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002 PALMER Hermenêutica

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Lucas Santos

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Richard E. Palmer
HEDMENÊUTICA
O SABER DA FILOSOFIA 
edições 70
Uma visão histórica, sintética e densa, do 
problema e da constituição da Hermenêutica 
e das implicações filosóficas fundamentais 
da interpretação. R. Palmer analisa e expõe 
com argúcia as linhas básicas do pensamento 
de alguns dos principais hermeneutas: 
Scheleierm acher, Dilthey, Heidegger e 
Gadamer.
O SABER DA FILOSOFIA 
edições 70
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Richard E. Palmer
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O SABER Q \ FILOSOFIA 
edições 70
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O SABF.R DA FILOSOFIA
1 — A EPISTEM OLOGIA 
Gaston Bacheland
2 - IDEO LOG IA E RA CIONALIDADE
NAS CIÊN CIAS DA VIDA 
Georgcs Canguilhem
3 - A FILOSOFIA CR ÍTICA DE KANT
Gillcs Deleuze
4 — 0 NOVO ESPÍR ITO CIEN TÍFIC O
Gaston Bachclard 
5 — A FILOSOFIA CH IN ESA 
Max Kaltenmark 
6 - A FILOSOFIA DA M ATEM ÁTICA 
Am brosio Giacomo M anno 
7 - PROLEGÓM ENOS A TODA A M ETA FÍSICA FUTURA 
Immanuel Kant 
8 - ROUSSEAU E MARX 
Galvano Dclla Volpe 
9 — BREVE HISTÓ RIA DO ATEÍSM O OCID EN TAL 
James Thrower 
10 — FILOSOFIA DA FÍSICA 
M ario Bunge
II — A TR ADIÇÃ O INTELECTU AL DO OCID EN TE 
J. Bronowski c Brucc Mazlish 
12 - A LÓGICA COM O CIÊN CIA HISTÓ RICA 
G alvano Dclla Volpe 
13 — A HISTÓ RIA DA LÓGICA — DE ARISTÓTELES 
A BERTRAND RUSSEL 
Robert Blanché 
14 — A RAZÃO 
Gilles-Gaston Granger 
15 - HERM ENÊUTICA 
Richard E. Palmcr 
16 — A FILOSOFIA ANTIGA 
Emanuele Severino 
17 - A FILOSOFIA M ODERNA 
Emanuele Severino
18 — A FILOSOFIA CONTEM PORÂ NEA
Em anuel Severino
19 — EXPOSIÇÃ O E INTERPRETAÇÃO 
DA FILOSOFIA TEÓ RICA DE KANT
Felix Grayeff 
20 - TEO RIAS DA LINGUAGEM ,
TEO RIAS DA APRENDIZAGEM 
M assimo Piattelli-Palm arini (org.)
21 — A REVOLUÇÃO NA CIÊN CIA 1500-1700 
A. Rupert Hall
1 — INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA HISTÓ RIA DE HEGEL 
Jean Hyppolite 
23 — AS FILOSOFIAS DA CIÊN CIA 
Rom Harre
24 - GA LILEU E NEW TON LIDOS PO R EINSTEIN 
Françoise Balibar 
25 — AS RAZÕES DA CIÊN CIA 
Ludovico Geym onat/G iulio Giorello
26 — A FILOSOFIA DE DESCARTES
John Cottingham
27 — INTROD UÇÃ O A HEIDEGGER
G ianni Vattimo
HERMENÊUTICA
Título original: HERMENEUT1CS - INTERPRETATION 
THEORY in Schleiennacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer
© Northwestern University Press, 1969
Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Capa de Edições 70
Todos os direitos reservados para língua portuguesa 
por Edições 70, Lda.
Depósito legal n° 96840/96
ISBN: 972-44-0340-8
EDIÇÕES 70, LDA.
Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.” Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal 
Telefs: (01) 3158752 - 3158753 
Fax: (01) 3158429
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida 
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, 
incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. 
Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível de 
procedimento judicial.
Richard E. Palmcr
HERMENÊUTICA
79491
edições 70
SISTEMA INTEGRADO DE BiBLIOTECAS 
Pe. Inocente Radrizzam 
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PREFÁCIO
Poderíamos ter chamado a este livro: «O que é a hermenêu­
tica?» ou «O significado da hermenêutica», pois ele é, entre outras 
coisas, um registo da busca feita pelo seu autor no que respeita 
à compreensão de um termo imediatamente desconhecido para a 
maior parte das pessoas cultas e ao mesmo tempo potencialmente 
significativo para uma série de disciplinas relacionadas com a inter­
pretação, especialmente com a interpretação de textos.
Este estudo emergiu de um projecto mais específico, que dizia 
respeito ao significado que a teoria de Bultmann sobre a interpre­
tação bíblica teve para a teoria literária: durante este estudo tor- 
nou-se evidente a necessidade de uma clarificação fundamental do 
que fossem o desenvolvimento, significado e âmbito da própria 
hermenêutica. Uma clarificação desse tipo tornou-se de facto num 
pré-requisito para o projecto original. À medida que prosseguia nesse 
trabalho preliminar, as possibilidades ricamente sugestivas de uma 
hermenêutica geral e não teológica (que, de facto, constituem a 
base da teoria de Bultmann e da «nova hermenêutica») levaram-me 
a focar apenas uma forma pré-teológica de hermenêutica, enquanto 
diz respeito à teoria da interpretação literária.
Porque as fontes primitivas neste campo relativamente des­
conhecido são essencialmente em alemão, vi-me obrigado a expô-las 
de um modo bastante extenso. E porque a própria definição do 
termo hermenêutica se tornou tema de uma acerba controvérsia, 
foi necessário abordar com certa profundidade o problema da defi­
nição, antes de discutir os quatro teóricos de maior nome neste 
campo.
Por fim, reservou-se para um segundo volume o exame deta­
lhado das implicações da hermenêutica na teoria literária, facto que 
constituíra em primeiro lugar a justificação deste projecto, embora 
o primeiro e os dois últimos capítulos deste trabalho possam dar ao 
leitor interessado uma sugestão do que em seguida virá.
9
Talvez seja bom acrescentar uma nota técnica a explicar a 
minha escolha do termo hermeneutics (hermenêutica) (*). James 
M. Robinson em The New Hermeneutic sugeriu que. não há qual­
quer justificação filológica para colocarmos um s no fim da palavra; 
nem «aritmética» nem «retórica» requerem um 5 e ambas designam 
um campo geral. Mais ainda, «hermeneutics» é um feminino singular 
noutras línguas modernas — hermeneutik em alemão; herméneu- 
tique em francês — e vem do latim hermeneutica. Robinson aventou 
que a queda do s (no termo inglês) poderia também sugerir uma 
nova orientação na teoria hermenêutica, aquilo que veio a desig­
nar-se por a Nova Hermenêutica.
Não ponho em causa a irrefutabilidade filológica do argumento 
defendido por este eminente teólogo americano. A minha utilização 
do s em «hermeneutics» também não deve ser encarada como uma 
rejeição da posição hermenêutica representada pela Nova Herme­
nêutica. Pelo contrário, os contributos de Heidegger e de Gadamer 
para a hermenêutica (hermeneutics) constituem os fundamentos da 
Nova Hermenêutica e proponho afastar-me de uma abordagem 
hermenêutica estritamente filológica, realçando o carácter frutífero 
da perspectiva mais fenomenológica que estes autores defendem 
face ao problema hermenêutico. Contudo, por razões meramente 
práticas, decidi-me a deixar o termo hermeneutics no seu estado 
de pecado filológico: a palavra é já de si suficientemente estra­
nha e desconhecida, sendo desnecessário acrescentar-se-lhe mais 
esta dificuldade.
Também ao reter o s há uma maior flexibilidade na utilização 
do termo. Podemos, por exemplo, referir genericamente o campo da 
hermenêutica (hermeneutics) e a teoria específica de Bultmann, 
designando-a como a hermenêutica de Bultmann (Bultmann’s her­
meneutic).
Para além disto, há o facto de a forma adjectiva poder ser 
«hermenêutica» («hermeneutic or hermeneutical») como na teoria 
hermenêutica ou na teologia hermenêutica. Porque «hermenêutica» 
tende a soar como um adjectivo, a menos que seja acompanhado 
do artigo «a» ou de qualquer outro modificador, e porque o s 
sugere «regras» e «teoria», continuei a utilização estandardizada.
Agradeço ao American Council of Learned Societies a bolsa 
que me concedeu (Post — Doctoral Study Fellowship) e que me 
permitiu passar o ano de 1964-1965 no Institut für Hermeneutik, 
na Universidade de Zurique e na Universidade de Heidelberg. Os 
meus especiais agradecimentos vão para o Professor Gerhard Ebeling,
(*) O autor utiliza o termo hermeneutics e não hermeneutic. A nota 
visa justificar esta distinção. Optámos em português pela designação genérica 
de hermenêutica. (N. da T.)
10
então director do Instituto, e para o seu assistente Fricdricli IIn te l, 
pelo facto de me terem permitido estudar e dactilografar o trubalho 
a qualquerhora, não falando já da sua constante ainabilidudc c 
assistência. Em Heidelberg, o Professor Gadamer permitiu amavel­
mente que eu assistisse ao seu «Hegelkreiss» e que apresentasse uma 
comunicação «Die Tragweite von Gadamers Wahrheit und Methude 
fü r die Literaturauslegung»; as críticas e reflexões pessoais feitas 
pelo Professor Gadamer nessa ocasião foram da maior utilidade. 
Também gostaria de lhe agradecer o facto de me ter apresentado 
a Heidegger e de agradecer ao Professor Heidegger a reacção favo­
rável que teve à minha ideia de utilizar a sua teoria da compreensão 
como a base de uma abordagem fenomenológica da interpretação 
literária.
Os meus agradecimentos vão também para os administradores 
do Mac M urray College, pelo subsídio suplementar que me conce­
deram e que permitiu que a minha família se deslocasse comigo 
para a Europa. Também lhes agradeço a recente ajuda no que 
respeita às despesas de dactilografia do manuscrito final.
Os colegas que se seguem tiveram a amabilidade de ler e cri­
ticar partes do manuscrito: Lewis S. Ford (Raymond College), 
Severyn Bruyn (Boston College), William E. Umbach e William 
W. Main (Universidade de Redlands), John F. Smolko (Catholic 
University of America), Gordon E. Michalson (School of Theology, 
Claremont), Karl Wright, J. Weldon Smith, Gisela Hess, Philip 
Decker e Ruth O. Rose (todos do Mac Murray College) e James 
M. Eddie (Northwestern University). Os meus especiais agradeci­
mentos vão para os colegas que leram integralmente o manuscrito 
em qualquer das suas fases de elaboração: Calvin Schrag (Univer­
sidade de Perdue), Theodore Kisiel (Canisius College), Ruth Kovacs 
(Mac Murray College) e de um modo especial Roger Wells (jubi- 
lado de Bryan Mawr e actualmente em Mac Murray), cujas suges­
tões editoriais muito apreciei. O autor deseja agradecer a Miss 
Victoria Hargrave e a Mrs. Glenna Kerstein, da biblioteca de Mac 
Murray, a sua assistência incansável. Também agradece aos seguin­
tes estudantes de Mac Murray College pelas sugestões prestadas e 
pelo trabalho de dactilografia: Jackie Menefee, Ann Baxter, Shamin 
Lalji, Sally Shaw, Peter Brown e Ron Heiniger.
Por fim, minha mulher e os meus filhos suportaram sem uma 
queixa todo o tempo que roubei à sua companhia. A minha mulher 
fez a revisão de provas de todo o manuscrito. Também estou grato 
a Edward Surovell, da Northwestern University Press, pela leitura 
criteriosa que fez do meu manuscrito.
R. E. P.
Mac Murray College
Janeiro, 1968
11
PRIM EIRA PARTE
SOBRE A DEFINIÇÃO, ÂMBITO E SIGNIFICADO 
DA HERMENÊUTICA
1
INTRODUÇÃO
Hermenêutica é uma palavra que cada vez mais se ouve nos 
círculos teológicos, filosóficos e mesmo literários. A Nova Herme­
nêutica emergiu como um movimento dominante na teologia 
protestante europeia, defendendo a hermenêutica como o ponto 
central dos actuais problemas teológicos f ) . Houve três conferências 
sobre hermenêutica de âmbito internacional, na Drew University O 
e é possível encontrar várias obras recentes em inglês sobre herme­
nêutica num contexto teológico (3). Martin Heidegger, num conjunto 
de ensaios recentemente publicados, discute o carácter persistente­
mente hermenêutico do seu próprio pensamento, no que respeita 
tanto ao primeiro como ao último Heidegger (*). A própria filo­
sofia, afirma Heidegger, c (ou devia ser) «hermenêutica». E, em 
1967, o esplêndido isolamento da crítica literária americana no que 
respeita à hermenêutica foi destruído pela obra de E. D. Hirsch 
Validity in Interpretation. O tratado de Hirsch é um ensaio com­
pleto sobre hermenêutica, constituindo um desafio às ideias domi­
nantes da crítica actual. Segundo Hirsch, a hermenêutica pode e
(') Ver a posição de Gcrhard Ebeling, que defende ser a hermenêutica 
o Brennenpunkt (ponto central) dos problemas teológicos de hoje.
O Em 1962, 1964 e 1966. As comunicações da Conferência de 1962 
foram publicadas em NH. Os encontros de 1966 foram publicados — «Inler- 
pretation: The Poetry of Meaning», ed. Stanley R. Hooper and David L. Millcr. 
A obra «The later Heidegger and Theology», ed. James M. Robinson e John 
B. Cobb, Jr. está intimamente relacionada com as conferências.
(3) Acrescentando-se a NH, e mais recentemente a Robert W. Funk, 
nLanguage, Hermeneutic and Word of God», veja-se o «Journal of Theology» 
e as «Church series of books» editadas por Robert W. Funk e Gerhard Ebeling, 
especialmente «The Bultmann School of Biblical Interpretation: New Direc- 
tions»? e «History and Hermeneutics».
(') «Aus einem Gesprãch von der Sprache», US esp. 95-99, 120-32, 136, 
150-55.
15
deve servir de disciplina fundamental, preliminar a toda a inter­
pretação literária.
Com estas reivindicações contemporâneas da importância cen­
tral de hermenêutica em três disciplinas humanísticas — teologia, 
filosofia e interpretação literária — torna-se cada vez mais evidente 
a importância que este domínio assumirá nas fronteiras do pensa­
mento americano nos próximos anos. Mas o termo não é uma 
palavra usual quer na filosofia quer na crítica literária; e mesmo 
em teologia o seu uso aparece muitas vezes num sentido restrito 
que contrasta com um uso largamente feito na «nova hermenêu­
tica» teológica contemporânea. Daí o colocar-se frequentemente 
a questão: que é a hermenêutica? O Webster Thircl New Inter­
national Dictionary define-a como: o estudo dos princípios meto­
dológicos de interpretação e de explicação; hermenêutica específica: 
o estudo dos princípios gerais de interpretação bíblica. Uma defi­
nição deste tipo poderá satisfazer aqueles que apenas pretendam 
uma compreensão operatória da própria palavra; os que pretendam 
alcançar uma ideia do campo da hermenêutica exigirão muito mais. 
Infelizmente, não há por enquanto em inglês nenhum tratamento 
completo de hermenêutica enquanto disciplina geral, não teológica.
No entanto, há uma necessidade premente no sentido de uma 
abordagem introdutória à hermenêutica num contexto não teoló­
gico, orientado para a clarificação do sentido e do âmbito do termo.
O presente trabalho pretende ir ao encontro desta necessidade. 
Dar-se-á ao leitor uma ideia da fluidez da hermenêutica e dos 
problemas complexos que se ligam à sua definição. Discutir-se-So 
os problemas básicos que preocuparam quatro dos maiores pensa­
dores sobre este tema. Também rerão dadas referências bibliográ­
ficas básicas para uma exploração ulterior.
Contudo, para o seu autor, este livro situa-se no contexto de 
um outro projecto — o de se orientar numa abordagem mais ade­
quada da interpretação literária. Na teoria hermenêutica alemã, 
podemos encontrar as bases filosóficas para um conhecimento radi­
calmente mais amplo dos problemas da interpretação literária. 
Assim, o objectivo de explorar a hermenêutica subordina-se neste 
livro a uma outra finalidade: delinear a matriz das razões no âmbito 
das quais os teóricos literários americanos poderão significativa­
mente retomar a questão da interpretação, num nível filosófico 
anterior a todas as considerações de aplicação a técnicas de análise 
literária. Pondo a questão de um modo programático, a finalidade 
deste livro é apelar para que a interpretação literária americana 
reexplore num contexto fenomenológico a pergunta: o que é inter­
pretação? Por fim, este estudo aponta uma orientação específica 
para o problema: a abordagem fenomenológica. Vê na hermenêu­
16
tica fenomenológica, contra outras formas, o contexto mais ade­
quado para a questão ser explorada.
Na perspectiva da finalidade programática deste estudo rela­
tivamente à interpretação literária, as duas secções que se seguem 
apresentam algumas observações preliminares sobre a situação da 
crítica literária americana e sobre a necessidade de uma reavaliaçflo 
filosófica do pensamento literário americano.
Algumas conseqüências do senso comum. 
A objectividadena critica literária americana
Filosoficamente falando, a interpretação literária em Inglaterra 
e na América actua de um modo geral num contexto realista (*). 
Tende a pressupor, por exemplo, que a obra literária está simples­
mente «lá fora», no mundo, essencialmente independente daqueles 
que a captam. A percepção que cada um tem da obra é considerada 
separadamente da própria obra, e a interpretação literária tem 
como tarefa falar da «própria obra». De igual modo, as intenções do 
autor são consideradas enquanto rigidamente separadas da obra; 
a obra é em si mesma «um ser», um ser com os seus próprios 
poderes e a sua dinâmica. Um intérprete moderno típico defende 
geralmente a obra literária como «um ser autônomo» e vê a sua 
tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autônomo por meio 
da análise textual. A separação preliminar de sujeito e objecto, tão 
axiomática no realismo, torna-se o fundamento filosófico e o con­
texto da interpretação literária.
Os frutos extraordinários de um contexto deste gênero tor- 
nam-se patentes na arte altamente desenvolvida das recentes análises 
de texto. Esta arte não tem ponto de comparação na história da 
interpretação literária ocidental, no que respeita a poder técnico 
e a subtileza. Chegou, no entanto, a hora de pôr em causa o fun­
damento dos pressupostos sobre os quais assenta. E isto faz-se 
melhor, não do interior da própria perspectiva realista, mas saindo 
dela e inspeccionando-a. A fenomenologia é uma orientação do 
pensamento europeu que submeteu as concepções realistas da 
percepção e da interpretação a uma crítica radical. Ao fornecer 
a chave para uma reavaliação dos pressupostos sobre os quais se 
baseia a interpretação literária inglesa e americana, a fenomeno­
logia poderia fornecer o ímpeto para um próximo e decisivo avanço 
na teoria e na prática da interpretação americana.
Um estudo da fenomenologia tom a especialmente visível a 
semelhança essencial entre o realismo e a perspectiva «científica»
(s) Ver Neal Oxenhandler, «Ontological Criticism in America and France», 
HLR, LV (1960) 17-18.
17
mostrando até que ponto a interpretação literária caiu num modo 
científico de pensar: a sua objectividade operatória, a sua concep- 
tuulização estática, a sua ausência de sentido histórico, o seu amor 
l>ela análise. Porque, com todas as suas pretensões humanísticas 
e a defesa inflamada que faz da poesia «numa era de tecnologia», 
a crítica moderna literária tornou-se cada vez mais tecnológica. 
Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma 
obra literária (mau grado a sua «existência autônoma») tende a ser 
encarado como um objecto — um «objecto estético». O texto é 
analisado numa total separação relativamente a qualquer sujeito 
percepcionante, e a «análise» é considerada como sendo virtual­
mente sinônima de «interpretação».
Mesmo a recente aproximação com a crítica social, numa 
espécie de formalismo iluminado, apenas alarga a definição do 
objecto, incluindo na análise o seu contexto social (*). A interpre­
tação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada 
como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem bio­
lógica) do objecto (ou «ser») literário. É claro que como este ser 
ou objecto «estético», pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais 
«humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no en­
tanto, a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como 
ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação. 
Nas aulas de literatura, diz-se mesmo aos estudantes que a expe­
riência pessoal que têm de um trabalho extraliterário é uma espécie 
de falácia irrelevante para q análise da obra Ç). Os professores, uni­
dos em convênio gigantesco, lamentam ritualmente o facto de os 
seus alunos acharem a literatura «irrelevante»; mas a concepção 
tecnológica que têm da interpretação, com a sua metafísica de um 
realismo envolvente, promove realmente a própria irrelevância que 
eles tão ineficazmente lamentam. «A ciência manipula as coisas e 
desiste de viver nelas», diz-nos o falecido fenomenologista francês 
Maurice Merleau-Ponty (!). Isto resume numa frase o que aconteceu 
à interpretação literária americana. Esquecemos que a obra literária 
não é um objecto manipulável, completamente à nossa disposição; 
é uma voz humana que vem do passado, uma voz à qual temos de 
certo modo que dar vida. O diálogo, e não a dissecação, abre o 
universo da obra literária. A objectividade desinteressada não é ade- 
quávcl à compreensão de uma obra literária. É claro que o crítico 
moderno defende a paixão — e mesmo a capitulação perante «a exis­
tência autônoma da obra» —, mas, não obstante, vai trabalhando a
(*) í>, precioso o capítulo final da obra de Walter Sutton «Modem Ame­
rican Crillcism» (a crítica como um acto social).
(’) listou a pensar na bem conhecida «falácia afectiva» como foi, por 
mrmplo, apresentada na obra de William K. Wimsatt Jr., «The Verbal Icon».
(') «liyr and Mind», tradução Carleton Dallery, in Merleau-Ponty «The 
1'rlriiin v nI 1‘trctption and other Essays», ed. James M. Edie, pág. 1S9.
18
obra, considerando-a como um objecto de análise. Contudo, iti 
obras literárias serão consideradas mais perfeitamente não enquanto 
objectos de análise mas como textos que falam, criados por seres 
humanos. Há que arriscar o nosso «mundo» pessoal se queremos 
penetrar no mundo vivo de um grande poema lírico, de um romance 
ou de uma obra. E para isso, não precisamos de qualquer método 
científico disfarçado, ou de qualquer «anatomia de uma crítica», 
com tipologias e classificações muito brilhantes e subtis f ) , mas sim 
de uma compreensão humanística daquilo que implica a interpre­
tação de uma obra.
Interpretação literária, hermenêutica e Interpretação 
de obras
A tarefa da interpretação e o significado da compreensão são 
diferentes (uma mais indefinível, outra mais histórica) no que res­
peita a uma obra e no que respeita a um «objecto». Um «objecto» 
é sempre selado com um toque humano; a própria palavra o sugere, 
porque uma obra é sempre a obra de um homem ou de Deus. Por 
outro lado, um «objecto» pode ser uma obra ou pode ser um objecto 
natural. Usar o termo «objecto» relativamente a uma obra é tornar 
obscura uma distinção importante, pois temos necessidade de enca­
rar a obra não como objecto mas como obra. A crítica literária 
precisa de procurar um «método» ou «teoria» especificamente ade­
quados à decifração da marca humana numa obra, ao seu «signi­
ficado». Este processo de «decifração», esta «compreensão» do signi­
ficado de uma obra, é o ponto central da hermenêutica. A herme­
nêutica é o estudo da compreensão, é essencialmente a tarefa de 
compreender textos. As ciências da natureza têm métodos para 
compreender os objectos naturais; as «obras» precisam de uma her­
menêutica, de uma «ciência» da compreensão adequada a obras 
enquanto obras. É certo que os métodos de «análise científica» 
podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo 
estamos a tratar as obras como objectos silenciosos e naturais. Na 
medida em que são objectos, são redutíveis a métodos científicos de 
interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão 
mais subtis e compreensíveis. O campo da hermenêutica nasceu 
como esforço para descrever estes últimos modos de compreensão, 
mais especificamente «históricos» e «humanísticos».
Como veremos nos próximos capítulos, a hermenêutica chega à 
sua dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de 
artifícios e de técnicas de explicação de texto e quando tenta ver 
o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação
(") Especialmente a obra de Northorp Frye «Anatomy of Criticism».
19
geral da própria interpretação. Deste modo, implica dois pólos de 
atenção, diferentes e interactuantes: 1) o facto de compreender 
um textoe 2) a questão mais englobante do que é compreender e 
interpretar.
Um dos elementos essenciais para uma teoria hermenêutica ade­
quada e, consequentemente, para uma teoria adequada da interpre­
tação literária, é uma concepção da própria interpretação que seja 
suficientemente lata (” ). Consideremos por um momento a ubiqui- 
dade da interpretação e a generalidade da utilização da palavra: 
O cientista chama «interpretação» à análise que faz dos dados; 
o crítico literário chama interpretação à análise que faz de uma 
obra. Chamamos intérprete ao tradutor de uma língua estrangeira; 
um comentador de notícias «interpreta» as notícias. Interpreta­
mos — por vezes erradamente — uma observação de um amigo, uma 
carta de familiares, ou um sinal da estrada. Na verdade, desde que 
acordamos de manhã, até que adormecemos, estamos a «interpre­
tar». Ao acordar, olhamos para o despertador e interpretamos o 
seu significado: lembramos em que dia estamos e ao compreender 
o significado desse dia estamo-nos já a lembrar do modo como nos 
situamos no mundo e dos planos de futuro que temos; levantamo-nos 
e temos que interpretar as palavras e os gestos das pessoas que con­
tactamos na nossa vida diária. A interpretação é, portanto, talvez 
o acto essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio 
facto de existir pode ser considerado como um processo constante 
de interpretação.
A interpretação ultrapassa o mundo lingüístico em que o homem 
vive, pois a própria existência dos animais depende dela. Estes sen­
tem o modo como se situam no mundo. Um pouco de comida em 
frente de um chimpanzé, de um cão ou de um gato será interpre­
tado pelo animal em termos das suas próprias necessidades e da 
sua própria experiência. Os pássaros conhecem os sinais que os 
levam a voar em direcção ao Sul.
É claro que há uma interpretação constante a muitos níveis lin­
güísticos, tecidos pela convivência humana. Joachim Wach diz-nos 
que podemos conceber a existência humana sem linguagem, mas 
não a podemos conceber sem uma compreensão mútua de um 
homem para outro — ou seja, não a podemos conceber sem inter­
pretação. No entanto, a existência humana (“ ) tal como a conhe­
cemos implica sempre a linguagem e, assim, qualquer teoria sobre 
interpretação humana tem que lidar com o fenômeno da linguagem. 
E entre os mais variados meios simbólicos de expressão usados pelo 
homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer na flexibilidade e
(“ ) Ver o meu artigo «Toward a Broader Concepl of Interpretation» ISN 
(Novembro 1967), 3-14, e a minha resenha de VII in JAAR, XXXVI (Setembro 
1968) 243-46.
O1) V I, 1.
20
poder comunicativos, quer na importância geral que desempenha (” ). 
A linguagem molda a visão do homem e o seu pensamento — simul­
taneamente a concepção que ele tem de si mesmo c do seu mundo 
(não sendo estes dois aspectos tão separados como parecem). 
A própria visão que tem da realidade é moldada pela linguagem (1J). 
Muito mais do que pensa, o homem veicula através da linguagem 
as várias facetas da sua vida — aquilo que venera, aquilo que ama, 
os comportamentos sociais, o pensamento abstracto; mesmo a forma 
dos seus sentimentos é conforme com a linguagem. Se considerar­
mos este tema em profundidade, torna-se visível que a linguagem é 
o «medium» no qual vivemos, nos movemos e no qual temos o nosso 
ser (“ ).
A interpretação é, portanto, um fenômeno complexo e universal. 
E no entanto até que ponto o crítico literário compreende este fenô­
meno de um modo complexo e profundo? Temos que nos interrogar 
se os críticos não tenderão a equacionar análise e interpretação. 
Temos que nos interrogar se acaso as asserções realisticamente meta­
físicas e as suposições que estão na base de quase todas as formas 
da crítica moderna não apresentarão uma visão da interpretação, 
simplificada e mesmo distorcida. Uma obra literária não é um 
objecto que compreendemos através da conceptualização ou da aná­
lise; é uma voz que devemos ouvir, e «ouvindo-a» (mais do que 
vendo-a) comprendemo-la. Como sugeriremos nos capítulos seguin­
tes, a compreensão é simultaneamente um fenômeno epistemológico 
e ontológico. A compreensão literária tem que se enraizar em modos 
de compreensão mais latos e primordiais que têm a ver com o 
nosso próprio ser-no-mundo. Portanto, compreender uma obra 
literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge 
da existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico 
que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo.
