) GGHK 174-175; VI, 45.
(*') Semler, Ernesti e outros escritores iluministas da temática hermenêu
tica são abordados em F. W. Farrar History of Inlerpretation e mais resu
midamente em Robert M. Grant., A Short History of the Inlerpretation of
lhe Bible.
83
Aplicado a uma ode de Píndaro, este triplo padrão funciona do
seguinte modo: o primeiro nível refere-se ao objecto (Gegenstand)
que nesta ode particular é o Kampfspiele (a luta) cantada pelo poeta;
o segundo nível (gramatical) refere-se à apresentação plástica na
linguagem (não é uma mera análise gramatical); o terceiro nível (o
geistige) refere-se ao seu espírito, resplandecente de amor patriótico,
de coragem e de heróicas virtudes. Os níveis histórico, gramatical
e geistige são essencialmente aquilo a que podemos chamar o tema,
a forma e o espírito da obra. E o espírito da obra revela quer o
espírito geral da época quer a individualidade (o «génio») do seu
autor; é de facto uma mistura de ambos, que interactuam e mutua
mente Se esclarecem (1J). Ast distingue entre níveis de compreensão,
como os que foram apresentados e níveis de explicação. Contudo,
paralelamente aos níveis de compreensão histórica, gramatical e
geistige há três níveis de explicação: a hermenêutica de letra (Her
meneutik des Buchstabens), a hermenêutica do sentido (Hermeneu
tik des Sinnes) e a hermenêutica do espírito (Hermeneutik des Geis-
tes). A hermenêutica da letra é concebida dum modo batsante mais
lato, pois inclui quer a explicação de palavras (que aparentemente
envolve a compreensão gramatical) quer a explicação do contexto
factual (Versthen der Sache) tal como a do cenário histórico (com
preensão histórica). Este primeiro tipo de hermenêutica exige não
só um conhecimento factual do meio histórico como também um
conhecimento da língua, das suas transformações históricas e das
suas características individuais. A hermenêutica do sentido ou do
«significado» refere-se à exploração do génio da época e do autor.
Determina o sentido pois toma uma direcção específica devido ao
lugar em que ocorre (die Bedeutung in dem Zusammenhang einer
gegebenen Stelle). Por exemplo, um juízo em Aristóteles pode ter
um sentido diferente de um juízo literalmente muito semelhante
em Platão (*’) e mesmo dentro da mesma obra, duas passagens lite
ralmente semelhantes podem variar no seu sentido ou significado
consoante o lugar que ocupam relativamente à obra como um todo.
Devido à complexidade de tais determinações, é preciso que haja
um conhecimento da história literária, da forma particular que foi
utilizada, e da vida e outras obras do autor, de modo a que se
possa captar exactamente o sentido de uma determinada passagem.
O terceiro nível, a hermenêutica do espírito, procura a ideia
que controla (Grundidee, ideia fundante) a visão da vida (.4m-
chauung, ponto de vista, especialmente em autores históricos), e a
concepção básica (Begriff, especialmente em obras filosóficas) que
encontra a sua expressão ou incorporação na obra. No caso de
(” ) GGHK 1*3-84; VI. 4g.
('*) GGHK 1ÍS-9Í; VI. 5é.
u
procurarmos «a mundividência», há uma multiplicidade na reve
lação da vida; no entanto, quando procuramos a «concepção bá
sica», por detrás da multiplicidade encontramos a unidade da forma.
Para Ast, o conceito de uma ideia controladora representa uma com
binação dos outros dois momentos significativos, mas só os grandes
autores e artistas conseguem esta síntese total c harmoniosa na qual
o conteúdo conceptual e a mundividência se situam num comple
mento equilibrado no interior da ideia controladora.
Visto que a ênfase dada à ideia é um aspecto muito comum
ao pensamento romântico alemão, não nos surpreende encontrá-la
na hermenêutica de Ast. Merece crítica o facto dc que, para Ast,
a reconciliação harmoniosa da «mundividência» com a «ideia fun-
dante» leva à transcêndência do temporal: «Toda a temporalidade
se dissolve numa explicação geistige» (” ). Assim, o interesse român
tico pela história subordina-se à ideia, tal como se subordinam a
admiração romântica pelo génio e pela individualidade; todos eles
são manifestação do Geist. A defesa heideggeriana no século xx,
do carácter radicalmente histórico da realidade humana (c assim
da própria realidade) é estranha aos pressupostos idealistas dc Ast.
Nem no contexto dos pressupostos racionalistas do Umnlnismo, nem
nos pressupostos dos Românticos, a história se tornou realmente
histórica; ela é apenas um material bruto do qual se dedu/ uma
verdade intemporal ou um Geist intemporal.
Há uma outra ideia no pensamento de Ast, que anuncia futuras
orientações em hermenêutica: o conceito do processo dc compreen
são como Nachbildung, reprodução. Nos Grundlinicn Ast encara
o processo de compreensão como uma repetição tio processo cria
tivo. Esta visão do modo como a compreensão ocorre e essencial
mente semelhante à de Schlegel, Schleiermacher e mais tarde Dilthey
e Simmel. O significado hermenêutico disto está na relação da
explicação com o processo criativo como um todo: a interpretação
e o problema interpretativo devem obviamente ser relacionados
com os processos do conhecimento e da criatividade ( om este con
ceito de compreensão enquanto Nachbildurig, a hermenêutica ultra
passa significativamente a hermenêutica filológica e teológica da
época anterior, ligando-se agora a um aspecto do processo do conhe
cimento relacionado com a teoria da criação artística, pois a com
preensão reproduz o processo artístico da criação. Anteriormente,
a interpretação não tinha sido considerada na sua relação com uma
teoria da criação artística. Joachim Wach vai ao ponto dc dizer que
(») GGHK 199; VI. 57.
«7
o estabelecimento desta relação foi um dos principais contributos
<lc Ast para o desenvolvimento da teoria hermenêutica (” ).
O fantasma do psicologismo não deveria assustar-nos, impedin
do-nos de relacionar a teoria da criação artística com a teoria da
compreensão literária e, consequentemente, com a interpretação
literária. Embora possamos discordar de Ast quando este diz que
na compreensão se repetem os processos criativos do artista — a
criação já se deu — podemos afirmar que a experiência comunicada
na obra, deve de certo modo surgir novamente como evento ao
leitor. Na hermenêutica racionalista do Iluminismo, não há qual
quer base para podermos relacionar o processo criativo do artista
com o do leitor, enquanto na hermenêutica idealista dos român
ticos Ast e Schleiermacher, os processos se baseiam claramente nas
operações fundamentais da compreensão. De igual modo, na inter
pretação literária realista, praticada actualmente pelos crítico6 ingle
ses e americanos, a questão de qual o processo de criação que está
na origem de uma obra literária é uma questão irrelevante, en
quanto que para a hermenêutica fenomenológica de hoje, tanto a
criação como a interpretação se fundamentam na compreensão.
Deste paralelo vemos como são decisivas a teoria do conhecimento
que subjacentemente defendemos e a teoria do estatuto ontológico
de uma obra, pois elas determinam antecipadamente a forma da
nossa teoria e da nossa prática na interpretação literária.
Friedrich August Wolf
Friedrich August Wolf (1759-1824) foi o mais brilhante e o
melhor conhecido dos dois filólogos. Foi também o menos sistemá
tico, pois embora as Grundlinien de Ast constituam uma espécie de
sistema, Wolf pouco seimportou com sistemas. Nas suas Vorlesung
über die Enzyklopádie der Altertumwissenschaft, definiu a herme
nêutica como «ciência das regras pelas quais se reconhece o sen
tido dos signos» (“ ). Naturalmente que as regras variavam com o
objecto, e assim há uma hermenêutica para a poesia, para a his
tória e para o direito. Wolf defendia que cada regra deveria ser
obtida através da prática; a hermenêutica torna-se assim uma pes-
(“ ) «Herder führt zucrst in grõssercm Still eine literarkrltisch-ãsthetische
Betrachtung der Bibel durch ... Bis dahin allerdings hatte mans wenig auf die
/.usammcnhange von Interpretation und Theorie des Schaffens geachtet: hier
lmt vor Boeckh von aliem Humboldt gewirkt, Ich sehe gerade darin einen Teil
von Asls Bedeutung für die Geschichte der hermeneutischen Theorie, dass ich
philologlschc Vorgãnger zu nennen wüsste — auf diese Zusamonenhãnge hin-
Kcwlcscn hat» (VI, 52).
('•) «Die Wissenschaft von den Regeln, aus denen die Bedeutung der
Zelchcn erknnnt wird» (VEA 290; VI, 67).
88
q u is a p r á t ic a , m a is d o q u e u m a p e s q u is a te ó r ic a . É u m a c o le c ç ã o
d e re g ra s .
Para Wolf, o objectivo da hermenêutica é «captar o pensa
mento escrito ou mesmo oral de um autor como ele desejaria ter
sido captado» ("). A interpretação é diálogo, diálogo com um autor.
E certamente que não caímos no psicologismo quando sugerimos
que uma obra é um esforço de comunicação, e que o objectivo da
hermenêutica é a comunicação perfeita, isto é, a captação do tema
ou da ideia do autor como ele gostaria de ter sido captado. Wolf
defende que o intérprete deve estar «temperamentalmente apto»
para compreender o tema, de modo a poder explicá-lo a outros.
Dverá ter um talento geral de empatizar com pensamentos alheios;
deverá ter «essa leveza de espírito» que «depressa sintoniza com
outros pensamentos» (**). Sem uma aptidão para o diálogo, para
entrar no universo mental de uma outra pessoa, a explicação — e
consequentemente a hermenêutica — 6 impossível.
Tal como em Ast, a explicação tem que basear-se na compreen
são, e a compreensão distingue-se da explicação. O sentido de uma
imagem é captado directamente na compreensão. Avançamos um
passo quando damos uma explicação oral ou escrita dessa imagem.
Segundo Wolf compreendemos para nós mesmos mas explicamos
p a r a os outros. Logo que determinamos que a nossa tarefa é expli
car, temos também que saber para quem se esboça a explicação.
A forma e o conteúdo de uma explicação variará consoante a inter
pretação se dirigir a um novato cheio de entusiasmo, a um leitor
desinteressado ou a um sagaz erudito interessado nos mínimos cam-
biantes. Mas tal como Wolf diz, numa pitoresca mistura de alemão
e latim Niemand Kann interpretari, nisi subtiliter inlellexeril
A hermenêutica tem portanto inevitavelmente duas vertentes: a
compreensão (verstehenden) e a explicação (erklarenden).
Tal como Ast, Wolf propõe uma hermenêutica tripla; mas falta-
-lhe a metafísica do Geist no seu terceiro estádio. Ou por outra é
mais prático do que Ast. Os três níveis ou espécies de interpretação
são: interpretatio grammatica, histórica e philosophica (” ). A gra
mática lida com tudo aquilo que a compreensão da língua pode
fornecer para ajudar na interpretação. A hermenêutica histórica
preocupa-se não só com os factos históricos da época mas também
com um conhecimento factual da vida do autor, dc modo a chegar
a um conhecimento daquilo que o autor sabia. Obviamente que os
factos históricos gerais são importantes, mesmo quando se trata
O7) «(Die) geschriebene oder auch bloss mündlich vorgetragene Gcdanken
emes ander ebenso zu fassen, wie er sie gefasst haben w ill.» (V E A 293; V I , 68.)
(■•) VEA 273; VI, 72.
(■•) VEA 273; VI, 74.
(*) VEA 290-95; VI, 77-78.
89
ilc conhecer os caracteres físicos e geográficos de um país. Resu
mindo, o intérprete deverá possuir todo o conhecimento histórico
possível. O nível filosófico da interpretação serve de verificação
lógica ou de controle para os outros dois níveis. Em toda a obra
de Wolf é dada ênfase ao que é prático e factual; no entanto,
não há qualquer básica sistemática na confusão das regras de
abordagem dos diferentes problemas. As regras mantêm-se como
um agregado de observações sobre as dificuldades específicas da
interpretação.
Esta breve abordagem à hermenêutica de Ast e de Wolf ajuda
a introduzir a hermenêutica filológica da época de Schleiermacher.
Embora 'o eminente Ernesti e o seu seguidor Morus, escrevessem
em latim, tanto Ast como Wolf escreveram em alemão. Os elemen
tos de interpretação «gramatical» colocados por Ernesti, são ainda
essenciais em Ast e Wolf; mas talvez devido ao uso do alemão, a
captação da realidade histórica tem mais cambiantes e é mais pro
fundo o interesse que nela se põe. Com a passagem para o alemão,
há um aprofundamento dos níveis histórico e filosófico de inter
pretação. Esta orientação para o aspecto filosófico é transposta
para Schleiermacher, para que a interpretação gramatical ainda é
básica; no entanto, a insistência na consistência filosófica acentua-se
à medida que a hermenêutica se orienta para uma interpretação
psicológica e para uma fundamentação numa concepção sistemá
tica das operações da compreensão humana no diálogo.
90
7
O PROJECTO DE SCHEIERM ACHER
DE UMA HERMENÊUTICA GERAL
«A hermenêutica como arte da compreensão não existe como
uma área geral, apenas existe uma pluralidade de hermenêuticas
especializadas.» (') Esta asserção programática com a qual Schleier
macher abriu as suas conferências de 1819 sobre hermenêutica,
enuncia numa frase o seu objectivo fundamental: construir uma
hermenêutica geral como arte da compreensão. Essa arte, afirma
Schleiermacher, é na sua essência a mesma, seja o texto um
documento jurídico, um escrito religioso ou uma obra de arte.
É certo que há diferenças entre essas várias espécies de textos, e
por essa razão cada disciplina tem as suas ferramentas teóricas para
os seus problemas particulares; mas subjacente a essas diferenças
há uma unidade fundamental. Os textos exprimem-se numa língua
e assim utiliza-se a gramática para encontrar o sentido de uma frase;
há uma ideia geral que interactua com a estrutura gramatical para
formar o sentido, seja qual for o tipo de documento. Se fossem for
mulados os princípios de toda a compreensão da linguagem, certa
mente que incluiriam uma hermenêutica geral. Uma hermenêutica
desse tipo poderia servir de base e de centro a toda a hermenêu
tica «especial».
Mas, diz Schleiermacher, ainda não existe uma hermenêutica
desse tipo. Em vez dela, existiriam várias «hermenêuticas» especiais,
Em primeiro lugar a filológica, a teológica e a jurídica. E mesmo
dentro da hermenêutica filológica, não haveria coerência sistemá
tica. Pelo contrário, Friedrich August Wolf defendera que preci
sávamos de uma hermenêutica diferente para a história, para a poe
sia e para os textos religiosos e consequentemente para as subva-
riantes dentro de cada uma destas classificações. Para Wolf a her
menêutica era uma coisa muito prática: um corpo de sabedoria para
(*) H 79. Ver cap. 6, nota 1.
f l
abordar os problemas específicos da interpretação. Há regras e
conselhos para os problemas de interpretação mais diversos, talha
dos para a lingüística particular e para as dificuldades históricas
levantadas pelos textos antigos em hebreu, em grego e em latim.
A hermenêutica era um corpo teórico que ajudava na tarefa de
tradução de textos antigos, mas a teoria tinha-se vindo simples
mente a acumular à medida que mais elementos eram considerados
importantes na compreensão dos textos antigos. A grande herme
nêutica de Ast tinha uma orientação mais filosófica mas ainda
procurava ser enciclopédica, baseando-se num idealismo metafísico,inaceitável para Schleiermacher. Faltava ainda a disposição para
examinar o acto fundante de toda a hermenêutica: o acto de com
preensão, o acto de um ser humano vivo, dotado de sentimentos e
intuições.
Em 1799, no seu famoso curso dirigido aos eruditos depreciado-
res da religião, já Schleiermacher tinha negado decisivamente que
a metafísica e a moral constituíssem a base do fenômeno religioso.
A religião não diz respeito ao homem que vive de acordo com
uma ideia racional, mas sim àquele que vive, age e sente a sua
situação de criatura dependente de Deus. De modo similar, a her
menêutica foi defendida por Schleiermacher enquanto relacionada
com o ser humano concreto, existente e actuante no processo de
compreensão do diálogo. Quando começamos pelas condições que
pertencem a todo o diálogo, quando nos afastamos do racionalismo,
da metafísica e da moral, quando examinamos a situação concreta
e actual implicada na compreensão, então arrancamos para uma
hermenêutica viável que poderá servir de núcleo central de uma
hermenêutica especial, tal como por exemplo a bíblica.
Schleiermacher defendeu que a arte da exploração, que cons
tituíra uma grande parte da teoria hermenêutica, estava fora da
hermenêutica. «Logo que a exploração se torna mais do que o
exterior da compreensão, torna-se arte de apresentação. Só aquilo a
que Ernesti chama subtilitas intelligendi (acuidade da compreensão)
pertence genuinamente à hermenêutica O . A explicação, em vez
de arte da «compreensão» vai transformar-se imperceptivelmente em
arte de formulação retórica. No diálogo, uma coisa é a operação
de formular e de o transform ar em discurso; outra, totalmente
diferente, é a operação de compreender aquilo que é dito. Schleier-
O «Eigentlich gehort nur das zur Hermeneutik was Ernesti Prol. 4
[IINT] subtilitas inteligendi nennt. Denn die [subtilitas] explicandi sobald sie
mehr ist ais die ãussere Seite des Verstehens ist wiederum ein Object der Her
meneutik und gehort zur Kunst des Darstellens» (H 31). Este aforismo data
provavelmente de 1805 e figura entre os primeiros comentários escritos de
Schleiermacher sobre hermenêutica. Ao mesmo tempo é uma das suas intuições
nials significativas, pois marca a hermenêutica como arte de compreensão, mais
do que como arte de explicação.
92
macher defende que a hermenêutica lida com este último típc itn
Esta distinção fundamental entre falar e compreender constitui
a base para uma nova orientação em hermenêutica c abriu cuinl
nho a uma base sistemática para a hermenêutica na teoria du
compreensão. Se a hermenêutica já não se dedica essencialmente
a clarificar os vários problemas práticos na interpretação dos ilifc
rentes tipos de texto, então poderá tomar o acto de compreensão
como o seu verdadeiro ponto de partida: em Schleiermacher, a
hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa «arte da com
preensão».
E assim Schleiermacher coloca esta questão geral como ponto
de partida da sua hermenêutica: como é que toda ou qualquer
expressão lingüística, falada ou escrita, é «compreendida»? A situa
ção de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas
as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma
frase com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebc
uma série de meras palavras, e subitamente, através de um pro
cesso misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo
misterioso, um processo de adivinhação, é o processo hermenêutico.
É o verdadeiro lugar da hermenêutica. A hermenêutica é a arte
de ouvir. Voltamo-nos agora para alguns princípios desta arte ou
processo.
A compreensão como um processo de reconstrução
Para Schleiermacher, a compreensão enquanto arte é voltar
de novo a experimentar os processos mentais do autor do texto.
É o reverso da composição pois começa com a expressão já fixa
e acabada e recua até à vida mental que a produziu. O orador ou
autor construiu uma frase; o auditor penetra nas estruturas da frase
e do pensamento. Assim a interpretação consiste em dois momentos
interactuantes: o momento «gramatical» e o «psicológico» (no
sentido lato de tudo aquilo que se inclui na vida psíquica do autor).
O princípio em que assenta esta reconstrução, seja ela gramatical
ou psicológica, é o do círculo hermenêutico.
O círculo hermenêutico
Compreender é uma operação essencialmente referencial; com
preendemos algo quando o comparamos com algo que já conhece
mos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sistemá
ticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo
define a parte individual, e as partes em conjunto formam o círculo.
Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreen
93
demos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos
na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido
da frase como um todo está dependente do sentido das palavras
individuais. Consequentemente um conceito individual tira o seu
significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo
o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá
sentido. Por uma interacção dialéctica entre o todo e a parte, cada
um dá sentido ao outro; a compreensão é portanto circular. E por
que o sentido aparece dentro deste «círculo», chamamos-lhe o
«círculo hermenêutico».
É claro que o conceito de círculo hermenêutico envolve uma
contradição lógica; pois se temos que captar o todo antes de poder
conhecer as partes, então nunca compreenderemos nada. E no en
tanto afirmámos que as partes tiram o seu sentido do todo. Por
outro lado, não podemos certamente começar com um todo, não
diferenciado em partes. Será que o conceito de círculo hermenêutico
não tem validade? Não; apenas temos que dizer que a lógica não
valida totalmente as tarefas da compreensão. Há como que uma
espécie de «salto» no círculo hermenêutico e compreendemos simul
taneamente o todo e as partes. Schleiermacher deixou lugar para um
factor deste tipo quando considerou a compreensão em parte como
uma questão comparativa, em parte como uma questão intuitiva
e divinatória. Para actuar eficazmente o círculo hermenêutico
implica um elemento de intuição.
Com a sua imagem espacial, o círculo hermenêutico propõe
uma área de compreensão partilhada. Visto que a comunicação é
uma relação dialógica, presume-se desde o início uma comunidade
de sentido, partilhada por quem fala e por quem ouve. Isto parece
envolver outra contradição: aquilo que tem que ser compreendido
já deve ser sabido. Mas não será esse o caso? Não será vão falar
de amor a quem não conheceu o amor, ou das alegrias de aprender
a quem renunciou a elas? Temos que previamente possuir, até
certo ponto, um conhecimento do tema em causa. Isso pode ser
designado como o conhecimento prévio, minimamente necessário
à compreensão, sem o qual não podemos saltar para o círculo
hermenêutico. Tomemos um exemplo comum, a experiência da
ininteligibilidade inicial para quem lê um grande autor, digamos
um Kirkegaard, um Nietzsche ou um Heidegger; o problema é
captar a orientação global do autor, sem a qual as asserções indivi
duais e mesmo as obras completas não têm significado. Por vezes
uma simples frase esclarecerá e construirá num todo significativo
tudo o que previamente era incoerente, precisamente porque sugere
«toda a coisa» sobre a qual o autor tem vindo a falar.
O círculo hermenêutico então opera, não só a nível lingüístico
como também a nível do tema em causa. Tanto o que fala como
o que ouve devem partilhar a linguagem e o tema do seu discurso.
94
Tanto a nível do medium do discurso (linguagem) como du mulériii
do discurso (tema), o princípio do conhecimento prévio ou o
círculo hermenêutico — opera em todo o acto de compreensão.
Interpretação gramatical e interpretação psicológica
No pensamento mais tardio de Schleiermacherhá uma tendência
crescente para separar a esfera da linguagem da esfera do pensa
mento. A primeira é a província da interpretação «gramatical»
enquanto que Schleiermacher começou por chamar ao segundo
«técnico» (technische) designando-o mais tarde de «psicológico».
A interpretação gramatical localiza a asserção de acordo com leis
gerais e objectivas; o aspecto subjectivo da interpretação centra-se
naquilo que é subjectivo e individual. De acordo com Schleierma
cher, «tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com
a totalidade da linguagem quer com o pensamento do autor, tam
bém em toda a compreensão de um discurso há dois momentos:
a sua compreensão como algo extraído da linguagem e com um
‘facto’ no pensamento daquele que fala» (’). A interpretação «gra
matical» pertence ao momento da linguagem e Schleiermacher
encarava-a como um procedimento essencialmente negativo, geral
e mesmo limitativo, no qual se coloca a estrutura em que opera
o pensamento. Contudo, a interpretação psicológica procura a
individualidade do autor, o seu génio particular. Para isso é neces
sária uma certa adequação com o autor; não se trata de uma
operação que estabeleça fronteiras, mas antes do lado verdadeira
mente positivo da interpretação.
Certamente que ambos os aspectos da interpretação são neces
sários e de facto interactuam constantemente. Os usos individuais
da língua acarretam mudanças na própria língua, e no entanto um
autor defronta-se com uma língua sendo obrigado a imprimir nela
a sua própria individualidade. O intérprete compreende a individua
lidade do autor relativamente ao geral mas compreende-a também
de um modo positivo, quase de um modo directo e intuitivo. Tal
como o círculo hermenêutico envolve a parte e o todo, a inter
pretação gramatical e psicológica como uma unidade, envolve o
específico e o geral; este último tipo de interpretação é geral e
limitativo, bem como individual e positivo. A interpretação grama
tical mostra-nos a obra na sua relação com a língua, tanto na estru
tura das frases como nas partes interactuantes de uma obra e
também com outras obras do mesmo tipo literário; assim, podemos
ver o princípio das partes e do todo, em acção na interpretação
(5) Ibid., 80.
95
r
gramatical. De igual modo, a individualidade do autor e da obra
têm que ser vistas no contexto dos factos mais amplos da sua vida,
contrastando com outras vidas e com outras obras. O princípio de
interacção e de esclarecimento recíproco da parte e do todo é
essencial para os dois aspectos da interpretação.
Tudo isto pressupõe que a hermenêutica tem como meta a
reconstrução da experiência mental do autor do texto, um ponto
que é particularmente claro na afirmação de 1819: « arte [da
interpretação] só pode desenvolver as suas regras fora de uma
fórmula positiva que é: a reconstrução histórica, divinatória,
objectiva e subjectiva de uma dada expressão lingüística (4). É óbvio
que Schleiermacher pretende experimentar de novo aquilo que o
autor experimentou e não vê a expressão lingüística separadamente
do seu autor. Contudo, é bom assinalarmos que este experimentador
de novo não precisa de ser encarado como «psicanálise» do autor;
antes se limita a afirmar que a compreensão é uma arte de recons
truir o pensamento de outra pessoa. Por outras palavras, o objec
tivo não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos do autor
(psicanálise) mas sim reconstruir o próprio pensamento de outra
pessoa através da interpretação das suas expressões lingüísticas.
Na realidade, a reconstrução plena da individualidade de um
autor nunca pode derivar da análise das causas; tal facto ficaria
sempre desesperadamente ao nível do geral. Para a interpretação
psicológica é necessária uma abordagem basicamente intuitiva.
A abordagem gramatical pode usar o método comparativo e pro
ceder do geral para as particularidades do texto; a abordagem
psicológica utiliza tanto o método comparativo como o «divinatório».
O [método] divinatório é aquele em que nos transformamos no
outro, de modo a captar directamente a sua individualidade (5). Neste
momento da interpretação, saímos de nós próprios e transformamo-
-nos no autor, de modo a podermos captar numa plena imediatez, o
seu processo mental. Contudo, o objectivo último não é «com
preender» o autor de um ponto de vista psicológico; é antes ter
acesso mais pleno àquilo que é significado no texto.
A compreensão hermenêutica como compreensão
de estilo
A abordagem da ênfase dada por Schleiermacher aos aspectos
psicológicos e intuitivos pode levar-nos a esquecer a forte insis
tência no papel central da linguagem, sempre presente nas suas
(4) Ibid., 87.
(") Ibid., 109.
96
especulações sobre hermenêutica. Não só a gramática 6 um elemento
indispensável na orientação e enfoque da nossa intcrprctuçAo, como
também a revelação psicológica da individualidade sc expressa dc
um modo essencial no estilo particular do autor. Por isso, nAo
interessa se há um «talento» mais ou menos profundo para conhc
cer individualmente outros seres humanos; a menos que esse talento
se combine com o talento de uma intuição lingüística, quer na
colocação das fronteiras gramaticais quer na penetração psicoló
gica da individualidade de um autor através do seu estilo, nenhum
conhecimento adequado resultará. Pelo estilo, conhecemos o homem
em toda a sua individualidade; em 1819 Schleiermacher resumiu
de um modo penetrante a importância do estilo: «A comprcensílo
total do estilo é todo o objectivo da hermenêutica.» (*)
A hermenêutica como ciência sistemática
A especulação hermenêutica de Schleiermacher tem como
objectivo transformar «o conjunto de observações» organizadas de
um modo disperso, numa unidade sistematicamente coerente. De
facto, as suas intenções foram mais longe: primeiro, postular a ideia
de que a compreensão opera de acordo com leis que podem ser des
cobertas; seguidamente, enunciar algumas das leis ou princípios
a partir dos quais ocorre a compreensão. Esta esperança pode resu
mir-se na palavra «ciência»; Schleiermacher não procurava um
conjunto de regras como na hermenêutica primitiva, mas sim um
conjunto de leis pelas quais a compreensão opera — uma ciência
da compreensão que pudesse orientar o processo de extrair dum
texto o seu sentido (7).
De uma hermenêutica centrada na linguagem
a uma hermenêutica centrada na subjectividade
Até 1959, a concepção dominante da hermenêutica de Schleier
macher baseava-se necessariamente numa colectânea das suas obras,
publicada postumamente editada pelo seu aluno e amigo Friederich
(•) Ibid., 108.
C7) Claro que a compreensão enquanto tal se mantém uma arte. Como
Kichard R. Niebubr pertinentemente nota numa esclarecedora abordagem que
faz à hermenêutica de Schleiermacher (pp. 72-134 da sua obra Schleiermacher
On Christ and Religiort): o acto de interpretação era para Schleiermacher
«algo de pessoal e criativo tanto como científico, era uma reconstituição ima
ginária da personalidade do orador ou do escritor. Um tal esforço da empatia
tem sempre que ultrapassar em muito os princípios da ciência filológica, pene
trando no plano da arte» (79). Sobre este tema ver H. 82.
97
Lucke (*). Este volume, publicado em 1838, só em parte era for
mado pelos próprios manuscritos do autor, sendo essencialmente
constituído a partir de notas de estudantes. Embora Schleiermacher
deixasse notas do seu próprio punho, que remontam a 1805, o
volume de 1838 incluía poucas dessas notas anteriores a 1819.
Nos últimos anos da década de cinqüenta (1950) Heinz Kimmerle
examinou cuidadosamente os documentos não publicados de
Schleiermacher, existentes na Biblioteca de Berlim e reuniu por
ordem cronológica todos os escritos sobre hermenêutica redigidos
pelo próprio punho de Schleiermacher. Pela primeira vez tornou-se
possível traçarcom precisão e confiança o desenvolvimento do
próprio • pensamento de Schleiermacher sobre o projecto de uma
«hermenêutica geral» (*)•
Desta edição emerge não só um retrato mais completo da her
menêutica de Schleiermacher como também de parte da sua obra
até então desconhecida — um primeiro Schleiermacher centrado na
linguagem, menos psicológico. Em cerca de vinte páginas de afo
rismos sobre hermenêutica datando de 1805 a 1809 e nos primeiros
esboços ainda tacteantes durante o período de 1810-1819, Schleier
macher propõe uma hermenêutica fundamentalmente centrada na
linguagem. Aparentemente, desde o começo que Schleiermacher
tinha em mente uma hermenêutica geral, fundante, dividida em
duas partes essenciais: a gramatical (objectiva) e a técnica (subjec
tiva). É claro que o afastamento decisivo da objectividade filológica
e o partir de condições que são do domínio do diálogo ainda vigoram
nos escritos anteriores a 1819. No período entre 1810 e 1819,
Schleiermacher escreve que a tarefa da hermenêutica «procede
de dois pontos diferentes: a compreensão da linguagem e a com
preensão daquele que fala» (l0). Um dos primeiros aforismos defen
dia que temos que ter uma compreensão do homem para podermos
compreender o que ele diz. No entanto, é a partir do seu discurso
que chegamos a um conhecimento do homem (“ ). A hermenêutica
é a arte de compreender o orador naquilo que é dito, mas a lin
guagem ainda é a chave. Noutro dos primeiros aforismos diz ele:
«Tudo o que se pressupõe em hermenêutica é apenas linguagem
e é também só linguagem aquilo que encontramos na hermenêu
tica; o lugar a que pertencem os outros pressupostos objectivos e
subjectivos tem que ser encontrado através (ou a partir) da lin
guagem.» (")
(•) H & K.
(") Ver a importante introdução em H. 9-24 e o seu artigo A Teoria
hermenêutica ou a ontologia hermenêutica, HH 107-21.
(■•) H 56.
(" ) Ibid., 44.
(,J) Ibid., 38.
98
Este elemento decisivo na passagem dc uma hermenêutica
centrada na linguagem para uma hermenêutica orientada para a
psicologia, segundo Kimmerle, foi o primeiro abandono gradual
da concepção da identidade do pensamento e da linguagem. Kim
merle diz que a razão disso foi de tipo filosófico: Schleiermacher
encarou como sendo a sua tarefa, a mediação entre o carácter
intrínseco da filosofia transcendental especulativa e o carácter
extrínseco de ciência positiva e empírica. Pressupôs uma discre
pância entre a essência ideal, interna, e a aparência externa. Assim
o texto não podia ser visto como manifestação directa dc um
processo mental interno mas com algo dado às exigências empí
ricas da linguagem.
Por fim a tarefa da hermenêutica acabou por ser a de trans
cender a linguagem, de modo a chegar aos processos internos.
Ainda é necessário examinar a linguagem, mas esta já não é con
siderada como totalmente equivalente ao pensamento. No entanto,
em 1813 Schleiermacher ainda afirma: «Essencial e intrinsecamente,
o pensamento e a sua expressão são exactamente o mesmo.» (1S)
E o facto de Schleiermacher até 1829 não se referir à sua herme
nêutica como uma metodologia (Kunstlehre) evidencia a relutância
que tinha em abandonar a concepção fundamental da identidade
do pensamento e da expressão.
Contudo abandonou esta concepção, e assim o processo mental
reconstruído pela hermenêutica, não mais foi concebido como sendo
intrinsecamente lingüístico mas sim como uma espécie de função
interna e ardilosa da individualidade, separada da individualidade
da linguagem. Neste ponto reforçou-se a visão contemporânea, de
fendida por Kimmerle e Gadamer, de que Schleiermacher se desen-
caminhara e desistira da possibilidade mais fértil de uma herme
nêutica verdadeiramente centrada na linguagem, caindo numa má
metafísica (’*). É claro que Schleiermacher foi empurrado para
estas conclusões não só pela sua própria metafísica idealista (,s)
mas também pela hipótese de que a finalidade da hermenêutica
era a reconstrução do processo mental do autor. Esta hipótese
é no entanto discutível, pois um texto é percebido não por uma
relação com qualquer vago processo mental interno, mas pela
relação com o assunto, com o tema, a que o texto se refere.
O5) Ibid., 21,
(" ) Ver Schleiermachers Entwurf einer universalen Hermeneutik WM
172-85, esp. 179-83. Ver também a comunicação intitulada «O problema da
Linguagem na Hermenêutica de Schleiermacher» que Gadamer fez na Con
ferência sobre Schleiermacher, comemorando o segundo centenário do sou
nascimento, em 29 de Fevereiro de 1968, na Vanderbilt Divinity School.
(*5) Ver WM 179 relativamente aos conceitos de individualidade e génio,
relativamente à hermenêutica de Schleiermacher.
99
Schleiermacher na primeira fase do seu pensamento hermenêutico,
sustentara uma posição mais próxima de concepções actuais, de
fendendo firmemente serem o pensamento de um indivíduo, e
mesmo todo o seu ser, essencialmente determinados pela linguagem,
na qual é dada uma compreensão quer do seu ser quer do seu
mundo. Só perante a contradição directa da sua posição sistemá
tica mais lata é que Schleiermacher desistiu desta ideia, em detri
mento do seu próprio projecto. O novo e fértil ponto de partida
visível no seu pensamento primitivo — o de uma hermenêutica
verdadeiramente centrada na linguagem, baseada nas condições
reais necessárias para a compreensão de um parceiro num diálogo —
é posto de lado. A hermenêutica torna-se psicológica, transforma-se
na arte de determinar ou de reconstruir um processo mental,
um processo que não mais é tomado como sendo essencialmente
lingüístico. O estilo ainda é visto como uma chave para a indivi
dualidade do autor, mas consideramo-lo como apontando para
uma individualidade não lingüística, da qual é uma manifestação
meramente empírica.
O significado do projecto de Schleiermacher
de uma nova hermenêutica
Mau grado o elemento psicológico do último Schleiermacher,
a sua contribuição para a hermenêutica marcou uma viragem na
história desta disciplina. Porque a hermenêutica deixa de ser vista
como um tema disciplinar específico do âmbito da teologia, da
literatura ou do direito; é a arte de compreender uma expressão
lingüística. Um dos primeiros aforismos, extremamente esclarece-
cedor, afirma que a hermenêutica é precisamente o modo como
uma criança capta o significado de uma nova palavra (” ). A estru
tura da frase e o contexto significativo são os seus guias, cons
tituindo os sistemas de interpretação de uma hermenêutica geral.
A hermenêutica é vista como partindo das condições de diálogo;
Schleiermacher foi um hermeneuta dialogai que infelizmente não
se apercebeu das implicações criativas da sua natureza dialógica.
Cegou-o o seu desejo de leis e de coerência sistemática (1T). Foi no
(w) «Jedes Kind kommt nur durch Hermeneutik zur Wortbedeutung»
(H 40). Gadamer chama a atenção para a afirmação de Schleiermacher de
«Hermeneutik ist die Kunst, Missverstand zu vermeiden» (H & K 29; WM 173).
(") Ver Niebuhr, op. cit., p. 81 ff., que encara o carácter dialógico
do próprio pensamento de acordo com Schleiermacher. Niebuhr acentua a
rolnçAo da hermenêutica de Schleiermacher com a sua obra Dialethik e com
o mu interesse pela ética; dado que o intéprete «sente» o ser moral de um
nutor; « própria interpretação torna-se um acto moral (p. 92).
100
entanto este efeito (do nosso actual ponto de vista) que deu uma
nova orientação à hermenêutica, fazendo com que ela se tornasse
ciência.
Como veremos, Dilthey continuou esta orientação com a busca
que empreendeu de um conhecimento «objectivamente válido» e
com a sua hipótese de que a tarefa da hermenêutica é descobrir as
leis e os princípios da compreensão. Estas hipóteses podiam ser
criticadas como uma falha da compreensão histórica, dado que
defendem ser possível ocupar um lugar acima ou forada história,
a partir do qual é possível divizar «leis» intemporais. Mas a orien
tação para uma hermenêutica que toma como seu ponto de partida
o problema do conhecimento foi um contributo fértil para a teoria
interpre ativa. Só depois de muitos anos se avançou com a hipótese
de que as constantes na compreensão, que Schleiermacher consi
derava em termos científicos, poderiam ver-se melhor em termos
históricos, isto é, em termos da estrutura intrinsecamente histórica
da compreensão. Mais especificamente apreendeu-se a importância
de uma pré-compreensão em toda a compreensão. Schleiermacher,
e mesmo teóricos da hermenêutica que lhe são anteriores, apon
taram para esta última concepção ao enunciar o princípio do
círculo hermenêutico dentro do qual toda a compreensão ocorre.
Assim Schleiermacher ultrapassou decisivamente a visão da
hermenêutica como um conjunto de métodos acumulados por ten
tativas e erros e defendeu a legitimidade de uma arte geral da
compreensão anterior a qualquer arte especial de interpretação.
Isto levanta a questão de qual deverá ser a relação adequada da
interpretação literária actual com teorias gerais da compreensão,
implícitas ou explícitas. Talvez possa defender-se que hoje devemos
interpretar sem tentar saber o que é a interpretação, mas isto
apenas defende o direito que temos de fazer algo sem realmente
saber o que estamos a fazer. Podemos imaginar esta atitude por
parte dos artífices que Sócrates interpelava quando andava por
Atenas perguntando-lhes se sabiam o que estavam a fazer. Uma
ignorância tão obstinada tem os atractivos mas não consegue levar
a interpretação literária americana a ultrapassar a pirotecnia da
Nova Crítica ou as contradições da actual «crítica do mito».. O que
agora precisamos é de um novo princípio que pondere o que é ou
não é pertinente para a interpretação, e para isso é preciso deter
minar de um modo mais adequado o que é e o que faz a interpre
tação. A interpretação literária actual deve cuidar mais da sua
relação com a natureza geral de toda a compreensão lingüística.
Exemplificando: é demasiado fácil abandonar, como sendo
psicologizante, a preocupação com o que acontece quando alguém
compreende uma expressão lingüística. Psicologizar, propriamente
definido, refere-se ao esforço de ir para além da expressão lin
güística, procurando as intenções e os processos mentais do seu
Í01
autor. Certamente que Schleiermacher teve culpa disto, mas não
podemos considerar como não válido o seu contributo, devido
unicamente a este aspecto. É um facto que temos que acordar que
as especulações não fundamentadas sobre os processos mentais do
autor de uma expressão lingüística, são ilegítimos; mas penso que
Schleiermacher tem razão ao considerar o problema interpretativo
como inseparável da arte da compreensão, naquele que ouve. Só
esta argumentação ajudaria a ultrapassar a ilusão de que o texto
tem um significado independente e real, separável do evento que
é compreendê-lo. Uma visão tão ingênua pressupõe a transparência
essencial e a não historicidade da compreensão; supõe que temos
um acesso privilegiado ao sentido do texto, fora do tempo e da
história. Contudo, são precisamente estas suposições que estão em
causa.
Um outro elemento significativo da hermenêutica de Schleier
macher é o conceito de compreensão «independentemente da sua
relação com a vida». Isto será o ponto de partida para o pensa
mento hermenêutico de Dilthey e de Heidegger. Porque Dilthey
tomou como seu objectivo compreender «a partir da própria vida»
e Heidegger defendeu o mesmo objectivo e procurou alcançá-lo de
um modo diferente e mais radicalmente histórico. Um pensamento
complexo não interessa como indicativo processo mental do seu
autor mas como algo em si mesmo, como uma experiência que é
compreendida em relação com o nosso próprio horizonte de expe
riência. Não precisamos cair numa atitude psicologizante para
defender que a compreensão não pode ser concebida independen
temente das relações significativas que tem com a nossa expe
riência anterior.
Contudo, há outras conseqüências da hermenêutica de Schleier
macher que dão azo a preocupações. Por exemplo, considerar a
compreensão como um ponto de partida pode levar erradamente
a misturar poesia e prosa ou a aceitar teorias sobre a psicologia
fundamental ou sobre a natureza humana fundamental altamente
discutíveis. A tendência existente para ignorar o problema que é
a tradução numa língua estrangeira e a penetração numa época
remota não pode ser encarada com ligeireza; no entanto, a foca
lização de Schleiermacher na arte da compreensão tende a consi
derar estes aspectos como se fossem menos problemáticos do que
a própria compreensão. Gadamer chama a atenção para estes e
para outros problemas da hermenêutica de Schleiermacher, con
cluindo com uma afirmação contundente: «O problema para
Schleiermacher não era o da obscuridade na história mas o da
obscuridade no Tu (thou) (“ ). Uma concentração deste tipo nas
('•) WM 179.
102
condições psicológicas do diálogo, pode conduzir ao desprezo pelo
elemento histórico da interpretação e mesmo à ignorância do papel
central que a linguagem tem na hermenêutica. A concentrnçno no
diálogo juntamente com a visão errônea de que o processo de
compreensão é um processo de «imitação» ou de «reconstrução»
levou Schleiermacher às concepções erradas da última fase da sua
hermenêutica.
Contudo, Schleiermacher é justamente considerado como o pai
da moderna hermenêutica enquanto disciplina geral. Joachim Wacl)
nota que, no último troço do século xix os técnicos da herme
nêutica das mais variadas disciplinas e orientações foram deve
dores do pensamento hermenêutico de Schleiermacher, de tal
modo que as teorias hermenêuticas mais importantes na Alemanha
do século xix, trazem a sua marca. Entre eles apenas abordaremos
o contributo maximamente significativo de Wilhelm Dilthey.
103
8
DILTHEY: A HERMENÊUTICA COMO FUNDAMENTO
DAS GEISTESW ISSENSCHAFTEN
Depois da morte de Schleiermacher em .1834 o projecto dc
desenvolver uma hermenêutica geral esmoreceu. É certo que o
problema hermenêutico nos seus vários aspectos ocupou a atenção
de grandes nomes em diferentes campos, como por exemplo Karl
Wilhelm von Humboldt, Heymann Steinthal, August Bockh, Leo-
pold von Ranke, S. G. Droysen e Friedrich Karl von Savigny. Mas
a consideração do problema tendeu a circunscrever-se aos limites de
uma disciplina particular e a transformar-se em interpretação his
tórica, filológica ou judicial, mais do que em hermenêutica geral
como arte de compreensão. Contudo, perto dos finais do século,
o talentoso filósofo e historiador literário, Wilhelm Dilthey (1833-
-1911) começou a ver na hermenêutica o fundamento para as
Geisteswissenschaften — quer dizer todas as humanidades e as ciên
cias sociais, todas as disciplinas que interpretam as expressões da
vida interior do homem, quer essas expressões sejam gestos, actos
históricos, leis codificadas, obras de arte ou de literatura.
Dilthey tinha como objectivo apresentar métodos para alcançar
uma interpretação «objectivamente válida» das «expressões da vida
interior». Ao mesmo tempo reagiu drasticamente à tendência que
os estudos humanísticos revelavam tomando as normas e os modos
de pensar das ciências naturais e aplicando-as ao estudo do homem.
Nem mesmo a tradição idealista era uma alternativa viável, pois
sob a influência de Augusto Comte e dos seus estudos com Ranke,
Dilthey determinou que a experiência concreta e não a especulação
tem que ser o único ponto de partida admissível para uma teoria
das Geisteswissenschaften. Dilthey percebeu verdadeiramente a in
consistência epistemológica da pretensão à «objectividade» da «escola
histórica» alemã, encarando-a como uma mistura acrítica das pers
pectivas idealistae realista. A experiência concreta, histórica c
viva tem que ser o ponto de partida e o ponto de chegada dits
Geisteswissenschaften. É a partir da própria vida que temos que
105
desenvolver o nosso pensamento e é para ela que orientamos as
nossas questões. Não tentemos encontrar ideias por detrás da vida.
«O nosso pensamento não pode ir para além da própria vida.» (')
Há um toque romântico nesta ênfase de regresso à própria
vida, e não nos surpreende que Dilthey tenha publicado estudos
sobre o movimento alemão Sturm und Drang, sobre Novalis, Goethe
e Schleiermacher. Mergulha de tal modo na herança romântica
que lhe eram demasiado óbvias as falhas do positivismo c do rea
lismo, nas suas diferentes formas, negando todas elas a plenitude,
imediatez e variedade da própria experiência viva. Sentimos em
Dilthey alguns dos conflitos fundamentais do pensamento do sé-
século x ix : o desejo romântico de imediatez e de totalidade
mesmo quando o objectivo é procurar dados que sejam «objectiva
mente válidos». A sua mente inquieta lutou contra o historicismo,
contra o psicologismo e parcialmente ultrapassou-os, pois surge no
seu pensamento uma compreensão da história muito mais funda
do que a da escola histórica alemã; ao voltar-se para a hermenêu
tica, a partir do ano de 1890, ultrapassou decisivamente a tendência
psicologizante que tinha adoptado a partir de um estudo sobre a
hermenêutica de Schleiermacher. Como nota H. A. Hodges no seu
livro sobre Dilthey, há duas importantes tradições filosóficas até
então nitidamente separadas e que convergem em Dilthey: o rea
lismo empírico e o positivismo anglo-franceses, e a filosofia da vida
e o idealismo alemães (J). A tentativa efectuada por Dilthey de
forjar um fundamento epistemológico para as Geisteswissenschaften
tornou-se o ponto de encontro de duas perspectivas essencialmente
conflituosos de uma abordagem correcta do homem.
Para compreendermos a hermenêutica de Dilthey, temos pri
meiro que clarificar o contexto dos problemas e dos objectivos no
qual lutava, tentando dar uma base metodológica às suas Geites
wissenschaften. Isto envolve a compreensão do projecto 1) do con
ceito de história em Dilthey e 2) da orientação filosófica dada
à vida.
A tentativa de encontrar uma base metodológica
para as «Geisteswissenschaften»
O projecto de formular uma metodologia adequada às ciências
que se centram na compreensão das expressões humanas — sociais
c artísticas — é primeiramente encarado por Dilthey no contexto de
uma necessidade de abandonar a perspectiva reducionista e meca-
(') GS V. 5; VIII, 184.
(■) PliWD, cap. 2.
106
nicista das ciências naturais, e de encontrar uma abordagem ade
quada à plenitude dos fenômenos. Por esse motivo, uniu ohru re
cente sobre a teoria literária de Dilthey designou-a dc «ubordugcm
fenomenológica» (3). Assim, a tarefa de encontrar base, para umu
metodologia desse tipo foi vista como 1) um problema epislemoló-
gico, 2) uma questão de aprofundamento da nossa concepção da
consciência histórica, e 3) uma necessidade de compreender expres
sões a partir «da própria vida». Quando estes factores forem com
preendidos, será nítida a distinção entre a abordagem feita pelas
«ciências humanas» (Geisteswissenschaften) e a das ciências naturais,
Para Dilthey, qualquer espécie de base metafísica para descrever
o que se passa quando compreendemos um fenômeno humano é logo
de início recusada, pois dificilmente levaria a resultados considera
dos universalmente válidos. O problema está antes na especificação
de qual o tipo de conhecimento e de qual o tipo de compreensão
que particularmente adequados para interpretar os fenômenos huma
nos. Pergunta ele: Qual é a natureza do acto de compreensão que
constitui a base de todos os estudos sobre o homem? Resumindo,
ele não coloca o problema em termos metafísicos mas sim em ter
mos epistemológicos.
Num certo sentido, Dilthey continua o idealismo crítico de Kant
mesmo não tendo sido um neo-kantiano mas sim um «filósofo da
vida». Kant escrevera a «Crítica da Razão Pura» colocando os fun
damentos epistemológicos das ciências. Dilthey atribuiu-se cons
cienciosamente a tarefa de escrever uma «crítica da razão histórica»
que colocasse os fundamentos epistemológicos dos «estudos huma-
nísticos». Não pôs em causa a adequabilidade das categorias kan-
tianas para as ciências humanas, mas viu no espaço, no tempo, no
número etc., poucas possibilidades para a compreensão da vida
interior do homem; nem mesmo a categoria da «sensibilidade» lhe
parecia fazer justiça ao carácter interior e histórico da subjectividade
humana. Dilthey afirmava: «Isto é uma temática de (ulterior) desen
volvimento de toda a atitude crítica kantiana; mas colocando a
categoria da auto-interpretação (Selbstbesinnung) em vez de uma
teoria do conhecimento, uma crítica do histórico em vez de uma
crítica da razão «pura». O
«Chegamos ao conhecimento de nós próprios não através da
introspecção mas sim através da história.» (’) O problema da com
preensão do homem era para Dilthey um problema de recuperação
de consciência da «historicidade» (Geschichtlichkeit) da nossa própria
existência que se perdeu nas categorias estáticas da ciência. Temos
(5) Kurt Müller-Vollmcr, Towards a Phenomenolofical Theory of Lite-
rature: A Study of Wilhelm Dilthey's Poetik.
(<) GS V, XXI.
(5) Ibid., VII, 279.
107
experiência da vida, não nas categorias mecânicas do «poder», mas
nos momentos complexos, individuais do «sentido», na experiência
directa da vida como totalidade e na captação amorosa do particular.
Estas unidades de sentido exigem o contexto do passado e o hori
zonte de expectativas futuras; são intrinsecamente temporais e fini
tas e devem ser compreendidas em termos dessas dimensões — isto
é, historicamente. (Esta historicidade será discutida mais tarde jun
tamente com a própria hermenêutica de Dilthey.)
O problema da formulação de uma teoria das ciências humanas
foi visto no horizonte da filosofia da vida de Dilthey. A filosofia
da vida é a maior parte das vezes associada a três filósofos do último
quartel do século xix: Nietzsche, Dilthey e Bergson. A utilíssima
obra do Professor O. F. Bollnow (*) sobre o desenvolvimento da
filosofia da vida faz um levantamento desta orientação geral do
pensamento a partir do protesto efectuado no século xvin contra
o formalismo, o racionalismo asséptico e mesmo o pensamento
abstracto que despreza a totalidade da pessoa, a personalidade que
vive, sente e quer em toda a sua plenitude. Assim Rousseau, Jakobi,
Herder, Fichte, Schelling e outros pensadores do século xvm
anteciparam a filosofia da vida no esforço que fizeram de chegar
à plenitude vivida da existência humana no mundo. Nestes vários
pensadores podemos ver a luta do filósofo da vida em prol de uma
realidade não falseada pelos aspectos exteriores e pela cultura.