A hermenêutica é o estudo deste último tipo de conhecimento. 
Pretende juntar duas áreas da teoria da compreensão: o tema da­
quilo que está envolvido no facto de compreender um texto e o 
tema de o que é a própria compreensão, no seu sentido mais fun- 
dante e «existencial». Enquanto corrente de pensamento alemão, a 
hermenêutica acabou por ser profundamente influenciada pela feno- 
mcnologia alemã e pela filosofia existencial. E é claro que- o signi­
ficado que tem para a interpretação literária americana é realçado 
pela aplicação desse pensamento aos problemas da interpretação 
dc textos.
O esforço constante de lidar com o fenômeno da compreensão 
naquilo em que ele ultrapassa a mera interpretação textual, dá à
(IJ) Ver Ernst Cassirer, «Philosophy of Symbolic Forms» e o capítulo sobre 
lliiKUUKcm na sua obra «Essay on Man*.
(•*) Ver Benjamin Whorf, «Language, Thoughl and Reality».
(“ ) Ver mais adiante os capítulos sobre Heidegger e sobre Gadamer.
21
hermenêutica um significado potencialmente lato no que se refere 
a todas as disciplinas habitualmente designadas por humanidades. 
A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão 
das obras humanas, transcende as formas lingüísticas de interpre­
tação. Os seus princípios aplicam-se não só a obras escritas, mas 
também a quaisquer obras de arte. Visto isto, a hermenêutica é 
fundamental em todas as humanidades — em todas as disciplinas 
que se ocupam com a interpretação das obras do homem. É mais 
do que meramente interdisciplinar, porque os seus princípios in­
cluem um fundamento teórico para as humanidades (“ ); os seus 
princípios deviam colocar-se como um estudo essencial para todas 
as disciplinas humanísticas.
O contraste acima feito entre uma compreensão científica e 
aquilo a que chamámos uma compreensão histórica ou hermenêu­
tica, torna mais claro o carácter distinto da tarefa interpretativa 
nas humanidades. E, por contraste, também clarifica o carácter de 
interpretação nas ciências. Através de um estudo da teoria herme­
nêutica, as humanidades alcançam uma medida mais cheia de auto- 
conhecimento e uma melhor compreensão do carácter da sua tarefa.
O presente estudo'tenta, no entanto, lançar os fundamentos filo­
sóficos para explorar o significado da hermenêutica na interpretação 
literária. Esses fundamentos deverão ser uma compreensão ade­
quada do que é a própria hermenêutica. Na busca dessa compreen­
são, este livro começa com as raízes grçgas da moderna palavra 
«hermenêutica», traçando depois o desenvolvimento de certas con­
cepções da teoria hermenêutica (tanto quanto se chamou a si pró­
pria hermenêutica) nos tempos modernos. Finalmente, explora com 
certo pormenor os problemas que inquietaram quatro dos principais 
pensadores dessa área. A busca não é de modo algum exaustiva, 
mas preliminar; não entra na utilização da hermenêutica na teo­
logia contemporânea O , nem tenta discutir o incremento deste 
tema que actualmente ocorre em França (17). Os capítulos finais dão 
realmente algumas indicações sobre o significado da hermenêutica 
fenomenológica no que respeita à interpretação literária, mas o pre­
sente estudo é encarado essencialmente como uma introdução filo­
sófica à hermenêutica, podendo servir simultaneamente de funda­
mento para um segundo volume que discuta a hermenêutica na sua 
relação com a teoria literária.C“ ) Ver HAMG e AAMG.
C*) A nota 3 acima mencionada faz uma listagem de referências nesse 
campo.
(,T) Com uma pequena excepção que é a discussão no capitulo cinco 
de D. I. de Ricoeur; ver também a sua «Exislence et Hermeneutique» Dialogue, 
IV (1965-6) 1-25, e a sua obra «La Structure, Le Mot, VEvènement», M EW 
I, (1968), 10-30.
22
2
HERM ENEUEIN E HERMENEIA:
O SIGNIFICADO MODERNO DO SEU ANTIGO USO
As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego her- 
meneuein, usualmente traduzido por «interpretar», e no substantivo 
liermeneia, «interpretação». Uma exploração da origem destas duas 
palavras e das três orientações significativas básicas que elas veicula- 
vam no seu antigo uso esclarece consideravelmente a natureza da 
interpretação em teologia e em literatura e servirá no actual con­
texto de introdução válida para a compreensão da hermenêutica 
moderna.
Hermeneuin e hermeneia, nas suas várias formas, aparecem 
inúmeras vezes em muitos dos textos que nos vieram da Antiguidade. 
Aristóteles no Organon considerou que o tema merecia um trata­
do importante, o famoso Peri hermeneias, «Da interpretação», (’). 
A palavra aparece na sua forma substantiva em «Édipo em Co­
lono», e muitas vezes em Platão. Encontram-se inúmeras forrnas do 
termo na maior parte dos escritores antigos mais conhecidos, como 
Xenofonte, Plutarco, Eurípedes, Epicuro, Lucrécio e Longino (J). 
Poder-se-ia consagrar um estudo frutífero ao contexto de cada ocor­
rência, para determinar em cada caso os matizes de significado; 
neste capítulo, apenas notaremos a associação das palavras com o 
deus Hermes, apontaremos três vertentes essenciais do seu signifi­
cado e sugeriremos algo sobre o seu actual sentido, especialmente 
no que respeita à interpretação literária e bíblica.
(') Aristóteles. The Basic Works, págs. 40-61. Tem interesse uma tradução 
roccnte do tratado: Aristóteles, «Da interpretação», com comentário de S. Tomás 
do Aquino e de Caetano, tradução e introdução de Jean T. Oecterle.
(a) Hermeneia e hermêneuein, G E L . Ver também Johannes Bhem, Er- 
mrncuo, ermeneia in TDNT II, 661-66.
23
As origens e as três orientações significativas 
de «hermeneuein» e «hermeneia»
A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo 
de Delfos. Esta palavra, o verbo hermeneuein e o substantivo her­
meneia, mais comuns, remetem paar o deus-mensageiro-alado 
Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou 
vice-versa?). E é significativo que Hermes se associe a uma fun­
ção de transmutação — transformar tudo aquilo que ultrapassa 
a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga 
compreender. As várias formas da palavra sugerem o processo 
de trazer uma situação ou uma coisa, da inteligibilidade à com­
preensão. Os Gregos atribuíam a Hermes a descoberta da linguagem 
e da escrita — as ferramentas que a compreensão humana utiliza 
para chegar ao significado das coisas e para o transmitir aos outros.
M artin Heidegger, que vê a própria filosofia, enquanto «inter­
pretação», relaciona explicitamente a filosofia-como-hermenêutica 
com Hermes. Hermes «traz a mensagem do destino; hermeneuein 
é esse descobrir de qualquer coisa que traz uma mensagem, na 
medida em que o que se mostra pode tornar-se mensagem. Uma 
tal descoberta torna-se numa explicação do que já fora dito pelos 
poetas, que são eles próprios, segundo Sócrates no diálogo platônico 
«Ion» (534 e) «mensageiros (Botschafter) dos deuses», hermenes eisin 
tòn tehon (J). Assim, levada até à sua raiz grega mais antiga, a ori­
gem das actuais palavras «hermenêutica» e «hermenêutico» sugere o 
processo de «tornar compreensível», especialmente enquanto tal pro­
cesso envolve a linguagem, visto ser a linguagem o meio por exce­
lência neste processo.
Este processo de «tornar compreensível», associado a Hermes 
enquanto ele é mediador e portador de uma mensagem, está implí­
cito nas três vertentes básicas patentes no significado de herme­
neuein e hermeneia, no seu antigo uso. As três orientações, usando 
a forma verbal (hermêneuein) para fins exemplificativos, significam: 
1) exprimir em voz alta, ou seja, «dizer»; 2) explicar, como quando 
se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma 
língua estrangeira C).
Os três significados podem ser expressos pelo verbo português 
«interpretar», e no entanto cada um representa um sentido inde-
(») U S 121-122.
(') Relativamente a estas três orientações significativas, ver o precioso 
artigo de Gerhard Ebeling «Hermeneutik» R G G III, 242.
24
pendente e relevante do termo interpretação. A interpretação ptule 
pois referir-se a três usos bastante diferentes: uma recitaçflo oral, 
uma explicação racional e uma tradução de outra língua quer 
para grego quer para português. Podemos, no entanto, notar que 
o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três casos, há 
algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço 
ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; 
há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é, 
de certo modo, «tornado compreensível», «interpretado».
Para começar, podemos notar que a interpretação literária en­
volve dois desses processos e muitas vezes um terceiro. A literatura 
apresenta algo que deve tornar-se compreendido. O termo do texto 
pode estar longe de nós no tempo, espaço, linguagem e pode haver 
outros obstáculos à sua compreensão. Isto também se aplica à 
compreensão de um texto bíblico. A tarefa da interpretação deverá 
ser tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo 
real, próximo e inteligível. Os diferentes aspectos deste processo 
interpretativo são vitais e essenciais quer para a literatura quer 
para a teologia. Examinemos, pois, cada um deles no que respeita 
ao seu significado na interpretação literária e teológica. (É interes­
sante notar como a maior parte dos críticos literários ignoram as 
abordagens interpretativas existentes na teologia cristã contem­
porânea.)
Hermeneuein como «dizer»
A primeira orientação fundamental do sentido de hermeneuein 
é «exprimir», «afirmar» ou «dizer». Isto relaciona-se com a função 
anunciadora de Hermes. Do ponto de vista da teologia, tem signi­
ficado uma polêmica etimológica que nota estar a forma inicial 
herme próxima do latim sermo, «dizer», e do latim verbum, pala­
vra (’)• Isto sugere que o sacerdote ao apresentar a Palavra está 
a «anunciar» e a «afirmar» algo; a sua função não é meramente 
explicar, mas sim proclamar. O sacerdote, tal como Hermes, e tal 
como o sacerdote de Delfos, traz notícias fiéis da divindade. 
Naquilo que diz ou proclama, ele é, tal como Hermes, um- men­
sageiro de Deus para com o homem. Mesmo o simples dizer, afirmar 
ou proclamar é um acto importante de interpretação.
Ainda dentro desta primeira orientação significativa, há um 
matiz vagamente diferente, sugerido pela frase «expressar», que 
ainda mantém um sentido de «dizer», mas que é um dizer que é
(’) Ibidem. James M. Robinson nota, N H 2-3, que hermêneia era tam­
bém usado antigamente para designar um trabalho de formulação lógica ou 
de elocução artística, aquilo a que hoje se chama «interpretação oral».
25
cm si próprio interpretação. Por esta razão, somos orientados pelo 
modo como uma coisa se exprime — o «estilo» de uma «perfor­
mance». Usamos este cambiante da palavra «interpretação» quando 
nos referimos à interpretação que um artista faz de uma canção 
ou que um maestro faz de uma sinfonia. Neste sentido, a interpre­
tação é uma forma de dizer. De igual modo, a dicção oral ou o 
canto são interpretações. No tempo dos gregos, hermeneia podia 
referir-se por exemplo a uma recitação oral de Homero.
No Ion de Platão, o jovem intérprete recita Homero e através 
das suas entoações «interpreta-o», exprimindo-o e mesmo expli- 
cando-o subtilmente, transmitindomais do que ele próprio cons­
tata ou compreende. Assim, torna-se tal como Hermes, num veículo 
da mensagem homérica.
É certo que Homero era ele próprio um intermediário entre os 
deuses e o homem, um «intérprete» que nas palavras de Milton, 
«justificava os caminhos de Deus para o homem». Assim, Homero 
era um intérprete, no sentido mais primitivo da palavra, pelo facto 
de que antes dele as palavras não tinham ainda sido ditas. (É óbvio 
que as lendas já existiam; daí poder-se dizer que ele apenas «inter­
pretava» e enunciava as lendas.) Dizia-se que o próprio Homero 
fora inspirado pelos deuses; no seu «dizer», era um intérprete deles.
O dizer e a recitação oral enquanto «interpretação» recordam 
aos literatos um nível que muitos deles tendem a desprezar ou 
mesmo a esquecer. E, no entanto, a literatura faz derivar muito do 
seu dinamismo, do poder da palavra falada. Desde tempos imemo­
riais que as grandes obras da linguagem são feitas para serem ditas 
em voz alta e para serem ouvidas. Os poderes da linguagem falada 
deveriam recordar-nos um importante fenômeno: a fraqueza da 
linguagem escrita. A linguagem escrita não tem a «expressividade» 
primordial da palavra falada. Todos sabemos que a passagem de 
uma língua a escrito a vai fixar e conservar, dando-lhe estabilidade, 
constituindo as bases da história (e da literatura), mas ao mesmo 
tempo sabemos que a enfraquece. Na sua Carta Sétima e também 
no Fédro, Platão enfatiza a fraqueza e inutilidade da linguagem 
escrita. Toda a linguagem escrita apela para uma reconversão na sua 
forma falada; apela para um poder perdido. Escrever uma língua 
é «uma alienação da língua» relativamente à sua vivacidade — é uma 
Selbstentfremdung der Sprache (*), um autodistanciamento da fala. 
(A palavra alemã para língua, Sprache, é sugestiva dessa forma 
primordial da linguagem que é a de ser falada.)
As palavras orais parecem ter um poder quase mágico, mas ao 
tornarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura 
usa palavras de modo a tirar o máximo partido da sua «eficácia», 
mas, no entanto, muito do seu poder se esgota quando a audição
(•) Ver W M 370-71.
26
se converte num processo visual de leitura. Naturalmente que não 
podemos hoje recuar para uma transmissão oral da literatura (e há 
vantagens numa transmissão escrita), mas não deveríamos esquecer 
que a linguagem na sua forma originária é mais ouvida do que 
vista e de que há boas razões que fazem com que a linguagem oral 
seja mais facilmente «compreendida» do que a linguagem escrita.
Consideremos o facto da leitura em voz alta. A interpretação 
oral não é uma resposta passiva aos signos no papel, à maneira de 
um fonógrafo que toca um disco; é um tema criativo, 6 uma «per­
formance», semelhante à de um pianista que interpreta uma peça 
musical. Qualquer pianista poderá dizer-nos que uma partilura 
musical é como uma casca. Para interpretar a música é preciso 
chegar ao «sentido» das frases. O mesmo se passa com a leitura da 
linguagem escrita. Um intérprete oral tem apenas um envólucro do 
original — «contornos» de sons sem indicação do tom, ênfase ou 
atitude, e no entanto tem que reproduzir sons vivos. Mais uma 
vez, aquele que reproduz tem que chegar ao sentido das palavras, 
de modo a exprimir, mesmo que seja uma só frase. Mas como se 
passa esta misteriosa apreensão de sentido? O processo é um para­
doxo confuso: para lermos algo torna-se necessário compreender 
previamente o que vai ser dito e, porém, esta compreensão 
deverá vir da leitura. O que aqui começa a emergir é um complexo 
processo dialéctico implicado em toda a compreensão, na medida 
em que torna uma frase significativa e, de certo modo, numa orien­
tação oposta, lhe fornece o alvo e o relevo. Só estes conseguirão 
tornar significativa a palavra escrita. Assim, a interpretação oral 
tem duas vertentes: é necessário compreender algo para o podermos 
exprimir e, no entanto, a própria compreensão vem a partir de uma 
leitura-expressão interpretativa.
Para quem profissionalmente esteja ligado à «interpretação lite­
rária», particularmente para os professores de literatura, que sen­
tido terá o facto da linguagem falada ser considerada em si mesma 
como um fenômeno interpretativo? Fundamentalmente torna-se ne­
cessário reexaminar o papel da interpretação oral em todo o ensino 
da literatura. Pois não será a leitura de produções literárias (pelo 
estudante) uma «performance» análoga à interpretação musical? 
Precisamos de nos interrogar sobre quantas produções literárias 
foram escritas directamente para serem lidas em silêncio. Os roman­
ces foram-no nitidamente e alguns poemas recentes assentam oca­
sionalmente sobre efeitos visuais; no entanto, mesmo nestes casos, 
não é verdade que muitas vezes (e com toda a justiça) imaginamos 
os sons à medida que os lemos?
Por exemplo, ao ler um romance de Dostoiévsky, não é que ou­
vimos o diálogo por meio de uma «audição interna?» Não será pois 
o sentido inseparável das entoações auditivas fornecidas de acordo 
com «o círculo do sentido contextual» que se construiu no processo
27
de leitura da obra? (Isto, como veremos, é na realidade o «círculo 
hermenêutico».) Aqui está novamente a vertente oposta da dia- 
léctica: o leitor fornece a «expressão» de acordo com a sua com­
preensão do texto. A tarefa da interpretação oral não é de modo 
algum uma mera técnica que exprima um sentido totalmente co­
piado; é uma tarefa filosófica e analítica e nunca pode divorciar-se 
do problema da própria compreensão. Mais especificamente, «o 
problema da compreensão», especialmente o da compreensão da 
linguagem, é intrínseco a toda a «interpretação literária». É este 
problema que constitui o tema da hermenêutica.
Tomemos isto como princípio: Toda a leitura silenciosa de um 
texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral. E os 
princípios de compreensão que se aplicam numa boa interpretação 
oral também se aplicam à interpretação literária como um todo. 
Uma crítica literária que aspira a ser um «Enabling Act» (*), colo­
ca-se em parte como um esforço para compensar a fraqueza e a 
total debilidade da palavra escrita; tenta devolver à obra as dimen­
sões do discurso oral. Consideremos a segunda questão: Não é ver­
dade que um crítico literário avaliará diferentemente uma versão 
oral de um soneto e um a versão escrita do mesmo? No caso da 
interpretação oral, não estará ele na verdade a oferecer uma inter­
pretação rival, uma comparação imaginária com a sua própria inter­
pretação? No caso de ser escrita, não estará à procura de outras 
palavras escritas (e por conseguinte igualmente castrantes, retendo 
o seu conteúdo básico conceptual, visual e não auditivo) para subs­
tituir o que se perdeu com o som das palavras? Não estará ele 
num certo sentido a fornecer aquilo que uma boa interpretação 
oral fornece por meio da pura sonoridade?
Especialmente na «nova crítica», é habitual imaginar que o texto 
fala por si, sem a ajuda de dados biográficos, históricos ou psico­
lógicos. O próprio texto tem o seu «ser» nas palavras, no seu 
arranjo, nas suas intenções, e nas intenções da obra enquanto ser 
de uma determinada espécie. Se assim é, não será que o crí­
tico — que idealmente não domina mas que antes se rende ao ser 
da obra (e é assim que deverá ser) — ajuda a restaurar a perda 
implícita nas palavras escritas? Quando o crítico tom a patentes os 
elementos conceptuais (as suas ferramentas) não estará a construir 
um contexto significativo (um «círculo hermenêutico») a partir do 
qual sairá uma «performance» oral mais apropriada, mesmo que 
disfarçada de leitura silenciosa mais profundamente interpretativa? 
Isto ainda cumpre a intenção da Nova Crítica que é preservar a 
integridade da existência da própria obra, da «heresia da paráfrase», 
pois ela trabalha para que o texto fale por si mesmo. A esta luz, a
(*) Decretoque conferiu à Igreja Estabelecida (Established Church) uma 
certa autonomia. (N. da T.)
28
Nova Crítica sem dúvida que concordaria que uma crítica verda­
deira, «autônoma», é a que se orienta para uma leitura oral mais 
adequada do próprio texto, de modo a que o texto possa existir 
outra vez como um acontecimento significativo no tempo, um ser 
que irradie pela sua verdadeira natureza e integridade.
A interpretação oral ajuda a crítica literária a lembrar-se da 
sua intenção secreta, quando considera (de um modo mais cons­
ciente) a definição da «existência» de uma obra, não como uma 
coisa estática e conceptual, não como uma «essência» atemporal 
que se coisificou enquanto conceito expresso por palavras, mas 
antes como uma existência que realiza o seu poder de existir en­
quanto acontecimento oral no tempo. A palavra tem que deixar 
de ser palavra (i. e. visual e conceptual) e tornar-se «evento»; a 
existência de uma obra literária é uma «palavra evento» que acon­
tece enquanto «performance» oral O- Uma crítica literária ade­
quada orienta-se para a interpretação oral da obra na qual se 
concentra. Nada há na «autonomia existencial» da obra literária 
que contradiga este princípio; pelo contrário, a autonomia da exis­
tência está de acordo com ele (').
O poder da palavra oral é também significativo nessa religião 
centrada no texto que é o Cristianismo. Tanto São Paulo como Lu- 
tero são famosos por dizerem que a salvação vem pelos ouvidos. As 
epístolas de São Paulo foram compostas para serem lidas em voz alta 
e não silenciosamente. Lembremo-nos que a leitura rápida e silen­
ciosa é um fenômeno moderno trazido pela Imprensa. A nossa era 
de velocidade fez da «leitura rápida» uma virtude; é-nos extrema­
mente custoso imprimir a semivocalização das palavras numa 
criança que aprende a ler. E, no entanto, isto era perfeitamente 
normal em épocas passadas. Santo Agostinho afirma que era assim 
que lia. A teologia cristã tem que se lembrar de que a «teologia da 
Palavra» não é uma teologia da palavra escrita mas sim da palavra 
falada, a Palavra que nos confronta na «linguagem evento» das 
palavras faladas. As Escrituras (especialmente na teologia de Bult­
mann) são Kerygma, uma mensagem que deve ser proclamada. 
É certo que a tarefa da teologia é explicar a palavra na língua e no 
contexto de cada época, mas deverá também exprimir e proclamar 
a Palavra no vocabulário da época. O esforço de propagação da 
Bíblia impressa, auto-anular-se-á se a Bíblia for vista basicamente 
como um contrato, como um documento legal ou como uma expli­
cação conceptual do mundo. A linguagem bíblica actua de um 
modo totalmente diferente de um manual de construção ou de uma
O Usei aqui intencionalmente o vocábulo familiar de teologia do «evento 
discursivo» (speech-event theology); ver W F 295 n.° 313, 318-9 e passim.
(*) Algumas teorias modernas da interpretação oral orientam-se para a 
centração numa palavra evento. Ver Don Geiger, «The Sound, Sense and Per­
formance of Literature».
29
folha informativa; «Informação» é uma palavra significativa aponta 
para uma utilização da linguagem diferente da que se encontra na 
Bíblia. Apela para a faculdade racional e não para a personalidade 
no seu todo; para compreendermos uma informação não temos que 
recorrer à nossa experiência pessoal nem que tomar qualquer 
risco — e a informação não é muito afectada por uma leitura silen­
ciosa. Mas a Bíblia não é informação; é uma mensagem, uma «pro­
clamação», e é suposto lê-la em voz alta e ouvi-la. Não é um 
conjunto de princípios científicos; é uma realidade de uma ordem 
diferente da verdade científica. É uma realidade que deve ser com­
preendida como um relato histórico, é um acontecimento para ser 
ouvido.' Um princípio é científico; um acontecimento é histórico. 
A racionalidade de um princípio não é a de um evento. Neste sen­
tido mais profundo da palavra «histórico», a literatura e a teologia 
são, enquanto disciplinas, mais estritamente «históricas» do que 
«científica» (9). Os processos interpretativos adequados à ciência, 
são diferentes dos processos interpretativos adequados aos aconte­
cimentos históricos, ou dos acontecimentos que a teologia e a 
literatura pretendem compreender.
A presente abordagem da primeira orientação significativa do 
antigo uso de hermeneuein — interpretação como dizer e como ex­
primir — levou à afirmação de alguns princípios fundamentais de 
interpretação, quer em literatura quer em teologia. Levou-nos à 
forma e função primordiais da linguagem como som vivo, detentor 
do poder de uma fala significativa. A linguagem, enquanto emerge 
de um não ser, não é signo mas som. Perde algum do seu poder 
expressivo (e por conseguinte do seu significado) quando se reduz 
a imagens visuais — o mundo silencioso do espaço. Por conseguinte, 
a teologia e a interpretação literária devem reconverter a escrita 
em discurso. Os princípios de compreensão que permitem esta con­
versão constituem uma preocupação dominante da moderna teoria 
hermenêutica.
Hermeneuein como «explicar»
A segunda orientação significativa de hermeneuein é «explicar». 
A interpretação como explicação dá ênfase ao aspecto discursivo 
da compreensão; aponta para a dimensão explicativa da interpre­
tação, mais do que para a sua dimensão expressiva. No final de 
contas, as palavras não se limitam a dizer algo (embora também o 
façam e isso seja um movimento fundamental da interpretação); 
elas explicam, racionalizam e clarificam algo. Podemos exprimir
(s) Ver Car! Michalson «The Rationality of Failh».
30
uma situação sem a explicar; exprimi-la é interprctá-la, mas cxpli 
cá-la é também uma forma de «interpretação». Consideremos hIku 
mas das dimensões desta segunda e mais óbvia forma de interpre 
tação e o seu significado actual.
As mensagens crípticas do oráculo de Delfos não interpretavam 
um texto preexistente; eram «interpretações» de uma situação. (As 
próprias mensagens precisavam de ser interpretadas.) Levavam algo 
a exprimir-se (o que é a primeira e primordial orientação significa­
tiva) mas o que levavam a exprimir-se era ao mesmo tempo a 
explicação de algo — algo previamente inexplicado. Levavam o «sig­
nificado» de uma situação à sua formulação verbal; explicavam-no, 
por vezes, por meio de palavras que escondiam tante quanto revela­
vam. Diziam em palavras, algo sobre uma situação, sobre a realidade. 
O significado não estava escondido no estilo ou na maneira de dizer; 
não era isso que constituía a sua preocupação dominante. Tratava-se 
antes de uma explicação, no sentido de dizer algo sobre qualquer 
outra coisa. Asskn, enquanto que num sentido os oráculos apenas 
diziam ou enunciavam, enquanto explicação orientavam-se para 
um segundo momento interpretativo — explicar ou dar conta de 
algo.
O tratado de Aristóteles «Peri hermeneias» define a interpretação 
como «enunciação». Uma definição deste tipo sugere a primeira 
orientação significativa, «dizer» ou «anunciar». No entanto, se o 
texto for aprofundado, como actualmente o podem fazer aqueles 
que lêem inglês, devido a uma recente tradução com um extenso 
comentário de S. Tomás (’°), a segunda orientação também se pode 
aplicar.
Aristóteles define hermeneia referindo-se à operação da mente 
que formula juízos que têm a ver com a verdade ou falsidade das 
coisas. Neste sentido, a «interpretação» é a operação fundamental 
do intelecto quando formula um juízo verdadeiro sobre uma coisa. 
Um pedido, uma ordem, uma pergunta ou uma imprecação não são 
juízos, segundo Aristóteles, mas derivam de juízos. Constituem for­
mas secundárias de frases que se aplicam a situações que o intelecto 
originalmente percebeu sob a forma de juízo. (É típico em Aristó­
teles o facto do intelecto se aperceber do significado sob a forma de 
juízo.) O juízo originário «a árvore é castanha» precede qualquer 
juízo que exprimaum desejo ou uma utilização da mesma. Por 
conseguinte, as «interpretações» não são juízos que tendam para 
uma utilização — como é um pedido ou uma ordem — mas antes 
juízos sobre algo que é verdadeiro ou falso. Aristóteles define-os 
como «um discurso onde há verdade ou falsidade» (17 a 2). Uma 
conseqüência desta definição de interpretação é que tanto a retó­
(” ) Ver a nota (I).
31
rica como a poética estão fora do âmbito do tratado de interpre­
tação, visto que tendem a comover o ouvinte (17 a 5).
A enunciação (interpretação) não pode, segundo Aristóteles con­
fundir-se com a lógica, porque a lógica provém da comparação de 
juízos formulados. A enunciação é a formulação dos próprios juízos, 
não é um processo de raciocínio que parte do conhecido para o 
desconhecido. De um modo geral, Aristóteles divide as operações 
básicas da mente em 1) compreensão simples dos objectos 2) ope­
rações de composição e de divisão, 3) operações de raciocínio 
partindo do conhecido para o desconhecido. A enunciação, tal 
como é discutida na obra Da interpretação é apenas lida com o 
segundo sentido: a operação construtiva e divisiva de formular juí­
zos susceptíveis de verdade ou falsidade. A enunciação não é por­
tanto lógica, retórica ou poética, mas mais fundamental; é a 
enunciação da verdade (ou falsidade) de uma coisa enquanto juízo.