A palavra «vida» era então um grito de batalha contra a fixidez
e as determinações da convenção. Diz Bollnow, «Ela (a vida) refe
ria-se aos poderes internos do homem, especialmente aos poderes
irracionais do sentimento e da paixão, contra o poder predominante
da compreensão racional» (7). Friedrich Schlegel referia-se à «filo
sofia da vida» como sendo a apresentação viva da consciência hu
mana e da vida humana contra as especulações abstractas e ininte
ligíveis da «escola de filosofia». E Fichte tomou como base de
toda a sua filosofia a antítese entre a fixidez do Ser e o poderoso
fluxo da vida.
Poderíamos alargar indefinidamente esta lista de pensadores
com afinidades com a filosofia da vida, incluindo figuras como
William James, Marx, Dewey, Pestalozzi, Plessner e Scheler.
Bollnow dá um especial relevo a Georg Simmel (1858-1918), a
Ludwig Klages (1872-1956) e a José Ortega y Gasset (1883-1955) 0 .
Em todos eles encontramos a tendênciageral de tentar regressar à
plenitude da experiência vivida; e para a maior parte deles isso é
ao mesmo tempo uma oposição às tendências formais, mecânicas
C) L.
O Ibid., 5.
(•) Ibid., 144-50.
108
e abstractas da civilização tecnológica. As forças da Mente (Cicist,
no sentido em que Scheler utiliza o termo) ou do Scr (Sein, no
sentido em que Fichte o utiliza) substituíram o que cru rigido c
moribundo; as forças da vida (Leben) constituíam as fontes ilinft
micas e inexauríveis de todas as formas de criatividade e de sentido.
Em Dilthey esta antítese exprimia-se como crítica i»s formas dc
pensamento naturalísticas, orientadas pela causalidade quando se
aplicavam à tarefa de compreender a vida interior de um homem
e a sua experiência. Dilthey defendia que a dinâmica da vida intr
rior de um homem era um conjunto complexo de cogniçào, sen
timento e vontade, e que estes factores não podiam sujeitar-se às
normas da causalidade e à rigidez de um pensamento mecanicista
e quantitativo. Invocar as categorias do pensamento da «Crítica du
Razão Pura» para a tarefa de compreender o homem, impõe um
conjunto de categorias abstractas exteriores à vida, de modo algum
derivadas da vida. Essas categorias são estáticas, intemporais, abs
trac tas— são o oposto da própria vida.
O objectivo das ciências humanas não deveria ser a compreen
são da vida em termos de categorias exteriores à vida, mas a partir
de categorias intrínsecas, derivadas dela. A vida devia ser compreen
dida a partir da experiência da própria vida. Dilthey notou desde
nhosamente que «nas veias do sujeito cognoscente construído por
Locke, Hume e Kant não corre verdadeiro sangue» (*). Há uma
tendência nítida em Locke, Hume e Kant para restringir o «saber»
à faculdade cognitiva, separando-o do sentimento e da vontade.
Mais, a cogniçào é muitas vezes tratada como sendo separável do
contexto essencialmente histórico da vida interior do homem; con
tudo, a verdade é que percepcionamos, pensamos e compreendemos
em termos de passado, presente e futuro, em termos de sentimentos,
de exigências morais e de imperativos. Há uma necessidade óbvia
de regresso às unidades significativas presente na experiência vivida.
Regessar à «vida», para Dilthey, não significa regressar a uma
qualquer base mística ou a uma qualquer fonte da vida, humana
ou não humana, a alguma espécie de energia psíquica básica. A vida
é antes encarada em termos de «sentido»; a vida é «a experiência
humana conhecida a partir de dentro» ('*). Sentimos o sentimento
metafísico de Dilthey na sua recusa em tratar o mundo fenomé-
nico com uma mera aparência: «O pensamento não pode ir para
além da vida.» (” ) As categorias da vida não se enraízam numa
realidade transcendente mas na realidade da experiência vivida.
Hegel exprimira a sua intenção de compreender a vida a partir da
(•) GS V, 4; também L 121.
Ò*) L 12; ver GS VIII, 121: «Leben eiíasst hier Leben».
O1) GS VIII, 184.
109
própria vida; Dilthey coloca esta intenção num contexto antimeta-
físico— talvez não o tenha feito num contexto realista nem idea
lista, mas sim num contexto fenomenológico. Dilthey segue Hegel
defendendo que a vida é uma realidade «histórica»; contudo, a his
tória para Dilthey não é nem uma meta absoluta nem uma mani
festação do espírito absoluto mas sim uma expressão da vida. A vida
é relativa e expressa-se de muitas maneiras; na experiência humana
não é nunca absoluta.
Ciências humanas «versus» ciências naturais
Em termos de método para um estudo do homem, que signi
ficado tem o que acabámos de expor? Dilthey sustentou que «os
estudos humanísticos» ou «ciências humanas» (Geisteswissenschaften)
tinham que forjar novos modelos de interpretação dos fenômenos
humanos. Estes tinham que derivar das características da própria
experiência vivida; tinham que basear-se nas categorias de «sentido»
e não nas categorias de «poder», nas categorias da história e não
nas das matemáticas. Dilthey viu a distinção essencial, que existe
entre os estudos humanísticos e as ciências naturais (12).
Os estudos humanos não lidam com factos e fenômenos que
silenciam o homem mas com factos e fenômenos que apenas são
significativos pela luz que trazem aos processos internos do homem,
à sua «experiência interna». A metodologia apropriada aos objectos
naturais não é adequada à compreensão dos fenômenos humanos,
excepto no estatuto que estes têm enquanto objectos naturais. Con
tudo, os estudos humanísticos dão validade a algo que não é válido
nas ciências humanas — a possibilidade de compreender a experiên
cia interna de alguém através do processo misterioso de uma trans
ferência mental. Diz Dilthey: «Exactamente porque pode ocorrer
uma transposição real (quando um homem compreende outro
homem), porque a afinidade e a universalidade do pensamento ...
podem representar e formar um mundo socio-histórico, os factos
internos e os processos humanos podem distinguir-se dos dos
animais (” ). Devido a esta «transposição real» que pode dar-se nos
objectos que incorporam a experiência interna, o homem pode
alcançar um grau e uma profundidade de compreensão, impossíveis
relativamente a qualquer outro tipo de objectos. É óbvio que uma
transposição deste tipo apenas ocorre porque há uma semelhança
entre os factos da nossa experiência mental e os que se passam
(w) Ver Carl Michalson, The Rationality of Faith para uma exploração
cuidadosa das espécies contrastantes de compreensão adequadas a essas duas
áreas. Ver também GS V, 242-8; VII, passim.
0») GS V, 250.
110
com outra pessoa. Este fenômeno traz consigo a possibilidade de
encontrar noutra pessoa os abismos mais fundos da nossa própria
experiência; desse encontro pode advir a descoberto de um mundo
íntimo mais pleno (“ ).
Dilthey, seguindo Schleiermacher, vê esta transposição como
uma reconstrução e uma experiência renovada do mundo experien-
cial íntimo de outra pessoa. Contudo, o interesse não está na outra
pessoa, mas no próprio mundo, um mundo visto como um mundo
«socio-histórico»; é o mundo dos imperativos morais internos, uma
comunidade partilhada de sentimentos e reacções, uma experiência
comum de beleza. Estamos aptos a penetrar neste mundo interno
dos homens, não por meio da introspecção mas da interpretação,
da compreensão das expressões da vida; isto é, através da dccifrução
das marcas que o homem imprime aos fenômenos.
Portanto, a diferença entre os estudos humanísticos e as ciências
naturais, não está necessariamente nem num tipo de objecto dife
rente que os estudos humanísticos possam ter, nem num tipo
diferente de percepção; a diferença essencial está no contexto dentro
do qual o objecto percepcionado é compreendido (” ). Os estudos
humanísticos farão por vezes uso dos mesmos objectos ou «factos»
das ciências da natureza, mas num contexto de relações diferentes,
num contexto que inclui ou que refere uma experiência interna.
A ausência de referência à experiência humana é característica das
ciências naturais; a presença de uma referência à vida interior do
homem está inevitavelmente presente nos estudos humanísticos.
Diz-nos Dilthey: «Do mesmo modo, a diferença entre as ciências
naturais e as humanas não está fundamentalmente determinada rela
tivamente a um modo especial de conhecer mas difere nos conteú
dos.» O O mesmo objecto e o mesmo facto podem conter dife
rentes sis?emas de relação; os estudos humanísticos deviam tomar
o objecto ou facto e usá-lo em «categorias» novas, não científicas,
derivadas da própria vida. Por exemplo, um objecto poderia ser
explicado em termos de categorias puramente causais (i. e. dc um
modo científico) ou em relação com aquilo que ele rios diz sobre
a vida interior do homem, ou, mais objectivamente, sobre o mundo
socio-histórico do homem que é simultaneamente produto c mani
festação daexperiência interna do homem. As ciências naturais
não podem usar factos espirituais (geistige Tatsachen) sem que dei
xem de ser ciências naturais; os estudos humanísticos podem usar
factos físicos, mas o mundo externo apenas é considerado numa
relação com o sentimento e com a vontade humana, e os factos
(14) Ibidem.
(ls) Ibid., 248.
(" ) Ibid., 253.
111
apenas são significativos na medida em que afectam o comporta
mento e ajudam (ou impedem) fins humanos.
Dilthey acreditava que «compreensão» era a palavra chave para
os estudos humanísticos. A explicação é para as ciências. A abor
dagem dos fenômenos que unifica o interno e o externo é a com
preensão. As ciências explicam a natureza, os estudos humanísticos
compreendem as manifestações da vida (I7). A compreensão conse
gue captar as entidades individuais, mas a ciência tem sempre que
encarar o individual como um meio de chegar ao geral, ao tipo.
Especialmente nas artes, valorizamos o particular pelo seu próprio
mérito e demoramo-nos amorosamente na compreensão dos fenô
menos] na sua individualidade. Este interesse absorvente pela vida
interior individual contrasta totalmente com a atitude e com o pro
cedimento das ciências naturais. Dilthey sustenta que os estudos
humanísticos devem tentar formular uma metodologia da com
preensão que transcenda a objectividade reducionista das ciências
e que regresse à plenitude da «vida», da experiência humana.
Isto dá-nos uma concepção geral da visão de Dilthey sobre os
estudos humanísticos. Será defensável esta descrição da separação
entre a ciência humana e as naturais? Mesmo alguns dos mais
firmes defensores de Dilthey tiveram que responder negativamente.
Georg Misch, o seu executor literário, cedo reconheceu que uma
reconciliação produtiva das duas abordagens era possível e desejável.
Também Bollnow observou justamente que por muito úteis que
essas distinções pudessem ser na autocompreensão teórica dos dois
grandes ramos do conhecimento, teríamos que admitir que a «com
preensão» não se limita aos estudos humanísticos nem os processos
explicativos se limitam às ciências naturais. Antes trabalham con
juntamente, em graus variáveis, em todos os verdadeiros actos de
conhecimento. Ironicamente podemos hoje constatar em que medida
as concepções científicas e mesmo o historicismo de que Dilthey
combateu, se insinuam realmente na sua concepção dos estudos
humanísticos, pois a sua procura de um «conhecimento objectiva
mente válido» é ela própria expressão do ideal científico de dados
nítidos e claros. Este facto orientou imperceptivelmente o pensa
mento de Dilthey para as metáforas e imagens intemporais e espa-
cializadas de uma vida mental compatível com o pensamento cientí
fico. Por outro lado, a herança de Schleiermacher levou-o a uma
concepção da compreensão como reconstrução e a uma tendência
psicologizante, da qual apenas se libertou quando fundamentou a
sua teoria na hermenêutica e não num novo tipo de psicologia.
Contudo, o projecto de compreender a vida em termos da pró
pria vida, o desejo de aprofundar o aspecto histórico do conheci
(,T) «Die Natur erkláhren wir, das Seelenieben verstehen wir» (ibid., 144).
112
mento, a crítica aguda a um cientismo que se insinua nos estudos
humanísticos — tudo isto desempenhou um papel de relevo em
hermenêutica, a partir de Dilthey. Vemos que com ele sc abriram
alguns dos problemas e das finalidades fundamentais da hermenêu
tica. Heidegger construiu sobre esses objectivos e recuou nitida
mente até Dilthey, num esforço para ultrapassar as tendências cien
tíficas do seu mestre, Edmund Husserl ('*).
A fórmula hermenêutica de Dilthey: experiência,
expressão e compreensão
«Uma ciência só pertence aos'estudos humanísticos», diz Dilthey,
«se o seu objecto se nos tom ar acessível através de um processo
baseado na relação sistemática entre vida, expressão e compreen
são.» (19) Esta fórmula de «experiência, expressão c compreensão»
está longe de ser explícita pois cada termo tem um sentido dislinlo
nos termos da filosofia da vida de Dilthey. Vamos então explorar
separadamente cada um dos termos.
1 — Experiência
Em alemão há duas palavras para «experiência»: Erfahrimn c
a mais técnica e recente Erlebnis. A primeira refere-se ã experiên
cia em geral, como quando nos referimos à nossa «experiência» de
vida. Dilthey usa o termo Erlebnis, mais específico c limitado, for
jado a partir do verbo erleben (experimentar, especialmente cm
circunstâncias individuais). O verbo erleben é um termo bastante
recente, formado pela adição do prefixo er (geralmente usado como
um prefixo enfático, que aprofunda o sentido da palavra principal).
Assim o verbo «experimentar» é em alemão aparentado com o
verbo «viver», uma forma enfática que sugere a imediatez da pró
pria vida quando nos defrontamos com ela. Erlebnis enquanto subs
tantivo singular era praticamente inexistente cm alemão antes de
Dilthey o usar num sentido altamente específico, embora a forma
plural, Erlebnisse apareça em Goethe, a quem sem dúvida alguma
Dilthey o foi buscar.
Uma Erlebnis ou ^experiência vivida» é definida por Dilthey
como uma unidade sustentada por um significado comum:
Aquilo que na cadeia do tempo forma uma unidade no
presente porque tem um significado unitário, é a mais
pequena entidade a que podemos chamar experiência.
0 ') Ver SZ § 77.
(>») GS VII, 86; citado em PhWD 249.
113
Indo mais longe, podemos considerar «experiência» cada
unidade determinada das partes da vida ligadas por um
sentido comum — mesmo quando as várias partes se sepa
ram umas das outras por eventos que as interrompem (í0).
Por outras palavras, a experiência significativa de uma pintura,
por exemplo, pode ter envolvido muitos encontros separados pelo
tempo e no entanto ser considerada uma «experiência» (Erlebnis).
Uma experiência de amor romântico não se baseia num só encontro
mas reúne eventos de vários tipos, tempos e lugares; no entanto, a
unidade de sentido que têm enquanto «experiência» eleva-as da
corrente da vida e junta-as numa unidade de sentido, i. e., numa
experiência.
Quais as características desta unidade de sentido? Dilthey ana
lisa a questão com bastante pormenor e, para compreendermos a
sua hermenêutica, é essencial compreendermos a que é que ele
chama «experiência». Em primeiro lugar, a experiência não deve
ser construída como o «conteúdo» de um acto reflexivo da cons
ciência, pois então teria que ser algo de que tivessemos consciência;
ora ela é antes o próprio acto; é algo no qual e pelo qual vivemos,
é a própria atitude que temos para com a vida e na qual vivemos.
Resumindo, é a experiência enquanto tal, tal como é dada de um
modo pré-reflexivo na significação. Subsequentemente a experiência
pode tornar-se objecto de reflexão, mas então deixa de ser expe
riência imediata, torna-se objecto de um outro encontro. Assim a
experiência mais do que discussão é urr acto de consciência; não
tem que ser construída como algo que a consciência apreende e
contra o qual se coloca (J1).
Isto significa que a experiência não tem nem consegue ter cons
ciência de si mesma, pois fazê-lo seria um acto reflectidamente
consciente. Também não é um dado da consciência, pois a sê-lo
teria que se defrontar contra o sujeito como um objecto que lhe
tivesse sido dado. Assim a experiência existe antes da separação
sujeito-objecto, separação que é ela própria um modelo usado pelo
pensamento reflexivo. De facto, experienciar não se distingue do
próprio percepcionar ou do apreender (innewerden). A Erlebnis
representa aquele contacto directo com a vida a que podemos cha
mar «a experiência imediatamente vivida».
A análise descritiva deste campo de difícil compreensão, ante
rior ao pensamento reflexivo, é essencial tanto para os estudos
humanísticos como para as ciênciasnaturais, mas é particularmente
importante para o primeiro, pois as próprias categorias da com
(*>) GS VII, 194.
C") Ibid., 139; PhWD 38-40.
114
preensão humanística e hermenêutica dela derivam. JÊ justamente
este campo da consciência pré-reflexiva que é demarcado pela feno
menologia de Husserle de Heidegger. À medida que Dilthey procura
desenvolver o seu projecto metodológico numa relação íntima com
a sua filosofia da vida, à medida que faz uma separação nítida entre
o mero «pensar» e a «vida» (ou a experiência) vai colocando fun
damentos para a fenomenologia do século xx.
Assim, por exemplo, Dilthey defende que:
«O modo como a ‘experiência vivida’ se me apresenta (à letra:
«está ali para mim») é completamente diferente do modo como as
imagens se colocam face a mim. A consciência da experiência e a
sua constituição são a mesma coisa: não há separação entre o que
está-ali-para-mim e o que eu experimento enquanto estando ali-
-para-mim. Por outras palavras, a experiência não se coloca como
um objecto em face daquele que a experimenta, mas antes a sua
própria existência para mim é indiferenciada da ‘qualidade’ que
nela para mim está presente» (22).
Contudo seria um erro grave pensar a experiência como se
apontasse para qualquer espécie de realidade meramente subjectiva,
porque a experiência é precisamente experiência daquilo que eslá-
-para-mim antes de se tornar objectiva (e consequentemente uma
separação do subjectivo). É a partir desta unidade primitiva que
Dilthey tenta forjar categorias que contenham e não que separem
os elementos do sentimento, saber e vontade que surgem conjun
tamente na experiência — categorias como por exemplo, «valor»,
«significado» «textura» e «relação». Dilthey encontra dificuldades
na formulação destas categorias, contudo, a própria tarefa dc as
formular é da maior importância. A sua selecção teve como meta
adquirir um conhecimento objectivamente válido, e é esta meta
que lhe levanta objecções que ele próprio não solicitara. Ao mesmo
tempo, temos que admirar a impaciência com que exigiu catego
rias que exprimissem «a liberdade da vida e da história» (” ). A fer
tilidade das suas intuições está na visão da experiência que coloca
um campo anterior ao sujeito e ao objecto, um campo cm que o
mundo e a experiência que dele temos são conjuntamente dados.
Viu com toda a nitidez a pobreza do modelo do encontro humano
com o mundo em termos de sujeito-objecto, viu como é superficial
separar os sentimentos dos objectos, as sensações do acto total da
compreensão. «Vivemos e movemo-nos», diz ele depreciativamente,
«não numa esfera de sensações mas sim de objectos que se nos
apresentam, não numa esfera de sentimentos mas sim de valor, de
sentido, e assim por diante.» (**) Como é absurdo, diz-nos, separar
C2) GS VII, 139.
(“ ) Ibid., 203.
(*•) GS VI. 317.
115
as nossas sensações e sentimentos do contexto total de relações que
surgem conjuntamente na unidade da experiência.
Outro aspecto que deu frutos em Dilthey foi a ênfase concedida
à temporalidade do «contexto de relações» dadas na «experiência».
A experiência não é algo de estático; pelo contrário, na sua uni
dade de sentido, tende a alcançar e a abranger tanto a recolecção
do passado como a antecipação do futuro no contexto total de
«significado». O significado não pode ser imaginado a não ser em
termos daquilo que esperamos que será o futuro, nem pode liber
tar-se da dependência de materiais cedidos pelo passado. O passado
e o futuro constituem portanto uma unidade formal com o carácter
presente de toda a experiência, e este contexto temporal é o hori
zonte inevitável dentro do qual qualquer percepção presente é inter
pretada.
Dilthey vai longe provando que a temporalidade da experiência
não é algo imposto reflexivamente pela consciência (a posição que
os kantianos tomariam, a mente como agente activo que impõe
uma unidade à percepção), é antes o que já está implícito na pró
pria experiência, aquilo que nos é dado. A este respeito, podemos
considerar Dilthey como realista, mais do que idealista: a tempo
ralidade da experiência é, como Heidegger diria, «equiprimordial»
à própria experiência. Nunca é nada que se acrescente à expe
riência. Suponhamos que alguém tenta captar conscientemente o
decurso ou a progressão de uma vida (das Lebenstauf) por meio
de um acto reflexivo. A unidade deste exercício particular é ins
trutiva pois é quase como que um espelho do modo como essa
unidade é actualmente dada conscientemente, a um nível pré-refle-
xivo. Dilthey descreve o seu próprio esforço ao agir desse modo:
«O que acontece quando a ‘experiência’ (das Erlebnis) se torna
objecto da minha reflexão? Estou acordado de noite (por exemplo)
e preocupo-me com a possibilidade de, na minha velhice, poder
completar o trabalho que comecei; penso e repenso no que hei-de
fazer. Há nesta ‘experiência’ um conjunto estruturado de relações:
a base da situação é constituída pela captação objectiva que dela
faço, e sobre essa base constrói-se uma instância (Stellungsnahme),
de preocupação ‘para com’ e de ‘dor sobre’ o facto captado objec-
tivamente, juntamente com uma tentativa de ultrapassar o facto.
E tudo isto está ali — para — mim, nisso reside o seu (do facto)
contexto estrutural. É claro que agora trouxe a situação para uma
consciência discriminativa e dei relevo à relação estrutural — ‘iso-
leia-a’. Mas tudo aquilo a que aqui dei relevo está realmente contido
na própria experiência e apenas foi esclarecido por este acto de
reflexão.» (” )
(” ) GS VII, 139-40; parafraseando e não traduzido literalmente.
116
O «sentido» de «um facto captado objectivamenle» 6 dado
com o próprio facto, e o sentido é intrinsecamentc temporal, defi
nido em termos do contexto da vida de cada um. Dilthey continua
a passagem acima transcrita, defendendo que tal facto tem um «igni-
ficado essencial para todo o estudo da realidade humana: «As par
tes constitutivas que formam a visão da progressão da nossa vida
(Anschauung des Lebens verlaufes) estão todas contidas no prAprUt
viver.» Ç*) Podendo designar este facto como sendo a temporalidade
interna da historicidade que não se impõe à vida mas que lhe 6
intrínseca. Dilthey defende um facto da maior importância para a
hermenêutica: A experiência é intrinsecamente temporal (quer dizer,
histórica, no sentido mais fundo da palavra), e portanto a com
preensão da experiência tem também que ser dada em categorias
de pensamento proporcionalmente temporais (históricas).
Dilthey, ao insistir na temporalidade da experiência tem pois
defendido a fundamentação de todos os esforços subsequentes que
afirmam a «historicidade» da existência humana no mundo. Histo
ricidade não quer dizer concentração no passado, nem tem a ver
com qualquer espécie de mentalidade tradicional que nos subordine
a ideias mortas; historicidade (Geschichlichkeit) é essencialmente a
afirmação da temporalidade da experiência humana tal como a
descrevemos. Significa que compreendemos o presente apenas no
horizonte do passado e do futuro; isto não é uma questão de
esforço consciente, construindo-se sobre a estrutura da própria expe
riência. Mas tornar explícita esta historicidade tem na verdade
conseqüências hermenêuticas, pois a não historicidade da interpre
tação já não pode ser assumida; não mais ficamos satisfeitos com
uma análise que se apoie firmemente sobre categorias científicas
fundamentalmente alheias à historicidade da experiência humana.
Tornou-se por demais evidente que a experiência não pode ser com
preendida em categorias científicas. A tarefa é nítida: fabricar as
categorias «históricas» adequadas às características da experiência
vivida.
2 — Expressão
O segundo termo da fórmula experiência — expressão — com
preensão — A usdruck — pode ser traduzido por «expressão». O usodeste termo não deve associar automaticamente Dilthey às teorias
da expressão na arte, pois tais teorias são estruturadas em termos
de sujeito-objecto. Por exemplo, ligamos quase automaticamente o
termo «expressão» a «sentimento»; «exprimimos» os nossos senti
mentos e uma teoria da expressão em arte encara geralmente a
(*) Ibid-, 140.
117
obra como uma representação simbólica de sentimentos. Words-
worth, um representante da teoria da expressão na criação poética,
vê o poema como um transbordar espontâneo de sentimentos pode
rosos.
Quando Dilthey usa Ausdruck não se refere essencialmente a
esse transbordar ou a esse sentir, mas a algo muito mais englobante.
Para Dilthey, uma expressão não é essencialmente a encarnação dos
sentimentos de uma pessoa, mas antes uma «expressão de vida»; uma
expressão pode referir-se a uma ideia, a uma lei, a uma forma
social, à linguagem — qualquer coisa que espelhe a marca da vida
interior do homem. Não é essencialmente o símbolo de um sen
timento.
Talvez que Ausdruck se pudesse traduzir, não por «expressão»
mas sim por «objectificação» da mente — conhecimento, sentimento
e vontade — do homem. O significado hermenêutico da objectifica
ção é que, devido a ela, a compreensão pode centrar-se numa
expressão fixa e «objectiva» da experiência vivida em vez de lutar
pela sua captação através da introspecção. Dilthey reconhece que a
introspecção nunca poderia servir de base para os estudos humanos
pois a reflexão directa sobre a experiência produz quer 1) uma intui
ção que não pode ser comunicada, quer 2) uma conceptualização
que é ela própria expressão de uma vida interior. A introspecção
é pois um modo pouco seguro quer de nos conhecermos a nós pró
prios, quer de conhecermos o homem pelos estudos humanísticos.
Os estudos humanísticos têm que necessariamente centrar-se em
«expressões de vida»; esses estudos, centrados numa objectificação
da vida, são intrinsecamente hermenêuticos. Em que tipo de objec
tos poderão centrar-se os estudos humanísticos? Dilthey é peremptó
rio quanto ao âmbito destes: «Tudo aquilo em que o espírito humano
se objectificou cai na área das Geisteswissenschaften. O limite des
tas é tão lato como a compreensão, e a compreensão tem o seu
verdadeiro objecto na objectificação da própria vida (” )■
3 — A obra de arte como objectivação da experiência vivida
Se o limite dos estudos humanísticos é tão vasto, onde encaixar
a obra de arte, e mais especificamente, a obra de arte literária?
Dilthey classificou as várias manifestações da vida ou da experiên
cia interior humana («a vida» em Dilthey não é algo metafísico,
não é uma parte profunda para além da própria experiência vivida;
a experiência humana é aquilo para além do qual a reflexão não
deveria querer ir) em três categorias fundamentais: 1) As ideias
(i. e. conceitos, juízos, e formas mais amplas de pensamento), são
(” ) Ibid., 148.
118
«meros conteúdos de pensamento», independentes do lugar, tempo
e pessoa em que surgem; por esta razão, têm uma certa precisão
sendo facilmente comunicáveis 2) As acções, são mais difíceis de
interpretar; numa acção há uma certa meta, mas só com grande
dificuldade podemos determinar os factores que agem na decisão
que levou ao acto. Uma lei, por exemplo, é um acto público ou
comunitário mas aplicam-se-lhe as mesmas dificuldades; por exem
p lo — ao praticar uma acção não podemos saber o que decidimos
contra essa acção. 3) Finalmente há expressões de uma experiência
vivida que vão desde as expressões espontâneas da vida interior,
tal como exclamações e gestos, até às expressões convencional
mente controladas incorporadas na obra de arte.
Dilthey refere-se geralmente às primeiras duas categorias—idéias
e acções — como «manifestações de vida» (Lebensausserungen),
mas reserva para a terceira o termo mais específico de «expres
sões de experiência vivida» (Erlebnisausdrücke). É nesta terceira
categoria que a experiência interior humana chega à sua máxima
expressão e nela a compreensão sofre o seu maior desafio.
«Como é diferente a expressão de uma experiência vivida (da
ideia ou do acto)! Existe uma relação especial entre esta, como
expressão da própria vida, e a compreensão que a provocou. A ex
pressão contém mais do contexto da vida anterior (seelischen
Zusammenhang) do que qualquer introspecção pode perceber, pois
surge das profundidades que a consciência nunca ilumina.» (2‘)
É claro que a obra de arte, na sua flexibilidade e segurança
ultrapassa de longe os meros gestos ou as exclamações pois os gestos
podem ser imitados enquanto que a arte aponta para, ou exprime,
a própria experiência, não sendo assim susceptível de imitação:
«Nas grandes obras de arte liberta-se (sich loslõst) uma visão
(ein Geistiges) do seu criador, o poeta, o artista, o escritor, c entra
mos num campo em que aquele que se exprime não nos pode enga
nar. Nenhuma obra de arte verdadeiramente grande tenta retratar
uma realidade estranha ao conteúdo interno (geisligen Gehalt) do
seu autor. De facto, não pretende dizer-nos nada sobre o seu autor.
É verdadeira em si mesma, mantendo-se fixa, visível, duradoura.» (2“)
Afasta-se o problema da simulação, presente nos gestos e em
toda a actividade ou situação humana, com o seu jogo de interesses
em conflito, pois a obra de arte não aponta dc modo algum para
o seu autor, mas para a própria vida. É precisamente por esta razão
que a obra de arte é aquele objecto dos estudos humanísticos em
que podemos confiar, o mais duradouro e o mais fértil. Com este
estatuto fixo e objectivo torna-se possível uma compreensão segura
(” ) Ibid., 207.
C") Ibid.
119
c artística da expressão. «Assim, nos limites do conhecimento e da
acção, surge um círculo ou campo em que a vida se revela com
uma profundidade inacessível à observação, à reflexão ou à teo
ria.» (")
De todas as obras de arte, as da linguagem têm talvez maior
poder de revelar a vida interior do homem. Devido à presença
desses objectos fixos e imutáveis, neste caso as obras literárias,
existe já um corpo de teoria sobre a interpretação dos textos: a her-
menêuticd. Dilthey sustenta que os princípios da hermenêutica
podem desbravar caminho a uma teoria geral da compreensão, por
que «acima de tudo ... a captação da estrutura da vida interior
baseia-se na interpretação de obras, obras em que a textura da
vida interior se exprime plenamente» (“ ). Assim, para Dilthey, a
hermenêutica adquire um significado novo e mais lato: torna-se
teoria, não só da interpretação do texto mas do modo como a vida
se revela e se exprime nas obras.
Contudo, neste caso, a «expressão» não é a de uma realidade
individual e puramente pessoal, pois então não poderia ser perce
bida por outra pessoa; quando a expressão é escrita utiliza a lin
guagem, um meio que é comum àquele que compreende, e a com
preensão ocorre em virtude de uma experiência análoga. Assim
é possível postular a existência de estruturas gerais nas quais e
pelas quais o conhecimento objectivo ocorre. E a expressão não
é por conseguinte a de uma pessoa, como quando se trata de psi
cologia, mas sim a de uma realidade social e histórica, revelada na
experiência, a realidade social e histórica da própria experiência.
4 — A compreensão
A «compreensão» (Versteheri) tal como as outras duas palavras
chave da fórmula de Dilthey — experiência — expressão — com
preensão—, é usada num sentido especial. Assim «compreensão»
não se refere à compreensão de uma concepção racional, como por
exemplo a de um problema matemático. O termo «compreensão»
é reservado para designar a operação na qual a mente capta «a
mente» (Geist) de outra pessoa. Não é de modo algum uma ope
ração puramente cognitiva da mente, é aquele momento muito espe
cial em que a vida compreende a vida: «Explicamos por meio de
processos puramenteintelectuais, mas compreendemos por meio da
actividade combinada de todos os poderes mentais da apreensão.» (” )
O aforismo mais famoso do seu pensamento, expressa-se de um modo
mais sucinto: «Explicamos a natureza; há que compreender o ho-
(" ) ibid.
(51) Ibid., 322.
(n ) GS V, 172.
120
mem.» (” ) A compreensão é portanto o processo mental pelo qual
compreendemos a experiência humana viva. É o acto que constitui
o nossa melhor contacto com a própria vida. Tal como a experiên
cia vivida (Erlebnis), a compreensão tem uma plenitude que escapa
à teorização racional.
A compreensão abre-nos o universo das pessoas individuais, e
portanto abre também possibilidades para a nossa própria natu
reza ("). A compreensão não é um mero acto de pensamento mas
uma transposição e uma nova experiência do mundo tal como o
captamos na experiência vivida. Não é um acto de comparação,
consciente e reflexivo, é antes a operação de um pensar silencioso
que efectua a transposição pré-reflexiva de uma pessoa para a
outra. Redescobrimo-nos a nós próprios no outro (” ). Um outro
aspecto que realça o modo como a compreensão contrasta com toda
a compreensão e explicação meramente científicas é que a com
preensão tem valor em si mesma, para além de quaisquer consi
derações práticas. Não é necessariamente um meio para qualquer
outra coisa, é intrinsecamente boa. É só pela compreensão que
encontramos os aspectos especificamente pessoais e não conceptuais
da realidade. «O segredo da pessoa» atrai (— nos) em si mesmo
pelos esforços de compreensão cada vez mais novos c profundos.
E numa compreensão desse tipo surge o campo do individual, que
delimita o homem e as suas criações. Aqui reside a função com
preensiva mais adequada aos estudos humanísticos ("). Tal como
anteriormente fizera Schleiermacher, Dilthey afirma «que os estu
dos humanísticos» se debruçam amorosamente sobre o particular,
por ele mesmo. As explicações científicas raramente são valorizadas
em si mesmas, mas sim devido a qualquer outra coisa; quando certos
tratados são apreciados por si mesmos, como é o caso do De rerum
natura de Lucrécio vê-mo-los como chaves para a natureza mais
íntima do homem — por outras palavras, mudamo-nos para os
estudos humanísticos e para as categorias da compreensão, mais
do que da mera explicação.
O sentido da historicidade na hermenêutica de Dilthey
Dilthey afirmou repetidas vezes que o homem é «um ser his
tórico» (eingeschichtliches Wesen). Mas o que denota aqui a palavra
histórico? A resposta é importante não só para compreendermos a
hermenêutica de Dilthey como pela influência que teve na teoria
hermenêutica subsequente.
(” ) Ibid., 144.
(” ) GS VII, 145, 215-16; ver D 170-71.
(” ) GS VII. 191.
(") GS V, 212-13.
121
Dilthey não concebe a história como algo passado que defron
tamos como se fosse um objecto. A historicidade também não
aponta para o facto, já objectivamente evidente, de que o homem
nasce, vive e morre no decurso do tempo. Não se refere ao carác
ter passageiro e efêmero da existência humana, que constitui um
tema poético. A historicidade (Geschichlichkeit) significa duas
coisas:
1) O homem compreende-se a si próprio, não pela introspec
ção mas sim por meio de objectivações da vida. «O que o homem
é, só a história o pode dizer.» (” ) Algures, mais detalhadamente
diz: «O que o homem é e o que ele quer, só o experimenta no
desenrolar da sua natureza através dos milênios e nunca até à
última sílaba, nunca em conceitos objectivos mas sempre apenas
na experiência vivida que brota das profundezas do seu próprio
ser.» C') Por outras palavras, a autocompreensão do homem não
é directa mas indirecta; tem que sofrer um desvio hermenêutico
através de expressões fixas que datam do passado. Dependente da
história, é essencial e necessariamente histórico.
2) A natureza humana não é uma essência fixa; em todas
as suas objectificações o homem não se limita a pintar murais
intermináveis nas paredes do tempo de modo a perceber em que
é que a sua natureza sempre consistiu. Pelo contráiio, Dilthey
concordaria com outro filósofo da vida, Nietzsche, em que o homem
é «o animal-ainda-não-determinado» (noch nicht festgestellte Tier),
o animal, que ainda não determinou aquilo que é (39). Para mais,
não está simplesmente a tentar descobri-lo; ainda não decidiu o
que há-de ser. O que há-de ser aguarda ainda as suas decisões
históricas. Não é tanto o timoneiro de um navio já pronto como
o arquitecto do próprio navio. A isto chamou mais tarde Ortega
y Gasset «o privilégio ontológico» (“ ). Um homem está constante
mente a tomar posse das expressões já formadas que constituem
a sua herança, torna-se criativamente histórico. Este captar do pas
sado não é uma forma de escravatura mas de liberdade, a liberdade
de um autoconhecimento ainda mais pleno e a consciência de ser
capaz de querer aquilo que irá ser. Visto que o homem tem o poder
de alterar a sua própria essência, poderíamos dizer que ele tem o
poder de alterar a própria vida; tem poderes verdadeiros e radicais
de criação.
Uma outra conseqüência da historicidade é que o homem não
foge à história, pois ele é o que é, na e pela história. «A totalidade
da natureza humana é apenas história.» f11). Para Dilthey, isto tinha
(” ) GS VIII, 224.
(3«) GS VI, 57; IX, 173; também D 219.
(M) L 42.
(40) L 44.
(«) GS VIII. 166.
122
como conseqüência um relativismo histórico. Afirmnvu i|iic «nflo 6
de todo possível recuar para além da relatividade di» consciência
histórica ... o tipo de ‘homem’ dissolve-se e ultcru-xc no processo
da história» (“ ). A história é em última instância uma sérlc dc
visões do mundo, não temos padrões determinados c fixos para jul
gar em que é que uma visão do mundo é superior a outra (*’).
Tudo isto apenas reforça o que dissemos anteriormente nobre
a temporalidade intrínseca da compreensão: o significado coloca
sempre num contexto horizontal que se estende pelo passado c pelo
futuro. Gradualmente, esta temporalidade torna-se parte intrínseca
do conceito de «historicidade» de modo que o termo acaba por
referir-se não só à dependência do homem relativamente à história
pelo autoconhecimento e pela auto-interpretação, pela sua finitude
criativa na determinação histórica da própria essência, mas também
à inevitabilidade da história e à temporalidade intrínseca dc toda
a compreensão.
As conseqüências hermenêuticas da «historicidade» são eviden
tes em toda a obra de Dilthey, de tal modo que Bollnow tem razão
ao notar que, juntamente com a concepção da unidade da vida
e da expressão, a concepção da historicidade é fundamental para
a compreensão de Dilthey (“ ). Quando diferenciamos Dilthey dos
outros filósofos da vida, é precisamente esta historicidade que o
demarca de Bergson e dos outros. Dilthey deu um verdadeiro
avanço ao moderno interesse pela historicidade. Como diz Bollnow:
«Todos os esforços recentes para compreender a historicidade
humana têm em Dilthey o seu início decisivo.» (4!) Resumindo, ele
é o pai das concepções modernas da historicidade. Nem a própria
hermenêutica de Dilthey nem a de Heidegger ou Gadamer, que
serão abordadas resumidamente, se concebem excepto em termos
de historicidade, especialmente de temporalidade da compreensão.
Na teoria hermenêutica, o homem é visto na sua dependência
relativamente a uma interpretação constante do passado, e assim,
quase poderíamos dizer que o homem é «o animal hermenêutico»
que se compreende a si próprio em termos de interpretação de
uma herança e de um mundo partilhados que o passado lhe trans
mite, uma herança constantemente presente e activante' em todas
as suas acções e decisões. A moderna hermenêutica encontra a
sua fundamentação teórica na historicidade.
(« ) Ibid., 6.
(“ ) GS I, 123 ff.; V 339 ff.; VIII passim; todos eles discutem a suadoutrina da visão do mundo. Pode-se encontrar uma abordagem deste tema,
em inglês, cm PhWD 85-95.
(«) D 221.
(") L 6.
123
O círculo hermenêutico e a compreensão
As operações da compreensão são consideradas por Dilthey
enquanto ocorrendo no interior do princípio do círculo hermenêu
tico já enunciado por Ast e Schleiermacher. O todo recebe a sua
definição das partes, e, reciprocamente, as partes só podem ser
compreendidas na sua referência ao todo. O termo «sentido» é
crucial em Dilthey: o sentido é aquilo que a compreensão capta
na interacção essencial recíproca do todo e das partes.
Como foi já indicado, a frase fornece um exemplo nítido da
interacção do todo e das partes e da necessidade de ambos: a partir
do sentido das partes individuais vai-se revelando a compreensão
do sentido do todo, que por sua vez transforma a indeterminação
das palavras num modelo mais preciso e significativo. Dilthey
cita este exemplo e depois sustenta que existe a mesma relação
entre as partes e o todo da vida de cada um. O significado do todo
é um «sentido» que deriva do significado das partes individuais.
Um evento ou uma experiência podem alterar de tal modo as nossas
vidas que aquilo que anteriormente tinha significado pode deixar
de o ter e que uma experiência passada aparentemente sem sentido
pode tornar-se rectrospectivamente significativa. O sentido do todo
determina a função e o sentido das partes. E o sentido é algo his
tórico; é uma relação do todo e das partes encarada por nós de
determinado ponto de vista, num determinado tempo, para uma
dada combinação de partes. Não é algo acima ou fora da história,
mas a parte de um círculo hermenêutico, sempre historicamente
definido
O sentido e a significação são portanto contextuais; são parte
da situação. Por exemplo, o sentido da afirmação «Venho desejar
boa noite ao meu Rei e Senhor» só num sentido trivial é clara
e significativa, independentemente da situação em que se integra.
O sentido da afirmação é diferente se for formulada 1) pelo criado
velho em The Cherry Orchard, 2) pelo criado no Fausto, 3) por
Smerdyakov em Os Irmãos Karamazov ou na sua origem literal,
neste caso 4) Kent no R ei Lear.
Analisemos sumariamente o significado da frase no seu con
texto. No último acto da peça, depois de terminada a batalha, tendo
o traidor Edmund sido derrotado e estando a morrer, entra o fiel
Kent. Exprime a sua lealdade em palavras de despedida simples
e tocantes. Que universo significativo exprime aqui a palavra
«Senhor»! Nele escutamos não só a relação de Kefit a Lear mas
em ressonância, o tema da simples lealdade na ordem hierárquica
das coisas. É claro que estas palavras são mais do que uma mera
expressão do carácter de Kent e da sua relação com Lear; têm
um significado funcional, pois a essa simples frase segue-se ime
diatamente a pergunta: «Ele não está cá»? que desencadeia a acção
124
final trágica da peça. Imediatamente a atenção se centra na
ausência nefasta de Lear e Cordelia, que leva Edmund a dizer
que ordenou a sua morte e a fazer um esforço inútil de anular
a ordem. Entra então o velho «Senhor», agora senhor dc si mesmo
mas não senhor dos acontecimentos desencadeados pela ausência
funesta de um verdadeiro poder; entra trazendo nos braços o
tesouro que em tempos recusara como não tendo qualquer valor.
Como mudou para Lear o sentido de «amor» e «lealdade» no
decurso da peça! De que maneira os eventos alteraram terrivel
mente o significado da sua decisão de dividir o reino!
O significado é histórico: mudou com o tempo; é uma questão
de relação, sempre ligada com a perspectiva a partir da qual os
eventos são considerados. O significado não é fixo e determinado.
Mesmo o significado do Rei Lear enquanto peça, se altera. Para
nós, que estamos num universo pós-hierárquico e pós-deístico e
num contexto social muito diverso, o sentido é obviamente diferente
do que era para os contemporâneos de Shakespeare. A história
das interpretações de Shakespeare mostra que há um Shakespeare
dos séculos xvu, xviii, xix e xx, tal como há uma versão aristo-
télica de Platão, um Platão dos primeiros cristãos, um Platão me
dieval, um Platão do século xvi e do século xvu e mesmo um Platão
do século xx. A interpretação coloca-se sempre na situação em que
o intérprete se coloca; o significado depende disso, por muito cir
cunscritos que pareçam a peça, o poema ou o diálogo. Assim vemos
como é justa a asserção de Dilthey de que pode haver vários tipos
de sentido, mas que se trata sempre de uma espécie de coesão, de
relação ou de força de ligação; estamos sempre num contexto
(Susammenhang). Embora o significado seja constantemente uma
questão de relação e de contexto, isto não significa que ele «paire
no ar», como uma construção artística flutuante. Não é algo que
se feche em si mesmo e que se coloque contra nós, como um objecto;
é aquele algo não objectivo que nós objectificamos parcialmente ao
tornarmos explícito um sentido. Diz Dilthey: «O significado surge
essencialmente a partir da relação da parte com o todo que se baseia
na natureza da experiência vivida O . Por outras palavras, o signi
ficado está imanente na textura da vida, isto é, na nossa participação
na experiência vivida; é em última instância a categoria restrita
fundamental a partir da qual captamos a vida.» O Tal como foi
afirmado antes, «a vida» não é algo metafísico mas sim «experiência
vivida». De um modo muito característico, Dilthey fala-nos deste
dado básico, a vida: «A vida é o elemento ou facto básico (Grund-
tatsche) que deve constituir o ponto de partida para a filosofia.
(«) GS VII, 233.
(") Ibid., 232.
125
É conhecida a partir de dentro. É aquilo que não podemos ultrapassar.
A vida não pode ser apresentada ao tribunal da razão.» O O nosso
acesso à compreensão da «vida» é mais fundo do que a razão pois a
vida torna-se compreensível através das suas objectificações. Aqui, no
domínio dos objectos, podemos construir um mundo de verdadeiras
relações que são captadas pelos indivíduos na actualidade da expe
riência vivida. O sentido não é subjectivo; não é uma projecção
do pensamento ou do pensar, sobre o objecto; é a percepção de
uma relação real adentro de um nexo anterior à separação sujeito-
-objecto feita pelo pensamento. Compreender o sentido implica
entrar numa relação real e não imaginária com as formas do
«espírito» objectificado, que se encontram por todo o lado, à nossa
volta. É uma questão de interacção da pessoa individual e do Geist
objectivo, num círculo hermenêutico que pressupõe a actuação
conjunta de ambos. Significado é o nome dado às diferentes espécies
de relações desta interacção.
A circularidade da compreensão tem outra conseqüência de
grande importância para a hermenêutica: não há realmente um
verdadeiro ponto de partida para a compreensão, pois toda a parte
pressupõe as outras partes. Isto significa que não há compreensão
«sem pressupostos». Todo o acto de compreensão se dá num deter
minado contexto ou horizonte; mesmo nas ciências, apenas expli
camos «em termos de» um contexto referencial. A compreensão
nos estudos humanísticos toma a «experiência vivida» como o seu
contexto e compreensão que não tenha relação com a experiência
vivida não é adequada aos estudos humanísticos (Geisteswissen
schaften). Uma abordagem interpretativa que ignore a historicidade
da experiência vivida e aplique categorias intemporais a objectos
históricos, só ironicamente pode pretender chamar-se «objectiva»
pois desde o início que deturpou o fenômeno.
Visto que compreendemos sempre a partir do nosso próprio
horizonte, fazendo este parte do círculo hermenêutico, nada pode
ser compreendido de um modo não posicionai. Compreendemos
por uma constante referência à nossa experiência. A tarefa meto
dológica do intérprete não é portanto ade mergulhar totalmente
no seu objecto (o que de qualquer modo seria impossível) mas sim
a de encontrar modos de uma interacção viável entre o nosso hori
zonte e o horizonte do texto. Como demonstraremos, Gadamer
dá um relevo considerável a esta questão: como é que. dentro do
nosso horizonte, poderemos conseguir uma abertura ao texto que
não imponha previamente sobre ele as nossas próprias categorias.
(" ) Ibid., 359.
126
O significado de Dilthey para a hermenêutica:
conclusão
O contributo de Dilthey foi alargar o horizonte da hcrmcnôuticu
colocando-o no contexto da interpretação dos estudos fíumunlNtlco.i.
O seu pensamento sobre o problema hermenêutico começou muito
na sombra do psicologismo de Schleiermacher, e só gradualmente
concebeu uma interpretação centrada na expressão da «experiòm in»
vivida sem referência ao seu autor. Mas quando o fez, a herme
nêutica e não a psicologia, tornou-se a base dos estudos h u m u n ls -
ticos. Isto satisfez dois objectivos básicos em D ilth ey . Primeiramente
focar o problema da interpretação num objecto com um estatuto
fixo, duradouro e objectivo; assim os estudos humanísticos podiam
prever a possibilidade de um conhecimento objectivamente válido,
pois o objecto em si mesmo era relativamente imutável. Segundo,
o objecto apelava claramente para modos «históricos» de com
preensão, mais do que para modos científicos; só podia compreen
der-se por uma referência à própria vida, em toda a sua histori
cidade e temporalidade. A penetração cada vez mais funda no
significado das expressões da vida apenas ocorria através de uma
comprensão histórica.
Isto trouxe como conseqüência para a teoria literária, o poder
mos de novo falar significativamente na «verdade» de uma óbra.
Como corolário, a forma não é vista em si mesma como um
elemento mas sim como um símbolo de realidades mais íntimas.
A arte para Dilthey é a expressão mais pura da vida. A grande
literatura enraíza-se na experiência vivida dos mistérios da vida;
o porquê e o como do nascimento e da morte, da alegria e da
tristeza, do amor e do ódio, do poder e da fragilidade do homem,
do seu lugar ambíguo na natureza. Como nota Bollnow «Quando
valorizamos a arte porque consegue exprimir a vida, negamos a
ideia de que a valorizamos apenas por si mesma.» f 9) Assim embora,
a obra de arte seja em si mesma um bem e o nosso encontro com
ela não seja um meio para qualquer outro fim, a obra não silencia
o homem, antes fala à sua natureza íntima, relaciona-se com algo
para além dela. Por outras palavras, a arte não é o jogo de formas
puro e sem finalidade que alguns estetas supõem; é uma espécie
de alimento espiritual que obriga as fontes da vida em que nos
movemos a ganhar expressão. No título da obra de Dilthey The
Three Epochs o f M odem Aesthetics and Its Present Task (1892)
surge como divisa a afirmação de Schiller: «Talvez que finalmente
pudéssemos desistir da busca da beleza, substituída total e com
pletamente pela busca da verdade.» (” ) A arte não é fantasia poética
("■> L 74.
(5>) Die drei Epochen der modernen Asthetik und ihre heutige Aufgabc,
GS VI.
127
nem deleite mas sim expressão da verdade da experiência vivida.
Claro que «verdade» aqui não é usada num sentido metafísico mas
como representação fiel da realidade interior.
Assim, a interpretação da obra de arte literária é colocada
por Dilthey no contexto da historicidade da autocompreensão
humana. Não só é histórica porque tem que interpretar um objecto
herdado historicamente, mas também porque tem que compreender
o objecto no horizonte da temporalidade de cada um e da posição
que cada um ocupa na história. Porque a obra expressiva envolve
a autocompreensão do homem, abre uma realidade que nem é
«subjectiva» nem é verdadeiramente «objectiva» (i. e. separada do
horizonte da nossa autocompreensão). Metodologicamente, isto
confronta a interpretação com o problema de compreendermos
o sentido de um modo exterior à dicotomização sujeito-objecto,
característico no pensamento científico.
Muito mudou em hermenêutica desde Dilthey. Notamos em
seu desfavor que não conseguiu libertar-se totalmente do cientismo
e da objectividade da escola histórica que tinha procurado ultra
passar. Hoje vemos mais claramente que a procura de um «conhe
cimento objectivamente válido» é em si mesmo um reflexo de ideais
científicos totalmente contrários à historicidade da nossa autocom
preensão. Podemos mesmo defender que a própria «vida» é uma
categoria suspeitosamente próxima do «espírito objectivo» de Hegel,
por muito que Dilthey proteste contra o idealismo absoluto e
tente fundamentar a hermenêutica em factos empíricos livres de
toda a metafísica (51). Podemos criticar o facto de Dilthey ter con
siderado a compreensão — tal como Schleiermacher — enquanto
nova experiência e enquanto reconstrução da experiência do autor,
sendo portanto análoga ao acto de criação. Porque o nosso acto
de compreensão da Nona Sinfonia de Beethoven tem certamente
características muito diferentes do acto realizado por Beethoven
ao criá-lo. A obra na sua totalidade tem impacte; os processos da
sua criação implicam um conhecimento que não precisamos ter
de modo a «compreender» o que nele é «dito».