O que fazer com esta definição específica de interpretação, restrita 
mas contudo frutífera? Em primeiro lugar, é significativo o facto 
de a enunciação não ser «a compreensão simples dos objectos» mas 
de lidar com os processos implicados na construção de um juízo 
verdadeiro. Actua ao nível da linguagem mas ainda não é lógica; 
a enunciação alcança a verdade de uma coisa e incorpora-a como 
juízo. O telos do processo não é agir sobre as emoções (a poética) 
ou provocar uma actuação política (retórica) mas sim tornar com­
preensível o juízo.
A enunciação, ao procurar exprimir a verdade de algo tal como 
um juízo proposicional, inclui-se nas operações da mente mais altas 
e puras, na teoria mais do que na prática; preocupa-se mais com 
a verdade e falsidade do que com a utilidade. Não se tratará então 
da primeira orientação significativa e não da segunda? Ou seja, 
mais do que exprimir ou dizer, não se tratará antes de explicar? 
Talvez assim seja; mas temos que ver que a expressão diz respeito 
ao estilo, temos que notar que dizer era quase como que uma 
operação divina: anunciava o divino mais do que enunciava o 
racional. A enunciação para Aristóteles, não é uma mensagem da 
divindade mas uma operação do intelecto racional. E como tal, 
começa imperceptivelmente a transformar-se em explicação. Come­
çamos já a compor e a dividir para encontrar a verdade de um juízo; 
porque o dizer é pensado como juízo, começa já a afirmar-se o 
elemento racional, a verdade torna-se estática e informativa, é um 
juízo sobre uma coisa que corresponde à sua essência. Já a verdade 
é «correspondência» e o dizer é «juízo»; imperceptivelmente, a ver­
dade do «acontecer» transforma-se na verdade estática de princípios 
e de juízos.
E, no entanto, Aristóteles teve razão ao situar o momento da 
interpretação mais cedo do que os processos de análise' lógica. Isto 
chama a atenção para um erro do pensamento moderno, que tende
32
demasiado depressa a fixar automaticamenle a interpretação no 
momento da anáüse lógica. Os processos lógicos são também inter­
pretação, mas a «interpretação» prioritária e fundante tem que ser 
lembrada. Por exemplo, um cientista chamará interpretação às 
análises de dados que faz; também seria correcto chamar inter­
pretação à sua visão dos dados. Mesmo no momento cm que os 
dados se tornaram juízos, ocorreu interpretação. Do mesmo modo 
um crítico literário chamará interpretação à análise que faz de uma 
obra; seria igualmente correcto chamar interpretação ao modo 
como ele vê a obra.
Todavia, a «compreensão» que serve de base à interpretação 
já molda e condiciona a interpretação — é uma interpretação preli­
minar, mas uma interpretação que provocará toda a diferença 
(mudança) porque coloca o palco para uma interpretação subse­
quente. Mesmo quando um intérprete literário se volta para um 
poema e diz: «Isto é um poema, vou compreendê-lo fazendo isto 
ou aquilo», ele iá interpretou a sua tarefa e consequentemente já 
moldou a sua visão do poema ("). E com o seu método, já moldou
0 significado do objecto. Na verdade, método e objecto não podem 
separar-se: o método já delimitou o que veremos. Já nos disse o 
que o objecto é enquanto objecto. Por este facto, todo o método 
é já interpretação; é, no entanto, apenas uma interpretação e o 
objecto, visto com um método diferente, será um objecto diferente.
Portanto, a explicação tem que ser vista no contexto de uma 
explicação ou interpretação mais funda, a interpretação que já 
ocorre no modo como nos voltamos para o objecto. A explicação 
apoiar-sc-á certamente nas ferramentas da análise objectiva, mas 
a selecção das ferramentas relevantes é já uma interpretação da 
tarefa compreensiva. A análise é interpretação; sentir a necessidade 
de análise é também uma interpretação. Assim, a análise não é 
realmente uma interpretação básica mas sim uma forma derivada; 
montou primeiro o palco com uma interpretação essencial e pri­
mária, antes mesmo de começar a trabalhar com os dados. E isto 
infelizmente é tão verdade no que respeita à «análise noticiosa» 
que interpreta os acontecimentos do dia, como para a análise cien­
tífica de laboratório ou para a análise literária feita na sala de 
aula. O carácter derivado da lógica, enquanto dependente de propo­
sições, é suficientemente claro; o carácter caracteristicamente deri­
vado da explicação ou análise não é tão óbvio, mas não é menos 
real.
Um uso interessante da palavra hermenêutica aparece no Novo
1 cstamento, em Lucas 24, 25-27. Jesus ressuscitado aparece:
(“ ) Isto é uma fraqueza inerente ao gênero crítica, por exemplo à tra- 
b i^IIh. Hü observações brilhantes sobre este tipo de crítica, aplicadas a Ésquilo, 
nrn H. D. F. Kitto, «Form and Meaning in Drama» e mais recentemente na
mm «Poitsis».
33
E disse-lhes: «Ó homens loucos, lentos em acreditar no que 
os profetas disseram! Então não era necessário que Cristo 
sofresse tudo isto antes de ser glorificado?» E começando 
pelos livros de Moisés e por todos os profetas interpretou- 
-lhes (diermeneusen) tudo o que acerca dele se dizia nas 
Escrituras.
Repare-se que Cristo apelou para as faculdades dos discípulos: 
«Então não era necessário?» Depois desvendou o significado dos 
textos colocando-os no contexto do seu sofrimento redentor e colo­
cando esse sofrimento no contexto das profecias do Antigo Testa­
mento. Embora a utilização que o Novo Testamento faz do Antigo 
Testamento tenha interesse em si mesma, deixemos de parte o 
problema teológico e interroguemo-nos sobre o que o exemplo sugere 
sobre a interpretação enquanto explicação. A citação é nitidamente 
um exempio de explicação, porque Jesus estava a fazer algo mais 
do que repetir ou reafirmar os textos antigos; explicou-os e expli- 
cou-se a si mesmo em função deles. Aqui a interpretação envolve 
a busca de um factor externo, Cristo, para designar o «sentido» dos 
textos antigos. Só na presença deste factor é que os textos se tor­
nam significativos. Por outro lado, Cristo é também visado para 
mostrar que só à luz dos textos o seu sacrifício se torna significa­
tivo enquanto cumprimento histórico do profetizado Messias.
O que é que isto sugere do ponto de vista hermenêutico? Sugere 
que o significado tem a ver com o contexto; o processo explicativo 
fornece o palco da compreensão. Um acontecimento só se torna 
significativo dentro de um contexto específico. Mais ainda: Cristo 
ao relacionar a sua morte com a esperança num Messias, relaciona 
este acontecimento histórico com as esperanças pessoaise intenções 
dos seus ouvintes. O seu significado torna-se o de um Redentor 
pessoal e histórico. O significado está numa relação com os pró­
prios projectos e intenções dos ouvintes; não é algo que Jesus pos­
sua em si próprio, fora da história e fora da relação que tem com 
os ouvintes. Podemos dizer que um objecto não tem sentido fora 
de uma relação com alguém e que a relação determina o signifi­
cado. Falar de um objecto independentemente de um sujeito que o 
perceba é um erro conceptual causado por um conceito realistica- 
mente inadequado, quer da percepção quer do mundo; mas mesmo 
aceitando esse conceito, será pertinente falar de sentido e de signi- 
fado fora de sujeitos que percepcionem?
Os teólogos gostam de realçar o aspecto pro nobis (para nós) 
de Cristo, mas podemos afirmar que em princípio todas as expli­
cações são «para nós», toda a interpretação explicativa assume inten­
ções naqueles a quem a explicação se dirige.
Outro modo de dizer isto é afirmar: a interpretação explicativa 
torna-nos conscientes de que a explicação é contextual, é «horizon­
tal», (horizonal). Deve processar-se dentro de um horizonte de sig­
34
nificados e intenções já aceites. Em hermenêutica, esta área de uma 
compreensão pressuposta, é designada por pré-comprccnsão. Pode­
mos frutiferamente perguntar que pré-compreensão é necessária 
para podermos conhecer o texto (dado).
Jesus forneceu aos seus ouvintes os elementos necessários para 
compreenderem os textos proféticos; isso fazia parte da explicação 
necessária. Mesmo assim, tinha que assumir uma pré-compreensão 
do que era a profecia e daquilo que ela poderia significar para eles 
antes de poder explicar-se perante os seus ouvintes. Poderíamos 
perguntar qual o horizonte interpretativo que um grande texto 
literário habita e, depois, como é que o horizonte do próprio mundo 
de intenções, esperanças e pré-interpretações de um indivíduo se 
relaciona com ele. Esta fusão de dois horizontes deve ser consi­
derada um elemento básico de toda a interpretação explicativa.
Uma forma de interpretação literária que, como foi sugerido, 
tem como meta uma interpretação oral mais completa, não des­
prezará as dimensões explicativas da interpretação. Longe disso, o 
enquadramento do horizonte no qual se coloca a compreensão é 
o fundamento de uma interpretação oral verdadeiramente comu­
nicativa. (Lembremos que interpretação oral é o que todos fazemos 
quando ao ler um texto procuramos fornecer todas as nuances do 
seu significado; pode não ser em público ou mesmo em voz alta.) 
Para que o intérprete faça uma «performance» do texto tem que o 
compreender; tem que previamente compreender o assunto e a 
situação antes de entrar no horizonte do seu significado. Só quando 
consegue meter-se no círculo mágico do seu horizonte é que o 
intérprete consegue compreender o seu significado. Esse é o tal 
misterioso «círculo hermenêutico» sem o qual o sentido do texto 
não pode emergir. Mas há aí uma contradição. Como pode um 
texto ser compreendido, quando a condição para a sua compreensão 
é já ter percebido de que é que o texto fala? A resposta é que, 
de certo modo, por um processo dialéctico, há uma compreensão 
parcial que é usada para compreendermos cada vez mais, tal como 
ao manusear as peças de um «puzzle» adivinhamos o que dele 
falta. Uma obra literária fornece um contexto para a sua própria 
compreensão; um problema fundamental em hermenêutica é expli­
car como é que um horizonte individual se pode acomodar ao hori­
zonte da obra. É necessário um certo conhecimento prévio, sem 
o qual não haverá qualquer comunicação. No entanto, esse conhe­
cimento tem que ser alterado no acto de compreensão. A função 
de uma interpretação explicativa na interpretação literária pode ser 
vista neste contexto, como um esforço para colocar os fundamentos 
numa pré-compreensão que permita compreender o texto.
À medida que consideramos estas duas orientações da interpre­
tação (dizer e explicar), a complexidade do processo interpretativo 
e o modo como ele se baseia na compreensão começam a aparecer.
35
A interpretação como «dizer», relembra a natureza da leitura como 
«performance»; contudo, mesmo na «performance» que é ler um 
texto literário, o actor tem que o «compreender». Isto implica expli­
cação; mas aqui, mais uma vez a explicação se fundamenta numa 
pré-compreensão, de modo a que anteriormente a qualquer expli­
cação significativa ele tem que entrar no horizonte do tema e da 
situação. Ele tem que, na própria compreensão do texto, agarrar 
esse texto e ser agarrado por ele. A sua posição neste encontro, 
a pré-compreensão do material e da situação a que tem que chegar, 
numa palavra, todo o problema da fusão do seu horizonte com­
preensivo com o horizonte compreensivo que vem ao encontro dele 
no texto, nisto consiste a complexa dinâmica da interpretação. 
É o «problema hermenêutico».
Considerar os elementos acima indicados do problema interpre- 
tativo, não é, como alguns poderiam pensar, cair no «psicologismo». 
Porque a perspectiva em que a acusação de «psicologismo» e a 
atitude de antipsicologismo (pressuposta na acusação) ganham algum 
sentido, pressupõe de base uma separação e um isolamento do 
objecto e depois considera depreciativamente a reacção «subjectiva» 
como se ela estivesse no campo intangível dos «sentimentos». No 
entanto, a discussão aqui apresentada não lidou com sentimentos 
mas com a estrutura e a dinâmica da compreensão, com as condi­
ções em que o significado pode surgir na interacção do leitor com 
o texto, com o modo como qualquer análise pressupõe já uma 
definição formada da situação. Dentro do enquadramento destas 
considerações, vemos como é verdadeira a observação de Georges 
Gurvitch — que objecto e método nunca podem separar-se (“ ). 
É claro que isto é uma verdade estranha ao modo realista de ver.
Hermeneuein como «traduzir»
As implicações da terceira orientação do significado de herme­
neuein são quase tão sugestivas para a hermenêutica e para a teoria 
da interpretação literária como as outras duas. Nesta orientação, 
«interpretar» significa «traduzir». Quando um texto é na própria 
língua de um autor, o choque entre o mundo do texto e o do seu 
autor pode passar despercebido. Quando o texto é numa língua 
estrangeira, o contraste de perspectivas e horizontes não pode ser 
ignorado. No entanto, como veremos, os problemas daquele que 
interpreta línguas não são estruturalmente diferentes dos do crítico 
literário que trabalha com a sua própria língua. Permitem-nos ver 
mais claramente a situação presente em qualquer interpretação 
de texto.
(1J) Georges Gurvitch, «Diatectique el Sociologie».
36
A tradução é uma forma especial do processo básico intcrpre 
tativo de tornar compreensível. Neste caso, tornamos compreensível 
o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível, utilizando como 
medium a nossa própria língua. Tal como o deus Hermes, o tradutor 
é um mediador entre um mundo e outro. O acto de traduzir não 
é uma simples questão mecânica de encontrar sinônimos. Os resul­
tados ridículos das máquinas tradutoras tornaram isso por de mais 
evidente. O tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes. 
A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua 
contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de 
que a própria língua contém uma visão englobante do mundo, à 
qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expres­
sões individuais. A tradução apenas nos (orna mais totalmente 
conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a nossa 
visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de 
que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existi­
mos nesse medium e através dele; vemos através dos seus olhos.
A tradução da Bíblia pode servir de ilustração aos problemas 
da tradução em geral ("). A Bíbliachega-nos de um mundo distante 
no tempo, espaço e língua, um mundo estranho que temos que 
interrogar (e que nos interroga). De certo modo, o horizonte do 
nosso universo compreensivo deve encontrar-se e fundir-se com o 
horizonte compreensivo do texto. Mediado não só pela língua mas 
também pela história (um espaço de tempo de dois mil anos), o 
Novo Testamento deve falar com palavras que sejam do nosso 
mundo, que constituam o nosso medium para ver o que existe. 
Como podemos esperar compreender acontecimentos que se passa­
ram num contexto totalmente diferente da moderna cidade secular 
de comunicação de massas, de conflitos mundiais, gás, napalm, 
armas atômicas e guerra bacteriológica? Devemos manter a acção 
literal do Novo Testamento ou apresentar o que seria o seu equi­
valente nos tempos modernos? Eugene Nida, por exemplo, no seu 
livro sobre ciência da tradução, cita o exemplo da frase caracte­
rística de S. Paulo: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um santo 
beijo.» O beijo era o cumprimento habitual nos termos do Novo 
Testamento mas não o é nos dias de hoje. Uma versão do século XX 
deverá dizer: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um "caloroso 
aperto de mão?»
Este exemplo é um problema menor, comparado com as ques­
tões mais fundas do choque entre toda a visão do mundo do Novo 
Testamento e a visão do mundo moderno, científica e pós-deística. 
É exactamente este o problema que o teólogo alemão Rudolf Bult­
mann tentou encarar com o seu projecto controverso de desmito-
(ls) Eugene A. Nida, «Toward a Science oi Translating: with special refe- 
rence to Principies and Procedures Involved in Bible Translating».
37
logização. Bultmann nota que a mensagem bíblica se coloca no 
contexto de uma concepção cosmológica em que os céus são colo­
cados em cima, a terra no meio e o mundo subterrâneo em baixo — 
é um universo de três níveis. A resposta a tal situação é afirmar 
que a mensagem do Novo Testamento não está dependente da sua 
cosmologia. Esta é apenas o contexto de uma mensagem sobre a 
obediência pessoal e a transformação num «homem novo». A desmi- 
tologização é uma tentativa de separar a mensagem essencial da 
«mitologia» cosmológica na qual nenhum homem moderno pode 
acreditar.
Sejam quais forem os méritos teológicos da desmitologização 
enquanto solução para este dilema interpretativo, o próprio projecto 
aponta para um problema profundo: Como devemos «compreender» 
o Novo Testamento? O que é que estamos a tentar compreender? 
Até onde temos que penetrar no mundo histórico do pensamento 
e da experiência próprios do Novo Testamento antes de o podermos 
interpretar? Será de algum modo possível encontrar equivalentes 
para a «compreensão» do Novo Testamento? Será que o nosso 
mundo mudará tanto num século que o Novo Testamento se tor­
nará ininteligível? Já hoje é mais difícil para os jovens dos centros 
urbanos compreender Homero, devido aos componentes da vida 
homérica — barcos, cavalos, charruas, lanças, machados, odres de 
vinho — serem artigos que eles apenas conhecem de livros ou de 
museus. Isto não é sugerir que Homero esteja fora de moda mas 
sim que o esforço para o compreendermos se torna cada vez mais 
difícil à medida que mecanizamos o nosso modo de vida.
Desmitologizar não é um problema meramente teológico; ocorre 
com menos mas ainda significativa premência quando tentamos 
perceber qualquer obra antiga. A actual teologia da «morte de 
Deus» é uma outra forma de desmitologizar, mas clarifica um pouco 
mais o problema da compreensão moderna da antiga tragédia grega: 
Como é que por exemplo podemos considerar significativa uma 
peça de Sófocles, se o antigo Deus da metafísica morreu e se o 
Deus vivo das relações entre os homens ainda não nasceu? Será 
essa peça de teatro um monumento a um Deus morto ou a um 
conjunto de deuses mortos? Será, tal como disse o crítico Raleigh 
acerca do Paraíso Perdido, um «monumento a ideias mortas»? 
Como é que uma peça grega deverá ser traduzida para uma língua 
moderna? Ou como é que devem ser compreendidos os antigos 
termos? Como devemos evitar que as obras antigas se assemelhem 
a meras comédias? O que muitos professores de clássicas têm feito, 
é verdadeiramente desmitologizar quando defendem a relevância 
de um trabalho na base do seu perene significado humano.
Mesmo assim, este «significado humano» tem que ser interpre­
tado em termos de auditores modernos (a fase explicativa de inter­
pretação), e para proceder deste modo temos que ser mais precisos
38
na determinação de como é que uma coisa é significativa. Uma 
abordagem da interpretação literária que se concentre na enume­
ração de imagens de um ou de outro tipo, ou que se focalize na 
forma de uma obra. ou que faça uma análise temática de uma 
obra ou de várias, deixa passar de facto o problema da «signifi­
cação». Uma abordagem literária que encare a obra como um 
objecto afastado dos sujeitos que a percepcionam, automaticamente 
foge ao problema daquilo que na verdade constitui o significado 
humano de uma obra. No entanto, é possível que a crítica literária 
americana acorde uma manhã, descobrindo que, ao pôr de lado 
a questão de tornar humanamente relevante uma grande obra atra­
vés da interpretação da mesma, os exercícios complicados que faz 
no domínio da imagem, da forma e da análise temática, acabaram 
por se transformar num passatempo insípido para professores de 
inglês. As suas dissecações perderam interesse; tal como Deus, a 
«literatura morreu»; morreu porque os seus intérpretes estão mais 
interessados em conhecer a sua estrutura e a sua função autônoma 
do que em mantê-la viva e humanamente significativa. A literatura 
(ambém pode morrer, morrer de fome pela ausência de uma rela­
ção com o leitor. As interpretações teológica e literária terão que 
ser humanamente significativas para os dias de hoje, caso contrário 
perderão todo o valor.
Os professores de literatura têm que se tornar peritos em «tra­
dução», mais do que em «análise»; a sua tarefa é transformar o 
que é estranho, pouco comum e obscuro, em algo que tenha signi­
ficado, que «fale a nossa língua». Isto não significa pressionar os 
clássicos e apresentar Chaucer num inglês do século XX: significa 
reconhecer o problema da existência de um conflito entre hori­
zontes, significa prepararmo-nos para lidar com ele, mais do que 
varrê-lo para debaixo do tapete, concentrando-nos em jogos analí­
ticos. A visão do mundo implícita num poema ou pressuposta por 
ele e portanto essencial para a sua compreensão, não devia ser 
tratada como uma espécie de falácia de uma crítica histórica ultra­
passada.
Por exemplo, um pré-requisito essencial para compreender a 
Odisséia é o reconhecimento básico de que as coisas naturais são 
dotadas de vida e de intenções, de que o universo é uma questão 
de terra e de água até onde o podemos enxergar, de que cada 
processo natural é o resultado da vontade de um ser sobrenatural, 
c de que os deuses são chefes sobre-humanos com todas as fra­
quezas dos seres humanos, sendo, no entanto, seres que actuam 
mima versão mais elevada do código do herói grego, centrado na 
honra. Só quando avançamos neste mundo que já não é o nosso 
mundo real, é que nos centramos no homem dos estratagemas ili­
mitados, esse herói que se aventura arrojadamente nas garras da 
morte, esse inventor de contos que conseguia contar uma história
39
de modo a (quase) enganar a sua protectora Atena, esse pesquisador 
insaciável de conhecimentos perigosos, Odysseus. O génio das aná­
lises textuais de Erich Auerbach (lidando por exemplo com a cica­
triz de Odysseus) não reside apenas na sua lealdade e capacidade 
de resposta ao modo como a história é contada, mas também no 
seu reconhecimento de que o sentido de realidade subjacente é uma 
chave para a compreensão (“ ). Assim, o sentido de realidade e o 
modo de estar no mundo patentena obra devem ser um ponto 
central para uma interpretação literária «capaz», a base para uma 
leitura da obra que pode «agarrar-nos» (e «ser agarrada») pela sig­
nificação humana da sua acção. A metafísica (definição da reali­
dade) 'e a ontologia (característica de estar no mundo) de uma obra 
são fundantes para uma interpretação que torna possível uma 
compreensão significativa.
A tradução consciencializa-nos, pois, do choque entre o nosso 
universo de compreensão e aquele em que a obra actua. Enquanto 
que a barreira da língua torna mais visíveis estes dois universos 
compreensivos, eles estão presentes em qualquer interpretação de 
uma obra escrita na nossa própria língua, e em qualquer diálogo 
autêntico, especialmente entre interlocutores separados por dife­
renças geográficas. Na literatura inglesa, mesmo um espaço de cem 
anos produz algumas transformações na língua, de modo que os 
problemas de interpretar Wordsworth, Pope, Milton, Shakespeare 
ou Chaucer implica o encontro de dois mundos contrastantes, no 
plano histórico e no plano lingüístico, e para americanos que nunca 
visitaram Inglaterra a separação é ainda maior.
É-nos necessário um esforço de imaginação histórica e de «tra­
dução» só para considerarmos o mundo da Inglaterra de Words­
worth, na orla da industrialização mas ainda essencialmente rural. 
Ver a Itália de Dante e mudar-nos para esse mundo ao compreen­
dermos a Divina Comédia não é só uma questão de mera tradução 
lingüística (embora a tradução nos diga muito); é uma questão de 
tradução histórica. Mesmo com a melhor tradução inglesa, o pro­
blema da compreensão implicado no encontro com um horizonte 
distinto da compreensão da existência humana está sempre presente. 
A desmitologização é um reconhecimento deste problema em ter­
mos de interpretação bíblica; mas em princípio, como se observou, 
a desmitologização deve ocorrer com qualquer leitura de documentos 
históricos ou textos literários, mesmo que a desmitologização não 
tente roubar a originalidade da sua imediatez dramática. Resu­
mindo, uma explicação da visão do mundo implícita na própria 
linguagem, c depois na utilização da linguagem numa obra literária, 
é um desafio fundamental para a interpretação literária.
(H) «Odysseus Scar», Mimcsis, págs. 1-20.
40
A hermenêutica moderna encontra na tradução c na teoria 
da tradução um reservatório imenso para explorar o «problema 
hermenêutico». Na verdade, a hermenêutica no seu estádio histó­
rico primitivo sempre implicou a tradução lingüística, quer como 
hermenêutica filológica clássica quer como hermenêutica bíblica. 
O fenômeno da tradução é o próprio cerne da hermenêutica: nele 
se confronta a situação básica da hermenêutica, de ter que compor 
o sentido de um texto, trabalhando com instrumentos gramaticais, 
históricos e outros para decifrar um texto antigo. E, no entanto, 
tal como dissemos, esses instrumentos apenas são formalizações 
explícitas de factores implicados em qualquer confrontação com 
um texto lingüístico, mesmo na nossa própria língua. Há sempre 
dois mundos, o mundo do texto e o mundo do leitor, e por conse­
qüência há sempre a necessidade de que Hermes «traduza» de um 
para o outro.
Esta discussão sobre a origem de hermeneuein e hermeneia 
e as três orientações significativas do seu antigo uso ocorreu no 
contexto do problema hermenêutico em geral. Assim serve de 
introdução a alguns dos problemas essenciais e alguns dos conceitos 
de hermenêutica que aparecerão nos capítulos seguintes. As defi­
nições modernas de hermenêutica darão ênfase quer a uma quer 
a outra orientação do rico manancial de significado existente nas 
raízes gregas das quais derivou o termo «hermenêutica». É bom que 
o campo da hermenêutica volte constantemente ao significado das 
três orientações significativas da interpretação como dizer, como 
explicar e como traduzir.
41
3
SEIS DEFINIÇÕES MODERNAS DE HERMENÊUTICA
Porque evoluiu nos tempos modernos, o campo da hermenêutica 
tem sido definido pelo menos de seis maneiras diferentes. Desde 
ó começo que a palavra significou ciência da interpretação, refe- 
rindo-se especialmente aos princípios de uma exegese de texto 
adequada. Mas o campo da hermenêutica tem sido interpretado 
(numa ordem cronológica pouco rigorosa) como: 1) uma teoria 
da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma 
ciência de toda a compreensão lingüística; 4) uma base metodo­
lógica dos Geisteswissenschaften; 5) uma fenomenologia da exis­
tência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação, 
simultaneamente recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo 
homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos.
Cada uma destas definições é mais do que um estádio histórico; 
cada uma delas indica um «momento» importante ou uma abor­
dagem ao problema da interpretação. Podiam ser chamadas de 
ênfase bíblico, filológico, científico, geisteswissenchaftliche, exis­
tencial e cultural (*). Cada uma representa essencialmente um ponto 
de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada; cada uma
(') Todos estes adjectivos classificativos são de certo modo inadequados 
e não satisfatórios; uso-os de um modo experimental e provisório para indicar 
a alteridade entre as seis diferentes abordagens. A hermenêutica bíblica tem 
muitas orientações diferentes; só no século dezoito incluía a gramática, a his­
tória, o pietismo e outras escolas, e continuou a ser maximizada até aos dias 
de hoje. A hermenêutica «Filológica» também gozou de um desenvolvimento 
complexo no século dezoito. A «científica» é de certo modo ilusória no que 
se refere a Schleiermacher pretendendo apenas sugerir a tentativa feita por este 
autor de dar à hermenêutica uma base universal e sistemática. A geisteswissen- 
schaflliche refere-se ao projecto de Dilthey A «existencial» cobre as concepções 
hermenêuticas de Heidegger e de Gadamer. Por último a «cultural» sugere 
imperfeitamente a riqueza das aplicações que Ricoeur faz da hermenêutica 
na sua procura de uma filosofia mais adequada, centrada na interpretação dos 
símbolos. A hermenêutica jurídica é, de um modo geral, omitida.
43
esclarece aspectos diferentes mas igualmente legítimos do acto da 
interpretação, especialmente da interpretação de textos. O próprio 
conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas mudan­
ças de perspectiva. Um esboço destes seis momentos ilustrará este 
tema e servirá de breve introdução histórica à definição da herme­
nêutica.
Hermenêutica como teoria da exegese bíblica
O significado mais antigo e talvez ainda o mais difundido da 
palavra' «hermenêutica» refere-se aos princípios da interpretação 
bíblica. Há uma justificação histórica para esta definição, visto que 
a palavra encontrou o seu uso actual precisamente quando surgiu 
a necessidade de regras para uma exegese adequada das Escrituras. 