Contudo Dilthey renovou o projecto de uma nova hermenêutica
e deu-lhe um impulso significativo. Colocou-a no horizonte da
historicidade, adentro do qual sofreu ulteriormente um conside
rável avanço. Colocou os fundamentos do pensamento de Heidegger
na temporalidade da autocompreensão. Pode com razão ser con
siderado como o pai da «problemática hermenêutica contemporâ
nea».
( n ) A defesa de Dilthey diz essencialmente: «Hegel construiu de um modo
metafísico; eu analiso o dado» (GS VII, 150), mas o princípio parece ser o
mesmo: as objectificações históricas da mente revelam o homem a si mesmo.
128
9
O CONTRIBUTO DE HEIDEGGER PARA A HERMENÊUTICA
EM SER E TEMPO
Husserl e Heidegger; dois tipos de fenomenologia
Tal como Dilthey considerou a hermenêutica no horizonte do
seu projecto de procurar uma teoria do método para as Geistes
wissenschaften historicamente orientada, também Heidegger usou
a palavra «hermenêutica» no contexto da sua busca, mais ampla,
de uma ontologia «fundamental». Poderia dizer-se que Heidegger
defendeu as pretensões de Leben contra Geist 11a tradição desses
dois grandes filósofos da vida, Nietzsche c Dilthey, mas dc um
modo diferente e a um nível diferente. Tal como Dilthey, Heidegger
queria um método que revelasse a vida nos seus próprios termos,
e em Ser e Tempo (1927) citou apavoradoramente o objectivo de
Dilthey de querer compreender a vida a partir da própria vida (').
Desde o começo que Heidegger procurou um método de ultrapassar
as concepções de Ser defendidas no Ocidente, um método que per
mitisse ir às raízes dessas concepções, uma «hermenêutica» que
lhe permitisse tom ar manifestos os pressupostos sobre os quais se
têm baseado. Tal como Nietzsche, desejava pôr em causa toda a
tradição metafísica ocidental.
Na fenomenologia de Edmund Husserl encontrou Heidegger as
ferramentas intelectuais inacessíveis a Dilthey ou a Nietzsche, e
um método que explicava os processos do ser na existência humana
de tal modo que o ser, e não simplesmente a ideologia de cada um,
pudesse tornar-se patente. Porque a fenomenologia tinha aberto
o campo de uma apreensão pré-conceptual dos fenômenos. Este
novo «campo» tinha contudo um significado totalmente novo em
Heidegger, diferente daquele que tivera em Husserl. Enquanto
Husserl o utilizara com a ideia de tornar visível o funcionamento
(») SZ 398.
129
da consciência como subjectividade transcendental, Heidegger viu
ne!e o meio vital do ser-no-mundo histórico do homem. Na sua
historicidade e temporalidade viu pistas indicativas da natureza
do ser; o ser, tal como serevela na experiência vivida, escapa às
categorias conceptualizaníes, especializantes e intemporais de um
pensamento centrado em ideias. O ser era o prisioneiro escondido,
quase esquecido, das categorias estáticas do Ocidente, que Heidegger
esperava libertar. Conseguiriam o método fenomenológico e a teoria
fenomenológica fornecer-nos meios para essa libertação?
Em parte conseguiram; mas era grande a dívida de Heidegger
para com Dilthey e Nietzsche; o tipo de busca que efectuava cri
ticando a metafísica ocidental, particularmente a ontologia, torna
va-o pouco seguro quanto ao desejo de Husserl de fazer remontar
todos os fenômenos à consciência humana, isto é, à subjectividade
transcendental. Heidegger defendia a facticidade do ser como sendo
um problema ainda mais essencial do que a consciência e o conhe
cimento humanos, enquanto que Husserl tendia a encarar a própria
facticidade do ser como um dado da consciência (2). Um ponto de
vista deste gênero, fundado na subjectividade, não fornecia o con
texto em que o tipo de crítica que Heidegger tinha em mente
pudesse ser levado a cabo com êxito. Era suficiente para uma
revisão epistemológica de longo alcance, cujas ramificações ainda
se fazem hoje sentir em muitos campos (3), mas não era em si
mesmo o que Heidegger podia usar para questionar de novo o
problema do ser.
É significativo, para uma definição de hermenêutica, que o
tipo de fenomenologia que Heidegger desenvolveu em Ser e Tempo
seja por vezes designado como hermenêutica fenomenológica (*). Esta
designação é mais do que uma subdivisão da área que Husserl tinha
em mente: pelo contrário, antes indica dois tipos de fenomenologia
muito diferentes. É grande a dívida de Heidegger para com Husserl
e são inúmeros os conceitos primitivos de Heidegger que podem
ser referidos a Husserl; colocam-se no entanto num novo contexto
e ao serviço de um objectivo diferente. Assim, seria um erro con
siderarmos o «método fenomenológico» como uma doutrina for
mulada por Husserl e usada por Heidegger para outros fins. Pelo
contrário, Heidegger repensou o próprio conceito de fenomenologia
de modo a que a fenomenologia e o método fenomenológico adqui
rissem um carácter radicalmente diferente.
Esta diferença concentra-se na própria palavra hermenêutica.
Husserl nunca a usou relativamente à sua obra, enquanto que
(J) WM 241.
(3) Ver Hcrbcrt Spiegclbcrg, The Phenomenological Movement.
(4) Como em ibid., I, 318-26, 339-49.
130
Heidegger afirmou em Ser e Tempo que a autêntica dimensfio de
um método fenomenológico o torna hermenêutico; o seu projecto
em Ser e Tempo era o de uma «hermenêutica do Dasein». A esco
lha feita por Heidegger do termo hermenêutica — uma palavra
carregada de associações, desde as suas raízes gregas até ao seu
uso moderno em filologia e teologia — sugere um desvio anticicntí-
fico fortemente contrastante com Husserl. A mesma orientação
é transposta para a «hermenêutica filosófica» de Hans-Georg Gada
mer, marcando a própria palavra com laivos de anticientismo.
As atitudes contrastantes relativamente à ciência podem ser
tomadas como a chave das diferenças existentes entre Husserl e
Heidegger. Surgem como a seqüência lógica da prática do primeiro
nas matemáticas e do segundo em teologia. Para Husserl, a filo
sofia tem que tornar-se uma «ciência rigorosa» (5) um «empirismo
mais alto»; para Heidegger, todo o rigor do mundo nunca poderá
fazer com que o conhecimento científico se torne uma meta final.
As inclinações científicas de Husserl reflectem-se na sua busca de
um saber apodítico, nas reduções que faz, na tendência em pro
curar o visualizável e o concebível através da redução eidética;
os escritos de Heidegger não mencionam virtualmente um saber
apodítico, nem reduções transcendentais nem a estrutura do ego.
Depois de Ser e Tempo Heidegger volta-se cada vez mais para a
reinterpretação dos filósofos anteriores — Kant, Nietzsche, Hegel —
e para a poesia de Rilké, Trakl, ou Hõlderlin. O seu pensamento
torna-se mais hermenêutico, no sentido tradicional de centração
na interpretação de textos. A filosofia em Husserl mantém-se
essencialmente científica, e isso reflecte-se no significado que hoje
tem para as ciências; em Heidegger, a filosofia torna-se histórica,
é uma reconstrução criativa do passado, uma forma de interpre
tação (6). Mesmo que Heidegger nunca tivesse designado por «her
menêutica» a sua análise do Dasein, mesmo assim podia ser conside
rado como um filósofo hermenêutico por excelência, pelo impacte
que teve a última fase da sua obra.
A fronteira entre os dois tipos de fenomenologia é claramente
traçada noutro problema: a historicidade (Geschichlichkeit). Husserl
tinha observado a temporalidade da consciência e fornecera uma
descrição fenomenológica do tempo interior da consciência; no
entanto, a sua ânsia em encontrar um conhecimento apodítico
levou-o a traduzir essa temporalidade nos termos estáticos e repre
sentativos da ciência — essencialmente para renegar a temporalidade
(’) Ver uma das primeiras obras de Husserl Philosophie ais slrenge Wis-
srnschaft.
(°) Os dois tipos antitéticos de interpretação que Ricoeur descreve — ré-
nilleclion du sens (desmitologização) e exercice du soupçon (dcsmitifica-
lAo) — existem em Heidegger, embora o primeiro predomine. (Ver Dl 36-44.)
131
do próprio ser e estabelecer um campo de ideias que ultrapassassem
o devir.
Assim, em 1962, Heidegger proclama que a fenomenologia de
Husserl elaborou «um padrão estabelecido por Descartes, Kant e
Fichte. A historicidade do pensamento mantém-se totalmente alheia
a esta posição» O- Ao mesmo tempo Heidegger sentiu que a sua
análise em Ser e Tempo «era, como ainda hoje penso (1962), uma
subordinação ao princípio da fenomenologia, materialmente jus
tificada» ('). A fenomenologia não precisa de ser construída como
sendo necessariamente uma revelação da consciência; pode também
ser um -meio de revelar o ser, em toda a sua facticidade e histo
ricidade. Para compreendermos o que isto significa, voltemo-nos
para a discussão que Heidegger faz da fenomenologia do § 7 de
Ser e Tempo.
A fenomenologia enquanto hermenêutica
Na secção de Ser e Tempo intitulada «O método fenomenoló
gico de investigação», Heidegger refere-se explicitamente ao seu
método como sendo uma «hermenêutica». Se nos podemos inter
rogar quanto ao significado deste facto para a fenomenologia, há
uma outra questão que é também importante para o presente
estudo: que significado tem isto para a hermenêutica? Contudo,
antes de abordarmos esta questão há que explorar a redefinição
que Heidegger dá de fenomenologia.
Heidegger remonta às raízes gregas da palavra: phainomenon
ou phainestai, e logos. Phainomenon, diz-nos Heidegger, significa
«aquilo que se mostra, o manifesto, o revelado (das Offenbare).»
Pha é semelhante ao grego phos, significando luz ou brilho, «aquilo
em que algo pode tornar-se manifesto, pode tornar-se visível» (*).
Phenomena, portanto, é «o conjunto daquilo que se revela à luz
do dia, ou que pode ser revelado, aquilo que os gregos identifica
ram simplesmente com ta onta, das Seiende, aquilo que é» (10).
Este «tornar-se manifesto» ou forma de revelar algo «tal como
é», não devia ser interpretado, diz-nos Heidegger, como uma forma
secundária de referência — como acontece quando algo «parece ser
qualquer outra coisa». Também não é um sintoma de algo que
indica um fenômeno primitivo. É antes um mostrar ou um tornar
aparente algo, tal como ele é, na sua manifestação.
O Carta a W. J. Richardson em Abril, 1962, publicada como prefácio a
TPhT XV de Richardson.
(*) Ibid.
(e) SZ 28.
0») Ibid.
132
O sufixo logia em fenomenologia, remonta, é claro à pttltt vi >«
grega logos. Logos, diz-nos Heidegger, é aquilo que 6 transmitido
na fala; portanto, o sentido mais fundo delogos é deixar que ul(jo
apareça. Não é definido por Heidegger como «razão» ou «funil»
mento» mas antes sugere a função da fala, que torna possíveis,
quer a razão quer o fundamento. Tem uma função apofânticu
aponta para os fenômenos. Por outras palavras, tem uma funçOo
de «como» visto que deixa que algo seja visto como algo.
Contudo, essa função não é livre. É uma questão de descoberta,
ou de manifestação, do que uma coisa é; trá-la para fora do escon
derijo, para a luz do dia. A mente não projecta um sentido no
fenômeno; é antes o que aparece que é uma manifestação ontoló-
gica da própria coisa. Claro que devido a uma atitude dogmática
uma coisa pode ser forçada a ser apenas encarada no aspecto que
desejamos. Mas deixar que uma coisa apareça como aquilo que é,
torna-se uma questão de aprendermos a deixá-la proceder desse mo
do, pois ele revela-se-nos. Logos (a fala) não é na verdade um poder
dado à linguagem por aquele que a utiliza, mas sim um poder
que a linguagem dá a essa pessoa, um meio que ela tem de ser
captada por aquilo que através da linguagem se torna manifesto.
Portanto, a combinação de phainestai e de logos, enquanto
fenomenologia, significa deixar que as coisas se manifestem como
o que são, sem que projectemos nelas as nossas próprias categorias.
Significa uma inversão da orientação a que estamos acostumados;
não somos nós que indicamos as coisas; são as coisas que se nos
revelam. Isto não sugere qualquer animismo primitivo, antes é
o reconhecimento de que a própria essência do conhecimento ver
dadeiro é ser orientado pelo poder que a coisa tem de se revelar.
Esta concepção é uma expressão da própria intenção de Husserl
de regressar às próprias coisas. A fenomenologia é um meio de
ser conduzido pelo fenômeno, por um caminho que genuinamente
lhe pertence.
Um método deste tipo deveria ser da maior importância para
a teoria hermenêutica, pois implica que a interpretação não se fun
damente na consciência humana e nas categorias humanas, mas
sim na manifestação da coisa com que deparamos, da realidade
que vem ao nosso encontro. Mas a preocupação de Heidegger era
a metafísica e o tema do ser. Poderia um método deste tipo acabar
com a subjectividade e com o carácter especulativo da metafísica?
Poderia aplicar-se à questão do ser? Infelizmente a tarefa compli-
ca-se pois o ser não é realmente um fenômeno mas sim algo mais
lato e indefinível. Nunca pode tornar-se verdadeiramente um
objecto para nós, dado que somos ser no próprio acto de constituir
qualquer objecto enquanto objecto.
Contudo em Ser e Tempo Heidegger encontra uma espécie de
saída no facto de cada um ter, com a sua existência, ao mesmo
tempo que ela, uma certa compreensão do que é a plenitude do ser.
Não é uma compreensão fixa, antes se forma historicamente,
acumula-se com a própria experiência de quem encontra fenômenos.
Podemos talvez interrogar o ser analisando o modo como ele apa
receu. A ontologia tem que se tornar fenomenologia. A ontologia
tem que se voltar para os processos de compreensão e de interpre
tação pelos quais as coisas aparecem; tem que descobrir o modo
e a orientação da existência humana; tem que tornar visível a estru
tura invisível do ser-no-mundo.
Como é que isto se relaciona com a hermenêutica? Significa
que a ontologia deve, enquanto fenomenolgia do ser, tornar-se uma
«hermenêutica» da existência. Mas este tipo de hermenêutica não
se identifica com uma metodologia filológica antiquada, nem mesmo
é a tal metodologia geral das Geisteswissenschaften prevista por
Dilthey. Revela o que estava escondido; não constitui uma inter
pretação de uma interpretação (que é em que consiste a explicação
de texto) mas sim um acto primário de interpretação que faz com
que uma coisa saia do seu esconderijo.
«O sentido metodológico da descrição fenomenológica é inter
pretação (Auslegung, tornar aberto). O logos de uma fenomenologia
do Dasein tem o carácter de herméneuein (interpretar), através do
qual se tornam conhecidos ao Dasein, a estrutura do seu próprio
ser e o significado autêntico do ser dado na sua compreensão (pré-
-consciente) do ser. A fenomenologia do Dasein é hermenêutica no
sentido original da palavra, que designava um trabalho da inter
pretação.» (” )
Com este impulso a hermenêutica, transformou-se em «inter
pretação do ser do Dasein» (” ). Filosoficamente, coloca as estru
turas básicas da possibilidade do Dasein; é uma «análise da existen-
cialidade da Existenz» O3), isto é, das possibilidades autênticas <me
o ser tem de existir. A hermenêutica, diz Heidegger, é aquela fun
ção anunciadora fundamental pela qual o Dasein torna conhecida
para si a natureza do ser. A hermenêutica enquanto metodologia
da interpretação dos estudos humanísticos é uma forma derivada
que assenta na função ontológica primária da interpretação e a
partir dela cresce. É uma ontologia regional que tem que se basear
numa ontologia fundamental.
Efectivamente, a hermenêutica transforma-se numa ontologia
da compreensão e da interpretação. Enquanto alguns críticos dc
Heidegger, em nome da disciplina filológica da hermenêutica, en
caram com certa inquietação esta deserção relativamente a uma
(>■) Ibid., 37.
(12) Ibid.
(” ) (Ibid., 38.
134
definição já aceite, o facto é que ela pode aprofundar c alargar n
tendência histórica de definir hermenêutica de uma formo ainda
mais lata. Porque a hermenêutica em Schleiermacher, tinlm
procurado um fundamento nas condições comuns a todo o diálogo,
e Dilthey tentara tornar a compreensão como um dos poderes do
homem, um poder pelo qual a vida encontra a vida. Contudo, a
compreensão em Dilthey não era universal; agradava-lhe a ideia dc
uma compreensão «histórica» separada de uma compreensão cien
tífica. Heidegger dá o impulso final e define a essência da herme
nêutica como o poder ontológico de compreender e interpretar, o
poder que torna possível a revelação do ser das coisas e em última
instância das potencialidades do próprio ser do Dasein.
Dizendo de outro modo: a hermenêutica ainda é a teoria da
compreensão, mas a compreensão é definida de um modo diferente
(ontologicamente).
A natureza da compreensão: como Heidegger
ultrapassa Dilthey
A compreensão (Verstehen) é um termo específico em Hei
degger, não significando o que a palavra inglesa geralmente denota,
nem aquilo que o termo significava em Dilthey. Em inglês, «com
preensão» sugere simpatia, capacidade de sentir aquilo que outra
pessoa experimenta. Falamos de um «olhar compreensivo» c com
ele sugerimos mais do que um mero conhecimento objectivo, é
como se participássemos na coisa percebida. Poder.qs ‘.cr cru grande
conhecimento e uma fraca compreensão, pois a compreensão parece
chegar ao que é essencial e, nalgumas das suas aplicações, ao que é
pessoal. Em Schleiermacher a compreensão baseava-se na afirmação
filosófica da identidade das realidades internas (Identiicitsphilosophie)
de modo que ao compreendermos vibrávamos em uníssono com quem
falava, à medida que íamos compreendendo; a compreensão tanto
envolvia fases comparativas como divinatórias. Em Dilthey, a com
preensão referia-se ao nível mais fundo da compreensão incluído
na captação de uma pintura, de um poema ou de um facto, fosse
ele social, econômico ou psicológico. Era mais do que um mero
dado, era como que a «expressão» de «realidades internas» e em
última instância da própria «vida».
Todas estas concepções de compreensão acarretam associações
totalmente estranhas à definição de Heidegger. Para Heidegger. a
compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem
de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe.
Não é capacidade ou o dom especial de sentirmos a situação de
outra pessoa, nem é o poder de captar mais profundamente o signi
ficado de «alguma manifestação da vida». A compreensãonão se
135
1
concebe como algo que se possua mas antes como um modo ou
elemento do ser-no-mundo. Não é uma entidade no mundo, antes
é a estrutura do ser que torna possível o exercício actual da com
preensão a um nível empírico. A compreensão é a base de toda a
interpretação; é contemporânea da nossa existência e está presente
em todo o acto de interpretação.
A compreensão é assim ontologicamente fundamental e anterior
a qualquer acto de existência. Um outro aspecto do problema está
no facto da compreensão sempre se relacionar com o futuro; nisso
consiste o seu carácter projectivo (Entwurfscharakter). Mas a pro-
jecção tem que ter uma base, e a compreensão está também rela
cionada com a situação de cada um (Befindlichkeit). Contudo, a
essência da compreensão não está na simples captação de situação
de cada um mas sim na revelação das potencialidades concretas do
ser, no horizonte da situação que cada um ocupa no mundo.
Heidegger usa o termo «existencialidade» (Existenzialitàt) para este
aspecto da compreensão.
Uma característica importante da compreensão tal como Hei
degger a encara, é que ela opera sempre no interior de um conjunto
de relações já interpretadas, num todo relacionai (Bewandtnisganz-
heit). Para a hermenêutica, as implicações deste facto são de longo
alcance, especialmente quando relacionadas com a ontologia de
Heidegger. Dilthey já estabelecera que a significação se referia sem
pre a um contexto de relações (Strukturzusammenhang), exemplifi
cando o princípio já conhecido de que a compreensão opera prefe
rencialmente no interior de um «círculo hermenêutico» e não na
progressão ordenada que vai das partes simples e auto-suficientes ao
todo. Contudo, a hermenêutica fenomenológica de Heidegger,
avança mais um passo; explora as implicações do círculo herme
nêutico no que respeita à estrutura ontológica de toda a compreen
são e interpretação existenciais do homem. É claro que a com
preensão não pode conceber-se como algo metafísico, acima da
existência sensível do homem, mas sim enquanto inseparável desta;
Heidegger não nega a visão de Dilthey orientada para a experiência
mas coloca-a num contexto ontológico. Isso vê-se no facto da com
preensão não ser separável da nossa disposição. Nem tão pouco a
podemos imaginar se o «mundo» ou sem a «significação». O ponto
chave em Heidegger é que a compreensão se tornou ontológica.
Um exame do conceito heideggeriano de mundo, irá clarificar este
aspecto.
O mundo e a nossa relação com os objectos no mundo
O termo «mundo» em Heidegger não significa o meio ambiente,
objectivamente considerado, o universo tal como aparece aos olhos
136
de um cientista. Está mais próximo daquilo a que poderíamos cha
mar o nosso mundo pessoal. O mundo não é a totalidade de todos
os seres mas a totalidade em que o ser humano está mergulhado;
o ser humano encontra-se rodeado pela manifestação dessa tota
lidade. Ela revela-se-lhe através de uma compreensão sempre englo-
bante, anterior a qualquer captação.
Conceber o mundo separado da pessoa é totalmente contrário
à concepção de Heidegger, pois pressupõem a separação sujeito-
-objecto que aparece no interior do contexto relacionai a que cha
mamos mundo. O mundo é anterior a qualquer separação da pes
soa e do mundo num sentido objectivo. É anterior a qualquer «objec
tividade», a qualquer conceptualização: é também anterior à .sub
jectividade, dado que tanto objectividade como subjectividade são
concebidas dentro do esquema sujeito-objecto.
Não podemos descrever o mundo tentando enumerar as enti
dades que o formam; num processo desse tipo o mundo seria igno
rado pois ele é justamente aquilo que é pressuposto em todo o
acto de conhecer uma entidade. Todas as entidades do mundo são
captadas como entidades em termos do mundo, sendo este algo já
dado. As entidades que formam o mundo físico do homem não
são o mundo mas estão no mundo. Só o homem tem mundo.
O mundo é tão englobante e ao mesmo tempo tão fechado que se
esquiva ao conhecimento. Vemos através dele, no entanto sem ele
nunca nos poderíamos aperceber da manifestação das coisas. Desa
percebido, pressuposto, englobante, o mundo está sempre presente,
transparente, iludindo as tentativas feitas para o captar enquanto
objecto.
Abre-se assim um novo campo à exploração — o mundo. Não
é de abordagem fácil, pois nem a descrição das entidades empíricas
que o constituem nem mesmo a interpretação ontológica do seu
ser individual como tal responderão ao fenômeno mundo (M). O
mundo é algo que é sentido «juntamente com» as entidades que
aparecem nele; contudo, a compreensão tem que dar-se através do
mundo. Isto é fundamental em toda a compreensão; o mundo e a
compreensão são partes inseparáveis da constituição ontológica da
existência do Dasein.
Tal como o mundo não é obstrutivo também não são obstrutivos
certos objectos do mundo com os quais diariamente nos relaciona
mos. Os instrumentos usados diariamente, os movimentos do corpo
realizados sem pensar, todos eles se tornam transparentes. Só os
notamos quando há qualquer ruptura. Na ocasião da ruptura pode
mos observar um facto significativo: o sentida dos objectos está na
relação que eles têm com uma totalidade estruturada de significados
(“ ) Ibid.. 64.
137
e de intenções inter-relacionados. Na ruptura, por um breve mo
mento, o sentido dos objectos ilumina-se, emergindo directamente
do mundo.
Como esta compreensão de um objecto difere de uma com
preensão meramente intelectual! Usando o exemplo usual de Ser
e Tempo: um martelo que se limita a estar presente é algo que
pode ser pesado e catalogado relativamente às propriedades de
outros martelos; um martelo partido mostra imediatamente o que
um martelo é (15). Esta experiência sugere um princípio hermenêu
tico: que o ser de algo se revela, não ao olhar analítico e contem
plativo mas no momento em que bruscamente sai da penumbra
ingressando no contexto plenamente funcional do mundo. De igual
modo, captaremos melhor as características da compreensão, não
através de um catálogo analítico dos seus atributos, nem no
decurso do seu funcionamento adequado mas sim quando há qual
quer ruptura, quando esbarra contra uma parede, talvez quando
lhe falta algo que deveria ter.
A significação pré-predicativa, compreensão
e interpretação
O fenômeno da ruptura que por momentos esclarece o ser de
um instrumento enquanto instrumento, aponta, como acabámos de
ver, para um «mundo» em grande parte imperceptível, no qual vive
mos. Este mundo é mais do que apenas o campo das operações
pré-conscientes da mente aquando da percepção; é o campo em
que as actuais resistências e as possibilidades da estrutura do ser
moldam a compreensão. É o campo onde a temporalidade e a his
toricidade do ser estão radicalmente presentes, é o lugar em que o
ser se traduz em significação, em compreensão e interpretação.
Numa palavra, é o campo do processo hermenêutico, processo pelo
qual o ser se tematiza enquanto linguagem.
Como foi dito, a compreensão actua numa fabricação de
relações (Bewandnisganzheit). Heidegger inventou o termo «signifi
cação» (Bedeutsamkeit) para designar a base ontológica que permite
compreender essa fabricação de relações. Como tal, forneceu às
palavras a possibilidade ontológica de terem um significado pleno
de sentido; é a base da linguagem. Com isto Heidegger prova que
a significação é algo mais fundo do que o sistema lógico da lin
guagem, funda-se sobre algo anterior à linguagem — e que se insere
(ls) Ibid., 69. WB Macomber vê o martelo partido como uma imagem
clrnvc do pensamento de Heidegger; ver o seu esclarecedor estudo The Ana-
lomy of Disitlusion sobre a noção heideggeriana de verdade.