Provavelmente, o primeiro registo da palavra enquanto título de 
um livro foi a obra de J. C. Danhauer, Hermeneutica sacre sive 
rnethodus exponendarum sacrarum litterarum , publicada em 
1654 f).
Mesmo só pelo título do livro, percebemos que a hermenêutica 
se diferencia da exegese enquanto metodologia da interpretação. 
A distinção entre o comentário real (exegese) e as regras, métodos 
ou teoria que o orientam (hermenêutica) data desta utilização pri­
mitiva e permanece fundamental para uma distinção da herme­
nêutica, quer na teologia quer, quando a definição foi ulteriormente 
alargada, relativamente à literatura não bíblica.
Depois do aparecimento da obra de Danhauer, o termo parece 
ter surgido cada vez mais frequentemente, especialmente na Ale­
manha. Aí, houve círculos protestantes que sentiram vivamente a 
necessidade de manuais de interpretação que ajudassem os sacer­
dotes na exegese das Escrituras, dado que os sacerdotes estavam 
desligados de qualquer recurso à autoridade daIgreja para decidirem 
sobre questões de interpretação. Assim houve um ímpeto forte no 
desenvolvimento de padrões viáveis e independentes para interpretar 
a Bíblia; entre 1720 e 1820, não passava um ano que não aparecesse 
algum novo manual para ajudar os pastores protestantes (’)•
Na Inglaterra e mais tarde na América, a utilização da palavra 
«hermenêutica» seguiu a tendência geral de referência a uma exe- 
gcsc especificamente bíblica. O primeiro uso registado no Oxford 
Enulish Dictionary remonta a 1737: «Tomar tais liberdades com as 
Sagradas Escrituras, que não são de modo algum permitidas por
(”) F.bcling, «Hermeneutik», R G G III, 243.
(J) Ver Ibid., 242; Heinrici, «Hermemeutik», R P T K VII, 719; e E.
I lolwrhül/., «Interprctation», ERE VII, 390-95.
44
quaisquer regras de uma hermenêutica sóbria e justa.» (*) Um 
século mais tarde, Longfellow, no Hyperion, põe o Irmão BcrnunU) 
a falar sobre «os meus papéis e a minha grande obra dc ílcrmc 
nêutica Bíblica» (5).
Quando a utilização da palavra se alargou para se referir a tex 
tos não bíblicos, repare-se que os textos são obscuros, como se pre­
cisassem de métodos especiais para deles extrair um significado 
oculto. Por exemplo, a referência a uma «aprendizagem da musa 
hermenêutica» num caso (W. Taylor, 1807) (6), sugere uma inter­
venção deste gênero, tal como «o método hermenêutico de um 
significado profundo e oculto» (D. Hunter, traduzindo a obra dc 
Reuss, Historical Canon, 1884) (7). De igual modo, a firmação dc 
Edward Burnett Tylor em Primi:ivc Culture (1871): «Nenhuma 
lenda, nenhuma alegoria ou rima infantil está a salvo da herme­
nêutica de um teórico radical da mitologia» (*). Portanto, no seu 
uso em inglês, a palavra pode referir-se a uma interpretação não 
bíblica, mas nesses casos, o texto é de um modo geral obscuro ou 
simbólico, requerendo um tipo especial de interpretação para que 
se alcance o seu significado escondido. A definição mais geral de 
hermenêutica manteve-se como sendo a de uma teoria da exegese 
das escrituras.
Enquanto que o próprio termo «hermenêutica» apenas data 
do século XVI], as operações de exegese textual e as teorias da 
interpretação— religiosa, literária, legal — remontam à antiguidade. 
Assim, uma vez aceite a palavra como designando uma teoria da 
exegese, o campo que cobre estende-se geralmente (poderíamos dizer 
que retroactivamente) na exegese bíblica, aos tempos do Antigo 
Testamento, quando havia regras para se interpretar adequadamente 
a Torah (9). Existe uma relação hermenêutica importante entre o 
Novo e o Antigo Testamento pois Jesus explica-se a si próprio aos 
Judeus, em termos de profecia bíblica. Os estudiosos do Novo 
Testamento detectam nos Evangelhos (especialmente no Evange­
lho de S. João) (10) e nas epístolas de S. Paulo, operações para
(*) V, 243.
(’) Henry Wadsworth Longfellow, «Prose Works», II, 309. «Hyperion» é 
um romance em prosa, uma das duas únicas obras de ficção em prosa que 
Longfellow pretendia conservar.
(•) O E D V, 243.
C) Ibid.
(*) «Primitive Culture», I, 319.
(“) O artigo final de Ebeling, acima citado, divide o desenvolvimento da 
hermenêutica biblica em sete períodos históricos: Pré-cristão, Cristão Primitivo, 
Patrística, Medieval, Reforma e Ortodoxo, Moderno, Contemporâneo. Também 
nos dá referências bibliográficas abundantes para cada período.
(*“) Ver Frederik W. Herzog, «Historico-Ontological Hcrmeneutic in thc 
Fourth Gospel», «Understanding God», págs. 65-68.
45
interpretar Jesus aos seus ouvintes de acordo com um certo sistema 
de compreensão. A «teologia» já está em acção; num certo sentido, 
a própria teologia enquanto intérprete histórica da mensagem bíblica, 
é já hermenêutica. A história da hermenêutica bíblica podia tra­
çar-se: através da Igreja primitiva; dos patriarcas; da interpretação 
medieval quadruplicada da Bíblia; da luta de Lutero contra os 
sistemas de interpretação místicos, dogmáticos, humanísticos e 
outros; do aparecimento do método histórico-crítico no século XVIII 
e do complexo de forças em actuação durante este período, que­
rendo remodelar a interpretação das Escrituras; do contributo de 
Schleiermacher; da escola da história das religiões relativamente 
à interpretação; do aparecimento da teologia dialéctica nos anos 
de 1920 e da Nova Hermenêutica na teologia contemporânea. Não 
podemos apresentar aqui uma história com tantos pormenores; 
limitar-nos-emos a apontar simplesmente dois pontos, um sobre 
a natureza da hermenêutica indicada pelo exemplo da hermenêutica 
bíblica, e outro sobre a questão do âmbito da hermenêutica.
Sem entrarmos em pormenores, será interessante notarmos a 
tendência geral da hermenêutica bíblica de confiar num «sistema» 
de interpretação a partir do qual as passagens individuais possam 
ser interpretadas. Mesmo na «hermenêutica» protestante há uma 
procura de um «princípio hermenêutico» que sirva de guia (u). 
O texto não é interpretado em si mesmo; de facto, pode ser que 
isto seja um ideal impossível. Por exemplo, no Iluminismo, o texto 
bíblico é um receptáculo de grandes verdades morais; no entanto, 
essas verdades encontram-se nele porque se moldou um princípio 
interpretativo que as encontrasse. Nesse sentido, a hermenêutica 
é o sistema que o intérprete tem para encontrar o significado oculto 
do texto.
A outra questão envolve o campo da hermenêutica. Mesmo se 
assegurarmos a legitimidade de incluir retroactivamente na herme­
nêutica bíblica toda a teoria da exegese do tempo do Antigo Tes­
tamento ao nosso tempo há sempre a questão de saber se a her­
menêutica inclui uma teorização explícita — regras de exegese niti­
damente expressas — ou uma teoria não formulada, implícita, da 
exegese, revelada através de uma prática. O teólogo Gerhard 
Ebeling, por exemplo, fez um estudo sobre «a hermenêutica de 
Lutero» (” ). Lidar-se-á aqui apenas com as afirmações de Lutero 
no que respeita à interpretação bíblica, ou também com a sua 
prática exegética revelada pela análise dos seus sermões e de outros 
escritos? O estudo de Ebeling inclui ambas as perspectivas.
(" ) Ver «Dai hermeneutische Prinzip der theologischen Exegese», F H 
111- 118.
(” ) nEvangelische Evangelienauslegung: Eine Untersuchung zu Luthen 
Hermeneutik».
46
Isto aumenta grandemente o âmbito da hermenêutica blblun, <■ 
de imediato a tarefa de escrever, por exemplo, uma histórlu tia 
hermenêutica bíblica alarga-se da consideração dc fontes relativa 
mente controláveis que discutem o problema hermenêutico, m> 
exame dos sistemas de interpretação implícitos em todos os grandes 
comentadores da Bíblia, desde os tempos antigos até aos nossos 
dias (13). Uma história deste tipo, transforma-se essencialmente em 
história da teologia (“ ).
Levando as implicações deste âmbito mais lato da hermenêutica 
(enquanto sistema simultaneamente implícito e explícito de interpre­
tação) para uma definição de hermenêutica que se aplique à litera­
tura bíblica e não bíblica, o perímetro da hermenêutica não-bíblica 
torna-se historicamente tão vasto que fica incontrolável. Quem por 
exemplo poderia pensar em escrever uma história da hermenêutica 
assim definida? O sistema interpretativo implícito em todo o comen­
tário de texto (jurídico, literário, religioso) no pensamento ociden­
ta l— de resto porque não incluir também os sistemas Orientais? — 
teria que ser incluído. Na sua obra-prima de dois volumes (“ ) Emílio 
Betti deu uma contribuição essencial para a apresentação de um 
cruzamento de várias disciplinas interpretativas numa perspectiva 
actual de interpretação; no entanto, este esforço possante é ape­
nas uma fracção daquilo que uma tal «história da hermenêutica» 
implicaria.
Podemo-nos ainda interrogar se, quer uma história completa da 
hermenêutica quer uma síntese inclusiva das muitas diferentes teo­
rias disciplinares da interpretação (partindodo princípio que ambas 
as perspectivas seriam possíveis) constituiriam, na verdade, uma res­
posta adequada ao problema hermenêutico actual. Ambos os pro­
jectos olham para o que já foi realizado, no passado ou no presente, 
e como tal, representam um esforço de conservação e de consolida­
ção. Mas para inovar e para avançar com perspectivas ainda inexis­
tentes, é preciso mais do que uma perspectiva histórica, ou científica. 
Tão necessário como cada uma das perspectiva referidas (e ninguém
(ls) Há vários e excelentes estudos sobre hermenêutica bíblica que nos dão 
pormenores históricos, como por exemplo: E. C. Blaokman, «Biblical Interpre- 
tation»; Frederic W. Farrar, «History of Inlerpretalion»; Robert M. Grant, 
«A Short History of lhe Inlerpretation of lhe Bible»; Stephen Neill, «The Inter- 
pretation of lhe New Testament»; 1861-1961-, B. Smalley, «The Study of lhe 
Bible in the Middle Ages»\ e James D. Wood, «The Inlerpretation of lhe Bible». 
Em alemão, há a obra recente de Lothar Steiger, «Die Hermeneutik ais 
dogmatische Problem» recomendável pelo tratamento que faz da hermenêutica 
teológica desde Schleiermacher.
(14) Ver Gerhard Ebeling, «Kirchengeschichte ais Geschichte der Ausle- 
gung der Heiligen Schrift».
(“ ) T G I, traduzido para alemão pelo seu autor e reduzido a um terço 
como AAMG. Ver também o contributo de Joachim Wach para este projecto, 
V, uma história da hermenêutica no século dezanove, em três volumes.
47
nega o valor que têm) é uma compreensão mais funda do fenômeno 
da própria interpretação, uma compreensão que seja filosoficamente 
adequada, quer epistemológica quer ontologicamente. As histórias 
da teoria da interpretação em disciplinas específicas são certamente 
vitais para a busca contínua de uma compreensão mais funda da 
interpretação, como são as sínteses das várias abordagens discipli- 
nares; mas não são em si mesmas, suficientes.
A hermenêutica como metodologia filológica
O desenvolvimento do racionalismo e, concomitantemente, o 
advento da filologia clássica no século dezoito teve um efeito pro­
fundo na hermenêutica bíblica. Surgiu então o método histórico-crí- 
tico na teologia (>s); tanto a escola de interpretação bíblica «grama­
tical» como a «histórica», afirmavam que os métodos interpreta- 
tivos aplicados à Bíblia, eram precisamente os que se aplicavam às 
outras obras. Por exemplo, Ernesti, no seu manual de hermenêutica 
de 1761, defendia que «o sentido verbal das Escrituras deve ser 
determinado do mesmo modo como é considerado noutros 
livros» (” ). Com o aparecimento do racionalismo, os intérpretes sen­
tiram-se obrigados a tentar ultrapassar juízos prévios. «A norma da 
exegese bíblica, segundo Spinoza, consiste na luz da razão, comum 
a todos os homens» (” ). «As verdades acidentais da história nunca 
se poderão transformar em provas de verdades necessárias da razão» 
disse Lessing (’*); assim é um desafio à interpretação tornar a Bíblia 
relevante para o homem racional do Iluminismo.
Este desafio, tal como Kurt Frõr observou no seu livro sobre 
hermenêutica bíblica, levou à «intelectualização das afirmações bí­
blicas» (20). Porque as verdades acidentais da história eram encara­
das como inferiores às «verdades de razão», os intérpretes bíblicos 
defendiam que a verdade das Escrituras estava acima do tempo e 
da história; a Bíblia não diz ao homem nenhuma verdade que ele
(*•) Ver Hans-Joachim Kraus, «Geschichte der historisch-kritischen Er- 
forsehung der Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwarth», 
esp. cap. 3, págs. 70-102.
(H) F. W. Farrar, «History of Interpretation», pág. 402, citando Johan 
August Ernesti IINT. Fizeram-se duas traduções inglesas do tratado, no co­
meço do século xix (Ver Bibliografia).
(**) «Traclatus iheologico-policitus», (1670) cap. VII; citado em Ebeling 
«Hermeneutic», RGGIII, 245.
('•) Ober den Beweis des Geistes und der Kraft» (1777): «Zufãllige Ges- 
chlchtswahrheiten kõnnen der Beweis von notwendingen Vernuftswahrheiten 
nie wrrden», citado cm Kurt Frõr, Biblische Hermeneutik: Zur Schriftauslegung 
in Predlgt und llnterricht, pág. 26. Ver «On the Proof of the Spirit and of 
Power», In Lessing's Theological Writings, ed. Henry Chadwick, págs. 51-56.
(,0) Ibid.
48
não pudesse ter reconhecido pelo uso da razão. Trata-se npcniis >l< 
uma verdade racional e moral, revelada antes dc tempo. A titrrfu 
da exegese era pois entrar profundamente no texto, usando as fri 
ramentas da razão natural e encontrando aquelas grandes verdades 
morais que os escritores do Novo Testamento pretendiam, verdades 
escondidas sob diferentes termos históricos. Essas escrituras defen 
diam a suficiência de uma compreensão histórica manifesta, sus 
ceptível de captar o espírito (Geist) subjacente à obra e dc o tra­
duzir em termos aceitáveis para uma razão esclarecida. Podemos 
chamar a isso uma forma esclarecida de «desmitologização», embora 
o termo no século vinte signifique interpretar e não simplesmente 
purgar os elementos míticos no Novo Testamento.
Para além da fé Iluminista nas «verdades morais» que levou ao 
que hoje parece uma distorção da mensagem bíblica, d e um modo ;t c - 
ral, as conseqüências na hermenêutica e na investigação bíblica foram 
salutares. A interpretação bíblica fez desenvolver tccnicas de análise 
gramatical de grande requinte (**), e os intérpretes compromete­
ram-se mais do m;e nunca rum conhecimento teta! do contexto 
histórico das narrações bíblicas. J. S. Semler defende por exemplo 
que o intérprete «deve ser capaz de falar sobre esses temas (bíblicos) 
de um modo adaptado às diferentes épocas e às diferentes circuns­
tâncias» (” ). A verdadeira tarefa do intérprete torna-se uma tarefa 
histórica.
Com todos estes progressos, os métodos da hermenêutica bíblica 
tornaram-se essencialmente sinônimos de uma teoria secular da 
interpretação — isto é, da filologia clássica. E. pelo menos, desde 
o Iluminismo até aos nossos dias os métodos de investigação bíblica 
têm estado sempre ligados à filologia. Assim a designação «Herme­
nêutica Bíblica» substituiu a de hermenêutica enquanto referência à 
teoria da exegese bíblica. O termo «hermenêutica», inalterável, tor­
nou-se virtualmente idêntico a uma metodologia filológica. Num 
outro capítulo exploraremos mais especificamente o conteúdo da 
filologia no começo do século dezanove, discutindo dois grandes 
filólogos do tempo de Schleiermacher, Friedrich August Wolf e 
Friederich Ast. Aqui basta-nos simplesmente dizer que a concepção 
de uma hermenêutica estritamente bíblica, se transformou gradual­
mente na de uma hermenêutica considerada como conjunto de 
regras gerais da exegese filológica, sendo a Bíblia um objecto entre 
outros de aplicação dessas regras.
(” ) Ernesti, IINT, é um exemplo excelente.
(” ) Ver H.-J. Kraus, op. cit., págs. 93-102, sobre Semler. O sentido das 
Escrituras é satisfeito, dizia Semler, quando «der historisch Verstehende nun 
auch imstande ist, von diesen Gegenstànden auf eine solche Weise jetzt zu 
reden, ais es die verànderte Zeit und andere Umstande der Menschcn neben 
uns erfordem».
49
A hermenêutica como ciência da compreensão 
lingüística
É característica de Schleiermacher ter repensado a hermenêu­
tica como «ciência» ou «arte» da compreensão. Visto que lhe dedi­
cámos todo um capítulo, aqui apenas notaremos que uma tal con­
cepção de hermenêutica implica uma crítica radical do ponto de 
vista da filologia, pois procura ultrapassar o conceito de hermenêu­
tica como conjunto de regras, fazendo uma hermenêutica sistemati­
camente coerente, uma ciência que descreve as condições da com­
preensão,. em qualquer diálogo. O resultado não é simplesmente uma 
hermenêutica fiíológica mas uma «hermenêutica geral» (allgemeine 
Hermeneutik) cujos princípios possam servir de base a todos os 
tipos de interpretação de texto.
Esta concepção de umahermenêutica geral marca o começo da 
«hermenêutica» não disciplinar, tão importante para a presente 
discussão. Pela primeira vez a hermenêutica define-se a si mesma 
como estudo da sua própria compreensão. Quase podemos dizer que 
o que aqui é típico da hermenêutica emerge historicamente do seu 
parentesco com a exegese bíblica e com a filologia clássica.
A hermenêutica como base metodológica 
para as «geisteswissenschaften»
Wilhelm Dilthey foi um biógrafo de Schleiermacher e um dos 
grandes filósofos do século passado. Dilthey viu na hermenêutica a 
disciplina central que serviria de base a todas as Geisteswissenscha­
ften (i. e. todas as disciplinas centradas na compreensão da arte, 
comportamento e escrita do homem).
Dilthey defendia que a interpretação das expressões essenciais 
da vida humana, seja ela do domínio das leis, da literatura ou das 
Sagradas Escrituras, implica um acto de compreensão histórica, uma 
operação fundamentalmente diferente da quantificação, do domínio 
científico do mundo natural; porque neste acto de compreensão his­
tórica está em causa um conhecimento pessoal do que significa ser­
mos humanos. Acreditava ser necessário nas ciências humanas uma 
outra «crítica» da razão, crítica que faria para a compreensão his­
tórica o que a crítica kantiana da razão pura tinha feito para as 
ciências naturais — «uma crítica da razão histórica».
Num estádio primitivo do seu pensamento, Dilthey procurou 
fundamentar a sua crítica numa versão transformada da psicologia; 
mas, como a psicologia não era uma disciplina histórica, os seus 
esforços foram dificultados desde o começo. Dilthey encontrou na 
hermenêutica — disciplina centrada na interpretação, e especifica­
mente na interpretação de um objecto sempre histórico, um
50
texto — a base mais humana e histórica para o seu próprio esforço 
de formulação de uma metodologia verdadeiramente luimanística 
das Geisteswissenschaften.
A hermenêutica como fenomenologia do Dascin 
e da compreensão existencial
Martin Heidegger, ao tratar do problema ontológico, voltou-se 
para o método fenomenológico do seu mentor, Edmund Husscrl, e 
empreendeu um estudo fenomenológico da presença quotidiana do 
homem no mundo. Esse estudo Ser e Tempo (1927), é hoje reco­
nhecido como a sua obra-prima, como a chave para toda a com­
preensão adequada do seu pensamento. Chamou à análise apre­
sentada em Ser e Tempo uma «hermenêutica do Daseim>.
Neste contexto, a hermenêutica não se refere à ciência ou às 
regras da interpretação textual nem a uma metodologia para as 
Geisteswissenschaften mas antes à explicação fenomenológica da 
própria existência humana. A análise de Heidegger indicou que a 
«compreensão» e a «interpretação» são modos fundantes da exis­
tência humana. Assim a hermenêutica heideggeriana do Dasein, 
transforma-se também em hermenêutica, especialmente na medida 
em que apresenta uma ontologia da compreensão; a sua investigação 
é de carácter hermenêutico, quer nos conteúdos quer no método.
O aprofundamento que Heidegger faz da hermenêutica e das 
características hermenêuticas em Ser e Tempo é um outro ponto 
de viragem no desenvolvimento e na definição quer da palavra quer 
do campo da hermenêutica. A hermenêutica é relacionada de uma 
só vez com as dimensões ontológicas da compreensão (e com tudo 
aquilo que isso implica) e simultaneamente com a fenomenologia 
específica de Heidegger.
O professor Hans-Georg Gadamer, seguindo a liderança de 
Heidegger, desenvolveu as implicações do contributo de Heidegger 
para a hermenêutica (tanto as do Ser e Tempo, como as de ulte- 
riores obras) num trabalho sistemático sobre hermenêutica filosófica 
(Wahrheit und Methode 1960). Gadamer traça detalhadamente o 
desenvolvimento da hermenêutica, de Schleiermacher até Dilthey 
e Heidegger, fornecendo o primeiro relato histórico adequado da 
hermenêutica englobando a perspectiva do contributo revolucionário 
de Heidegger e reflectindo sobre ele. Mas Wahrheit und Methode 
é mais do que uma história da hermenêutica; é um esforço dc 
relacionação da hermenêutica com a estética e com a filosofia do 
conhecimento histórico. Apresenta de uma forma bem estruturada 
a crítica heideggeriana da hermenêutica, no velho estilo dc Dilthey, 
c retrata parte do pensamento hermenêutico de Hegel c dc llci- 
dcgger, no conceito de consciência «historicamente operativa»,
51
actuando dialecticamente com a tradição enquanto transmitida atra­
vés do texto.
A hermenêutica avança ainda mais um passo entrando na sua 
fase lingüística, com a controversa afirmação de Gadamer de que 
«um ser que pode ser compreendido é ilnguagem.» A hermenêu­
tica é um encontro com o Ser através da linguagem. Ultimamente, 
Gadamer defendeu o caracter lingüístico da própria realidade hu­
mana, e a hermenêutica mergulha nos problemas puramente filo­
sóficos da relação da linguagem com o Ser, com a compreensão, a 
história, a existência e a realidade. Ela coloca-se no centro dos 
problemas filosóficos de hoje; não pode fugir às questões episte- 
mológicas e ontológicas pois a própria compreensão é defendida 
como um tema epistemológico e ontológico.
A hermenêutica como um sistema de interpretação: 
recuperação de sentido «versus» iconoclasmo
Paul Ricoeur em De 1'Imerprétaiion (1965) adopta uma defini­
ção de hermenêutica que remonta a uma centração na exegese tex­
tual considerando-a o elemento distinto e central na hermenêutica. 
«Por hermenêutica entendemos a teoria das regras que governam 
uma exegese, quer dizer, a interpretação de um determinado texto 
ou conjunto de sinais susceptíveis de serem considerados como 
textos» (” ). A psicanálise, e particularmente a interpretação dos 
sonhos, é muito obviamente uma forma de hermenêutica; todos os 
elementos de uma situação hermenêutica estão nela contidos: o 
sonho é o texto, um texto cheio de imagens simbólicas, e o psica­
nalista usa um sistema interpretativo para produzir uma exegese 
que traga à superfície o significado oculto. A hermenêutica é o 
processo de decifração que vai de um conteúdo e de um significado 
manifestos para um significado latente ou escondido. O objecto de 
interpretação, i. e., o texto no seu sentido mais lato, pode ser cons­
tituído pelos símbolos de um sonho ou mesmo por mitos e sím­
bolos sociais ou literários.
O estudo de Ricoeur distingue entre símbolos unívocos e equí­
vocos; os primeiros são signos de sentido único, como os símbolos
(” ) «Ainsi, dans la vaste sphère du langage, le lieu de la psychanalyse 
se précise: c’est à ia foi le lieu des simboles ou du double sens et celui ou 
s’affrontent les diverses manières d’interpréter. Cette circonscription plus vaste 
que la psychanalyse, mais plus étroite que la théorie du langage total qui lui 
sert d‘horizon, nous 1’appellcron désormais le ‘champ herméneutique’; nous 
entendrons toujours par herméneutique la théorie des règles qui président à 
une cxégèse, c’est à dire à 1’interprétation d’un texte singutier ou d’un ensemble 
de signes susceptible d’être considéré comme un texte» (Dl 18).
52
da logica simbólica, enquanto os últimos são o verdadeiro ccnlro 
da hermenêutica. Porque a hermenêutica tem a ver com textos 
simbólicos com múltiplos significados; estes podem constituir uma 
unidade semântica que tem (como os mitos) um significado super­
ficial totalmente coerente, tendo ao mesmo tempo uni significado 
mais fundo. A hermenêutica é o sistema pelo qual o significado 
mais fundo é revelado, para além do conteúdo manifesto.
Contudo, a operação de encontrar um sentido oculto em sonhos 
e em lapsos de linguagem, demonstra na realidade uma desconfiança 
na superfície, ou realidade manifesta; o empreendimento de Freud 
foi tornar-nos desconfiados do conhecimento consciente que temos 
de nós mesmos, e em última instância pedir-nos que destruíssemos 
os nossos mitos e ilusões. Mesmo as nossascrenças religiosas, como 
Freud pretende demonstrar em O Futuro de uma Ilusão, são de 
facto ilusões infantis. A função da hermenêutica freudiana é por­
tanto iconoclástica.
Isto leva Ricoeur a sustentar que nos nossos dias há dois síndro- 
mas muito diferentes da hermenêutica; um, representado pela des- 
mitologização de Bultmann, lida amorosamente com o símbolo esfor­
çando-se por recuperar o significado que nele se oculta; o outro 
procura destruir o símbolo enquanto representação de uma reali­
dade falsa. Destrói máscaras e ilusões num esforço racional e inces­
sante de «aesmitificação». Ricoeur destaca como exemplo desta 
última forma de hermenêutica, três grandes desmitificadores: Marx, 
Nietzsche e Freud. Cada um destes três homens interpretou como 
falsa a superfície da realidade e avançou com um sistema de pen­
samento que destruiu essa realidade. Os três combateram activa- 
mente a religião; para os três, o pensamento verdadeiro era um 
exercício «de suspeita» e de dúvida. Minaram a confiança piedosa 
que o indivíduo depositava na realidade, nas suas próprias crenças 
c motivações; cada um defendeu uma transformação de pontos de 
vista, um novo sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos 
nossos mundos — uma nova hermenêutica.
Devido a estas duas abordagens antitéticas da actual interpre­
tação dos símbolos, Ricoeur defende que não pode haver regras 
universais para a exegese, apenas teorias separadas e opostas, rela­
tivas às regras de interpretação. A desmitologização trata o símbolo 
ou o texto como uma abertura para uma realidade sagrada; os 
desmitificadores tratam os mesmos símbolos (ou seja, os textos 
bíblicos) como uma falsa realidade que deve ser destruída.
A abordagem que Ricoeur faz de Freud é ela própria um exer­
cício brilhante do primeiro tipo de interpretação, pois recupera e 
Interpreta o significado de Freud de um modo inovador para o 
momento histórico actual. Ricoeur tenta contemplar tanto a racio­
nalidade da dúvida como a fé de uma interpretação passada, numa
53
filosofia reflexiva que não se refugia em abstracções nem degenera 
cm simples exercício de dúvida, uma filosofia que aceita o desafio 
hermenêutico de mitos e símbolos e que tematiza reflexivamente 
a realidade que está por detrás da linguagem, do mito e do símbolo. 
A filosofia hoje já se centra na linguagem; já é, num certo sentido, 
hermenêutica; o desafio é fazê-la criativamente hermenêutica.
54
4
A LUTA CONTEMPORÂNEA SOBRE HERMENÊUTICA: 
BETTI «VERSUS» GADAMER
As seis definições de hermenêutica atrás abordadas, inter-rela- 
cionadas e muitas vezes sobrepostas, transpcrtam-nos de 1654 até 
aos nossos dias. As seis ainda se encontram, em graus variáveis, no 
spectrum do pensamento hermenêutico contemporâneo; no entanto, 
hoje há uma nítida polarização. Temos, por um lado, a tradição de 
Schleiermacher e de Dilthey, cujos partidários encaram a herme­
nêutica como um corpo geral de princípios metodológicos que 
subjazem à interpretação. E temos, por outro, os seguidores de Hei­
degger que vêm a hermenêutica como uma exploração filosófica 
das características e dos requisitos necessários a toda a compreensão.
Os representantes mais conhecidos destas duas posições básicas 
são Emílio Betti, autor de uma obra sobre teoria da interpretação (’) 
e Hans-Georg Gadamer cuja Wahrheit und Methode foi breve­
mente discutida no capítulo anterior. Betti, na tradição de Dilthey, 
pretende dar-nos uma teoria geral do modo como «as objectivações» 
da experiência humana podem ser interpretadas; defende veemente 
a autonomia do objecto de interpretação e a possibilidade de uma 
«objectividade» histórica na elaboração de interpretações válidas. 
Gadamer, na seqüência de Heidegger, orienta o seu pensamento para 
a questão mais filosófica do que é a interpretação em si mesma; 
defende de um modo igualmente convincente que a compreensão é 
um acto histórico e que como tal está sempre relacionada com o 
presente. Sustenta que é ingênuo falarmos de «interpretações objec- 
tivamente válidas», pois fazê-lo implicaria ser possível uma com­
preensão que partisse de um ponto de vista exterior à história.
Os teólogos da desmitologização — Rudolf Bultmann e os dois 
líderes da Nova Hermenêutica, Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs 
podem associar-se enquanto aliados da abordagem de Gadamer,
(■) T G I e A A M G.
55
essencialmente heideggeriana e fenomenológica. Esta identificação 
da Nova Hermenêutica com Gadamer é explícita e recíproca; na 
sua obra C) Gadamer cita aprovadoramente Ebeling e Fuchs, e os 
teólogos aconselham os seus discípulos a que estudem cuidadosa­
mente a obra de Gadamer (’). Também os teólogos e filósofos que 
criticam a Nova Hermenêutica, tal como Wolfhart Pannenberg ('), 
a relacionam explicitamente com a posição de Gadamer. Betti ata­
cou Bultmann, Ebeling e Gadamer como sendo inimigos da objec- 
tividade histórica no seu panfle'o de 1962, Die Hermeneutik ais 
allaemeine Methodik der Geisteswissenschaften, e E, D. Hirsch, 
posteriormente, repetiu e de certo modo ampliou o protesto num 
artigo sobre a teoria da interpretação em Gadamer (5).
Certamente que é um problema discutível saber quem ataca e 
quem defende, ou saber quem é que iniciou o ataque. Poderia pare­
cer que Betti e Hirsch criticam toda a visão hermenêutica de Hei­
degger e da Nova Hermenêutica ('). E, no entanto, há vozes de 
ataque e de defesa, apelando para um retorno à «objectividade», 
reafirmando que o estudo da história implica o abandono do ponto 
de vista actual do historiador; a hermenêutica, alegam, deve fun­
cionar de modo a fornecer os princípios de uma interpretação 
objectiva. Gadamer sustenta, em autodefesa, que está simplesmente 
ligado à descrição do que é, a cada acto de compreensão; está a 
fazer ontologia e não metodologia O-
O problema surge pelo facto da ontologia de Gadamer pôr em 
causa a possibilidade de um conhecimento histórico objectivo. Do 
ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são cs críticos des­
trutivos da objectividade, que pretendem mergulhar a hermenêu­
tica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a in‘e- 
gridade do próprio conhecimento histórico que está a ser atacada 
e é preciso defendê-la com firmeza.
(’) W M 313.
(3) O Professor Ebeling orientou um seminário semestral sobre esta obra 
na Universidade de Zurique, pouco depois de ela ter sido publicada. Guardou-se 
o protocolo habitual do curso (actas). Este terá interesse numa avaliação da 
relação Ebclins/Gadamer.
(4) Ver «Hermeneutics and Universal History» H H 222-5; originalmente 
ZT hK LX (1963) 90-121.
(5) HAMG; e Hirsch «Gadamer’s Theory of Interpretation» RM XVIII 
(1965), 488-507, reimpressa em VII 245-64.
(•) Betti discute Bultmann, Ebeling e Gadamer em HAMG, e Hirsch 
refere-se á WM de Gadamer como a «summa» da Nova Hermenêutica em 
teologia.
Õ) Carta a Betti, incluída cm HAMAG 51 n. Esta carta é posteriormente 
citada no artigo de Gadamer, «Hermeneutik und Historismus», PhR IX (1962), 
248-9. O assunto é clarificado no Prefácio da segunda edição dc WM. Ver 
também a discussão de Robinson sobre sobre esta importante carta em NH 76. 
Ver Niels Thulstrup, «An Observation Concerning Past and Present Herme­
neutics» OL XXII 24-44, para uma comparação entre Gadamer e Betti.
56
Para compreendermos os ataques das objecções de Betti e de 
Hirsch à hermenêutica de Bultmann, Ebeling c Gadamer, tornu nc 
necessário esboçar muito ao de leve as abordagens feitas por 
Bultmann e por dois dos seus discípulos, Gerhard Ebeling c lirnst 
Fuchs.
A hermenêutica em Bultmann, Ebeling e Fuchs
Rudolf Bultmann é sobejamente conhecido como um dos 
maiores teólogos protestantes deste século. Embora o seu nome 
esteja as mais das vezes associado ao controverso projecto de des­
mitologização, a sua fama como eminente estudioso do Novo Tes­
tamento estava já confirmadamuito antes de publicar o seu famoso 
ensaio Jesus Chríst and Mythology, em 1941 (*).
Contudo, as linhas essenciais da sua orientação existencialista 
em teologia, eram já patentes desde 1926, no seu JesusC) e con­
tinuaram desde então. Esta orientação é ela própria um esforço 
que pretende confrontar de um modo mais significativo o problema 
hermenêutico da interpretação do Novo Testamento com o homem 
do século xx.
«Desmitologizar» é talvez um termo infeliz. Pode sugerir que 
o Novo Testamento, tal qual está, é encarado como falso (i. c. 
mítico) e que a sua mensagem terá que ser acomodada à nova visão 
do mundo pós-deística. Traça-sé demasiado facilmente o retrato de 
um teólogo engenhoso, pronto a deitar fora os elementos míticos 
como não sendo significativos e a apresentar uma Bíblia resumida 
onde só se manteriam os elementos mais dignos de crédito. Ora 
não é isto que se passa. Pelo contrário, a desmitologização não pre­
tende apagar nem ignorar os elementos míticos do Novo Testa­
mento, mas sim realçar neles o seu significado original e salvífico. 
Longe de ser um esforço de acomodação dos Evangelhos a uma 
mentalidade moderna, a desmitologização ataca a literaüdade super­
ficial patente num ponto de vista moderno, ataca a tendência que 
os leigos, e mesmo os teólogos têm de considerar a linguagem como 
mera informação e não como o meio pelo qual Deus confronta os 
homens com a possibilidade de um autoconhecimento radicalmente 
novo (não grego, não naturalista, não moderno). A desmitologização
(*) As obras mais importantes de Bultmann estão traduzidas em inglês, 
como por exemplo «The History of the Synoptic Tradition (1921); «Jesus and 
lhe Word (1926); e «Theology of lhe New Testament», I (1941) e II (1951). 
11;\ também duas colecções de artigos: «Essays: Philosophical and Theological»; 
o «Exislence and Faith», trad. e ed. Schubert M. Ogden. (As datas entre parfin- 
lc»ls são das edições alemãs e não das traduções.)
(*) Ver especialmente págs. 11-19; «Introduction, Viewpoinl and Mcthod».
57
não 6 um instrumento de desmitificação racionalista e iconoclástico 
à maneira de Freud, Nietzsche ou Marx (para mencionarmos a dis­
tinção de Ricoeur entre desmitificação e desmitologização); não 
procura atacar e destruir o símbolo mítico, antes o encara como 
abertura para o Sagrado. Interpretar o símbolo é relembrar o seu 
sentido original e autêntico, agora escondido.
A tônica da desmitologização de Bultmann reside na transfor­
mação do conhecimento de cada um. No que respeita ao auto- 
conhecimento existencial, Bultmann está nitidamente em dívida 
para com Heidegger, a quem esteve estreitamente ligado em meados 
de 1920 na Universidade de Marburgo, quando este coligia Ser 
e Tempo. A influência que Heidegger teve sobre Bultmann é tão 
conhecida que por vezes é mesmo vista de um modo exagerado. 
Contudo, enquanto que a tentativa de construir uma analogia total 
entre os conceitos de Heidegger e os de Bultmann (como John 
Macquarrie fez) (10) pode ser devida tanto ao carácter inconsciente­
mente religioso do modelo ontológico de Heidegger, como à dívida 
de Bultmann, é justo dizer-se que Heidegger foi uma força decisiva 
no pensamento de Bultmann no que respeita ao problema herme­
nêutico. Isto reflecte-se na desmitologização, que é essencialmente 
um projecto hermenêutico da interpretação existencial.
Assim, por exemplo, não só o conceito que Bultmann tem do 
homem como ser histórico orientado para o futuro, está muito perto 
do que se defende em Ser e Tempo como há também pelo menos 
três aspectos específicos em que a teologia de Bultmann segue Hei­
degger: 1.° Na distinção entre a linguagem usada como mera infor­
mação que se deve interpretar objectivamente como um facto e a 
linguagem plena de contributos pessoais e de poder de impor obe­
diência que se assemelha ao conceito heideggeriano do carácter 
derivativo das asserções (especialmente lógicas) ("). 2.° Na ideia 
de que Deus (o Ser) confronta o homem enquanto Palavra, enquanto 
linguagem, que se assemelha à tônica crescente dada por Heidegger 
ao carácter lingüístico do Ser quando se apresenta ao homem, 3.9 
Também no conceito de que o Kerygma como a palavra das pala­
vras, fala por uma autocompreensão existencial. O Novo Testa­
mento em si ríiesmo, diz Bultmann, visa um novo (autêntico) conhe­
cimento de nós próprios; a função de proclamar o Novo Testamento 
é trazer este novo conhecimento ao homem moderno a quem ele 
hoje se dirige. A Palavra do Novo Testamento é, portanto, algo 
como uma actualização da chamada de consciência que Heidegger 
descreve em Ser e Tempo (1J).
C°) «An Existencialist Theology: A Comparison of Heidegger and Bult­
mann*.
(*>) S Z § 33.
(») Ibid., § 60.
58
Certamente que a chamada de atenção para uma nova maneira 
de nos conhecermos a nós próprios é uma afronta ao nosso modo 
actual de estar no mundo. Bultmann não tem qualquer desejo de 
afastar «o escândalo» do Novo Testamento, pretende sim colocar 
esse escândalo no seu devido lugar: não é considerando literalmente 
os mitos como verdades de fé, não é acreditando numa informação 
cosmológica manifestamente falsa, mas sim apelando para uma obe­
diência radical, para uma abertura à Graça, à liberdade na fé. 
A discussão que Bultmann faz do problema hermenêutico indica 
especificamente que para ele a hermenêutica é sempre definida em 
termos de exegese de um texto, transmitido historicamente. Por 
muito que deva a Heidegger, continua a ver a hermenêutica mais 
como uma filosofia que deve orientar a exegese, do que como uma 
teoria da compreensão «per se». Em The Problem of Hermeneutics 
(1950), reafirma a insistência liberal dos Protestantes na total liber­
dade de investigação — o método histórico-crítico — e vai ao 
ponto de dizer novamente que a Bíblia está sujeita às mesmas con­
dições de compreensão, aos mesmos princípios filológicos e histó­
ricos aplicáveis a qualquer outro livro (“ ). O «problema hermenêu­
tico» embora sempre relacionado com a exegese, é encarado não 
enquanto distinta e especificamente teológico mas como um pro­
blema existente em toda a interpretação de textos, seja ela de 
documentos jurídicos, obras históricas, literatura ou Escrituras.
É claro que a dificuldade do problema está em definir o que 
constitui a compreensão histórica de um texto. Para Bultmann, a 
questão hermenêutica é «como compreender os documentos histó­
ricos deixados pela tradição», que por seu lado assenta na questão: 
«Quais as características do conhecimento histórico?» O'1) É a este 
problema que dedica a segunda parte das suas Gifford Lectures 
(1955) e é precisamente a análise que nelas apresenta que Betti 
mais tarde irá violentamente pôr em causa (1!).
Bultmann assinala que toda a interpretação da história ou todo 
o documento histórico é orientado por um certo interesse, que por 
sua vez se baseia numa certa compreensão preliminar do assunto. 
A «questão» molda-se a partir deste interesse e desta compreensão. 
Sem eles nenhuma questão se formularia e não haveria qualquer 
interpretação. Por conseguinte, toda a interpretação é guiada pela 
«pré-compreensão» do intérprete (” )• [Mais uma vez esta análise da
(13) «Die Interpretation der biblischen Schriften unterliegt nicht anderen 
Bedingungen des Verstehens ais jede andere Literatur». G&V II, 231. O artigo 
apareceu como «Das Problem der Hermeneutik» ZT h K XLVII (1950), 47-69, 
e mais tarde traduzido em «Essays: Philosophical and Theological», págs. 234-61.
(») HE 110.
(1J) Ver HAMG 19-36.
('•) HE 113. Ver a crítica de Betti a «essa palavra ambígua que é melhor 
evitar». HAMG 20-21.
59
compreensão se relaciona nitidamente com a delimitação feita por 
Heidegger de Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff (") em Ser e Tempo, 
como condições prévias de interpretação.] Aplicado à história, isto 
significa que o historiador escolhe sempre um certoponto de vista, 
o que por seu lado significa que ele é essencialmente receptivo ao 
aspecto do processo histórico aberto às questões que surgem a partir 
desse ponto de vista. Por muito objectivo que pretenda ser ao abor­
dar um tema, o historiador não pode escapar à compreensão que 
dele tem: «Já na escolha de um ponto de vista está em acção aquilo 
a que posso chamar o encontro existencial com a história. A história 
só ganha sentido quando o próprio historiador está dentro da histó­
ria e toma parte nela» ('*). Bultmann cita então R. G. Collingwood 
para o facto de que os eventos têm que ser refeitos na mente 
do historiador. Eles são, portanto, objectivos e conhecidos apenas 
porque também são subjectivos (’*). Dado que o significado apenas 
surge da relação que o intérprete tem com o futuro, segundo 
Bultmann torna-se impossível falar de um significado objectivo — 
quer dizer destituído de qualquer ponto de vista — e como hoje já 
não se afirma que se sabe o fim e a meta da história «a questão 
do sentido da história (como um todo) deixa de ter significado» (J0).
Podemos aqui ver como actua de um modo radical o «princípio 
de Heisenberg» ou teoria de campo; isto é, que o objecto ao ser 
observado é subtilmente alterado, pela simples condição de estar 
a ser observado. O historiador é uma parte do próprio campo que 
observa. O conhecimento histórico é ele próprio um evento histó­
rico; o sujeito e o objecto da ciência histórica não existem indepen­
dentemente um do outro (” ). Isto, de acordo com Bultmann tem 
implicações na fé cristã, especialmente porque através do momento 
escatológico, o cristão é elevado para além da história e reingressa 
nela com um novo futuro. Por conseguinte a história reveste-se de 
um significado novo. Podemos aqui referir que Bultmann procura 
ir mais longe que Collingwood no conceito que defende de escato- 
logia, usando uma abordagem teológica (escatológica) para a ques­
tão do sentido da história (” ). Mas a argumentação central de 
Bultmann é clara (e é esse mesmo problema que Betti põe em 
causa): em história não podemos falar de sentido objectivo porque 
a história não pode ser conhecida excepto através da subjectividade 
do próprio historiador.
(lr) SZ § 32. Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff podem ser traduzidos um 
pouco literalmente por posse prévia, visão e concepção.
(“ ) HE 119.
(l9) R- G. Collingwood, «The Idea of History», pág. 218.
(«) HE 120.
(Jl) Ibid., 133.
(” ) Ibid-, 136.
60
Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs seguem Bultmann quando colo 
cam o problema hermenêutico no centro do seu pensamento. Tnl 
como ele continuam a agarrar-se à nítida disparidade entre a visflo 
moderna do real e a visão em que assenta o Novo Testamento. 
Como Bultmann, opõem-se à visão literal da linguagem e continuam 
a tentativa feita por este, de restaurar para a Palavra o seu poder 
original. Como ele, centralizam-se no significado do Novo Testa­
mento enquanto testemunho mais do que no seu carácter factual; 
acentuam que o intérprete está sempre no meio da história que ele 
quer interpretar e que o sentido da história está em relação com 
a compreensão que o intérprete tem do futuro.
Ebeling e Fuchs levaram ainda mais longe as concepções de 
Bultmann relativamente à história, à linguagem e à desmitologiza­
ção, dando-lhes uma interpretação ainda mais radical. Se a herme­
nêutica de Bultmann se centra na autocompreensão existencial do 
homem e vai directamente para a análise do que isso significa em 
termos da Palavra revelada, Ebeling e Fuchs voltam-se para a pró­
pria linguagem e para a sua relação com a realidade. O problema 
hermenêutico nessa perspectiva não é simplesmente uma questão de 
ajustar a proclamação da Palavra à realidade que ela veicula em 
termos de uma autocompreensão existencial; é lingüístico, i. e.. 
«como é que uma palavra (palavra evento) que aconteceu, chega a 
ser compreendida» (” ). Como Ebeling sustenta em Word of God 
and Hermeneutics: «a existência é existência através da palavra e 
na palavra; (...) a interpretação existencialista significaria interpre­
tação do texto relativamente à palavra evento» C21).
Tanto Ebeling como Fuchs fizeram da palavra evento o centro 
do seu pensamento teológico. Este foi designado por «teologia da 
palavra evento». A hermenêutica, dizem eles, tem que encontrar o 
seu apoio na palavra evento; «o objecto da hermenêutica» diz 
Ebeling, «é a palavra evento enquanto tal» (” ). Contudo, a herme­
nêutica não procura compensar qualquer deficiência da Palavra 
Bíblica através da paráfrase, antes tenta facilitar «a função her­
menêutica» (de provocar a ocorrência da compreensão) da própria 
palavra. É a própria palavra que abre e mediatiza a compreensão: 
«O fenômeno primário no domínio da compreensão não é çi com­
preensão da linguagem mas a compreensão através da lingua- 
nem.» (” ) Ou ainda, para reavivar o caracter lingüístico de tal teo­
logia: «A hermenêutica enquanto teoria da compreensão deve 
portanto ser a teoria da palavra.» (” ) Fuchs põe a questão de
(") WF 313.
(*) Ibid., 331.
(” ) Ibid., 319.
(") Ibid., 318; citado em HAMG 36.
(”) WF 319.
61
um modo sucinto no começo da sua Hermeneutik: «A Herme­
nêutica no campo da teologia é a doutrina da fé da linguagem 
(Sprachlehre).» (” )
Do ponto de vista de uma definição de hermenêutica há duas 
questões com interesse nesta abordagem. Primeiro, a referência à 
«função hermenêutica» das palavras remonta ao sentido mais pri­
mitivo de interpretação como mediação directa da compreensão, 
atribuindo assim à hermenêutica a finalidade de «remoção dos 
obstáculos à compreensão» ("). Isto é, uma focalização salutar dos 
objectivos da hermenêutica, embora não altere o facto de tendermos 
a utilizar, consciente ou inconscientemente, sistemas de interpre­
tação, mesmo nos actos de mediação mais directos. O segundo ponto 
refere-se ao historicismo: a focalização na linguagem evento que 
continua a sustentar o «carácter lingüístico» da realidade, encara a 
história não como um museu de factos mas como uma realidade 
que se exprime por palavras. Assim, as perguntas adequadas não 
são tanto «Quais eram os factos?» ou «Como podemos explicar este 
facto?», mas «O que é que se exprimiu neste facto ou neste mito?», 
«O que é que está a ser mediatizado?» (3°). O historicismo em teo­
logia dá origem a um uso incorrecto da linguagem, a uma «visão 
falsificada da palavra» que a abstrai do evento que é a palavra 
viva e a trata como um mero enunciado. Daí resulta o falhanço do 
intérprete em compreender a palavra revelada, à luz das suas carac­
terísticas de palavra evento (").
A ênfase dada em teologia à palavra evento, tem como con­
seqüência irazer a filosofia da linguagem para o centro da herme­
nêutica. A finalidade da hermenêutica ainda é uma finalidade prá­
tica, de remoção de obstáculos à palavra evento, mas a focalização 
do problema hermenêutico está sem dúvida na interconexão da 
linguagem com o pensamento e com a realidade. Dado que a her­
menêutica não pode ser considerada separadamente da moderna 
epistemologia, da metafísica e da filosofia da linguagem, ultrapassa 
nitidamente os limites de um conjunto de meras regras práticas de 
interpretação. Ao afastar-se da objectividade realista dos «factos 
históricos» chamou a crítica para o terreno da teologia, especial­
mente a partir de Wolfhart Pannenberg (” ) e para fora da teologia, 
a partir de Emilio Betti.
(«) WF 318-19.
(") WF 318-19.
(” ) Ibid., 295.
(>') Ibid.
(” ) «Hermeneutics and Universal History» HH 122-152.
62
A hermenêutica de Betti
Emílio Betti, historiador de Direito, fundou em 1955 um ms 
tituto para a teoria da interpretação (” ). Publicou em 1962 um 
livrinho com o título Hermeneutik ais allgemeine Methodik der 
Geiteswissenschaften. Surgido pouco depois da obra-prima de 
Gadamer, de 1960, este ensaio avança com uma crítica nítida einequívoca à abordagem que Gadamer fizera a este tema — tal 
como às abordagens de Bultmann e de Ebeling. Em termos muito 
simples, as objecções que Betti faz à obra de Gadamer são: cm 
primeiro lugar, que esta não serve como metodologia ou como 
auxiliar de metodologia dos estudos humanísticos e, em segundo 
lugar, que ela põe em risco a legitimidade de nos referirmos ao 
estatuto objectivo dos objectos de interpretação e que portanto torna 
discutível a ob.iectividade da própria interpretação.
O livrinho começa com um lamento:
A hermenêutica como problemática geral da interpre­
tação. essa grande disciplina geral que tão nobremente se 
originou no período Romântico" como preocupação comum 
a todas as disciplinas, que ocupou a atenção de muitos espí­
ritos eminentes do século dezanove — como por exemplo 
Humboldt na filosofia da linguagem, August Wilhelm 
von Schlegel o grande historiador literário. Bõckh o filó- 
logo e enciclopedista, Savigny o jurista, e historiadores como 
Niebuhr, Ranke e Droysen — essa venerável forma mais 
antiga de hermenêutica parece estar a desaparecer da 
moderna consciência alemã (” ).
Numa sua primeira obra enciclopédica — Teoria' generale delia 
interpretazione (S!) — Betti procurou renovar a tradição alemã, já 
antiga mas ricamente significativa.
Os leitores alemães tiveram acesso ao pensamento geral de Betti 
desde 1954, quando ele publicou o seu curto «manifesto hermenêu­
tico»— Zur Grundlegung einen allgemeinen A uslegungsleher (!e), 
uma antecipação densamente documentada do seu magnus opus 
de 1955, do qual surgiu finalmente uma tradução em 1967 (” )• 
Esta obra de maior fôlego, produto de sete ou mais anos de tra­
balho, remonta à sua conferência inaugural de Maio de 1948. De 
facto, o manifesto de 1954 é uma versão alargada desta primeira 
apresentação. Em 1962, Betti escreveu com tristeza que, apesar
(” ) Ver HAMG 6-7 n.
(») HAMG.
(” ) TGI.
(") Apareceu originalmente em «lesischrijt für Ernst Rabel», II, 79-168, 
publicado no mesmo ano.
(” ) AAMG.
63
da sua publicação de 1954, na Alemanha dera-se pouca impor­
tância ao seu trabalho (” ). Pelo contrário, o fascínio pela filosofia 
heideggeriana continuou a exercer influência na teologia protestante 
e na filosofia, surgindo uma visão completamente diferente de 
hermenêutica.
Este desenvolvimento não estava na grande corrente da tra­
dição que remonta a Schleiermacher passando por Humboldt, Stein- 
thal, Lazarus Bockh, Dilthey, Simmel, Litt, Joachim Wach e Nicolai 
Hartmann. Foi esta corrente que ocupou a atenção de Betti na sua 
resolução de retomar o projecto de formulação de uma teoria 
metodológica geral da interpretação (” ). Foi a influência da feno­
menologia e da ontologia heideggerianas, ligadas ao interesse geral 
pela filosofia da linguagem, que constituiu a força condutora do 
interesse renovado que os alemães demonstraram pela hermenêutica 
(Gadamer afirma que um outro impulso dado ao seu pensamento 
foi o profundo descontentamento que experimentou relativamente 
à teoria estética dominante nos anos de 1930 e seguintes) O9).
Como vimos, em teologia, o desenvolvimento da hermenêutica 
estava intimamente ligado à desmitologização. A desmitologização 
é a maneira de defrontar o problema profundo de tornar a Bíblia 
relevante e significativa para os actuais ouvintes da Palavra.
Enquanto historiador de Direito, o interesse de Betti não partiu 
do desejo filosófico de uma avaliação mais adequada da verdade 
de uma obra de arte (como aconteceu com Gadamer) ou de um 
desejo de chegar a uma compreensão mais funda do Ser (como 
aconteceu com Heidegger) ou da obrigação de alcançar a total 
compreensão da palavra bíblica (como em Bultmann e em Ebeling). 
Betti queria distinguir os diferentes modos de interpretação das 
disciplinas humanas e formular um corpo básico de princípios com 
os quais se interpretasse as acções do homem e os objectos. 
Se há que fazer uma distinção entre o momento de compreender 
um objecto por si mesmo e o momento de ver o significado exis­
tencial do objecto através da nossa própria vida e do nosso futuro, 
então podemos dizer que este último ponto de vista é nitidamente 
a preocupação de Gadamer, de Bultmann e de Ebeling, enquanto 
a preocupação de Betti tem sido determinar a natureza da inter­
pretação «objectiva».
Betti de modo algum pretende omitir da interpretação o mo­
mento subjectivo ou mesmo negar a sua necessidade em toda a 
interpretação humana. Mas o que pretende afirmar é que. qualquer
(“ ) HAMG 6.
(" ) Ibid.
(w) Dc acordo cora observações feitas por Gadamer sobre a gênese de 
WM, muna abordagem que segue a minha comunicação *Die Tragweile von 
Gadumrrs II'M fiir dir Literaiurauslegung». Heidelberg, 14 de Julho de 1965.
64
que seja o papel da subjectividade na interpretação, o o h ja lo 
mantém-se objecto e podemos tentar fazer dele e realizar com clr 
uma interpretação objectivamente válida. Um objecto fala, c pode 
ser ouvido de um modo correcto ou incorrecto, precisamente por 
que nele há um significado objectivamente verificável. Se o objecto 
não é diferente do seu observador, e se não fala por si mesmo, 
para quê então escutá-lo? (4I)
Betti defende que a recente hermenêutica alemã se tem dc tal 
modo ocupado com o fenômeno do Sinngebung (a função do intér­
prete na atribuição de sentido ao objecto) que acabou por se equa­
cionar com a interpretação. No começo de Die Hermeneutik ais 
allgemeine Methodik der Geiteswissenschaften (1962), Betti sus­
tenta que é seu objectivo, em primeiro lugar clarificar a distinção 
entre Auslegung (interpretação) e Sinngebung. Precisamente porque 
esta interpretação é ignorada, diz Betti, toda a integridade de resul­
tados objectivamente válidos nas humanidades (die Objectivitàt der 
Auslegungsergebnisse) é posta em risco.
A defesa que Betti faz da objectividade é ilustrada com alguns 
exemplos de regras de hemenêutica e com objecções à posição dc 
Gadamer. Para Betti, o objecto a interpretar é uma objectivação 
do espírito humano (Geist) expressa de uma forma sensível. A inter­
pretação, portanto, é necessariamente um reconhecimento e uma 
reconstrução do significado que o seu autor foi capaz de incorporar, 
usando um determinado tipo de materiais. Isto significa evidente­
mente que o observador tem que ser traduzido para uma subjec­
tividade que lhe é estranha e, por meio da inversão do processo 
criativo, tem que voltar à ideia ou à «interpretação» que é incor­
porada no objecto O . Assim, como Betti observa, é perfeitamente 
absurdo falar de uma objectividade que não envolva a subjectividade 
do intérprete. Porém, a subjectividade do intérprete deve pene­
trar a estranheza e a alteridade do objecto, ou então o intéprete 
apenas consegue projectar a sua própria subjectividade no objecto 
de interpretação. Assim é fundamental (é mesmo a primeira regra 
de toda a interpretação), afirmar a autonomia essencial do 
objecto (“ ).