138
no inundo — a totalidade relacionai Por muito que as palavras
possam moldar ou produzir sentido, apontam sempremais além
do que o seu próprio sistema, para uma significação que já reside
na totalidade relacionai do mundo. A significação portanto, não é
algo que o homem dê a um objecto; é aquilo que um objecto dá
ao homem, fornecendo-lhe a possibilidade ontológica das palavras
e da linguagem.
A compreensão tem que ser vista inserida neste contexto, e a
interpretação é simplesmente tornar explícita a compreensão. A in
terpretação não é pois uma questão de imprimir valor a um objecto
isolado, pois aquilo que encontramos surge como já visto numa rela
ção particular. Mesmo na compreensão, as coisas no mundo são
vistas como isto ou como aquilo. A palavra como explicita-se pela
interpretação. O fundamento da compreensão é anterior a toda a
afirmação temática. Heidegger di-lo resumidamente: «Toda a visão
simplesmente pré-predicativa do mundo invisível do que está ‘íi
mão’ e iá em si mesma uma visão ‘compreensiva interpreta-
tiva’.» (16)
Quando a compreensão se torna explícita como interpretação,
como linguagem, entra em acção um outro facto extra-subjectivo,
pois «a linguagem já esconde em si mesma um modo elaborado dc
ideação», uma «maneira de ver já moldada» (17). A compreensão c
a significação conjuntamente constituem, a base da linguagem e da
interpretação. Em trabalhos posteriores dá-se ainda mais ênfase à
relação entre linguagem e ser, de modo a considerar o próprio ser
como lingüístico: Heidegger nota por exemplo, cm «Introdução à
Metafísica» que «as palavras e a linguagem não são envólucros com
que se embrulham as coisas para o comércio daqueles que escrevem
e falam. É pelas palavras e pela linguagem que as coisas ganham
ser e existem» (’*). Este é o sentido em que devemos interpretar a
afirmação muito comum de Heidegger, «A linguagem e a casa do
ser» (” ).
Assim a compreensão tem uma certa «estrutura prévia» que
actua em toda a interpretação. Isto torna-se muito evidente na
análise que Heidegger faz da pré-estrutura trifacetada da compreen
são. Não precisamos de a expor aqui, visto que o seu carácter e
('*) «Alies vorprãdikative schlichte Sehen des Zunhandcnen ist an ihm
selbst schon vertstehend-auslegend» (SZ 149).
(’7) «Die Sprache je schon eine ausgebildete Begrifflichkeit in sich birgt»
(ibid., 157).
('*) IM 13.
(») p l — BH 53. A Carta começa na p. 53; assim, as citações das pági
nas anteriores são de PL e as posteriores de BH.
significado essenciais estão implícitos no que já dissemos sobre o
mundo e sobre a significação (20).
A impossibilidade de uma interpretação
sem pressupostos
A estrutura prévia da compreensão, sempre interpretada e inse
rida no mundo, ultrapassa o modelo mais antigo da situação inter-
pretativa em termos de sujeito-objecto. De facto, levanta graves
questões à validade básica de uma descrição interpretativa em ter
mos da relação sujeito-objecto. Também levanta questões ao que
devemos entender por interpretação objcctiva, ou «interpretação
sem pressupostos». Heidegger coloca a questão de um modo claro:
«A interpretação nunca é a captação sem pressupostos de algo pre
viamente dado.» (J1)
A esperança de uma interpretação «sem preconceitos e sem
pressupostos» desapareceu ultimamente, face ao modo como a com
preensão opera. O que aparece do «objecto» é o que deixamos que
apareça, é aquilo que a tematização do mundo actuante na com
preensão, traz à luz. Seria ingênuo pretender que «o que ali está
realmente» é «auto-evidente». A própria definição de auto-evidência
assenta num corpo de pressupostos que passam despercebidos, mas
que estão presentes em toda a construção interpretativa feita pelo
intérprete «objectivo» e sem «pressupostos». É este corpo de pres
supostos já dados e admitidos que Heidegger põe a nu na análise que
faz da compreensão.
Na interpretação literária, tal facto significa que o intérprete
mais «destituído de pressupostos» de um texto de poesia lírica tem
já posições prévias. Mesmo quando aborda um texto, pode já tê-lo
considerado como um certo tipo de texto, digamos, como um texto
lírico, e assim coloca-se logo na posição que considera adequada
a um texto desse tipo. O seu encontro com a obra não se dá num
contexto exterior ao tempo e ao espaço, exterior ao seu próprio
horizonte de experiências e de interesses; dá-se sim num tempo
e num lugar determinados. Por exemplo, há uma razão pela qual
se voltou para este texto e não para outro qualquer, e assim aborda
o texto colocando-lhe perguntas, e não em branco.
É pois importante lembrarmo-nos que, a pré-estruturação da
compreensão não é simplesmente uma propriedade da consciência
C2») Ver SZ 150-53, esp.: «Die Auslegung von Etwas ais Etwas wesenhaft
durch Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff fundiert» p. 150; e «Sinn ist das durch
Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff (a estrutura tri-facetada da pré-compreensão)
strukturierte Woraufhin des Entwurfs, aus dem her etwas ais etwas verstàndlich
wird» (p. 151).
C1) Ibid.. 150.
140
que se coloca diante de um mundo já dado. Considerar as coisas
deste modo seria cair no modelo interpretativo do sujeito-objecto,
que a análise de Heidegger transcende. A estrutura prévia assenta
preferentemente, no contexto do mundo que já contém sujeito e
objecto. Heidegger descreve a compreensão e a interpretação de
modo a colocá-las anteriormente à dicotomia sujeito-objecto.
Discute como é que as coisas começam a ser vistas através do signi
ficado, da compreensão e da interpretação. Discute aquilo a que
poderíamos chamar a estrutura ontológica da compreensão.
A hermenêutica, como teoria da compreensão, é consequente
mente uma teoria da revelação ontológica. Pois a existência humana
é em si mesma um processo de revelação ontológica. Heidegger
não permite que encaremos o problema ontológico separadamente
da existência humana. A sua análise junta a hermeneutica à onto
logia existencial e à fenomenolog.ia e aponta para um fundamento
da hermenêutica que não se baseia na subjectividade mas na facti
cidade do mundo e na historicidade da compreensão.
O carácter derivativo das asserções
Uma conseqüência ulterior das considerações que temos vindo
a abordar e de considerável importância hermenêutica está na
discussão que Heidegger faz das asserções lógicas — e, extensiva
mente, da própria lógica. Para Heidegger um «juízo» (Aussage)
não é uma forma fundamental de interpretação; ele assenta cm
operações anteriores de compreensão e de interpretação da — com
preensão — prévia. Sem eles, as asserções não teriam sentido.
Heidegger dá um exemplo: «O martelo é pesado.» Na própria
asserção, diz ele, já actua um determinado modo de concepção,
o modo lógico. Antes de qualquer interpretação ou análise real
mente visíveis, a situação foi estruturada em termos lógicos para
se adequar à estrutura de uma asserção. O martelo foi já interpre
tado como uma coisa com propriedades, neste caso o peso. A estru
tura da frase, na asserção, com o seu modelo de sujeito, cópula e
adjectivo predicativo, colocou logo o martelo diante de nós, como
um objecto, como algo que possui propriedades.
Mas os processos fundamentais de interpretar o mundo não
ocorrem nas asserções lógicas e nos juízos teóricos. Muitas vezes
as palavras estão ausentes, como quando pegamos num martelo
e o pomos de parte, sem palavras. Isto é um acto interpretativo
mas não é uma asserção. Continuando com o exemplo do martelo
Heidegger interroga-se como é que surge uma asserção:
«O martelo que possuímos no ‘pré-adquirido’ está à mão como
ferramenta. Quando o seu ser se torna ‘objecto’ de uma asserção,
com a própria construção da asserção dá-se uma mudança no ‘pré-
141
-adquirido’. A tendência imediata para pensar ‘com quê’ torna-se o
‘sobre quê?’ de uma asserção referencial. A visão do objecto na
pré-compreensão centra-se agora no manipulável deste estar à mão.
E o ‘estar à mão’enquanto tal, passa a esconder-se.» (2!)
A revelação do martelo como objecto, é simultaneamente uma
ocultação do martelo como instrumento. O martelo como objecto
é arrancado do seu contexto vivo, e a sua essência como instru
mento que pode martelar, é escondida.
O exemplo do martelo pode ser usado para clarificar a distinção
de Heidegger entre as formas «apofânticas» e «hermenêuticas» da
palavra «como». No contexto de «estar à mão», o martelo desa
parece como objecto sendo substituído pela função que tem como
instrumento; não o abordamos como um objecto mas como um
instrumento. O «como» que se limita a apresentar o martelo como
um objecto à mão, como algo que se apresenta ao nosso olhar e
para o qual apontamos, é o «como apofântico». O martelo que desa
parece na sua função como instrumento representa o «como-exis-
tencial-hermenêutico». O «como apofântico» assinala uma mudança
subtil na compreensão, encaminhando-a para um estádio de designa
ção objectiva, uma designação que já não relaciona o martelo com
a totalidade primordial de um contexto vivo, relacionai (o Bewand-
tnisganzheit); corta-o do campo da significação no «estar à mão» e
coloca o fenômeno à nossa frente, como algo que apenas pode
mos ver.
Heidegger exige que avancemos para um «como» mais original.
«Devíamos examinar com mais cuidado» diz ele, «o que Aristóteles
pretendia com ‘unir e separar’ na unidade que ambos formam, e
ao mesmo tempo, atender ao fenômeno de qualquer coisa como
qualquer coisa.» (” ) De acordo com esta estrutura, tomamos con
juntamente uma coisa e outra a partir da qual a primeira é com
preendida, de modo a que a interpretação e a articulação formem
uma unidade. Destruir a unidade original e ignorar o «como» mais
original, abre caminho a uma mera «teoria do juízo» (Uhrteilstheo-
rie), uma teoria que considera as asserções como mera ligação e
separação de ideias e conceitos, uma teoria que se mantem ao nível
superficial das realidades objectivas, «à mão» (M). Afirmar o «como-
-existencial-hermenêutico» primordial, é reconhecer que as asserções
derivam todas de um nível anterior de interpretação, enraizando-se
todas elas nesse nível. É ver que as asserções só têm sentido quando
consideradas nas suas raízes existenciais.
Verificamos a importância desta distinção ao examinarmos o
modo como actualmente a linguagem é tratada nas «ciências» da
(“ ) Ibid., 157-8.
(” ) Ibid.. 159.
(«) Ibid.
142
linguagem. Isto torna-se especialmente evidente se alentarmos como
são insuficientes todas as definições de linguagem que se mantêm
ao nível das asserções e da lógica, ou que adoptam uma visão ins
trumental da linguagem como mera consciência manipuladora dc
juízos e de ideias. Porque o verdadeiro fundamento da linguagem
ê o fenômeno da fala, onde algo se revela; esta ê a função (herme
nêutica) da linguagem. Considerando a fala como ponto de partida,
remontamos ao evento em que a palavra funciona como palavra,
remontamos ao contexto vivo da linguagem. Gerhard Ebeling repete
a perspectiva de Heidegger quando diz: «A própria palavra tem
uma função hermenêutica.» (” ) Dc facto, a função hermenêutica
primordial da linguagem torna-se um factor central no último Hei
degger e na Nova Hermenêutica Teológica. Esta visão da linguagem
significa que a compreensão, mais uma vez como Ebeling a con
sidera, «não é compreensão da linguagem mas compreensão através
da linguagem» ("). Nunca é demais o valor teológico atribuído a
esta perspectiva; pois ela restaura a ênfase dada à função da fala (” )•
A linguagem como fala deixa de ser um corpo objectivo de
palavras que manipulamos como objectos; toma o seu lugar no
mundo «do que está à mão». É claro que pode passar para a objec
tividade daquilo que está diante de nós como um mero objecto,
mas essencialmente, a linguagem é encontrada pelo homem como
algo «à mão», transparente, contextual.
Contudo, a linguagem como fala não deve ser encarada como
expressão de uma «realidade interior». É uma situação que se torna
explícita nas palavras. Mesmo a linguagem poética não é um
veicular de pura interioridade, mas um partilhar do mundo. Como
revelação do ser no mundo e não daquele que fala, não é nem um
fenômeno subjectivo nem um fenômeno objectivo, é simultanea
mente ambos, pois o mundo é anterior a ambos e engloba ambos.
(“ ) WF 318; NH 93-94.
( J') Ib id .
(Jr) Ver cap. 2 sobre o significado de hermeneuin «como dizer» ou «anun
ciar». Heidegger acentua esta dimensão primordial. Ver também Gerhard Ebeling
Theology and Proclamation onde a palavra «proclamação» tem este significado.
143
10
O ÜLTIMO CONTRIBUTO DE HEIDEGGER PARA A TEORIA
HERMENÊUTICA
Mesmo que Heidegger não tivesse escrito mais nada depois de
Ser e Tempo, o seu contributo para a hermenêutica teria sido
decisivo pois nessa obra ele coloca o problema da compreensão num
contexto radicalmente diferente. Como modo fundante de existir,
transcende os limites definicionais em que Dilthey o colocara ao
concebê-lo como a forma histórica contra a forma científica da
compreensão. Heidegger foi mais longe defendendo que toda a
compieensão é temporal, intencional, histórica. Ultrapassou con
cepções anteriores ao encarar a compreensão, não como um pro
cesso mental mas como um processo ontológico, não como um
estudo de processos conscientes e inconscientes mas como uma
revelação daquilo que é real para o homem. Antes dele, aceitávamos
simplesmente como certa a definição prévia daquilo que era real,
e só depois perguntávamos como é que os processos mentais colo
cavam essa realidade; ora Heidegger veio provar que a compreensão
é um passo prévio indicativo do acto de «fundamentação — revela
ção» da realidade, com o qual se completa a definição anterior.
Um dos últimos temas de Heidegger é o esforço para ultrapassar o
facto que funda a realidade, facto sobre o qual hoje se tematiza o
próprio ser.
«Todo o grande poeta faz poesia a partir de um só poema» diz
Heidegger em Unterwegs zur Sprache (l) e dado que o fenômeno
originário é essencialmente poético, todo o grande pensador enuncia
um único pensamento que se mantém como algo nunca totalmente
dito. Num certo sentido, podemos considerar os últimos escritos de
Heidegger como uma série de notas de rodapé a Ser e Tempo,
tentando continuamente a mesma procura de acesso ao ser, apro
fundando e tornando mais radicais as intuições da sua obra-prima.
0) US 37.
145
Transforma-se talvez no filósofo mais poético e mais hermenêutico
desde Platão; contudo, a busca essencial do seu pensamento não
sc altera, apenas se revela mais plenamente. De facto, ao com
preendermos a focalização de Heidegger na compreensão e suas
articulações, compreendemos também porque é que os últimos escri
tos se preocuparam com o «pensamento» e por que razão Heidegger
define o pensamento em termos de resposta, mais do que de mani
pulação de ideias. É usual considerar uma «viragem» no pensamento
de Heidegger. Contudo o seu pensamento quando considerado de um
ponto dê vista actual, é constituído por uma só peça. Ser e Tempo
é o soio a partir do qual se desenvolve a última fase do seu pen
samento. Do início ao fim da sua obra, Heidegger preocupa-se com
o processo hermenêutico, pelo qual o ser se revela. Isto foi abor
dado em Ser e Tempo como uma fenomenologia do Dasein e tor-
nou-se, em obras subsequentes, numa exploração do não ser, da
própria palavra ser, de concepções quer gregas quer actuais de ser,
de verdade, de pensamento e de linguagem. É um facto aceite que
Heidegger se tornou mais poético, obscuro e profético nos seus
últimos escritos, mas que a revelação do ser se mantem nele como
um tema cons'.ante.
Nos últimos escritos, o carácter hermenêutico do pensamento
de Heidegger apresenta outras orientações mantendo-se no entanto
hermenêutico, tornando-se mesmohermenêutico, no sentido de se
preocupar com a exegese. A temática é ainda «como foi que o ser
se tornou compreendido» e «corno foi que se articulou em termos
estáticos e essencialistas», mas o objecto da interpretação afasta-se
de uma descrição geral do contacto quotidiano do Dasein com
o ser, enveredando pela metafísica e pela poesia. Cada vez mais se
volta para a interpretação de textos; na história da filosofia oci
dental, poucos pensadores deram tanta importância, no interior da
sua filosofia, à exegese dos textos, especialmente à exegese dos
fragmentos antigos. E mesmo que Heidegger não tivesse dado o
contributo filosófico fundamental que deu à teoria da compreensão
no seu Ser e Tempo, poderia no entanto continuar a ser designado
como o mais hermenêutico dos filósofos ocidentais.
Talvez que esta abordagem se deva à natureza intrinsecamente
hermenêutica da tentativa de lidar com o «ser» se este for abordado
no contexto do processo de compreensão, pelo qual as coisas se
revelam. E torna-se mais hermenêutico se quisermos ultrapassar o
«texto» do pensamento ocidental, indo para os problemas que deram
origem a essa tradição. Então, dá-se a tentativa de destacar o sen
tido oculto do texto, não nos basta a exploração de um sistema nos
seus próprios termos. É isto que Heidegger tenta fazer dando-nos
simultaneamente a sua própria perspectiva quanto à posição cor
recta da hermenêutica no que respeita ao homem, na relação que
este tem com o ser e com a tradição. Uma exposição pormenorizada
146
do pensamento do último Heidegger ultrapassaria o âmbito «IchIc
capítulo O ; no entanto focaremos resumidamente nas restantes sei
ções alguns temas fundamentais e o significado que tiveram para n
teoria hermenêutica.
Crítica ao pensamento apresentacional, subjectismo
e terminologia
Heidegger em Ser e Tempo tinha já sugerido a orientação das
suas últimas críticas ao pensamento apresentacional, na discussão
que faz do carácter derivado das «asserções» enquanto tendentes a
apresentar as coisas como algo para que olhamos. Aí mostra como,
no interior da estrutura prévia da compreensão, a visão do objecto
tende subtilmente a ordenar-se segundo as exigências do pensamento
lógico e conceptual, e como por exemplo um martelo é arrancado
ao seu contexto vital das (Zuhandene) e colocado no campo abs-
tracto do pensamento apresentacional. Em escritos posteriores, Hei
degger tenta sintetizar como é que o pensamento ocidental chegou
à definição de pensamento, de ser e de verdade em termos essen
cialmente apresentacionais.
Em «A doutrina da verdade em Platão» Heidegger aborda a
famosa alegoria da caverna. Em todos os seus aspectos a alegoria
sugere que a verdade é desocultação, pois saímos da caverna, para
a luz, e regressamos à caverna; mas a concepção de verdade como
«correspondência» acabou por predominar sobre a concepção mais
dinâmica da verdade como desocultação. A verdade transformou-se
em visão correcta e o pensamento transformou-se numa questão de
colocação de ideias face à visão da mente, isto é, transformou-se
em manipulação adequada de ideias.
Com esta visão do pensamento e da verdade, armou-se o palco
para todo o desenvolvimento da metafísica ocidental, para a abor
dagem teórica da vida — ideologicamente, em termos de ideias:
«A essência da ideia reside na aparência e na visibilidade. Isto
leva a que se realize plenamente em cada ser, a presença do ‘quid’
que cada ser é. Apresenta-se na ‘quiddidade’ do ser. A natureza do
ser é considerada contudo como sendo o estar ‘presente’. Por essa
razão, o ser para Platão tinha a sua natureza mais autêntica ‘aquilo
que é’. Uma terminologia posterior diz-nos que a quidditas é o ver
dadeiro esse; a essência e não a existência. Assim, aquilo que se
(r) Ver no entanto The Anatomy of Desillusion de W. B. Macomber,
assim como a discussão detalhada que Richardson faz em TPhT; também reco
mendamos vivamente a obra (em alemão) de Otto Poggeler Der Denkwtg
Martin Heideggers. Em inglês, há discussões interessantes cm Koclcclmnn,
Langer, Versényi e outros, citados na bibliografia.
147
torna visível enquanto ‘ideia’ para aquele que contempla, é a reve
lação da coisa tal como aparece. Assim, a coisa revelada é desde o
começo (e apenas) captada como aquilo que se percebe quando
percebemos a ideia de algo, aquilo que é conhecido no acto de
conhecer.» (’)
Heidegger sustenta que, à medida que tudo se ordena de acordo
com a concepção das ideias e com a ideação, e, mais importante
ainda, de acordo com o conceito de razão, vai-se perdendo a con
cepção primitiva da verdade como revelação. O homem ocidental
já não sente o ser como algo que constantemente aparece e desa
parece do seu alcance; antes o vê sob a forma da presença estática
de uma ideia. A verdade torna-se algo que se vê: «orthotes, correcção
da percepção e da asserção» O . Isto significa que o pensamento
que visa a verdade, não se fundamenta na existência mas sim na
percepção de uma ideia: o ser não é concebido em termos de expe
riência vivida mas em termos de ideia — estaticamente, como pre
sença constante e atemporal.
Poder-se-ia dizer que o ocidente construiu a metafísica e a
teologia sobre esse rochedo. Logo em 1921, nas suas conferências
(não publicadas) sobre Augustinus und der Neuplatonismus, Hei
degger traça o conflito patente no livro X das Confissões, entre
um cristianismo que surge da facticidade da experiência vivida,
cuja realização não está tanto no conhecimento de Deus como no
viver n ’Ele, e um cristianismo orientado para a «fruição» de Deus
como o Summum bonum (i. e. a ideia de fruitio Dei). Esta última
concepção do Ser e da vivência de Deus, mais estática e apresen-
tacional, liga-se directamente ao neo-platonismo. Quando a expe
riência de Deus é definida como fruitio Dei, e quando Deus é fruído
com a «paz» que cala a inquietude do coração, então Ele é colo
cado fora do fluxo da vida, factual e histórica, e a Sua vitalidade
enquanto Deus da experiência vivida é silenciada. Já não é o Deus
vivo, temporal, finito, disponível. Está meramente «disponível»
para ser contemplado e fruído; Deus torna-se um Ser Eterno fora
e acima do tempo, do lugar e da história (s).
Numa conferência realizada em Junho de 1938, intitulada «A
fundamentação da imagem moderna do mundo pela metafísica»,
Heidegger traça as conseqüências que teve esta abordagem geral da
verdade e do pensamento quando unida com a perspectiva carte-
siana, pois com Descartes, o pensamento ocidental sofre uma nova
e decisiva viragem. A verdade para Descartes, é mais do que mera
adequação entre aquele que conhece e o que é conhecido, é a cer-
(s) PL-BH 35.
(«) Ibid. 42.
(") 1’oggclcr, pp. 38-45; Ho 338-39.
148
teza racional que o sujeito tem desta adequação. Tal facto, tiu/
como conseqüência o facto de o sujeito humano ser considerado
como o último ponto de referência no que se refere ao estatuto dc
tudo aquilo que é visto. Isto significa que cada ser apenas o 6 cm
termos da polaridade sujeito-objecto entre a consciência e os objei
tos da consciência. Aquilo que é conhecido não é visto, em última
instância, como uma entidade ontologicamente independente que se
apresenta tal qual «é», revelando-se-nos e manifestando-se-nos no
poder que tem de existir; aquilo que é conhecido antes é encarado
como objecto, como algo que o sujeito consciente apresenta a si
próprio. Porque o estatuto do mundo se fundamenta na subjectivi
dade humana passa a centrar-se no sujeito, e a filosofia passa a
centrar-se na consciência. A este síndroma chama Heidegger o «sub-
jectismo» moderno (Subjektitãt) (').
Subjectismo é um termo mais lato do que subjectividade pois
significa que o mundo é considerado como sendo essencialmente
medido pelo homem. Nesta perspectiva o mundo tem sentido ape
nas relativamente ao homem,cuja tarefa é dominar o mundo. São
muitas as conseqüências do subjectismo. Em primeiro lugar as ciên
cias ganham relevo pois servem a vontade de domínio presente no
homem. Contudo, dado que no subjectismo o homem não reconhece
qualquer meta ou sentido que não estejam fundamentados na sua
própria certeza racional, fica fechado no círculo do próprio mundo
em que se projecta. Os objectos de arte são vistos como «objectifi-
cações» da subjectividade, ou como «expressões» da experiência
humana. Uma cultura só pode ser a objectificação colectiva daquilo
que os sujeitos humanos valorizam, uma projecção da actividade
sem fundamento do homem. Nem a actividade cultural nem a
actividade individual humanas podem neste contexto ser encaradas
como resposta à actividade de Deus (ou do Ser), dado que tudo
tem fundamento no homem. Em última instância, mesmo Deus é
redefinido como «o infinito, incondicionado e absoluto» e o mundo
é dessacralizado; a relação do homem com Deus é vista como sendo
meramente a sua «experiência religiosa» particular. Enquanto a
(') Subjectismo distingue-se de subjectivismo pois constitui quer a objecti
vidade do objecto quer a subjectividade do sujeito. A subjectividade implica
necessariamente que o ego humano seja o sujeito que se apresenta e esta subjec
tividade é a forma que toma o subjectismo em Descartes. Mas Heidegger vê o
subjectismo como residindo em toda a posição filosófica que toma o fenômeno
humano como o seu último ponto de referência, seja ele o colectivismo, o abso-
lutismo ou o individualismo, O subjectismo está latente na interpretação pla
tônica do ser, dado que uma ideia é algo visto por alguém. Mas com Descartes
a situação explicita-se — o homem não é aquele que recebe emanações do ser
que lhe é anterior (i. e., o homem já não é uma criatura); ele 6 antes um
ser criador, o fundamento de um mundo que ele próprio forma e projecta.
Ver TPhT 320-30.
149
antiga concepção da fruitio Dei purificava Deus colocando-o fora
do fluxo da vivência quotidiana, o subjectismo faz de Deus uma
projecção do homem, considerando a relação com Ele como sendo
um sentimento humano de dependência O-
As modernas «filosofias dos valores» não são mais do que con
seqüências da metafísica do subjectismo. Os valores são conceitos
substitutivos que pretendem completar «coisas» (agora que o seu
valor se fundamenta subjectivamente) com o sentido que perderam
ao colocarem-se no contexto do subjectismo. Perdeu-se o sentido da
sacralidade das coisas, com ou sem o homem; o estatuto das coisas
reduziu:se à utilidade que têm para o homem. Quando o homem
«atribui» valor aos objectos, filosoficamente falando há apenas uma
pequena distância relativamente à visão dos próprios valores en
quanto objectos. Um valor é então algo que se coloca sobre os
objectos no mundo, como se fosse uma camada de tinta. A ciência
e o humanismo transformam-se em divisa, numa idade em que o
homem é verdadeiramente o centro e a medida de todas as coisas.