Uma segunda regra é a do contexto do sentido, ou seja, a 
totalidade no interior da qual as partes individuais são interpretadas. 
Há uma relação íntima de coerência entre as partes individuais de 
um discurso devido a uma totalidade sobreposta, construída com 
as partes individuais C14). Numa terceira regra geral, Betti reconhece
(“ ) HAMG, 35.
(«) Ibid., 11-12.
(4>) Ibid., 14.
(**) «Kanon des slnnhaften Zusammenhanges (Grundsatz der Ganzholt)» 
OU «Kanon der Totalitãt», ibid., 15.
65
■
o «carácter tópico» (Actualitãt) do significado, isto é, a relação 
com a própria posição e com os actuais interesses do intérprete 
que toda a compreensão envolve. O intérprete de um aconteci­
mento passado, necessariamente o interpretará em termos daquilo 
que experienciou. Do lado subjectivo não há fuga possível à 
compreensão e à experiência de cada um. Betti está longe de ima­
ginar que a comprensão é uma questão de receptividadepassiva; 
antes a considera sempre como um processo de reconstrução que 
envolve a própria experiência que o intérprete tem do mundo (“ ). 
Pode-se mesmo dizer que Betti reafirma «em princípio» o conceito 
de compreensão prévia enunciado por Bultmann.
Para este, devido à historicidade da compreensão prévia, a ideia 
de que é possível ter um conhecimento histórico objectivo é uma 
«ilusão do pensar objectivado» (die lllusion emes objektivierenden 
Denkens) (“ ). Diz Betti: «O texto a que um pré-conhecimento dá 
sentido não existe simplesmente para fortalecer a opinião que pre­
viamente sustentávamos; pelo contrário, temos que partir do prin­
cípio de que o texto tem algo a dizer-nos, que nós ainda ignoramos 
mas que existe, independentemente da acção de o compreendermos. 
É precisamente aqui que ganha luz a discutibilidade de uma foca­
lização subjectiva; esta é obviamente influencida pela filosofia exis­
tencial contemporânea e luta pela junção de uma explicação 
(Auslegung) e de uma compreensão (Sinngebung), tendo como con­
seqüência o facto de que a objectividade dos resultados do processo 
interpretativo nas humanidades, é totalmente posta em causa» (")•
As críticas de Betti a Gadamer levantam sérias objecções à 
«intersubjectividade» existencial e à historicidade da compreensão, 
defendendo que Gadamer não conseguiu produzir métodos norma­
tivos que permitissem distinguir uma interpretação certa de uma 
interpretação errada, e de que ele considera conjuntamente pro­
cessos muito diferentes de interpretação (**). Betti defende que o 
historiador não está muito preocupado com uma relação prática 
com o presente, estando sim submerso contemplativamente no texto 
que está a estudar; por outro lado, o advogado na relação que sus­
tenta com um texto, tem em mente a sua aplicação prática ao 
presente. Como conseqüência, os dois processos de interpretação 
têm características diferentes; a afirmação de Gadamer de que 
cada interpretação implica uma aplicação ao presente, é verdade 
para uma interpretação legal mas não para uma interpretação 
histórica (“ ).
(" ) Ibid.. 19-22.
('•) HE, 121.
<‘r) HAMG, 35.
(*■) Ibid., 43-44.
(*•) Ibid., 45-49.
66
Gadamer respondeu a estas objecções numa carta a llrltl 
Declarou não estar a propor um método mas sim a tentar csnvvci 
aquilo que é... «Procuro pensar os acontecimentos para além du 
conceito de método da ciência moderna, de um modo explicit» 
mente universal» (s0). Betti publicou a carta de Gadamer como notu 
de rodapé do próprio panfleto onde ataca Gadamer. É evidente que 
Betti não ficou satisfeito com a resposta. Para ele, Gadamer per­
deu-se numa subjectividade existencial sem quaisquer regras. No 
prefácio ã edição de Wahrheit und Methode de 1965, Gadamer 
mais uma vez responde a Betti, dando agora relevo ao carácter 
não subjectivo da compreensão. A tônica ontológica da sua obra 
(que Betti deplora) leva Gadamer a encarar o funcionamento da 
«consciência historicamente operante» (” ) não como um processo 
subjectivo mas sim ontológico:
«O significado da minha investigação não é, de modo algum, 
apresentar uma teoria geral da interpretação com especificações 
que avaliem os diferentes métodos das disciplinas particulares, 
como E. Betti tão excelentemente fez, mas sim procurar o que há 
de comum em todas as vias de compreensão e mostrar que ela 
nunca é um procedimento subjectivo relativamente a um dado 
‘objecto’ mas que petrence à história operacional (Wirkungsgesch- 
ichte) — quer dizer, ao ser daquilo que é compreendido» (” )•
A questão visada por Gadamer será ulteriormente examinada 
nos capítulos dez e onze, mas torna-se agora nítido o contraste 
fundamental entre Betti e Gadamer. Deparam-se-nos duas con­
cepções, muito diferentes quanto ao âmbito e à finalidade da her­
menêutica, quanto aos métodos e tipos de pensamento que lhe 
são próprios e quanto ao carácter essencial da disciplina como 
campo de estudo. Mediante duas definições muito diferentes, assen- 
tanto em fundamentos filosóficos distintos, os dois pensadores 
definem a hermenêutica com vista a objectivos também muito 
diferentes. Betti, seguindo Dilthey na busca de uma disciplina de 
base para as Geisteswissenschaften, procura o que é prático e útil 
para o intérprete. Pretende normas que distingam uma interpre­
tação certa de uma interpretação errada, que diferenciem um tipo 
e outro de interpretação. Gadamer, seguindo Heidegger, faz per­
guntas tais como: Qual é o carácter ontológico da compreensão? 
Que espécie de encontro com o Ser está implicado no processo 
hermenêutico? Como é que a tradição e a transmissão do passado, 
entram no acto de compreensão de um texto histórico e o podem 
moldar?
(” ) Ibid., 51 n.
(’*) «Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein»; ver WM 325-60. 
(” ) Ibid., Prefácio à 2.» ed., XVII.
67
Que dizer deste conflito de definições? Como desenvolverei no 
próximo capítulo, as duas posições não são totalmente antagônicas. 
Pelo contrário, os dois pensadores trabalham em diferentes aspectos 
do problema hermenêutico. Obviamente que há que fazer uma 
opção básica entre uma perspectiva realista e uma perspectiva 
fenomenológica; no entanto, podemos admitir que para a herme­
nêutica como um todo, ambas as posições filosóficas permitem 
importantes abordagens ao problema hermenêutico.
E. D. Hirsch — A hermenêutica como lógica 
da validação
Em 1967, E. D. Hirsch publicou Validade na Interpretação, 
o primeiro tratado completo de hermenêutica geral escrito em 
inglês. Sem dúvida que nos anos vindouros, este trabalho virá a 
ocupar um lugar entre as obras americanas mais significativas sobre 
teoria da interpretação. De um modo sistemático e com uma argu­
mentação cuidadosa, o livro põe em causa algumas das asserções 
mais apreciadas que desde há quatro décadas têm orientado a inter­
pretação literária. Por exemplo, Hirsch sustenta que a intenção 
do autor deve ser a norma pela qual devemos avaliar a validade 
de qualquer «interpretação» (explicação do significado verbal de 
uma passagem). Argumenta ainda que essa intenção é uma deter­
minada entidade sobre a qual podemos concluir uma evidência 
objectiva e que, quando estamos seguros da evidência, podemos 
fazer uma delimitação do significado que pode ser universalmente 
reconhecida como válida. O sonho de Dilthey de uma interpretação 
objectivamente válida, parece ter-se realizado.
Evidentemente que «o significado verbal» de uma passagem 
enquanto determinada por uma análise filosófica intensiva (quer 
da obra quer de toda a evidência interna patente na intenção do 
seu autor) e o significado que a mesma obra possa ter hoje, são 
duas coisas diferentes. Mas a posição de Hirsch é precisamente esta: 
criar-se-á uma confusão sem limites se identificarmos «sentido ver­
bal» e «significado» (significação para nós). Este é o pecado que 
ele atribui a Gadamer, a Bultmann e aos teólogos da Nova Her­
menêutica (**). Na linguagem usada por Betti ao abordar este tema, 
Bedeutung (sentido) tem que ser considerado separadamente de 
Bedeutsamkeit (significado) (’*)• Caso contrário a filosofia ruirá e 
desaparecerá a possibilidade de obtermos resultados objectivos e 
válidos. É nessa distinção que reside a integridade da filologia e 
a possibilidade da objectividade.
(” ) VII 246.
(” ) HAMG 28-29.
68
O objectivo da hermenêutica, diz Hirsch, nflo 6 cnconlrni o 
«significado» que uma passagem pode ter para nós, mas sim i'l« 
rificar o seu sentido verbal. A hermenêutica é a disciplina filosófica 
que estabelece as regras com as quais podemos atingir determinuçflcs 
válidas do sentido verbal de uma passagem. Segundo Hirsch, Gada 
mer e os seguidores de Bultmann não só fizeram considerações 
erradas, extrínsecas à tarefa real da hermenêutica, como também 
professaram uma posição filosófica que vai ao ponto de perguntar 
se é mesmo possível esperar um sentido objectivamentedetermi- 
nável.
Basicamente Hirsch argumenta que se defendemos que o sen­
tido de uma passagem (o seu sentido verbal) pode mudar, então 
não há qualquer norma fixa para avaliarmos se a passagem está 
a ser correctamente interpretada. Só se alguém reconhecer o «sapa- 
tinho dc cristal» do primitivo sentido verbal pretendido pelo autor, 
haverá possibilidade de separar a «Gata Borralheira» das outras 
raparigas (” ). Isto faz de novo lembrar a objecção de Betti a 
Gadamer: que Gadamer não nos dá um princípio normativo estável 
pelo qual o sentido «correcto» de uma passagem possa ser valida­
mente determinado. Hirsch toma como norma o sentido verbal 
pretendido pelo autor e chega ao ponto de caracterizar o sentido 
verbal como imutável, reprodutível e fixo. Uma curta citação ilus­
trará o seu raciocínio, dando-nos também algo do sabor aristotélico 
da sua exposição: «Quando portanto afirmo que um sentido verbal 
é fixo, quero dizer que ele constitui uma entidade idêntica a si 
própria. Mais, pretendo também dizer que é uma entidade que se 
mantém sempre a mesma, de um momento para o outro — que é 
portanto imutável. Na verdade, estes critérios estavam já implicados 
na afirmação de que o sentido verbal é reprodutível, que ele é 
sempre o mesmo nos diferentes actos de interpretação. O sentido 
verbal é portanto aquilo que é e não qualquer outra coisa, man­
tendo-se sempre o mesmo. A isto chamo determinação (determi- 
nacy) (").
Aqui a hermenêutica atribui-se a si própria a tarefa de fornecer 
a justificação teórica para a determinação do objecto de interpre­
tação e de colocar normas com as quais o sentido determinado, 
imutável e idêntico a si mesmo pode ser compreendido. Natural­
mente que a tarefa é também dizer que bases temos para preferir­
mos um sentido e não qualquer outro; é esta a questão da validade. 
Do ponto de vista de Hirsch, hermenêutica que não lide com 
a validade não é hermenêutica mas qualquer outra coisa. Tal como 
Betti, levanta a objecção de que a corrente heideggeriana em her-
(*») VII 46. 
(" ) Ibid.
69
im-néuticu põe dc lado o problema da validade sem o qual não 
pode de modo algum haver uma ciência da interpretação e um 
método de obtermos interpretações correctas.
À objecção de que a hermenêutica deveria lidar com o signi­
ficado que o texto hoje tem para nós e com as estruturas ou me­
canismos pelos quais o sentido verbal se torna significativo para 
nós, Hirsch responde que esse é o domínio da crítica literária e 
dc outras áreas afins ("). De um ponto de vista restrito, a herme­
nêutica é «o esforço filológico, modesto e antiquado que visa encon­
trar o que um autor pretendia» ("). Este é o único fundamento 
válido para a crítica (” ) mas não é crítica; é interpretação. A her­
menêutica bem pode fazer uso da análise lógica, da biografia e 
mesmo do cálculo de probabilidades (para determinar quais as mais 
prováveis entre várias interpretações possíveis), mas mantém-se 
essencialmente filologia. Contudo, mesmo com esta restrição, é 
ainda largamente significativa e interdisciplinar; é ainda uma disci­
plina de base que enuncia princípios gerais de interpretação para 
qualquer documento escrito, seja ele legal, religioso, literário ou 
mesmo culinário.
Quer dizer desta última definição de hermenêutica como con­
junto de regras constitutivas do esforço, modesto mas no entanto 
básico, de determinar o sentido verbal de uma passagem? O que 
mais nos choca nesta definição é aquilo que ela deixa de fora; a 
hermenêutica não tem a ver com o processo subjectivo de com­
preensão, como em Schleiermacher e Dilthey, nem com a relação 
que um sentido já compreendido possa ter com o presente (crítica) 
mas sim com o problema de uma arbitragem entre sentidos já 
compreendidos, de modo a tomar posição entre possíveis interpre­
tações conflituais. É um guia para o filólogo, que tem que decidir 
entre várias possibilidades qual é o sentido mais adequado de uma 
passagem.
Portanto para Hirsch, o problema hermenêutico não seria o 
da «tradução» — o de como preencher a distância histórica entre, 
digamos, o Novo Testamento e os dias de hoje, de modo que o 
texto se possa tornar significativo para nós; o problema é simples­
mente o problema filológico de determinar o sentido verbal pre­
tendido pelo autor. Certamente que Hirsch aceitaria como problema 
real, a relacionação do texto com o presente, mas negaria a per-
(” ) Ver especialmente a distinção crucial no capítulo 4 de VII, inti­
tulado «Compreensão, interpretação c crítica». A hermenêutica enquanto lógica 
da validação, exclui por um lado a «compreensão» e por outro lado a crítica; 
é uma ciência ou um conjunto de princípios destinados a uma averiguação 
válida do sentido verbal do texto; i. e. da sua interpretação.
(” ) Ibid., 57.
(»•) Ibid.
70
tença de tal problema ao campo da hermenêutica. É claro que para 
tomar esta posição ele tem que afirmar que o sentido verbal 6 
algo independente, imutável e determinado, que podemos estabelecer 
com uma certeza objectiva. Tal concepção de sentido verbal assenta 
em pressupostos filosóficos específicos, essencialmente realistas, 
talvez os do primeiro Husserl das «Investigações Lógicas» que Hirsch 
cita para justificar que o mesmo objecto intencional pode ser foco 
de muitos actos intencionais diferentes (M). Neste caso, o objecto 
mantém-se o mesmo, uma ideia ou uma essência independente.
Embora a crítica detalhada dos pressupostos de Hirsch ultra­
passe o âmbito deste trabalho, é necessário observar que, quando 
o problema hermenêutico é definido simplesmente como problema 
filológico, então todo o complexo problema do pensamento actual 
sobre a compreensão histórica é posto de lado como irrelevante 
para a determinação prática do sentido verbal. A hermenêutica 
torna-se um conjunto de princípios filológicos de interpretação que 
o professor de línguas, o padre ou o advogado podem usar sem 
perder tempo com problemas actuais sobre filosofia da linguagem, 
fenomenologia, epistemologia ou antologia heideggeriana. Quem 
tem que se importar com Hegel, Heidegger ou Gadamer para coligir 
dados sobre a «verdadeira intenção», o «sentido verbal imutável» 
do Lycides de Milton? Que fazer do problema da compreensão do 
que Lycides pode ou deve significar para nós hoje em dia? Isso é 
assunto para o crítico literário, diz Hirsch. Mas é claro que o crí­
tico literário «não desdenhará» a tarefa técnica modesta, efectuada 
pelo «intérprete» — «a única base da crítica»— tal como o intér­
prete aprecia a pureza primitiva do sentido imutável, supra-histórico, 
isolado do seu significado actual.
De facto, o problema hermenêutico não é simplesmente um 
problema filológico, e não é possível relegar para o limbo a his­
tória e as definições aristotélicas, o grosso da teoria da compreen­
são em Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, para não 
falarmos já dos contributos (quer dentro quer fora da teologia) 
dados para uma definição da compreensão histórica. Hirsch defende 
que o sentido verbal é de facto separável do significado, visto que 
l.!) podemos de facto distinguir o que a obra significou para o seu 
autor e o que ela significa para nós e 2.°) de outro modo, tornar- 
-se-ia impossível um sentido objectivo e repetível. Mas até que 
ponto este argumento é satisfatório? O facto de um objecto mental 
podes ser encarado sob várias perspectivas não o torna historica­
mente imutável e eterno; e argumentar que de outro modo a 
objectividade seria impossível, é um círculo vicioso, visto que o
(*•) Ver o interessante apendice III dc Hirsch «An Excursis on Typo.s», 
ibid. 265-74.
71
que está eni causa é a possibilidade de um conhecimento an-histó- 
rico e objectivo. Contudo, toda a validade do tratado de Hirsch 
depende da validade desta distinção entre sentido e significado. 
Contudo, será que a compreensão actua do modo mecânico queHirsch pretende? Ou será esta separação entre sentido e significado 
uma operação estritamente reflexiva, construída depois do acto de 
compreensão? Não será talvez esta forma de hermenêutica uma 
crítica de texto disfarçada — uma metodologia para distinguir refle­
xivamente entre uma e outra forma de compreensão? Não será 
apenas um sistema ou estrutura para o crítico ou o filólogo usar 
quando avalia se um dos poemas de Wordsworth a Lucy (para usar 
o exemplo citado por Hirsch) reflecte uma visão da vida sombria 
ou positiva?
Certamente que uma tal teoria hermenêutica não propõe mas 
antes pressupõe uma teoria de como é que a própria compreensão 
ocorre. (E é preciso questionar até que ponto esta teoria da com­
preensão é adequada.) Digamos que ela só começa depois da com­
preensão. Como Hirsch nota: «O acto de compreensão é primei­
ramente uma adivinha genial (ou completamente errada), e não há 
métodos para fazer adivinhar, como não há regras para produzir 
intuições. A actividade metodológica da interpretação começa 
quando começamos a testar ou a criticar as nossas adivinhas.» O 
Ou mais explicitamente: «A disciplina da interpretação compreende 
a produção de ideias e a verificação das mesmas... Baseia-se não 
numa metodologia da construção mas antes numa lógica da vali­
dação» (°). Para Hirsch, a hermenêutica já não é teoria da inter­
pretação; é lógica de validação. É a teoria pela qual podemos dizer: 
«O que o autor pretendeu dizer foi isto e não aquilo.»
Hirsch alcançou brilhantemente o seu objectivo: construiu um 
sistema único de chegar a um sentido objectivamente verificável. 
Mas a que preço? Em primeiro lugar, para que o significado se 
mantenha o mesmo, defende que a intenção do autor deve ser 
sempre a norma ou a regra. Em segundo lugar, para que esse 
significado seja objectivo, terá que ser reprodutível e imutável. 
Assim, Hirsch defende que o sentido verbal, enquanto sentido, é 
sempre o mesmo, sendo separado e separável do sentido que tem 
para nós quando o interpretamos. Mas será possível aceitar estas 
asserções? Muitas delas assentam em posições basicamente aristo- 
télicas e numa teoria do sentido, que se coloca ela própria sobre 
bases filosóficas.
A redefinição que Hirsch faz de hermenêutica como sendo uma 
lógica de validação terá realmente contribuído para uma compreen­
(•') Ibid., 207. 
(") Ibid.
72
são do problema hermenêutico em toda a sua amplitude c com­
plexidade, ou terá apenas simplificado o problema? Ebeling defende 
que «o objecto da hermenêutica é a palavra evento enquanto tal»; 
assim a hermenêutica chega de um modo profundo à questão da 
realidade e à natureza da nossa participação na linguagem. O que 
acontece a essa visão do problema hermenêutico? Poderá ser rele­
gado para qualquer outro campo, como a filosofia da linguagem? 
O à-vontade com que Hirsch ignora as implicações da teoria da 
compreensão e da filosofia da linguagem leva a que pensemos que 
a especialização que ele propõe para hermenêutica é desaconse- 
lhável. O problema hermenêutico da teologia actual seria muito 
mais limitado se propusesse simplesmente estabelecer o provável 
significado verbal pretendido pelo autor! Mas imediatamente surge 
a questão de qual é, por exemplo, a natureza do significado da figura 
de São Paulo; estaria ele a tentar comunicar uma nova maneira de 
nos compreendermos? E as normas para chegarmos a esta conclusão 
estarão no próprio Paulo? Se essas normas fossem supostamente 
encontradas, com que bases poderíamos decidir se eram ou não 
válidas? Estamos novamente no presente. E é justamente esse 
ponto que tem que ser realçado; mesmo as regras de e para a 
objectividade são manufacturadas a partir de um fabrico histórico 
actual. Reconhecer isto é reconhecer algo da complexidade do pro­
blema hermenêutico, uma complexidade que o intérprete é subtil­
mente encorajado a ultrapassar, devido a uma definição restritiva 
de hermenêutica.
E assim continua o problema hermenêutico. De um lado estão 
os defensores da objectividade e da validação, que consideram a 
hermenêutica como a fonte teórica das normas de validação; do 
outro estão os fenomenólogos do evento da compreensão, que 
realçam o carácter histórico desse «evento», e consequentemente 
as limitações de todas as pretensões a um «conhecimento objec- 
tivo» e a uma «validade objectiva»
73
5
SIGNIFICADO E ÂMBITO DA HERMENÊUTICA
Que concluir relativamente às seis definições em causa e ao 
conflito contemporâneo entre duas concepções radicalmente dife­
rentes quanto ao âmbito e à finalidade de hermenêutica? Podere­
mos categorizar num só termo todas essas definições (algumas das 
quais contraditórias) e essas duas concepções conflituais de her­
menêutica?
Penso que a resposta é afirmativa. As seis definições esclarecem 
aspectos diferentes mas todos eles importantes do problema herme­
nêutico. E há lugar para uma hermenêutica orientada para o mé­
todo e para a validade, tal como há lugar para uma hermenêutica 
centrada na historicidade da compreensão — mesmo que as duas 
se baseiem em pressupostos aristotélicos e não estejam de acordo 
no problema da objectividade. Pode haver diferenças entre as várias 
formas de hermenêutica, mas há também muitas semelhanças 
subjacentes. As diversas orientações na teoria hermenêutica ilustram 
;m si mesmas um princípio hermenêutico: a interpretação é mol- 
Jada pela questão a partir da qual o intérprete aborda o seu tema. 
é bom que reconheçamos que as diferentes orientações da herme­
nêutica, não são mais do que tematizações de respostas às questões 
jue os diferentes intérpretes levantaram.
Dado que Hirsch procura o tipo de hermenêutica que fornece 
interpretações válidas, o problema da validade molda logo desde o 
início o curso das interrogações. O que acontece então quando a 
pergunta orientadora já não é «Como obter interpretações válidas?» 
mas sim «Qual a natureza da própria compreensão?». A preocupa­
ção com a validade dos juízos leva à questão de quais os elementos 
implicados na compreensão que deverão ser ignorados; de igual 
modo, uma centração na natureza essencial de toda a compreensão 
tenderá a deixar de lado o aparecimento necessário de sistemas que 
permitam distinguir uma interpretação válida de uma não válida.
75
Ambas as questões são pertinentes, e a sua exploração contribui 
para a compreensão do problema hermenêutico.
Creio que o problema hermenêutico, como um todo, é dema­
siado importante e demasiado complexo para se tornar oropr'edade 
de uma única escola de pensamento. Definições de hermenêutica 
unívocas e restritivas podem servir fins delimitados, mas devemos 
ter cuidado em não as tornar absolutas. É claro que é válido o 
debate sobre problemas específicos, como por exemplo sobre as 
características da compreensão histórica e da objectividade; mas a 
exigência feita por Betti e Hirsch de que a hermenêutica de Gada­
mer deve fornecer uma norma objectiva que distinga as interpre­
tações válidas das não válidas, não responde à intenção básica do 
pensamento de Gadamer: examinar a dinâmica da própria com­
preensão. Se Gadamer tivesse querido mostrar uma falha de objec­
tividade desse tipo, podia ter perguntado porque é que Betti omite 
a discussão do caracter ontológico da linguagem ou porque é que 
Hirsch não faz uma avaliação adequada do facto complexo que é a 
própria compreensão. Tais críticas implicariam uma teoria que 
fizesse aquilo que nunca é feito em primeiro lugar; são debates 
essencialmente indirectos sobre a natureza e o âmbito da própria 
hermenêutica. Em si mesmas não invalidam a teoria oposta. A her­
menêutica, apesar do conflito contemporâneo, deve manter-se um 
campo de estudo e uma área problemática com continuidade, aberta 
aos contributos de muitas e diversas tradições, algumas das quais 
estão mesmo por vezes em conflito.
O duplo foco de hermenêutica:o fenômeno 
da compreensão e o problema hermenêutico
O desenvolvimento histórico da hermenêutica como um campo 
independente parece compreender dois focos diferenciados: um visa 
a teoria da compreensão em sentido geral, o outro visa o que está 
implicado na exegese dos textos lingüísticos, o problema herme­
nêutico. Estes dois focos não precisam de ser quer reciprocamente 
eliminatórios quer absolutamente independentes. No entanto, é me­
lhor tratá-los separadamente, de modo que um possa esclarecer 
o outro.
Ao apoiar-se numa teoria geral da compreensão lingüística a 
hermenêutica mantém-se fiel ao seu passado grandioso, com 
Schleiermacher e Dilthey: É propensa a examinar qual a natureza 
da compreensão e a colocar de um modo genérico a questão: O que 
é compreender? O que acontece quando afirmo que «compreendo»? 
Esta última interrogação destina-se especificamente realçar o carác­
ter eventual da compreensão. Uma teoria da compreensão torna-se 
extremamente significativa quando considera a experiência vivida
76
— o evento da compreensão — como seu ponto de partida. Deste 
modo, o pensamento orienta-se para um facto, um evento em toda 
a sua concreticidade, mais do que para uma ideia; torna-se uma 
fenomenologia do evento da compreensão Uma fenomenologia da 
compreensão deste tipo não pode ser encarada de um modo estreito 
e doutrinário, mas sim enquanto se abre a todos os outros campo» 
que possam contribuir para uma apropriação mais funda do que 6 ’■ 
compreensão e de como é que ela ocorre, tais como a epistcmologia, 
ontologia, a fenomenolgia da percepção, a teoria da aprendizagem 
a filosofia dos símbolos, a análise lógica e assim por diante.
O segundo foco, designado como «problema hermenêutico» é 
uma instância específica do evento da compreensão: envolve sempre 
a linguagem, a confrontação com um outro horizonte humano, um 
acto de penetração histórica do texto. A hermenêutica precisa de 
entrar cada vez mais fundo neste acto complexo da compreensão; 
tem que lutar para formular uma teoria da compreensão lingüística 
e histórica tal como funciona na interpretação do texto. Uma teoria 
deste tipo deve harmonizar-se e relacionar-se com uma fenomeno­
logia geral da compreensão; ao mesmo tempo, ela própria dará 
contributo para um campo tão geral.
Esta interpretação lata do problema hermenêutico encara o 
evento da compreensão de um texto como incluindo sempre um 
momento de relação com o presente; de facto, a ausência desta 
relação tornar-se-ia imediatamente um problema hermenêutico. 
A visão do problema hermenêutico apresentada por Hirsch deixaria 
de lado o próprio momento da compreensão e centrar-se-ia na 
necessidade de julgar entre vários tipos de compreensão; a herme­
nêutica já não é uma fenomenologia da compreensão, mas sim uma 
lógica da validação. A finalidade da hermenêutica reduzir-se-ia a 
uma mera determinação de «o que é que o autor pretendia dizer», 
excluindo a questão de como é que isso se torna significativo para 
nós. Enquanto que a lógica de validação tem que ser considerada 
como uma parte legítima do problema hermenêutico, o problema 
hermenêutico, entendido no seu sentido mais lato, coloca um desafio 
fundamental: o de «agarrar» e ser «agarrado» pela significação do 
texto. O problema mais fundo é portanto em primeiro lugar o de 
conseguir um diálogo significativo com um texto, c deve basear-se 
na definição mais completa possível do que significa compreender 
um texto; não é simplesmente uma arbitragem entre interpretações 
rivais.