Como definir o pensamento num contexto deste tipo? Nova
mente em termos apresentacionais que remontam a Platão. Como
conceber a verdade? Em termos de correcção, de certeza de que
o juízo sobre algo corresponde ao modo como o objecto se nos apre
senta. Esta apresentação não pode ser realmente uma auto-reve-
lação de algo, pois é captada pelo sujeito nesse acto de poder exces
sivo que é a objectificação. Por conseqüência, diz-nos Heidegger,
os grandes sistemas metafísicos tornam-se expressões da vontade,
quer formulados em termos de razão (Kant), liberdade (Fichte),
amor (Schelling) quer em termos de vontade de poder (Nietzsche) (*).
A vontade de poder que se fundamenta no subjectismo não
conhece qualquer valor absoluto, apenas tem sede de um poder
cada vez maior. Nos tempos que correm, expressa-se num desejo
frenético de domínio tecnológico. No entanto, o impacte do pen
samento tecnológico é mais subtil e universal, pois temos vindo
gradualmente a considerar o próprio pensamento em termos de
domínio. O pensamento torna-se tecnológico, molda-se às exigên
cias de conceitos e de ideias que permitirão um controle sobre os
objectos e sobre a experiência. Pensar já não é uma questão de
resposta directa ao mundo, antes se coloca como tentativa incons
ciente para o dominar; o pensamento não se mantém nem actua
como protector dos ricos da terra, antes esgota o mundo ao tentar
recstruturá-lo de acordo com as finalidades do homem. Um rio, por
exemplo, deixa de ter valor intrínseco e o homem orienta o seu
curso para satisfazer os seus objectivos, construindo grandes bar-
C7) Ho 70.
(•) VA 114-122; TPhT 381.
150
rager.s e descarregando nele resíduos venenosos. Os deuses 1'unirum
e a terra está a ser implacavelmente consumida. É assim que se
gundo Heidegger se dá o desenlace melancólico do desenvolvimento
do pensamento desde Platão, passando por Descartes e Nietzsche
até aos nossos dias.
A hermenêutica como teoria da compreensão e da interpretado
é directamente afectada por essas considerações, pois quando o pro
blema interpretativo é abordado no interior do contexto do pensa
mento tecnológico, a interpretação fornece meios para um domínio
conceptual do objecto. Quando o pensamento é definido como mani
pulação de ideias e de conceitos, deixa de ser criativo passando a
ser manipulatório e inventivo. Quando o subjectismo se coloca na
base da situação interpretativa, o que é ser interpretado senão uma
objectificação? O conceito de verdade como adequação enquadra-se
Icgicameníe nestas abordagens, e a verdade torna-se mera «cor-
recção».
Portanto, para a teoria da interpretação, é muito diferente con
ceber o pensamento em termos estritamente ideacionais pois assim
interpretação não lida com uma matéria desconhecida que tem que
ser clarificada mas sim com a clarificação e a avaliação de dados
já conhecidos. A sua tarefa não é uma primeira «revelação» da
coisa mas sim chegar à interpretação correcta, entre as várias pos
síveis. Tais pressupostos tendem a manter-nos sempre na claridade
daquilo que já é conhecido, em vez de construir uma ponte entre luz
e escuridão. A linguagem passa a ser concebida como um sistema
de signos aplicados a um conjunto de objectos já conhecidos.
Ora para Heidegger, todo este conjunto de definições — de lin
guagem, de verdade, de pensamento — e os conceitos de com
preensão e de interpretação que sobre ele se constrói, representam
uma tematização da doutrina platônica da verdade. Desde Platão
que o pensamento ocidental e especialmente a metafísica, repre
sentam o «texto» desta tematização. Heidegger considerou que a sua
tarefa hermenêutica seria interpretar esse texto, procurando ver o
que estaria por trás dele. Em Kant, Hegel e Nietzsche, Heidegger
encontra aspectos da antiga abordagem que os Gregos fizeram à ver
dade como desocultação. As pretensões dos Gregos são defendidas
sucintamente tornando-se depois obscuras e perdendo-se. Portanto,
desde o início que Heidegger definiu a sua tarefa filosófica em
termos essencialmente hermenêuticos. Neste contexto a hermenêu
tica não significa simplesmente uma interpretação em termos de
correcção e de concordância; a hermenêutica continua com as suas
teses tradicionais mais fundas ao querer descobrir um significado
cscondido, ao querer esclarecer o que é desconhecido: a revelação
é desocultação. Assim, quando Heidegger «interpreta» Kant não se
limita a dizer o que o autor pretendeu pois proceder desse modo
xeria parar no ponto exacto em que deve começar a verdadeira
1S1
interpretação. Heidegger antes se interroga sobre o que o texto não
disse, perguntando porque é que Kant fez certas revisões entre a
primeira e a segunda edição da Crítica da Razão Pura. Vai para
além do texto, interrogando-se sobre o que é que o autor não disse
e não podia dizer e que no entanto apareceno texto como sendo
a sua mais íntima dinâmica (*)• O texto final, acabado, não é o
único objecto de interpretação. Preocupam-no sim, a violência e a
luta que actuaram na criação do texto.
Isto traz à hermenêutica, duas conseqüências já tradicionalmente
familiares: 1) violentar o texto e 2) compreender melhor o autor
do que ele se compreendeu a si próprio. Quando a verdade é con
cebida como algo que simultaneamente emerge e de novo se esconde,
quando o acto hermenêutico coloca o intérprete na fronteira de um
vazio criativo a partir do qual a obra emergiu, então a interpretação
tem que ser criativamente aberta ao que ainda não foi dito. Porque
«o nada» é o pano de fundo criativo de toda a criação positiva;
contudo, esse nada só é significativo no contexto do ser, na sua
positividade. Quando a obra de arte é considerada, não como uma
objectificação da subjectividade humana mas como uma revelação
do ser, ou como uma janela para um domínio sagrado, então o
encontro que com ela temos é como que receber uma dádiva, não
mais é o acto de um sujeito que capta a sua subjectividade.
A interpretação de uma grande obra não é pois um exercício
arqueológico nem a tentativa, comum ao humanismo, de tomar os
Gregos como modelo de vida. É antes uma repetição e uma recupe
ração do facto original da desocultação. Tenta penetrar nas cama
das acumuladas de interpretação errônea (Heidegger adora «polir»
palavras até que o seu esplendor original volte a brilhar) e ocupar
um lugar no centro daquilo que é dito e daquilo que não é dito.
Contudo, não é um simples regresso ao passado mas sim um novo
facto de desocultação; tentar ressuscitar Kant tal como ele era,
seria uma restauração idiota. Assim, toda a interpretação tem que
violentar as formulações explicitadas no texto (10). A recusa em
ultrapassar uma mera explicitação do texto é realmente uma forma
de idolatria bem como de ingenuidade histórica.
Será que podemos compreender o autor melhor do que ele se
compreendeu a si próprio? Não, porque o autor estava no pleno
domínio das considerações que animaram a sua composição; não
compreendemos melhor o autor; compreendêmo-lo de um modo
diferente. Em Uriterwegs zur Sprache na célebre conversa com um
japonês, Heidegger explica que o seu objectivo é «pensar o pensa
mento grego de um modo profundamente grego» (“ )• Perguntam-lhe
(“) KPM 181; na tradução inglesa., 206.
(">) KPM 181-83; trad. inglesa 206-8.
(") US 134.
152
se isto significa compreender os Gregos melhor do que c l c x so iom
preenderam a si próprios. Não, não é tanto isso como também rctn
mar àquilo que foi pensado. Heidegger quer penetrar no pano do
fundo do pensamento grego, tal como ele surgiu: no vazio criativo
e no não ser que estão por detrás da sua emergência positiva podr
estar a chave para um outro tipo de pensamento, para uma oulru
captação do ser, da verdade e da linguagem. Enquanto isto não ,sc
der, as coisas serão meros objectos e o mundo será um brinquedo
do homem. Não precisamos de avançar no desenvolvimento do
pensamento apresentacional; precisamos sim de recuar, partindo de
um tipo de pensamento meramente ideacional, i. e., explicativo,
rumo a um pensamento meditativo (andenkende) (12).
A caminho do pensamento
É vulgar dizer que Heidegger formulou uma crítica devastadora
à metafísica ocidental ou que colocou de novo a questão ontológica;
contudo também seria correcto dizer-se que os seus últimos escritos
se relacionam virtualmente com o processo hermenêutico pelo qual
o homem, no pensamento «essencial» ou noutros tipos de pensa
mento, constrói a fronteira entre o ser e o não ser. A questão cru
cial relativamente ao ser não é apenas a da natureza do ser mas
sim a de como pensar o ser, a de como é que o ser aparece; dá-se
muita importância, por exemplo, à situação do homem neste evento
hermenêu^co em que o ser se coloca ou se torna «compreendido»
de um certo modo. Tentar traçar o tema do «pensamento» seria
um esforço complexo e multifacetado, um esforço que já foi feliz
mente realizado em inglês, pelo Padre W. J. Richardson ("). Basta
aqui realçar o carácter geralmente hermenêutico de um tal tema, e
tocar apenas em alguns dos seus aspectos que tenham um signi
ficado especial para a hermenêutica.
É significativo que no diálogo com um japonês e precisamente
no ponto a que acima nos referimos, Heidegger defenda que o ho
mem se coloca numa «relação hermenêutica» (ein hermeneutischen
Bezug) em que ele é o mensageiro, aquele que enuncia o ser (“ ).
O homem é o ser que constrói a ponte entre o ser que se' esconde
e o que se revela, noutras palavras, entre o não ser e o ser. O homem,
ao falar, interpreta o ser. O pensamento verdadeiro é definido por
Heidegger não como manipulação daquilo que já foi revelado, mas
como revelação do que estava escondido. Contudo, no texto dito
(13) VA 180.
( ” ) Ib id .
(“ ) US 125-27, 135-36.
153
por um grande pensador ou por um grande poeta, muito fica ainda
oculto e por dizer; portanto, um diálogo pensante com o texto
acarretará uma nova desocultação. Isto torna-se hermenêutica no
seu sentido mais tradicional (e os escritos de Heidegger contêm mui
tos destes diálogos). Contudo, este acto secundário de interpretação
tem que recuar continuamente para uma repetição amorosa da
desocultação original, tem que se manter na fronteira entre aquilo
que se esconde e o que é revelado.
Como se processa um diálogo criativo com o texto? Nos últimos
escritos, ao longo dos anos quarenta e cinqüenta, tais como por
exemplo Gelassenheit (15), «Carta sobre o Humanismo» e «A que se
chama pensar»?, a posição do homem é uma espécie de passividade
devota que se abrirá totalmente à luz do ser. Contudo, em «Intro
dução à Metafísica», anterior a estas obras, há uma discussão signi
ficativa do ponto de vista hermenêutico, sobre a natureza da inter
rogação quando procura ser criativa, uma discussão que unifica
uma série de aspectos relevantes do pensamento do último Hei
degger.
A «Introdução à Metafísica» começa com uma pergunta. Para
Heidegger, perguntar não precisa de ser uma mera investigação,
podendo ser um meio de revelação. A pergunta inicial do ensaio —
«Porque há o ser e não o nada?» leva a uma segunda questão que
se dirige àquele que interroga: «Como se coloca o ser»? Aquele que
pergunta vê-se imediatamente transportado para um ponto de vista
diferente daquele que a questão inicial colocara pois a questão é de
modo a voltar-se para quem pergunta. No processo de colocação
de uma questão deste tipo, diz-nos Heidegger, «parece que perten
cemos inteiramente a nós próprios. Contudo é este perguntar que
nos abre caminho desde que, ao interrogar, se transforme (o que
faz toda a verdadeira interrogação) e estabeleça um novo espaço
sobre todas as coisas e em todas as coisas» (” ).
Interrogar é pois algo com que o homem se defronta obrigando
o ser a mostrar-se. Une a diferença ontológica entre o ser e o ser
dos seres. A interrogação que se mantém simplesmente ao nível do
ser dos seres e não faz qualquer tentativa de se dirigir para o fun
damento (negativo) de um tal ser não é uma interrogação verdadeira
mas antes manipulação, cálculo, explicação. É típico de Heidegger
afirmar: «Há muito que existe em nós uma paralisia de toda a
paixão dc in terrogar... A interrogação como elemento fundamental
da existência histórica, desapareceu (n).
A essência da mundancidade do homem é precisamente o pro
cesso hermenêutico dc interrogar, um tipo de interrogação que na
(*•) Trad. como DT.
('*) IM 29-30.
(") Ibid., 143.
154
sua verdadeira forma alcança o ser que não se manifestou c que
o faz revelar-se numa ocorrência concreta, histórica. Através dit
interrogação, o ser torna-se então história. A inter-relaçüo cntrc o
ser, a história e a personalidade torna-se clara na seguinte passagemde Introdução à Metafísica:
1 — A determinação da essência do homem nunca é uma res
posta mas essencialmente uma pergunta.
2 — O colocar desta pergunta é histórico, no sentido essencial
de que este interrogar cria primeiro a história.
4 — Só há história quando o ser se revela na interrogação e
com a história surge o ser do homem.
6 — O homem só se torna ele próprio enquanto ser interrogante
e histórico; só deste modo ele é um «eu». A personalidade humana
tem este significado: o homem tem que transformar o ser que se
lhe revela na história e tem que se colocar na história.
Nos últimos escritos dá-se relevo não tanto à interrogação feita
pelo homem como à necessidade de uma abertura atenta relativa
mente ao ser. O ser ainda ê histórico, mas a sua ocorrência é uma
dádiva que parte do ser, mais do que produto de uma inquirição
c capíação feitas pelo homem (**).
Contudo, devemo-nos precaver, não vendo aqui qualquer tran
sição radical ou qualquer viragem, pois Heidegger não está a con
tradizer-se; antes completa a sua posição anterior; nos últimos tra
balhos tenta dar ênfase a uma posição não centrada no sujeito, e
por essa razão a imagem afasta-se de uma visão do homem «lutando»
inquisitivamente com o ser, para uma visão do homem como «pastor
do ser». Contudo, mesmo enquanto pastor do ser, a tutela do ho
mem é referida em termos de «pensar» e «poetizar»; ambas são
acções por parte do homem, se bem que respondendo ao ser, e
ambas mantém o seu caracter histórico. Na «Carta sobre o Huma
nismo» Heidegger afirma:
«Na medida em que o pensamento, enquanto historicamente
ponderável, atende ao destino do ser, já se ligou àquilo que é fatal,
que se mede pelo destino ... O carácter fatal (Geschichlichkeit) do
dizer do ser enquanto dádiva da verdade — nisto e não em regras
lógicas, consiste a primeira lei do pensamento ... O ser é como que
a ocorrência fatal (Geschick) do pensamento. Este evento é em si
mesmo histórico. A sua história já se tornou linguagem no acto de
dizer, realizado por aquele que pensa.» (l>)
Como pastor do ser, o homem perde o carácter prometeico
sugerido em Sófocles, na «Ode ao homem» (antígona) (” ) sobre a
(>•) Ibid.
(") PL-BH 118.
(M) IM 146-165.
155
qual Heidegger se debruça na «Introdução à Metafísica»; em Ge-
lasser.heit Heidegger diz mesmo que «não deveríamos fazer nada,
apenas deveríamos esperar» (” )•
Em «O que se chama pensar» o pensamento é descrito como
uma resposta ao chamamento e às imposições do ser. É algo que
vem do mais íntimo do homem, no qual «tudo o que fica para ser
pensado é ocultado e escondido» (” ). A palavra chave não é per
guntar mas sim responder. E no entanto o homem ainda é o ser
que, na resposta, chega à negatividade do ser, ao seu carácter não
revelado, misterioso.
A discussão da interrogação conduziu a alguns dos temas mais
importantes do último Heidegger: a historicidade, a diferença onto
lógica, a poesia e o pensamento, a atitude de receptividade neces
sária que nos permite orientar para o «Aberto», que possibilita a
interpelação. Tudo isto sugere uma postura hermenêutica radical
mente diferente da atitude objectiva que é conseqüência de uma
consideração da interpretação como acto conceptual primitivo, como
uma espécie de análise.
A linguagem e a fala
Na passagem da «Carta sobre o Humanismo» acima citada, a
referência ao «acto de dizer efectuado por aquele que pensa» sugere
um outro tema importante nos últimos escritos de Heidegger: a
linguisticidade do ser. O interesse de Heidegger pela linguagem data
do começo da sua carreira, com a sua dissertação: «A doutrina do
juízo no psicologismo: uma contribuição crítica e positiva para a
lógica» (” ) e com a sua dissertação sobre a doutrina de Duns Escoto
sobre as categorias e o significado. Nela defendia a necessidade de
colocar os fundamentos teóricos da linguagem (” )• Heidegger fala
deste primeiro período no seu recente «Diálogo com um Japonês».
Significativamente, as observações que faz ligam-se ao porquê da
sua escolha em usar a palavra «hermenêutica» em «Ser e Tempo»;
Conhecia o termo «hermenêutica» dos meus estudos teológicos.
Nessa altura interessava-me especialmente a questão da relação
entre a palavra bíblica e o pensamento teológico especulativo. Era,
se quiserem, a mesma relação— nomeadamente a relação entre lin
guagem e ser, para mim então escondida e inacessível — que eu
cm vão procurava encontrar, uma chave que levasse aos caminhos
mais fundos, que levasse aos desvios (” ).
(’■) G 37; DT 62.
(” ) VA 139; ver TPhT 599-601.
(” ) TPhT 675.
(“ ) 1'òggcler, p. 269.
(>•) US 96.
156
A linguagem colocou-se num novo contexto quando da anrtllir,
em Ser e Tempo, da mundancidade do Dasein, feita em termo*
de situação, compreensão e interpretação. Era a articulação du com
preensão existencial. De tal modo estava ligada à compreensão c i\
inteligibilidade que o pensamento lógico e toda a manipulação con
ceptual dos objectos no mundo se tornaram secundários e derivados,
comparados com a linguagem no contexto vivo da articulação
essencial da compreensão (” ). Logo em Ser e Tempo o campo da
lógica e das asserções integra a categoria do pensamento apresen
tacional, enquanto que a linguagem na sua verdadeira essência,
como articulação essencial da compreensão situacional, histórica, 6
algo que pertence ao modo de ser do homem. Deste ponto de vista,
Heidegger podia criticar as teorias que encaravam a linguagem
como um mero instrumento de comunicação C7).
O tema da linguagem tem importância em «Introdução à Meta
física». Dedicado à questão «O que é o ser?», o ensaio remete para
um fragmento de Parménides no qual Heidegger encontra a asserção
de que o ser é idêntico àquilo pelo qual ocorre a apreensão. Isto
significa que «apenas há ser quando há uma aparição, uma desocul
tação, quando há revelação» (” ). Tal como não pode haver ocor
rência de ser sem apreensão nem apreensão sem ser, também não
pode haver ser sem linguagem, nem pode haver linguagem sem ser.
Suponnamos que o homem. não tinha qualquer conhecimento
prévio do ser, que desconhecia todo e qualquer sentido indetermi
nado do ser. Heidegger interroga-se: «Haveria apenas um substan
tivo e um verbo a menos na nossa linguagem? Não. Não haveria
qualquer linguagem. Nenhum ser enquanto tal se revelaria por meio
de palavras, não mais seria possível invocá-lo e falar dele com
palavras; pois falar de um ser enquanto tal implica compreendê-lo
previamente como sendo um ser, isto é, compreender o seu ser.» (” )
Por outro lado, «se a nossa essência não incluísse o poder da
linguagem, todos os seres se nos fechariam»; nós próprios não somos
menos que o ser que não somos (50). Sem a linguagem nunca pode
ríamos imaginar o homem. Heidegger avança abruptamente com o
tema: «Porque ser homem é falar.» (” ) Que ilusão, diz Heidegger,
pensar que o homem inventou a linguagem! O homem não inventou
a linguagem, tal como não inventou a compreensão, nem o tempo
(” ) Ver a discussão do carácter derivado das asserções no capítulo anterior.
(*0 Relativamente a um novo tipo de lógica, ver Hans Lipps, llntersu-
chungen zu einer hermeneutischen Logik, e Kitarô Nishida, Intelligibility and
the Philosophy of Nothingness.
(” ) IM 139.
(” ) Ibid., 82.
(«) Ibid.
(” ) Ibid.
157
nem o ser ele mesmo. «Como poderia o homem ter alguma vez
inventado o poder que o penetra, que só por si lhe permite ser
homem?» (” ) Mesmo o acto poético de nomear é uma resposta que
o homem dá ao ser dos seres.
Em escritos posteriores a «Introdução à Metafísica», aumenta
a ênfase dada ao homem considerado enquanto aquele que responde
às interpelações ou chamamentos do ser. Por exemplo, na «Carta
sobre o Humanismo», Heidegger sustenta que «a única ocupação
do pensamento é trazer cada vez mais para uma forma faiada, aocorrência do ser; um ser que permanece e que na sua permanência
espera pelo homem» (” ). E é óbvio que o ser se revela na linguagem.
A ocorrência do ser na linguagem é descrita em termos da palavra
Geschick, fado ou destino. «A fatalidade do ser que se diz, tal como
a fatalidade da verdade, é a primeira lei do pensamento.» (” ) O tema
da história não é novo pois na «Introdução à Metafísica» Heidegger
apresenta a linguagem como a dinâmica do ser do homem que lhe
permite tornar-se histórico — que !he permite na realidade fundar a
história. A apreensão e a fala foram apresentadas como actos espe
cificamente históricos, em que o ser surge no iempo, acontece.
A diferença é essencialmente uma diferença de ênfase: mais do que
lutar com o ser, o homem abre-se ao ser, à interpelação do ser.
Contudo, a interrogação não é posta de lado por Heidegger pois
interrogar é precisamente pôr em causa as concepções apresenta-
cionais. Títulos posteriores como «A que chamamos pensar?» ou o
desejo expresso por Heidegger de colocar de um modo interroga
tivo das Wesen e der Sprache (como das Wesen? e der Spraehe?)
mostram isso. De facto, a interrogação mantém-se um método bá
sico no seu pensamento. A mudança de ênfase é apenas um esforço
para apontar de um modo mais forte a primazia do ser.
Isto tem como implicações na linguagem, a inversão da orien
tação habitual da fala; não se diz que o homem fala mas sim que
a própria linguagem fala. Tal facto torna-se mais explícito numa
colecção de ensaios sobre a linguagem Unterwegs zur Sprache.
«A linguagem na sua essência, não é nem expressão nem actividade
do homem. A linguagem fa!a.»(35) As palavras ecoam no silêncio e
através delas colocam-se as realidades do nosso mundo e o conflito
entre a terra e o mundo: «o som no silêncio não tem nada de
humano. Pelo contrário, o humano é lingüístico na sua essên
cia» (■’"). E o acto humano de dizer que é especificamente humano.
Contudo o dizer é em si mesmo um acto pela linguagem. Aquilo
(” ) Ibid., 156.
(«) PL-BH 118.
(M) Ibid. Mudei um pouco a tradução da primeira versão dada na p. 151.
(” ) US 19.
(«) Ibid., 30.
158
que pela linguagem se revela, não é algo de humano mas sim t>
mundo, o próprio ser.
Em Unterwegs zur Sprache Heidegger encontra na fala, espe
cialmente no dizer (das Sagen), a própria essência da linguagem.
Dizer é mostrar (J7)- Assim, o silêncio pode por vezes dizer mais do
que as palavras. Ao dizer pertence a capacidade de escuta, de modo
que aquilo que tem que ser dito se possa mostrar; o dizer conserva
aquilo que é cuvido (3‘). Nele, o ser mostra-se sob a forma de ocor
rência. Colocando o tema em termos de expressão e de aparição:
a iinguagem não é uma expressão do homem mas uma aparição
do ser. O pensamento não exprime o homem, deixa que o ser
aconteça como e\ento lingüístico (30). Neste deixar que aconteça
está o destino do homem, e também o destino da verdade. Em
última instância o destino do ser.
A viragem de Heidegger para uma crescente ênfase da linguis-
ticidade (Sprachlichkeii) do modo de ser do homem, e a sua afir
mação de que o ser conduz e chama o homem, de modo que em
última instância não é o homem que se mostra mas sim o ser, têm
de facto uma importância incalculável para a teoria da compreensão.
Faz com que a própria essência da linguagem consista na função
hermenêutica de obrigar uma coisa a mostrar-se. Significa que a
disciplina da interpretação se transforma numa tentativa de aban
donar decisivamente uma mera análise e explicação, enveredando
pela realização de um diálogo pensante com o que aparece no
texto. Compreender torna-se uma questão não só de interrogar que
pretende ser aberto e não dogmático, mas também de aprender a
esperar e a encontrar um lugar (Ort) a partir do qual o ser do texto
se revele. A interpretação transforma-se numa ajuda para o evento
lingüístico. Este terá que ocorrer pois acentua-se a função herme
nêutica do próprio texto, como sendo o lugar onde o ser se revela.
A linguagem é em si mesma hermenêutica, é hermenêutica no seu
mais alto grau na poesia, pois como Heidegger diz em Sobre a
essência da Poesia o poeta é o mensageiro, o hermeneuta, dos deuses
para o homem.
Heidegger identificou a essência do ser, do pensamento, do
homem, da poesia e da filosofia com a função hermenêutica do
dizer. Não vamos aqui discutir se essa posição é ou não sustentável.
Um facto é que a sua própria filosofia se torna essencialmente her
(") Ibid., 258.
(” ) Ibid., 255.
(39) Assim o termo Sprachereignis (evento lingüístico) como Leitworl da
Nova Hermenêutica de Ernst Fuchs. Ver Das Sprachereignis in der Verkiin-
digung lesu in der Theologie des Paulus und im Oslergeschehen, HPT 281-305;
e The Essence oj the Language Event in Christoiogy, Studies of the Hiltorlcul
Jesus, pp. 213-28.