Potencial contributo que outras áreas dão 
à hermenêutica
Quando os focos da hermenêutica se definem pela inclusão de 
uma fenomenologia geral da compreensão e de uma fenomenologia
77
específica do evento da interpretação do texto, então o âmbito da 
hermenêutica torna-se realmente vasto. No entanto, como foi dito 
o âmbito do problema hermenêutico é tal que a hermenêutica não 
se pode isolar como um campo fechado e especializado. Na verdade, 
um dos grandes impedimentos do desenvolvimento histórico da her­
menêutica não especializada foi o facto de ela não se radicar em 
nenhuma disciplina estabelecida. Enteada da teologia, fruto imper­
feito da filologia, a hermenêutica não teológica só agora aparece 
como área determinada. Mas como o interesse por este tf ma foi 
movimentado pela Nova Hermenêutica, por Betti, Gadamer. Hirsch, 
Ricoeur e o último Heidegger, há razões para esperar um futuro 
melhor.
Se assim for, a hermenêutica pode realmente estar num estádio 
inicial do seu desenvolvimento como disciplina geral. É certo que 
a exploração daquilo que outras áreas poderiam dar à teoria herme­
nêutica ainda mal começou de um modo sistemático. O excelente 
estudo de Ricoeur sobre Freud mostra o contributo frutífero que 
pode dar a exploração de um sistema interpretativo. A obra monu­
mental de Betti cobre um corte transversal das disciplinas interpre- 
tativas humanísticas. O ensaio de Gadamer sobre hermenêutica 
filosófica pode encarar-se como revelação do impacte frutífero da 
análise ontológica de Heidegger sobre a compreensão.
No entanto, há muitos outros campos que precisam de ser explo­
rados pelo significado que poderiam ter para a teoria hermenêutica. 
Por exemplo, as muitas áreas de estudo relacionadas com a lingua­
gem, tais como a lingüística, a filosofia da linguagem, a análise 
lógica, a teoria da tradução, a teoria da informação e a teoria da 
interpretação oral (discurso). A crítica literária — não só a sua 
variante fenomenológica em França e as obras de Roman Ingarden, 
como também a Nova Crítica contextualista e a crítica do mito — 
precisam dc ser exploradas pelo significado que têm para uma teoria 
geral da interpretação. E a fenomenologia da linguagem é indispen­
sável para a teoria hermenêutica, não só os trabalhos recentes de 
Merleau-Ponty, Gusdorf, Kwant e outros, mas também o contributo 
de Husserl, incluindo as primitivas Logische Untersuchungen.
É um facto que muitas áreas, não especificamente relacionadas 
com a linguagem, apresentam uma importância potencial conside­
rável para a hermenêutica. Não podemos ignorar todo o problema 
da filosofia da mente e o debate sobre epistemologia no nosso século. 
A obra de Cassirer nesta área, tal como a sua filosofia geral das 
formas simbólicas, é importante para a teoria hermenêutica. As 
várias formas de fenomenologia — da percepção, da compreensão 
musical, da estética — ajuaam a mostrar a temporalidade e as raízes 
existenciais da compreensão.
A filosofia da interpretação do direito, da história e da teolo­
gia especialmente a recente Nova Hermenêutica e o projecto pri­
78
mitivo de desmitologização — todos eles trazem clcmcnlos impor­
tantes ao fenômeno da interpretação. As questões da novidade c da 
criatividade na estética tal como foram exploradas por liausmun c 
outros, são contribuições relevantes para a tarefa hermenêutica de 
compreender o que está fora do nosso actual horizonte de com­
preensão. Toda a questão da metodologia na filosofia da ciência, as 
experiências com métodos de observação participativa cm Socio­
logia, a psicologia da aprendizagem e da imaginação, todas elas são 
ricamente sugestivas para novas orientações do pensamento sobre 
esse processo a que chamamos interpretação. Poderíamos nomear 
muitas outras áreas, mas estas são suficientes para sugerir que a 
hermenêutica se poderia tornar num cruzamento interdisciplinar 
para o pensamento significativo que permitisse a alguns destes cam­
pos perspectivar as suas áreas problemáticas própria num contexto 
mais compreensivo. São necessários muitos estudos concretos para 
desenvolver e clarificar o significado destas áreas para a teoria her­
menêutica. A presente obra não pode levar isso a cabo, mas incluí­
mos na secção C da Bibliografia algumas obras dos campos men­
cionados.
Proponho-me nos capítulos seguintes clarificarde certo modo 
a amplitude e a complexidade do problema hermenêutico, e apontar 
para um conceito de hermenêutica mais lato do que qualquer um 
até agora em vigor na língua inglesa. As obras do Professor Hirsch 
tornaram acessível uma definição altamente restritiva da interpre­
tação, em termos de lógica da validação. Muitas das recentes obras 
que explicam a Nova Hermenêutica, tendem a abordá-la num con­
texto essencialmente teológico. O aparecimento do livro de Gada­
mer em inglês, será decisivo para o alargamento do conceito cor­
rente de hermenêutica. Contudo, espero que o presente ensaio ajude 
a clarificar o significado desse acontecimento previsto, pois a herme­
nêutica deve ser considerada como mais do que uma lógica da 
validação filológica, como mais do que um novo movimento vital, 
dentro da teologia contemporânea. É uma área ampla centrada no 
evento da compreensão textual com todas as suas ramificações. As 
presentes abordagens do tema são insuficientes para sugerir as 
possibilidades de uma hermenêutica basicamente filológica, como foi 
sugerido pela tônica fenomenológica neste campo, em Heidegger c 
em Gadamer. Será talvez possível colocar os fundamentos de uma 
concepção mais ampla de hermenêutica e iniciarmos uma apreciação 
do seu significado potencial, através da apresentação da hermenêu­
tica, em quatro pensadores que professam a mesma abordagem lata 
por mim defendida.
79
SEGUNDA PARTE 
QUATRO GRANDES TEÓRICOS
6
DOIS PRECURSORES DE SCHLEIERMACHER
Para podermos apreciar a natureza e magnitude do contributo 
de Schleiermacher para o desenvolvimento da teoria hermenêutica, 
é necessário atendermos ao estado da hermenêutica no seu tempo, 
e particularmente às concepções avançadas por dois grandes eru­
ditos da filologia coeva, Friedrich Ast e Friedrich August Wolf.
Schleiermacher desenvolveu o seu conceito de hermenêutica a 
partir de tentativas iniciais formuladas sob forma de aforismos, em 
1805 e 1806, num diálogo mais ou menos explícito com Ast e Wolf.
Na abertura das suas conferências sobre o tema, em 1819, 
apelou para uma nova concepção de hermenêutica, referindo-se 
logo nas primeiras frases a dois célebres filólogos (*); aliás, o título 
das suas Akademiereden de 1829 era «Sobre o conceito de herme­
nêutica nas suas relações com as Indicações de F. A. Wolf e com 
o manual de Ast» (J). Assim, o conhecimento de algo da obra de 
Wolf e de Ast torna-se um pré-requisito para a compreensão de 
Schleiermacher. Como veremos, muitas das suas concepções conti­
nuaram a ser importantes em hermenêutica, dignas só por si da 
atenção de todo aquele que pretende penetrar nas várias orienta­
ções e na complexidade da hermenêutica como um todo.
Friedrich Ast
Friedrich Ast (1778-1841) publicou dois trabalhos de relevo 
sobre filologia em 1808: Grurtdlinien der Grammatik, Hermeneutik
(') Die Hermeneutik ais Kunst des Verstehens existirI noch nichl atlge- 
mein sondern nur mehere specielle Hermeneutiken. Asts Erkl., S. 172, Wolf
S. 37 (H 79).
(a) Über den Begrijj der Hermeneutik, mit Bezug au/ /•’. A. Wolfs 
Andeulungen und Asts Lehrbuchs, ibid., 123.
83
und Kritik (Elementos básicos de Gramática, de Hermenêutica e 
de Crítica) e Grundriss der Philologie (Esboços de Filologia). Dado 
que Schleiermacher se refere ao primeiro, a presente discussão irá 
focá-lo. Grundlinien der Grammatik, Hermeneutik und Kritik 
esclarece a finalidade e o objecto do estudo filológico e foi origi­
nalmente concebido como uma introdução a Grundriss. Para Ast, 
o objectivo essencial é captar o «espírito» da antiguidade, revelado 
com nitidez na herança literária (3). As formas externas da antigui­
dade, apontam todas para uma forma interna, para uma unidade 
intrínseca do ser, harmoniosa nas suas partes, podendo ser desig­
nada como o Geist da antiguidade. A filologia não é uma questão 
de manuscritos poeirentos e de pedantismo gramatical árido; não 
aborda o factual e o empírico como fins em si mesmos mas como 
meios para alcançar o conteúdo externo e interno de uma obra, 
como uma unidade. Essa unidade aponta para uma unidade maior 
do «espírito», fonte de uma unidade intrínseca de obras indivi­
duais— uma ideia obviamente derivada do conceito de Volksgeist 
de Herder, tratando-se aqui do Volksgeist da antiguidade grega 
ou romana. Devido a este encontro com o «espírito», o estudo da 
filologia tem valores «espirituais»; serve uma finalidade «peda- 
gógico-ética»: assemelhar-se aos gregos. «A antiguidade não só é 
o paradigma (M ustef) da cultura artística e científica mas sim da 
vida em geral,» (*)
Mas não podemos captar o espírito da antiguidade sem termos 
em conta as palavras que usa; a linguagem é o principal meio de 
transmissão do espiritual. Temos que estudar os escritos da antigui­
dade, e para o fazer precisamos de gramática, o que justifica o pri­
meiro termo do título: Grammatik. Acrescentaremos ainda que a 
leitura dc um autor antigo pressupõe alguns princípios fundamen­
tais para o compreendermos e explicarmos correctamente «e assim 
o estudo das línguas antigas tem que estar sempre ligado à herme­
nêutica» (5). Aqui a hermenêutica é claramente separada do estudo 
da gramática. Ela teoriza o modo como se extrai o significado espi­
ritual (geistige) do texto. A nossa participação comum no Geist é 
a causa que permite apreender o significado de escritos transmitidos 
desde a antiguidade. Geist é o ponto central de toda a vida e é o 
princípio que permanentemente a enforma (*). Ast pergunta: «Ser- 
-nos-ia possível compreender os pontos de vista, os sentimentos e 
as ideias mais estranhos e menos conhecidos se tudo aquilo que é
(’) VI, 33. A breve discussão que faço de Ast e de Wolf i largamente 
devedora dos capítulos de Joachim Wach em V I: 31-62 sobre Ast e 61-62 
sobre Wolf.
(<) Ibid., 36.
(5) Ibid., 37.
(«) GGHK 7; citado em VI, 38.
84
e pode ser não estivesse de um modo primordial ligado ao ( lrl.il)’ 
É ele que os revela, como uma luz eterna quando se reporte cm 
milhares de cores» O-
O conceito de unidade espiritual das humanidades (Elnheit </<•.« 
Geistes) é a base do conceito de Ast de círculo hermenêutico. Isto 
é, porque o Geist é a fonte de todo o desenvolvimento e dc toda 
a mudança, encontramos nas partes individuais a marca do espírito 
da totalidade (Geist des Ganzen); a parte é compreendida a partir 
de todo e o todo a partir da harmonia interna das partes (*). Apli­
cado à antiguidade, isto significa que «Só podemos captar correc­
tamente a complexa unidade do espírito da antiguidade se captar­
mos as suas revelações individuais em obras antigas individuais, 
e por outro lado, o Geist de um autor individual não pode ser 
captado se não o colocarmos na relação que sustenta [com o 
todo]» (’).
A tarefa da hermenêutica torna-se então a de clarificar a obra 
através do desenrolar interno do seu significado e a de relacionar 
cada uma das partes entre si e mais latamente com o espírito da 
época (*•). Ast divide explicitamente essa tarefa em três partes ou 
formas de compreensão: 1) a compreensão «histórica», isto é, a 
compreensão relativamente ao conteúdo da obra, que pode ser 
artística, científica ou de carácter geral; 2) a compreensão «gra­
matical», ou seja, a compreensão na sua relação com a linguagem; 
e a compreensão «geistige», isto é, compreender a obra na sua 
relação com a visão total do autor e com a visão total (Geist) da 
época. As duas primeiras «hermenêuticas», nas suas diferentes 
relações e possibilidades, foram já abordadas, como vimos, respec­
tivamente por Semler e Ernesti O1)- A terceira forma de herme­
nêutica é o contributo específico de Ast, posteriormente desenvol­
vido por Schleiermacher e pelo garnde filólogo do século xix, 
August Bõckh. Em Ast encontramos já algumas das confecções 
básicas da hermenêutica de Schleiermacher: o círculo hermenêutico, 
a relaçãoda parte com o todo, a metafísica do génio ou da indi­
vidualidade. Da individualidade? Sim porque o geistige, de acordo 
com Ast, torna-nos conscientes não só do espírito geral da época 
como também do espírito específico do indivíduo (genius), o espí­
rito do autor.
O GGHK 166; VI, 38-39.
(*) É com razão que Schleiermacher atribui a Ast a defesa do princípio 
básico do círculo hermenêutico, H, 141. GGHK 178; VI, 41.
(•) GGHK 179; VI, 44.
(«) GGHK 174-175; VI, 45.
(*') Semler, Ernesti e outros escritores iluministas da temática hermenêu­
tica são abordados em F. W. Farrar History of Inlerpretation e mais resu­
midamente em Robert M. Grant., A Short History of the Inlerpretation of 
lhe Bible.
83
Aplicado a uma ode de Píndaro, este triplo padrão funciona do 
seguinte modo: o primeiro nível refere-se ao objecto (Gegenstand) 
que nesta ode particular é o Kampfspiele (a luta) cantada pelo poeta; 
o segundo nível (gramatical) refere-se à apresentação plástica na 
linguagem (não é uma mera análise gramatical); o terceiro nível (o 
geistige) refere-se ao seu espírito, resplandecente de amor patriótico, 
de coragem e de heróicas virtudes. Os níveis histórico, gramatical 
e geistige são essencialmente aquilo a que podemos chamar o tema, 
a forma e o espírito da obra. E o espírito da obra revela quer o 
espírito geral da época quer a individualidade (o «génio») do seu 
autor; é de facto uma mistura de ambos, que interactuam e mutua­
mente Se esclarecem (1J). Ast distingue entre níveis de compreensão, 
como os que foram apresentados e níveis de explicação. Contudo, 
paralelamente aos níveis de compreensão histórica, gramatical e 
geistige há três níveis de explicação: a hermenêutica de letra (Her­
meneutik des Buchstabens), a hermenêutica do sentido (Hermeneu­
tik des Sinnes) e a hermenêutica do espírito (Hermeneutik des Geis- 
tes). A hermenêutica da letra é concebida dum modo batsante mais 
lato, pois inclui quer a explicação de palavras (que aparentemente 
envolve a compreensão gramatical) quer a explicação do contexto 
factual (Versthen der Sache) tal como a do cenário histórico (com­
preensão histórica). Este primeiro tipo de hermenêutica exige não 
só um conhecimento factual do meio histórico como também um 
conhecimento da língua, das suas transformações históricas e das 
suas características individuais. A hermenêutica do sentido ou do 
«significado» refere-se à exploração do génio da época e do autor. 
Determina o sentido pois toma uma direcção específica devido ao 
lugar em que ocorre (die Bedeutung in dem Zusammenhang einer 
gegebenen Stelle). Por exemplo, um juízo em Aristóteles pode ter 
um sentido diferente de um juízo literalmente muito semelhante 
em Platão (*’) e mesmo dentro da mesma obra, duas passagens lite­
ralmente semelhantes podem variar no seu sentido ou significado 
consoante o lugar que ocupam relativamente à obra como um todo. 
Devido à complexidade de tais determinações, é preciso que haja 
um conhecimento da história literária, da forma particular que foi 
utilizada, e da vida e outras obras do autor, de modo a que se 
possa captar exactamente o sentido de uma determinada passagem.
O terceiro nível, a hermenêutica do espírito, procura a ideia 
que controla (Grundidee, ideia fundante) a visão da vida (.4m- 
chauung, ponto de vista, especialmente em autores históricos), e a 
concepção básica (Begriff, especialmente em obras filosóficas) que 
encontra a sua expressão ou incorporação na obra. No caso de
(” ) GGHK 1*3-84; VI. 4g.
('*) GGHK 1ÍS-9Í; VI. 5é.
u
procurarmos «a mundividência», há uma multiplicidade na reve­
lação da vida; no entanto, quando procuramos a «concepção bá­
sica», por detrás da multiplicidade encontramos a unidade da forma. 
Para Ast, o conceito de uma ideia controladora representa uma com­
binação dos outros dois momentos significativos, mas só os grandes 
autores e artistas conseguem esta síntese total c harmoniosa na qual 
o conteúdo conceptual e a mundividência se situam num comple­
mento equilibrado no interior da ideia controladora.
Visto que a ênfase dada à ideia é um aspecto muito comum 
ao pensamento romântico alemão, não nos surpreende encontrá-la 
na hermenêutica de Ast. Merece crítica o facto dc que, para Ast, 
a reconciliação harmoniosa da «mundividência» com a «ideia fun- 
dante» leva à transcêndência do temporal: «Toda a temporalidade 
se dissolve numa explicação geistige» (” ). Assim, o interesse român­
tico pela história subordina-se à ideia, tal como se subordinam a 
admiração romântica pelo génio e pela individualidade; todos eles 
são manifestação do Geist. A defesa heideggeriana no século xx, 
do carácter radicalmente histórico da realidade humana (c assim 
da própria realidade) é estranha aos pressupostos idealistas dc Ast. 
Nem no contexto dos pressupostos racionalistas do Umnlnismo, nem 
nos pressupostos dos Românticos, a história se tornou realmente 
histórica; ela é apenas um material bruto do qual se dedu/ uma 
verdade intemporal ou um Geist intemporal.
Há uma outra ideia no pensamento de Ast, que anuncia futuras 
orientações em hermenêutica: o conceito do processo dc compreen­
são como Nachbildung, reprodução. Nos Grundlinicn Ast encara 
o processo de compreensão como uma repetição tio processo cria­
tivo. Esta visão do modo como a compreensão ocorre e essencial­
mente semelhante à de Schlegel, Schleiermacher e mais tarde Dilthey 
e Simmel. O significado hermenêutico disto está na relação da 
explicação com o processo criativo como um todo: a interpretação 
e o problema interpretativo devem obviamente ser relacionados 
com os processos do conhecimento e da criatividade ( om este con­
ceito de compreensão enquanto Nachbildurig, a hermenêutica ultra­
passa significativamente a hermenêutica filológica e teológica da 
época anterior, ligando-se agora a um aspecto do processo do conhe­
cimento relacionado com a teoria da criação artística, pois a com­
preensão reproduz o processo artístico da criação. Anteriormente, 
a interpretação não tinha sido considerada na sua relação com uma 
teoria da criação artística. Joachim Wach vai ao ponto dc dizer que
(») GGHK 199; VI. 57.
«7
o estabelecimento desta relação foi um dos principais contributos 
<lc Ast para o desenvolvimento da teoria hermenêutica (” ).
O fantasma do psicologismo não deveria assustar-nos, impedin­
do-nos de relacionar a teoria da criação artística com a teoria da 
compreensão literária e, consequentemente, com a interpretação 
literária. Embora possamos discordar de Ast quando este diz que 
na compreensão se repetem os processos criativos do artista — a 
criação já se deu — podemos afirmar que a experiência comunicada 
na obra, deve de certo modo surgir novamente como evento ao 
leitor. Na hermenêutica racionalista do Iluminismo, não há qual­
quer base para podermos relacionar o processo criativo do artista 
com o do leitor, enquanto na hermenêutica idealista dos român­
ticos Ast e Schleiermacher, os processos se baseiam claramente nas 
operações fundamentais da compreensão. De igual modo, na inter­
pretação literária realista, praticada actualmente pelos crítico6 ingle­
ses e americanos, a questão de qual o processo de criação que está 
na origem de uma obra literária é uma questão irrelevante, en­
quanto que para a hermenêutica fenomenológica de hoje, tanto a 
criação como a interpretação se fundamentam na compreensão. 
Deste paralelo vemos como são decisivas a teoria do conhecimento 
que subjacentemente defendemos e a teoria do estatuto ontológico 
de uma obra, pois elas determinam antecipadamente a forma da 
nossa teoria e da nossa prática na interpretação literária.
Friedrich August Wolf
Friedrich August Wolf (1759-1824) foi o mais brilhante e o 
melhor conhecido dos dois filólogos. Foi também o menos sistemá­
tico, pois embora as Grundlinien de Ast constituam uma espécie de 
sistema, Wolf pouco seimportou com sistemas. Nas suas Vorlesung 
über die Enzyklopádie der Altertumwissenschaft, definiu a herme­
nêutica como «ciência das regras pelas quais se reconhece o sen­
tido dos signos» (“ ). Naturalmente que as regras variavam com o 
objecto, e assim há uma hermenêutica para a poesia, para a his­
tória e para o direito. Wolf defendia que cada regra deveria ser 
obtida através da prática; a hermenêutica torna-se assim uma pes-
(“ ) «Herder führt zucrst in grõssercm Still eine literarkrltisch-ãsthetische 
Betrachtung der Bibel durch ... Bis dahin allerdings hatte mans wenig auf die 
/.usammcnhange von Interpretation und Theorie des Schaffens geachtet: hier 
lmt vor Boeckh von aliem Humboldt gewirkt, Ich sehe gerade darin einen Teil 
von Asls Bedeutung für die Geschichte der hermeneutischen Theorie, dass ich 
philologlschc Vorgãnger zu nennen wüsste — auf diese Zusamonenhãnge hin- 
Kcwlcscn hat» (VI, 52).
('•) «Die Wissenschaft von den Regeln, aus denen die Bedeutung der 
Zelchcn erknnnt wird» (VEA 290; VI, 67).
88
q u is a p r á t ic a , m a is d o q u e u m a p e s q u is a te ó r ic a . É u m a c o le c ç ã o 
d e re g ra s .
Para Wolf, o objectivo da hermenêutica é «captar o pensa­
mento escrito ou mesmo oral de um autor como ele desejaria ter 
sido captado» ("). A interpretação é diálogo, diálogo com um autor. 
E certamente que não caímos no psicologismo quando sugerimos 
que uma obra é um esforço de comunicação, e que o objectivo da 
hermenêutica é a comunicação perfeita, isto é, a captação do tema 
ou da ideia do autor como ele gostaria de ter sido captado. Wolf 
defende que o intérprete deve estar «temperamentalmente apto» 
para compreender o tema, de modo a poder explicá-lo a outros. 
Dverá ter um talento geral de empatizar com pensamentos alheios; 
deverá ter «essa leveza de espírito» que «depressa sintoniza com 
outros pensamentos» (**). Sem uma aptidão para o diálogo, para 
entrar no universo mental de uma outra pessoa, a explicação — e 
consequentemente a hermenêutica — 6 impossível.
Tal como em Ast, a explicação tem que basear-se na compreen­
são, e a compreensão distingue-se da explicação. O sentido de uma 
imagem é captado directamente na compreensão. Avançamos um 
passo quando damos uma explicação oral ou escrita dessa imagem. 
Segundo Wolf compreendemos para nós mesmos mas explicamos 
p a r a os outros. Logo que determinamos que a nossa tarefa é expli­
car, temos também que saber para quem se esboça a explicação. 
A forma e o conteúdo de uma explicação variará consoante a inter­
pretação se dirigir a um novato cheio de entusiasmo, a um leitor 
desinteressado ou a um sagaz erudito interessado nos mínimos cam- 
biantes. Mas tal como Wolf diz, numa pitoresca mistura de alemão 
e latim Niemand Kann interpretari, nisi subtiliter inlellexeril 
A hermenêutica tem portanto inevitavelmente duas vertentes: a 
compreensão (verstehenden) e a explicação (erklarenden).
Tal como Ast, Wolf propõe uma hermenêutica tripla; mas falta- 
-lhe a metafísica do Geist no seu terceiro estádio. Ou por outra é 
mais prático do que Ast. Os três níveis ou espécies de interpretação 
são: interpretatio grammatica, histórica e philosophica (” ). A gra­
mática lida com tudo aquilo que a compreensão da língua pode 
fornecer para ajudar na interpretação. A hermenêutica histórica 
preocupa-se não só com os factos históricos da época mas também 
com um conhecimento factual da vida do autor, dc modo a chegar 
a um conhecimento daquilo que o autor sabia. Obviamente que os 
factos históricos gerais são importantes, mesmo quando se trata
O7) «(Die) geschriebene oder auch bloss mündlich vorgetragene Gcdanken 
emes ander ebenso zu fassen, wie er sie gefasst haben w ill.» (V E A 293; V I , 68.) 
(■•) VEA 273; VI, 72.
(■•) VEA 273; VI, 74.
(*) VEA 290-95; VI, 77-78.
89
ilc conhecer os caracteres físicos e geográficos de um país. Resu­
mindo, o intérprete deverá possuir todo o conhecimento histórico 
possível. O nível filosófico da interpretação serve de verificação 
lógica ou de controle para os outros dois níveis. Em toda a obra 
de Wolf é dada ênfase ao que é prático e factual; no entanto, 
não há qualquer básica sistemática na confusão das regras de 
abordagem dos diferentes problemas. As regras mantêm-se como 
um agregado de observações sobre as dificuldades específicas da 
interpretação.
Esta breve abordagem à hermenêutica de Ast e de Wolf ajuda 
a introduzir a hermenêutica filológica da época de Schleiermacher. 
Embora 'o eminente Ernesti e o seu seguidor Morus, escrevessem 
em latim, tanto Ast como Wolf escreveram em alemão. Os elemen­
tos de interpretação «gramatical» colocados por Ernesti, são ainda 
essenciais em Ast e Wolf; mas talvez devido ao uso do alemão, a 
captação da realidade histórica tem mais cambiantes e é mais pro­
fundo o interesse que nela se põe. Com a passagem para o alemão, 
há um aprofundamento dos níveis histórico e filosófico de inter­
pretação. Esta orientação para o aspecto filosófico é transposta 
para Schleiermacher, para que a interpretação gramatical ainda é 
básica; no entanto, a insistência na consistência filosófica acentua-se 
à medida que a hermenêutica se orienta para uma interpretação 
psicológica e para uma fundamentação numa concepção sistemá­
tica das operações da compreensão humana no diálogo.
90
7
O PROJECTO DE SCHEIERM ACHER 
DE UMA HERMENÊUTICA GERAL
«A hermenêutica como arte da compreensão não existe como 
uma área geral, apenas existe uma pluralidade de hermenêuticas 
especializadas.» (') Esta asserção programática com a qual Schleier­
macher abriu as suas conferências de 1819 sobre hermenêutica, 
enuncia numa frase o seu objectivo fundamental: construir uma 
hermenêutica geral como arte da compreensão. Essa arte, afirma 
Schleiermacher, é na sua essência a mesma, seja o texto um 
documento jurídico, um escrito religioso ou uma obra de arte. 
É certo que há diferenças entre essas várias espécies de textos, e 
por essa razão cada disciplina tem as suas ferramentas teóricas para 
os seus problemas particulares; mas subjacente a essas diferenças 
há uma unidade fundamental. Os textos exprimem-se numa língua 
e assim utiliza-se a gramática para encontrar o sentido de uma frase; 
há uma ideia geral que interactua com a estrutura gramatical para 
formar o sentido, seja qual for o tipo de documento. Se fossem for­
mulados os princípios de toda a compreensão da linguagem, certa­
mente que incluiriam uma hermenêutica geral. Uma hermenêutica 
desse tipo poderia servir de base e de centro a toda a hermenêu­
tica «especial».
Mas, diz Schleiermacher, ainda não existe uma hermenêutica 
desse tipo. Em vez dela, existiriam várias «hermenêuticas» especiais, 
Em primeiro lugar a filológica, a teológica e a jurídica. E mesmo 
dentro da hermenêutica filológica, não haveria coerência sistemá­
tica. Pelo contrário, Friedrich August Wolf defendera que preci­
sávamos de uma hermenêutica diferente para a história, para a poe­
sia e para os textos religiosos e consequentemente para as subva- 
riantes dentro de cada uma destas classificações. Para Wolf a her­
menêutica era uma coisa muito prática: um corpo de sabedoria para
(*) H 79. Ver cap. 6, nota 1.
f l
abordar os problemas específicos da interpretação. Há regras e 
conselhos para os problemas de interpretação mais diversos, talha­
dos para a lingüística particular e para as dificuldades históricas 
levantadas pelos textos antigos em hebreu, em grego e em latim. 