159
menêutica e que os temas centrais se integram na área da herme
nêutica. É claro que ele mudou todo o contexto da hermenêutica,
abandonando a antiga concepção desta como disciplina filológica
de interpretação de textos. O esquema sujeito-objecto, a objectivi
dade, as normas de validação, o texto como expressão de vida
— nada disto consta na abordagem de Heidegger. A hermenêutica é
definida como lidando com o momento em que o sentido se revela,
concepção que Ricoeur considera uma compreensão «demasiado
geral» pois não inclui necessariamente o acto de interpretação de
um texto. Esta definição trouxe uma mudança radical à topografia
da hermenêutica. E o próprio acto de interpretação redifiniu-se,
colocando-se numa perspectiva ontológica.
A explicação e a topologia do ser
Será imprudente e talvez pouco justo, tomar as explicações de
Heidegger como paradigmáticas de uma teoria da exegese poética
em geral, pois o uso que o filósofo delas faz circunscreve-se ao con
texto da sua investigação sobre a natureza do ser e sobre a natureza
da linguagem. Numa nota introdutória em «Sobre a Essência da Poe
sia», Heidegger nega particularmente que elas possam constituir um
contributo para uma investigação em história da literatura ou em
estética (,0)- Contudo a título de exemplo, podemos aqui mencionar
duas passagens em que Heidegger se volta para a questão da expli
cação, uma em Introdução à Metafísica, uma das suas primeiras
obras, e outra em Unterwegs zur Sprache. N a última parte de
Introdução à Metafísica Heidegger explica a «Ode sobre o Ho
mem», coral da Antígona de Sófocles, numa tentativa de definir
mais claramente a primitiva concepção grega do homem nela
expressa. Diz-nos então:
«A nossa interpretação comporta três fases, em cada uma das
quais consideraremos o poema de um ponto de vista diferente.
Na primeira fase, colocaremos o significado intrínseco do poema,
aquele que sustenta o edifício das palavras, situando-se acima deste.
Na segunda fase atravessamos toda a seqüência de estrofes e
antiestrofes e delimitamos a área que o poema abriu.
Na terceira fase, tentamo-nos situar no centro do poema, jul
gando o que é o homem de acordo com este discurso poético.» (41)
É evidente que Heidegger não envereda por uma abordagem
dc tipo formal, pois esta seria incompatível com as intenções e
problemas por ele levantados. É interessante notar que o procedi
(«) EHD; EB 232.
(«) IM 148.
160
mento que aqui demonstra, antecipa uma posterior ubordutioin
«topológica» em que a explicação tenta colocar o lugar (topos) u
partir do qual o poema fala, a localização de uma justificação no
interior do ser, que a passagem ilumina. Assim, a primeira fase nfto
começa serialmente mas sim com a tentativa de encontrar um sen
tido que sustente todo o edifício das palavras e que se situe acima
dele. Aquilo que se diz situa-se no interior de um significado que
não é totalmente explícito, o significado que está sob e sobre o
texto. Este significado circundante,esta Gestalt que é mais do que
a soma das partes, é o princípio que governa o poema, clarificando
as suas partes individuais. É a verdade do poema, o ser que se des
venda — poderíamos dizer que é a alma do poema. Só a essa luz
é que Heidegger empreende a segunda fase, que é a passagem da
estrofe para a antiestrofe e, através do poema, um recuo até «à
delimitação da área que o poema abriu».
«Na terceira fase tentamo-nos situar no centro do poema» — isto
é, na fronteira determinante entre a ocultação e a revelação estabe
lecida pelo acto criativo do poeta ao nomear o que é o homem, e
ao repensar em profundidade o que foi nomeado. Isto significa, é
claro, que se vá mais longe do que o poema, que se enverede por
aquilo que não foi dito:
«Se nos contentarmos com o que o poema diz directamente, a
interpretação acaba (com a segunda fase). Na verdade apenas come
çou. A interpretação real tem que mostrar o que não está nas pala
vras mas que no entanto é dito. Para que isto se dé o exegeta tem
que usar de violência. Tem que procurar o essencial onde a inter
pretação científica já nada mais encontra, essa interpretação que
estigmatiza como não científico tudo aquilo que transcende os
seus limites.» (“ )
O processo hermenêutico no que tem de essencial, não surge
na explicação científica daquilo que já está formulado no texto;
antes é o processo do pensamento originário, pelo qual o significado
desvenda o que não era explicitamente presente.
Em Unterwegs zur Sprache, um ensaio intitulado Die Sprache
im Gedicht prefacia a discussão sobre a poesia de Trakl, com algu
mas considerações gerais sobre a explicação poética. Heidegger toma
como ponto de partida a discussão da palavra alemão «discussão»:
Eròrterung. Primitivamente, o título do ensaio fora: Georg Trakl:
Eine Eròrterung seines Gedichtes e Heidegger procurou definir o
seu próprio ensaio não como histórico, biográfico, sociológico ou
psicológico, mas como uma consideração do «lugar» (Ort) a partir
do qual Trakl fez poesia, o lugar que se clarifica com a sua poesia.
Pois todo o grande poeta fala a partir de um único «poema» cir
(« ) Ibid., 162.
161
cundante, que nunca é dito; a tarefa de um diálogo pensante com
o poeta terá que ser encontrar o lugar no ser que seja o funda
mento do poema: «Só a partir do lugar que ocupa o poema (não
dito) é que o poema individual brilha e ecoa.»(“ )
Heidegger sustenta que um diálogo intelectual com um poema
pode «perturbar aquilo que o poema diz, em vez de o deixar dizer
tranquilamente ... uma discussão do poema nunca poderá substi
tuir-se a uma verdadeira audição de poemas, nunca poderá tomar
a liderança. Uma discussão intelectual pode, quanto muito, pro-
bleinatizar uma audição, ou, num caso favorável, tornar uma audi
ção m?is significativa» (“ ). Terá Heidegger aqui abandonado a
primitiva controvérsia sobre a violentação do texto? Temos que
ir mais longe, procurar o que é mais fundo do que uma aparente
mudança. À primeira vista poderia parecer que Heidegger quer
deixar falâr o texto, com a sua própria verdade, com a sua própria
voz. A solução de «fazer violência ao texto» é essencialmente uma
réplica aos críticos que queriam restringir a interpretação àquilo
que no texto é inexplícito. Reafirma a necessidade de finalmente
transcender o texto e de recolocar a questão com que o texto lida.
Mais ainda, o processo de Eròrterung em cada um dos seus
degraus, parece ir para além do texto, parece ír às raízes de cada
palavra, pela repetição contínua de um verso ou versos, fazendo-se
a explicação ouvir cada vez mais a partir do próprio verso. Essas
repetições evidenciam que a funçãq da explicação é deixar falar
o poema e não querer dizer mais do que ele diz. A própria ideia
de iluminar o «lugar» do poema é uma tentativa de «construir
a cena» do poema e não de tomar o seu lugar em cena. Tal como
na Nova Crítica, o próprio poema é preponderante e não constitui
um background biográfico. O background de um poema não é a
vida do autor mas sim o tema do poema. A Nova Crítica e Hei
degger estariam de acordo sobre a autonomia ontológica do poema
e sobre a heresia da paráfrase; a diferença está em que a Nova
Crítica tem dificuldade em defender a verdade do poema no con
texto dos seus pressupostos. Nela, o texto transforma-se facilmente
num objecto de explicação, num exercício conceptual lidando ape
nas com o «dado», aceitando as restrições da objectividade cien
tífica; o tipo de explicação que Heidegger dá é radicalmente dife
rente de qualquer «análise» objectiva ao que é incontestavelmente
dado. Mas para além de diferenças de estilo, a existência de afini
dades essenciais sugere que a hermenêutica de Heidegger poderia
dar à Nova Crítica bases para uma revitalização.
(<3) US 38.
(") Ibid., 39.
162
Uma concepção hermenêutica da obra de arte
Em 1936, Heidegger efectuou três conferências sobre arte, com
o título «A Origem da Obra de Arte». Não foram publicadas ulé
1950, aparecendo então como abertura de Helzwege (Caminho»
na Floresta). Nelas encontramos a abordagem mais completa que
Heidegger faz à natureza da arte. São uma transposição paru o
domínio da arte das concepções essencialmente hermenêuticas da
verdade e do ser, do conflito entre as formulações positivas e uma
fundamentação negativa embora criativa, da linguagem como falar
e dizer, acima abordadas. Uma obra de arte verdadeiramente grande
fala, e ao fazê-lo constrói um mundo. Este falar, como todo o dizer
verdadeiro simultaneamente revela e esconde a verdade. «A beleza
é o modo como a verdade, enquanto desocultação, ocorre.» (“ )
O poeta nomeia o sagrado, e desse modo fá-lo aparecer, numa
forma; Heiddeger encara toda a arte como intrinsecamente poética,
como um meio de forçar o ser dos seres e desocultar-se e como
um meio de transformar a verdade num acontecimento histórico
concreto.
Esta situação estética é descrita em termos da tensão intrínseca
entre a terra, como fundamento criador das coisas, e o «mundo».
A terra representa para Heidegger a mãe inexaurível, a origem
primordial e o fundamento de tudo. A obra de arte, como aconte
cimento em que a verdade se revela, representa a captação desta
tensão criativa numa forma. Assim, traz para o domínio dos seres,
como sendo um todo, e abre ao homem, essa luta interna entre
a terra e o mundo. Por exemplo um templo grego num vale, cria
um espaço aberto ao ser, cria o seu próprio espaço vivo. Na beleza
da sua forma faz com que brilhem, em todo o seu esplendor, os
materiais de que é feito. Organiza de tal modo os materiais que
os «anuncia», fazendo com que brilhem. O tempo nada copia;
limita-se a construir, a partir de si mesmo, um mundo em que
sentimos a presença dos deuses. Visto que a materialidade dos
materiais desaparece nos instrumentos, quanto melhor estes desem
penhem a sua função de instrumentos, a obra de arte abre-nos um
mundo precisamente através da revelação da materialidade dos
materiais:
«A pedra move-se e repousa e assim se torna verdadeiramente
pedra; o metal começa a emitir luz e a brilhar; as cores começam
a cintilar como cores; os tons convertem-se verdadeiramente cm
sons; e a palavra fala. Tudo isto acontece pelo facto de que a obra
se coloca de novo na massa e no peso da pedra, na firmeza e na
maleabilidade da madeira, na dureza e no brilho do metal, nu
(«) Ho 44; UK 61.
163
sonoridade dos tons e no poder que a palavra tem de nomear (“ ).
Dizer isto é simplesmente observar que a obra de arte «deixa
a terra ser terra» (,7). A terra não se limita a ser apenas algo sobre o
qual caminhamos, tal como uma árvore não é apenas uma coisa que
está no nosso caminho; a terra é algo que aparece no brilho do
metal e na sonoridade dos sons — e que depois recua. Não faz
esforços e não se cansa. «Sobre a terra e dentro dela, o homem
históricocimenta a sua morada no mundo.» (**) No domínio da
arte, a construção de uma obra a partir da terra, cria um mundo;
«a obra capta a terra e mantém-na firme na abertura de um
mundo» (,9). A construção da terra e a exibição do mundo, são
segundo Heidegger, as duas tendências básicas da obra de arte.
A essência da arte, por conseguinte, não está na mera perícia
técnica, mas sim na revelação. Ser uma obra de arte significa abrir
um mundo. Interpretar uma obra de arte significa mudar para
o campo aberto que a obra ergueu. A verdade da arte não é uma
questão de concordância superficial com algo que já está dado
(i. e., a visão tradicional da verdade como correcção); revela a
terra, de tal modo que a podemos ver. Por outras palavras, a gran
deza da arte tem que ser definida em termos da sua função herme
nêutica. No seu ensaio, Heidegger enunciou uma teoria hermenêu
tica da arte.
O contributo de Heidegger para a teoria hermenêutica é pois
verdadeiramente multifacetado. Em Ser e Tempo voltou a conceber
a compreensão num contexto totalmente novo, mudando assim o
carácter fundamental de qualquer teoria conseqüente da interpre
tação. Redefiniu a própria palavra «hermenêutica» identificando-a
com a fenomenologia (também tal como ele a definia) e com a
função essencial das palavras que é tornar compreensível. Nos seus
últimos trabalhos adoptou a exegese de textos como método típico
do filosofar, propondo-se como um filósofo hermenêutico no
sentido mais tradicional do termo. Mas, para Heidegger, o sentido
mais fundo da palavra é o de um processo misterioso de revelação,
pelo qual o ser ganha existência. Nos termos desse processo essen
cialmente hermenêutico. Heidegger abordou a linguagem, as obras
de arte, a filosofia e a própria compreensão existencial.
Foi decididamente mais longe do que a concepção aparente
mente lata de Dilthey. da hermenêutica como base metodológica
de todas as disciplinas humanísticas; em Heidegger, a hermenêu
tica aponta para o facto da compreensão enquanto tal, não por
(«) Ho 35; Uk 47.
(") Ibid.
(«) Ibid.
(«) Ibid.
164
métodos históricos de interpretação que superam e contrurium us
métodos científicos. A dicotomia histórico-científica a que Dilthey
dedicou toda a sua vida é abandonada, sustentando-sc u posiçflo
de que toda a compreensão se radica no carácter histórico da com
preensão existencial; abre-se o caminho para a hermenêutica «filo
sófica» de Gadamer.
165
11
A CRÍTICA DE GADAMER À ESTÉTICA MODERNA
E À CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
No desenvolvimento da teoria hermenêutica moderna deu-se
um acontecimento decisivo com a publicação de Wahrheit und
Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik (Verdade
e Método: Elementos de uma Hermenêutica Filosófica) pelo filó
sofo de Heidelberg, Hans Georg Gadamer. Num único volume
apresenta-nos não só uma revisão crítica da estética moderna e da
teoria da compreensão histórica, numa perspectiva essencialmente
heideggeriana, como também uma nova hermenêutica filosófica
baseada na ontologia da linguagem.
Profundamente filosófica, esta obra só tem comparação com
outras duas monumentais abordagens da teoria hermenêutica escri
tas neste século: Das Verstehn, de Joachim Wach e Teoria generale
delia interpretazione de Emilio Betti. Cada uma destas três obras
defende uma finalidade distinta e assim, cada uma deu um con
tributo diferente. Os três volumes de Wach sobre a história da
hermenêutica no século xix constituem uma referência indispen
sável para todo o estudante que queira abordar seriamente o
tema da hermenêutica. Foram no entanto escritos nos últimos anos
de 1920, situando-se necessariamente no contexto da concepção de
hermenêutica professada por Dilthey.
Betti faz uma revisão do espectro dos diferentes tipos de inter
pretação tendo em mente a formulação de uma teoria geral global
e sistemática e pretendendo desenvolver um conjunto de regras
básicas para uma interpretação mais válida. Desde o início que
esta obra põe como meta um organon sistemático das formas de
interpretação, mais do que uma simples história; assim, a sua
extensão e a sua abundante documentação tal como a sua finali
dade sistemática, constituem um complemento inestimável à obra
<le Wach que lhe é anterior. No entanto, Betti mantém-se essen
cialmente no interior da tradição idealista germânica, filosofica
mente falando,' tendendo a aceitar previamente, como axiomas, os
167
pressupostos que Heidegger põe radicalmente em causa. Para
Betti, Heidegger é uma ameaça à ideia de resultados objectivamente
válidos no campo da filologia e da historiografia. Depois de Betti,
restou a Gadamer percepcionar e desenvolver as conseqüências
positivas e frutíferas da fenomenologia no campo da teoria her
menêutica, em particular o pensamento de Heidegger. Foi Gadamer
quem teve que lutar com o problema filosófico de desenvolver
uma nova ontologia do evento da compreensão.
Assim, com o aparecimento de Verdade e Método, a teoria
hermenêutica entra numa nova e importante fase. Gadamer
exprime agora, de um modo totalmente sistemático, a nova con
cepção radical de Heidegger relativamente à compreensão, traçada
no capítulo anterior; esclarecem-se as implicações desta concepção
no modo como se concebem o estético e o histórico. Abandona-se
a antiga concepção de hermenêutica como sendo a base metodo
lógica específica das Geisteswissenschaften; o próprio estatuto do
método é posto em causa, pois o título do livro de Gadamer é
irônico: o método não é o caminho para a verdade. Pelo contrário,
a verdade zomba do homem metódico. A compreensão não se
concebe como um processo subjectivo do homem face a um objecto
mas sim como o modo de ser do próprio homem; a hermenêutica
não se define enquanto disciplina geral, enquanto auxiliar das
humanidades, mas sim como tentativa filosófica qua avalia a com
preensão, como processo ontológico — o processo ontológico — do
homem. O resultado destas reinterpretações é um tipo diferente de
teoria hermenêutica, a hermenêutica «filosófica» de Gadamer.
É essencial percebermos, logo desde o início, a distinção entre
a hermenêutica filosófica de Gadamer e o tipo de hermenêutica
que se orienta para os métodos e para a metodologia. Gadamer não
se preocupa directamente com os problemas práticos da formulação
de princípios interpretativos correctos; antes pretende esclarecer
o próprio fenômeno da compreensão. Isto não significa que negue
a importância da formulação de tais princípios; pelo contrário, eles
são necessários às disciplinas interpretativas. Significa sim que Ga
damer trabalha sobre uma questão preliminar e fundamental: como
é possível a compreensão, não só nas humanidades mas em toda
a experiência humana sobre o mundo? Esta é uma questão que
se coloca às disciplinas da interpretação histórica mas que vai muito
mais longe do que elas. É neste ponto que Gadamer liga explici
tamente a Heidegger a sua definição de hermenêutica:
«Penso que a análise temporal que Heidegger faz da existência
humana, demonstrou eficazmente que a compreensão não é uma
entre várias atitudes de um sujeito humano, mas um modo de ser
do próprio Daseirt. Neste sentido usei aqui o termo «hermenêutica»
(em Wahrheit und Methode). Designa o movimento básico da
existência humana, constituído pela sua finitude e historicidadc,
168
e por conseguinte abrangendo a globalidade da sua cxpcriêncln no
mundo ... O movimento de compreensão é englobante e univci
sal.» (')
É claro que a universalidade da hermenêutica traz consequôn
cias às tentativas realizadas pelas disciplinas interpretativas no que
respeita à metodologia. Por exemplo, o carácter englobante da com
preensão levanta a questão de podermos, com um simples jiat,
limitar o campo de acção da compreensão, ou reduzi-lo a outro
aspecto. Gadamer defende quea experiência de uma obra de arte
transcende todo e qualquer horizonte subjectivo da interpretação,
tanto o do artista como o daquele que percepciona a obra de arte.
Por esta razão, «a mens auctoris não é a medida possível para
avaliar o significado (Bedeutung) de uma obra. De facto, falar de
uma obra de arte isolada, separada da sua relidade, incessantemente
renovada, tal como aparece na experiência, é adoptar um ponto de
vista muito abstracto» (2). O decisivo não é a intenção do autor
nem a obra como coisa isolada, fora da história, mas o quid que
aparece repetidamente nos encontros históricos.
Para alcançarmos as condições metodológicas trazidas por esta
hermenêutica mais universal de Gadamer, temos que entrar mais
profundamente nas raízes heideggerianas do pensamento de Gadamer
e no carácter dialéctico da hermenêutica tal como Gadamer a con
cebe. À semelhança de Heidegger, Gadamer é um crítico da ren
dição moderna ao pensamento tecnológico, radicado no subjectismo
(Subjektitàt), isto é, na consideração da consciência humana sub
jectiva, e das certezas da razão que nela se fundam, como se cons
tituíssem um ponto de referência último para o conhecimento
humano. Os filósofos pré-cartesianos, como por exemplo os antigos
gregos, viram o seu pensamento como parte do próprio ser; não
tomaram a subjectividade como ponto de partida, fundamentando
depois sobre ela a objectividade do seu conhecimento. A sua
abordagem foi mais dialéctica, foi uma abordagem que tentou
guiar-se pela natureza daquilo que estava a ser compreendido.
O conhecimento não era algo que adquirissem como uma posse,
mas algo em que participavam, deixando-se guiar e mesmo ser
possuídos pelo seu conhecimento. Deste modo os Gregos realizaram
uma abordagem da verdade que ultrapassou as limitações do pensa
mento moderno de um sujeito-objecto, radicado num conhecimento
subjectivamente certo.
A abordagem de Gadamer está pois mais próxima da dialéctica
socrática do que do pensamento moderno, manipulativo e tecno
lógico. A verdade não se alcança metodicamente mas dialectica-
0) WM. Prefácio à 2.» ed., XVI.
O Ibid., XVII.
169
mente; a abordagem dialéctica da verdade é encarada como a antí
tese do método; ela é de facto um meio de ultrapassar a tendência
que o método tem de estrutura previamente o modo individual de
ver. Rigorosamente falando, o método é incapaz de revelar uma nova
verdade; apenas explicita o tipo de verdade já implícita no método.
A própria descoberta do método não se alcançou metodicamente
mas sim dialecticamente, isto é, como resposta problematizante
ao tema com que deparamos. No método, o tema a investigar
orienta, controla e manipula; na diàléctica, é o tema que levanta
as questões a que irá responder. A resposta só pode ser dada se
pertencer ao tema e situando-se nele. A situação interpretativa
não é mais a de uma pessoa que interroga e a de um objecto,
devendo aquele que interroga construir «métodos» que lhe tornem
acessível o objecto pelo contrário, aquele que interroga desco
bre-se como sendo o ser que é interrogado pelo tema (Sache). Numa
situação destas «o esquema sujeito-objecto» é enganador pois o
sujeito torna-se agora objecto. Na verdade, o próprio método é
geralmente encarado como estando no interior do contexto da
concepção sujeito-objecto da situação interpretativa do homem,
servindo de fundamento ao pensamento moderno, manipulador e
tecnológico.
Poder-se-ia perguntar: Não será a dialéctica hegeliana a essên
cia mesma do pensamento subjectivo, pois não é verdade que o
pensamento dialéctico leva à auto-objectificação da consciência?
A autoconsciência está no centro do pensamento hegeliano, mas
a hermenêutica dialéctica de Gadamer não segue o conceito hege
liano de Geist na fundamentação última que este tem na subjec-
tividade. Fundamenta-se, não na autoconsciência mas sim no ser,
na linguisticidade do ser humano no mundo e por conseguinte no
carácter ontológico do acontecimento lingüístico. Não se trata de
uma dialéctica de teses requintadas que se opõem; é uma dialéctica
entre o contexto em que cada pessoa se insere e o contexto da
«tradição» — o que desce até nós, o que vem ao nosso encontro,
e cria aquele momento de negatividade que é a vida da dialéctica
e a vida da interrogação.
Assim, embora a hermenêutica dialéctica de Gadamer tenha
afinidade com Hegel, ela não procede do subjectivismo implícito
em Hegel e aliás em toda a metafísica moderna anterior a Hei
degger. Embora tenha semelhanças com a dialéctica de Platão,
não pressupõe a doutrina platônica das ideias nem a sua concepção
de verdade e de linguagem. Antes propõe uma dialéctica baseada
na estrutura do ser tal como foi explicada pelo último Heidegger,
e na estrutura prévia da compreensão tal como se coloca em Ser
e Tempo. O objectivo da dialéctica é eminentemente fenomenoló-
gico: fazer com que o ser, ou a coisa que encontramos, se revele.
O método envolve uma forma específica de questionamento que
170
desoculta um aspecto da coisa; uma dialéctica hermenêutica abrr *r
a um questionamento pelo ser das coisas, de modo que as colrmn
que encontramos se possam revelar no seu ser. Isto é possível,
defender Gadamer, devido à linguisticidade da compreensão hu
mana e em última instância, do próprio ser.
Esta orientação do pensamento para o problema hermenêutico
está eminentemente implícita em Heidegger. Só é nova a ênfase
especulativa e dialéctica — poderíamos dizer hegeliana — e a expo
sição agora totalmente revelada das implicações da ontologia hei
deggeriana em estética e em interpretação de textos. Pede-se ao
leitor que tenha presente o facto de que as concepções heideggerianas
básicas sobre pensamento, linguagem, história e experiência humana
são transpostas para Gadamer. Isto é essencial pois as teses de
Wahrheit und Methode baseiam-se nelas e o resvalar inconsciente
para as concepções pressupostas na maior parte dos pensadores
ingleses e americanos contemporâneos que se debruçam sobre a
interpretação, criará ainda mais dificuldades à compreensão. Para
mais, as concepções de Gadamer inter-relacionam-se, de modo a que
só gradualmente entramos no círculo das suas considerações. Final
mente, as teses de Gadamer assentam essencialmente nas suas
minuciosas análises críticas a um pensamento anterior sobre a
linguagem, sobre a consciência histórica e sobre a experiência
estética. Assim há obstáculos de peso que se colocam à compreen
são do pensamento de Gadamer. No entanto, far-se-á uma tentativa
de apresentar algumas das linhas essenciais do modo como Gadamer
transforma a teoria heideggeriana da compreensão numa critica
formal da estética moderna e das concepções históricas da inter
pretação.
A crítica à consciência estética
Segundo Gadamer, é relativamente moderno o conceito de
«consciência estética», distinguindo-se e isolando-se dos domínios
«não estéticos» da experiência. De facto, é conseqüência da subjec-
tivação geral do pensamento efectuada a partir de Descartes, ten
dência a fundamentar todo o conhecimento numa autocerteza
subjectiva. De acordo com esta concepção, o sujeito que contempla
um objecto estético é uma consciência vazia recebendo percepções
e gozando de certo modo, da imediatez de uma forma puramente
sensível. A «experiência estética» é assim isolada e descontínua
relativamente a outros domínios mais pragmáticos; não é mensu
rável em termos de «conteúdo» visto ser uma resposta à forma.
Não se relaciona com a autocompreensão do sujeito, ou com o
tempo; é encarada como um momento atemporal sem qualquer
outra preferência que não seja a si própria.
171
As conseqüências de uma concepção deste gênero são inúmeras.
Em primeiro lugar não há qualquer modo adequado de avaliação
da arte que não seja o da satisfação perceptiva. Não há preceitos
para a arte em termos