A hermenêutica era um corpo teórico que ajudava na tarefa de 
tradução de textos antigos, mas a teoria tinha-se vindo simples­
mente a acumular à medida que mais elementos eram considerados 
importantes na compreensão dos textos antigos. A grande herme­
nêutica de Ast tinha uma orientação mais filosófica mas ainda 
procurava ser enciclopédica, baseando-se num idealismo metafísico,inaceitável para Schleiermacher. Faltava ainda a disposição para 
examinar o acto fundante de toda a hermenêutica: o acto de com­
preensão, o acto de um ser humano vivo, dotado de sentimentos e 
intuições.
Em 1799, no seu famoso curso dirigido aos eruditos depreciado- 
res da religião, já Schleiermacher tinha negado decisivamente que 
a metafísica e a moral constituíssem a base do fenômeno religioso. 
A religião não diz respeito ao homem que vive de acordo com 
uma ideia racional, mas sim àquele que vive, age e sente a sua 
situação de criatura dependente de Deus. De modo similar, a her­
menêutica foi defendida por Schleiermacher enquanto relacionada 
com o ser humano concreto, existente e actuante no processo de 
compreensão do diálogo. Quando começamos pelas condições que 
pertencem a todo o diálogo, quando nos afastamos do racionalismo, 
da metafísica e da moral, quando examinamos a situação concreta 
e actual implicada na compreensão, então arrancamos para uma 
hermenêutica viável que poderá servir de núcleo central de uma 
hermenêutica especial, tal como por exemplo a bíblica.
Schleiermacher defendeu que a arte da exploração, que cons­
tituíra uma grande parte da teoria hermenêutica, estava fora da 
hermenêutica. «Logo que a exploração se torna mais do que o 
exterior da compreensão, torna-se arte de apresentação. Só aquilo a 
que Ernesti chama subtilitas intelligendi (acuidade da compreensão) 
pertence genuinamente à hermenêutica O . A explicação, em vez 
de arte da «compreensão» vai transformar-se imperceptivelmente em 
arte de formulação retórica. No diálogo, uma coisa é a operação 
de formular e de o transform ar em discurso; outra, totalmente 
diferente, é a operação de compreender aquilo que é dito. Schleier-
O «Eigentlich gehort nur das zur Hermeneutik was Ernesti Prol. 4 
[IINT] subtilitas inteligendi nennt. Denn die [subtilitas] explicandi sobald sie 
mehr ist ais die ãussere Seite des Verstehens ist wiederum ein Object der Her­
meneutik und gehort zur Kunst des Darstellens» (H 31). Este aforismo data 
provavelmente de 1805 e figura entre os primeiros comentários escritos de 
Schleiermacher sobre hermenêutica. Ao mesmo tempo é uma das suas intuições 
nials significativas, pois marca a hermenêutica como arte de compreensão, mais 
do que como arte de explicação.
92
macher defende que a hermenêutica lida com este último típc itn 
Esta distinção fundamental entre falar e compreender constitui 
a base para uma nova orientação em hermenêutica c abriu cuinl 
nho a uma base sistemática para a hermenêutica na teoria du 
compreensão. Se a hermenêutica já não se dedica essencialmente 
a clarificar os vários problemas práticos na interpretação dos ilifc 
rentes tipos de texto, então poderá tomar o acto de compreensão 
como o seu verdadeiro ponto de partida: em Schleiermacher, a 
hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa «arte da com­
preensão».
E assim Schleiermacher coloca esta questão geral como ponto 
de partida da sua hermenêutica: como é que toda ou qualquer 
expressão lingüística, falada ou escrita, é «compreendida»? A situa­
ção de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas 
as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma 
frase com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebc 
uma série de meras palavras, e subitamente, através de um pro­
cesso misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo 
misterioso, um processo de adivinhação, é o processo hermenêutico. 
É o verdadeiro lugar da hermenêutica. A hermenêutica é a arte 
de ouvir. Voltamo-nos agora para alguns princípios desta arte ou 
processo.
A compreensão como um processo de reconstrução
Para Schleiermacher, a compreensão enquanto arte é voltar 
de novo a experimentar os processos mentais do autor do texto. 
É o reverso da composição pois começa com a expressão já fixa 
e acabada e recua até à vida mental que a produziu. O orador ou 
autor construiu uma frase; o auditor penetra nas estruturas da frase 
e do pensamento. Assim a interpretação consiste em dois momentos 
interactuantes: o momento «gramatical» e o «psicológico» (no 
sentido lato de tudo aquilo que se inclui na vida psíquica do autor). 
O princípio em que assenta esta reconstrução, seja ela gramatical 
ou psicológica, é o do círculo hermenêutico.
O círculo hermenêutico
Compreender é uma operação essencialmente referencial; com­
preendemos algo quando o comparamos com algo que já conhece­
mos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sistemá­
ticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo 
define a parte individual, e as partes em conjunto formam o círculo. 
Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreen
93
demos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos 
na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido 
da frase como um todo está dependente do sentido das palavras 
individuais. Consequentemente um conceito individual tira o seu 
significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo 
o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá 
sentido. Por uma interacção dialéctica entre o todo e a parte, cada 
um dá sentido ao outro; a compreensão é portanto circular. E por­
que o sentido aparece dentro deste «círculo», chamamos-lhe o 
«círculo hermenêutico».
É claro que o conceito de círculo hermenêutico envolve uma 
contradição lógica; pois se temos que captar o todo antes de poder 
conhecer as partes, então nunca compreenderemos nada. E no en­
tanto afirmámos que as partes tiram o seu sentido do todo. Por 
outro lado, não podemos certamente começar com um todo, não 
diferenciado em partes. Será que o conceito de círculo hermenêutico 
não tem validade? Não; apenas temos que dizer que a lógica não 
valida totalmente as tarefas da compreensão. Há como que uma 
espécie de «salto» no círculo hermenêutico e compreendemos simul­
taneamente o todo e as partes. Schleiermacher deixou lugar para um 
factor deste tipo quando considerou a compreensão em parte como 
uma questão comparativa, em parte como uma questão intuitiva 
e divinatória. Para actuar eficazmente o círculo hermenêutico 
implica um elemento de intuição.
Com a sua imagem espacial, o círculo hermenêutico propõe 
uma área de compreensão partilhada. Visto que a comunicação é 
uma relação dialógica, presume-se desde o início uma comunidade 
de sentido, partilhada por quem fala e por quem ouve. Isto parece 
envolver outra contradição: aquilo que tem que ser compreendido 
já deve ser sabido. Mas não será esse o caso? Não será vão falar 
de amor a quem não conheceu o amor, ou das alegrias de aprender 
a quem renunciou a elas? Temos que previamente possuir, até 
certo ponto, um conhecimento do tema em causa. Isso pode ser 
designado como o conhecimento prévio, minimamente necessário 
à compreensão, sem o qual não podemos saltar para o círculo 
hermenêutico. Tomemos um exemplo comum, a experiência da 
ininteligibilidade inicial para quem lê um grande autor, digamos 
um Kirkegaard, um Nietzsche ou um Heidegger; o problema é 
captar a orientação global do autor, sem a qual as asserções indivi­
duais e mesmo as obras completas não têm significado. Por vezes 
uma simples frase esclarecerá e construirá num todo significativo 
tudo o que previamente era incoerente, precisamente porque sugere 
«toda a coisa» sobre a qual o autor tem vindo a falar.
O círculo hermenêutico então opera, não só a nível lingüístico 
como também a nível do tema em causa. Tanto o que fala como 
o que ouve devem partilhar a linguagem e o tema do seu discurso.
94
Tanto a nível do medium do discurso (linguagem) como du mulériii 
do discurso (tema), o princípio do conhecimento prévio ou o 
círculo hermenêutico — opera em todo o acto de compreensão.
Interpretação gramatical e interpretação psicológica
No pensamento mais tardio de Schleiermacherhá uma tendência 
crescente para separar a esfera da linguagem da esfera do pensa­
mento. A primeira é a província da interpretação «gramatical» 
enquanto que Schleiermacher começou por chamar ao segundo 
«técnico» (technische) designando-o mais tarde de «psicológico». 
A interpretação gramatical localiza a asserção de acordo com leis 
gerais e objectivas; o aspecto subjectivo da interpretação centra-se 
naquilo que é subjectivo e individual. De acordo com Schleierma­
cher, «tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com 
a totalidade da linguagem quer com o pensamento do autor, tam­
bém em toda a compreensão de um discurso há dois momentos: 
a sua compreensão como algo extraído da linguagem e com um 
‘facto’ no pensamento daquele que fala» (’). A interpretação «gra­
matical» pertence ao momento da linguagem e Schleiermacher 
encarava-a como um procedimento essencialmente negativo, geral 
e mesmo limitativo, no qual se coloca a estrutura em que opera 
o pensamento. Contudo, a interpretação psicológica procura a 
individualidade do autor, o seu génio particular. Para isso é neces­
sária uma certa adequação com o autor; não se trata de uma 
operação que estabeleça fronteiras, mas antes do lado verdadeira­
mente positivo da interpretação.
Certamente que ambos os aspectos da interpretação são neces­
sários e de facto interactuam constantemente. Os usos individuais 
da língua acarretam mudanças na própria língua, e no entanto um 
autor defronta-se com uma língua sendo obrigado a imprimir nela 
a sua própria individualidade. O intérprete compreende a individua­
lidade do autor relativamente ao geral mas compreende-a também 
de um modo positivo, quase de um modo directo e intuitivo. Tal 
como o círculo hermenêutico envolve a parte e o todo, a inter­
pretação gramatical e psicológica como uma unidade, envolve o 
específico e o geral; este último tipo de interpretação é geral e 
limitativo, bem como individual e positivo. A interpretação grama­
tical mostra-nos a obra na sua relação com a língua, tanto na estru­
tura das frases como nas partes interactuantes de uma obra e 
também com outras obras do mesmo tipo literário; assim, podemos 
ver o princípio das partes e do todo, em acção na interpretação
(5) Ibid., 80.
95
r
gramatical. De igual modo, a individualidade do autor e da obra 
têm que ser vistas no contexto dos factos mais amplos da sua vida, 
contrastando com outras vidas e com outras obras. O princípio de 
interacção e de esclarecimento recíproco da parte e do todo é 
essencial para os dois aspectos da interpretação.
Tudo isto pressupõe que a hermenêutica tem como meta a 
reconstrução da experiência mental do autor do texto, um ponto 
que é particularmente claro na afirmação de 1819: « arte [da 
interpretação] só pode desenvolver as suas regras fora de uma 
fórmula positiva que é: a reconstrução histórica, divinatória, 
objectiva e subjectiva de uma dada expressão lingüística (4). É óbvio 
que Schleiermacher pretende experimentar de novo aquilo que o 
autor experimentou e não vê a expressão lingüística separadamente 
do seu autor. Contudo, é bom assinalarmos que este experimentador 
de novo não precisa de ser encarado como «psicanálise» do autor; 
antes se limita a afirmar que a compreensão é uma arte de recons­
truir o pensamento de outra pessoa. Por outras palavras, o objec­
tivo não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos do autor 
(psicanálise) mas sim reconstruir o próprio pensamento de outra 
pessoa através da interpretação das suas expressões lingüísticas.
Na realidade, a reconstrução plena da individualidade de um 
autor nunca pode derivar da análise das causas; tal facto ficaria 
sempre desesperadamente ao nível do geral. Para a interpretação 
psicológica é necessária uma abordagem basicamente intuitiva. 
A abordagem gramatical pode usar o método comparativo e pro­
ceder do geral para as particularidades do texto; a abordagem 
psicológica utiliza tanto o método comparativo como o «divinatório». 
O [método] divinatório é aquele em que nos transformamos no 
outro, de modo a captar directamente a sua individualidade (5). Neste 
momento da interpretação, saímos de nós próprios e transformamo- 
-nos no autor, de modo a podermos captar numa plena imediatez, o 
seu processo mental. Contudo, o objectivo último não é «com­
preender» o autor de um ponto de vista psicológico; é antes ter 
acesso mais pleno àquilo que é significado no texto.
A compreensão hermenêutica como compreensão 
de estilo
A abordagem da ênfase dada por Schleiermacher aos aspectos 
psicológicos e intuitivos pode levar-nos a esquecer a forte insis­
tência no papel central da linguagem, sempre presente nas suas
(4) Ibid., 87. 
(") Ibid., 109.
96
especulações sobre hermenêutica. Não só a gramática 6 um elemento 
indispensável na orientação e enfoque da nossa intcrprctuçAo, como 
também a revelação psicológica da individualidade sc expressa dc 
um modo essencial no estilo particular do autor. Por isso, nAo 
interessa se há um «talento» mais ou menos profundo para conhc 
cer individualmente outros seres humanos; a menos que esse talento 
se combine com o talento de uma intuição lingüística, quer na 
colocação das fronteiras gramaticais quer na penetração psicoló 
gica da individualidade de um autor através do seu estilo, nenhum 
conhecimento adequado resultará. Pelo estilo, conhecemos o homem 
em toda a sua individualidade; em 1819 Schleiermacher resumiu 
de um modo penetrante a importância do estilo: «A comprcensílo 
total do estilo é todo o objectivo da hermenêutica.» (*)
A hermenêutica como ciência sistemática
A especulação hermenêutica de Schleiermacher tem como 
objectivo transformar «o conjunto de observações» organizadas de 
um modo disperso, numa unidade sistematicamente coerente. De 
facto, as suas intenções foram mais longe: primeiro, postular a ideia 
de que a compreensão opera de acordo com leis que podem ser des­
cobertas; seguidamente, enunciar algumas das leis ou princípios 
a partir dos quais ocorre a compreensão. Esta esperança pode resu­
mir-se na palavra «ciência»; Schleiermacher não procurava um 
conjunto de regras como na hermenêutica primitiva, mas sim um 
conjunto de leis pelas quais a compreensão opera — uma ciência 
da compreensão que pudesse orientar o processo de extrair dum 
texto o seu sentido (7).
De uma hermenêutica centrada na linguagem 
a uma hermenêutica centrada na subjectividade
Até 1959, a concepção dominante da hermenêutica de Schleier­
macher baseava-se necessariamente numa colectânea das suas obras, 
publicada postumamente editada pelo seu aluno e amigo Friederich
(•) Ibid., 108.
C7) Claro que a compreensão enquanto tal se mantém uma arte. Como 
Kichard R. Niebubr pertinentemente nota numa esclarecedora abordagem que 
faz à hermenêutica de Schleiermacher (pp. 72-134 da sua obra Schleiermacher 
On Christ and Religiort): o acto de interpretação era para Schleiermacher 
«algo de pessoal e criativo tanto como científico, era uma reconstituição ima­
ginária da personalidade do orador ou do escritor. Um tal esforço da empatia 
tem sempre que ultrapassar em muito os princípios da ciência filológica, pene­
trando no plano da arte» (79). Sobre este tema ver H. 82.
97
Lucke (*). Este volume, publicado em 1838, só em parte era for­
mado pelos próprios manuscritos do autor, sendo essencialmente 
constituído a partir de notas de estudantes. Embora Schleiermacher 
deixasse notas do seu próprio punho, que remontam a 1805, o 
volume de 1838 incluía poucas dessas notas anteriores a 1819. 
Nos últimos anos da década de cinqüenta (1950) Heinz Kimmerle 
examinou cuidadosamente os documentos não publicados de 
Schleiermacher, existentes na Biblioteca de Berlim e reuniu por 
ordem cronológica todos os escritos sobre hermenêutica redigidos 
pelo próprio punho de Schleiermacher. Pela primeira vez tornou-se 
possível traçarcom precisão e confiança o desenvolvimento do 
próprio • pensamento de Schleiermacher sobre o projecto de uma 
«hermenêutica geral» (*)•
Desta edição emerge não só um retrato mais completo da her­
menêutica de Schleiermacher como também de parte da sua obra 
até então desconhecida — um primeiro Schleiermacher centrado na 
linguagem, menos psicológico. Em cerca de vinte páginas de afo­
rismos sobre hermenêutica datando de 1805 a 1809 e nos primeiros 
esboços ainda tacteantes durante o período de 1810-1819, Schleier­
macher propõe uma hermenêutica fundamentalmente centrada na 
linguagem. Aparentemente, desde o começo que Schleiermacher 
tinha em mente uma hermenêutica geral, fundante, dividida em 
duas partes essenciais: a gramatical (objectiva) e a técnica (subjec­
tiva). É claro que o afastamento decisivo da objectividade filológica 
e o partir de condições que são do domínio do diálogo ainda vigoram 
nos escritos anteriores a 1819. No período entre 1810 e 1819, 
Schleiermacher escreve que a tarefa da hermenêutica «procede 
de dois pontos diferentes: a compreensão da linguagem e a com­
preensão daquele que fala» (l0). Um dos primeiros aforismos defen­
dia que temos que ter uma compreensão do homem para podermos 
compreender o que ele diz. No entanto, é a partir do seu discurso 
que chegamos a um conhecimento do homem (“ ). A hermenêutica 
é a arte de compreender o orador naquilo que é dito, mas a lin­
guagem ainda é a chave. Noutro dos primeiros aforismos diz ele: 
«Tudo o que se pressupõe em hermenêutica é apenas linguagem 
e é também só linguagem aquilo que encontramos na hermenêu­
tica; o lugar a que pertencem os outros pressupostos objectivos e 
subjectivos tem que ser encontrado através (ou a partir) da lin­
guagem.» (")
(•) H & K.
(") Ver a importante introdução em H. 9-24 e o seu artigo A Teoria 
hermenêutica ou a ontologia hermenêutica, HH 107-21.
(■•) H 56.
(" ) Ibid., 44.
(,J) Ibid., 38.
98
Este elemento decisivo na passagem dc uma hermenêutica 
centrada na linguagem para uma hermenêutica orientada para a 
psicologia, segundo Kimmerle, foi o primeiro abandono gradual 
da concepção da identidade do pensamento e da linguagem. Kim 
merle diz que a razão disso foi de tipo filosófico: Schleiermacher 
encarou como sendo a sua tarefa, a mediação entre o carácter 
intrínseco da filosofia transcendental especulativa e o carácter 
extrínseco de ciência positiva e empírica. Pressupôs uma discre 
pância entre a essência ideal, interna, e a aparência externa. Assim 
o texto não podia ser visto como manifestação directa dc um 
processo mental interno mas com algo dado às exigências empí­
ricas da linguagem.
Por fim a tarefa da hermenêutica acabou por ser a de trans­
cender a linguagem, de modo a chegar aos processos internos. 
Ainda é necessário examinar a linguagem, mas esta já não é con­
siderada como totalmente equivalente ao pensamento. No entanto, 
em 1813 Schleiermacher ainda afirma: «Essencial e intrinsecamente, 
o pensamento e a sua expressão são exactamente o mesmo.» (1S) 
E o facto de Schleiermacher até 1829 não se referir à sua herme­
nêutica como uma metodologia (Kunstlehre) evidencia a relutância 
que tinha em abandonar a concepção fundamental da identidade 
do pensamento e da expressão.
Contudo abandonou esta concepção, e assim o processo mental 
reconstruído pela hermenêutica, não mais foi concebido como sendo 
intrinsecamente lingüístico mas sim como uma espécie de função 
interna e ardilosa da individualidade, separada da individualidade 
da linguagem. Neste ponto reforçou-se a visão contemporânea, de­
fendida por Kimmerle e Gadamer, de que Schleiermacher se desen- 
caminhara e desistira da possibilidade mais fértil de uma herme­
nêutica verdadeiramente centrada na linguagem, caindo numa má 
metafísica (’*). É claro que Schleiermacher foi empurrado para 
estas conclusões não só pela sua própria metafísica idealista (,s) 
mas também pela hipótese de que a finalidade da hermenêutica 
era a reconstrução do processo mental do autor. Esta hipótese 
é no entanto discutível, pois um texto é percebido não por uma 
relação com qualquer vago processo mental interno, mas pela 
relação com o assunto, com o tema, a que o texto se refere.
O5) Ibid., 21,
(" ) Ver Schleiermachers Entwurf einer universalen Hermeneutik WM 
172-85, esp. 179-83. Ver também a comunicação intitulada «O problema da 
Linguagem na Hermenêutica de Schleiermacher» que Gadamer fez na Con­
ferência sobre Schleiermacher, comemorando o segundo centenário do sou 
nascimento, em 29 de Fevereiro de 1968, na Vanderbilt Divinity School.
(*5) Ver WM 179 relativamente aos conceitos de individualidade e génio, 
relativamente à hermenêutica de Schleiermacher.
99
Schleiermacher na primeira fase do seu pensamento hermenêutico, 
sustentara uma posição mais próxima de concepções actuais, de­
fendendo firmemente serem o pensamento de um indivíduo, e 
mesmo todo o seu ser, essencialmente determinados pela linguagem, 
na qual é dada uma compreensão quer do seu ser quer do seu 
mundo. Só perante a contradição directa da sua posição sistemá­
tica mais lata é que Schleiermacher desistiu desta ideia, em detri­
mento do seu próprio projecto. O novo e fértil ponto de partida 
visível no seu pensamento primitivo — o de uma hermenêutica 
verdadeiramente centrada na linguagem, baseada nas condições 
reais necessárias para a compreensão de um parceiro num diálogo — 
é posto de lado. A hermenêutica torna-se psicológica, transforma-se 
na arte de determinar ou de reconstruir um processo mental, 
um processo que não mais é tomado como sendo essencialmente 
lingüístico. O estilo ainda é visto como uma chave para a indivi­
dualidade do autor, mas consideramo-lo como apontando para 
uma individualidade não lingüística, da qual é uma manifestação 
meramente empírica.
O significado do projecto de Schleiermacher 
de uma nova hermenêutica
Mau grado o elemento psicológico do último Schleiermacher, 
a sua contribuição para a hermenêutica marcou uma viragem na 
história desta disciplina. Porque a hermenêutica deixa de ser vista 
como um tema disciplinar específico do âmbito da teologia, da 
literatura ou do direito; é a arte de compreender uma expressão 
lingüística. Um dos primeiros aforismos, extremamente esclarece- 
cedor, afirma que a hermenêutica é precisamente o modo como 
uma criança capta o significado de uma nova palavra (” ). A estru­
tura da frase e o contexto significativo são os seus guias, cons­
tituindo os sistemas de interpretação de uma hermenêutica geral. 
A hermenêutica é vista como partindo das condições de diálogo; 
Schleiermacher foi um hermeneuta dialogai que infelizmente não 
se apercebeu das implicações criativas da sua natureza dialógica. 
Cegou-o o seu desejo de leis e de coerência sistemática (1T). Foi no
(w) «Jedes Kind kommt nur durch Hermeneutik zur Wortbedeutung» 
(H 40). Gadamer chama a atenção para a afirmação de Schleiermacher de 
«Hermeneutik ist die Kunst, Missverstand zu vermeiden» (H & K 29; WM 173).
(") Ver Niebuhr, op. cit., p. 81 ff., que encara o carácter dialógico 
do próprio pensamento de acordo com Schleiermacher. Niebuhr acentua a 
rolnçAo da hermenêutica de Schleiermacher com a sua obra Dialethik e com 
o mu interesse pela ética; dado que o intéprete «sente» o ser moral de um 
nutor; « própria interpretação torna-se um acto moral (p. 92).
100
entanto este efeito (do nosso actual ponto de vista) que deu uma 
nova orientação à hermenêutica, fazendo com que ela se tornasse 
ciência.
Como veremos, Dilthey continuou esta orientação com a busca 
que empreendeu de um conhecimento «objectivamente válido» e 
com a sua hipótese de que a tarefa da hermenêutica é descobrir as 
leis e os princípios da compreensão. Estas hipóteses podiam ser 
criticadas como uma falha da compreensão histórica, dado que 
defendem ser possível ocupar um lugar acima ou forada história, 
a partir do qual é possível divizar «leis» intemporais. Mas a orien­
tação para uma hermenêutica que toma como seu ponto de partida 
o problema do conhecimento foi um contributo fértil para a teoria 
interpre ativa. Só depois de muitos anos se avançou com a hipótese 
de que as constantes na compreensão, que Schleiermacher consi­
derava em termos científicos, poderiam ver-se melhor em termos 
históricos, isto é, em termos da estrutura intrinsecamente histórica 
da compreensão. Mais especificamente apreendeu-se a importância 
de uma pré-compreensão em toda a compreensão. Schleiermacher, 
e mesmo teóricos da hermenêutica que lhe são anteriores, apon­
taram para esta última concepção ao enunciar o princípio do 
círculo hermenêutico dentro do qual toda a compreensão ocorre.
Assim Schleiermacher ultrapassou decisivamente a visão da 
hermenêutica como um conjunto de métodos acumulados por ten­
tativas e erros e defendeu a legitimidade de uma arte geral da 
compreensão anterior a qualquer arte especial de interpretação. 
Isto levanta a questão de qual deverá ser a relação adequada da 
interpretação literária actual com teorias gerais da compreensão, 
implícitas ou explícitas. Talvez possa defender-se que hoje devemos 
interpretar sem tentar saber o que é a interpretação, mas isto 
apenas defende o direito que temos de fazer algo sem realmente 
saber o que estamos a fazer. Podemos imaginar esta atitude por 
parte dos artífices que Sócrates interpelava quando andava por 
Atenas perguntando-lhes se sabiam o que estavam a fazer. Uma 
ignorância tão obstinada tem os atractivos mas não consegue levar 
a interpretação literária americana a ultrapassar a pirotecnia da 
Nova Crítica ou as contradições da actual «crítica do mito».. O que 
agora precisamos é de um novo princípio que pondere o que é ou 
não é pertinente para a interpretação, e para isso é preciso deter­
minar de um modo mais adequado o que é e o que faz a interpre­
tação. A interpretação literária actual deve cuidar mais da sua 
relação com a natureza geral de toda a compreensão lingüística.
Exemplificando: é demasiado fácil abandonar, como sendo 
psicologizante, a preocupação com o que acontece quando alguém 
compreende uma expressão lingüística. Psicologizar, propriamente 
definido, refere-se ao esforço de ir para além da expressão lin­
güística, procurando as intenções e os processos mentais do seu
Í01
autor. Certamente que Schleiermacher teve culpa disto, mas não 
podemos considerar como não válido o seu contributo, devido 
unicamente a este aspecto. É um facto que temos que acordar que 
as especulações não fundamentadas sobre os processos mentais do 
autor de uma expressão lingüística, são ilegítimos; mas penso que 
Schleiermacher tem razão ao considerar o problema interpretativo 
como inseparável da arte da compreensão, naquele que ouve. Só 
esta argumentação ajudaria a ultrapassar a ilusão de que o texto 
tem um significado independente e real, separável do evento que 
é compreendê-lo. Uma visão tão ingênua pressupõe a transparência 
essencial e a não historicidade da compreensão; supõe que temos 
um acesso privilegiado ao sentido do texto, fora do tempo e da 
história. Contudo, são precisamente estas suposições que estão em 
causa.
Um outro elemento significativo da hermenêutica de Schleier­
macher é o conceito de compreensão «independentemente da sua 
relação com a vida». Isto será o ponto de partida para o pensa­
mento hermenêutico de Dilthey e de Heidegger. Porque Dilthey 
tomou como seu objectivo compreender «a partir da própria vida» 
e Heidegger defendeu o mesmo objectivo e procurou alcançá-lo de 
um modo diferente e mais radicalmente histórico. Um pensamento 
complexo não interessa como indicativo processo mental do seu 
autor mas como algo em si mesmo, como uma experiência que é 
compreendida em relação com o nosso próprio horizonte de expe­
riência. Não precisamos cair numa atitude psicologizante para 
defender que a compreensão não pode ser concebida independen­
temente das relações significativas que tem com a nossa expe­
riência anterior.
Contudo, há outras conseqüências da hermenêutica de Schleier­
macher que dão azo a preocupações. Por exemplo, considerar a 
compreensão como um ponto de partida pode levar erradamente 
a misturar poesia e prosa ou a aceitar teorias sobre a psicologia 
fundamental ou sobre a natureza humana fundamental altamente 
discutíveis. A tendência existente para ignorar o problema que é 
a tradução numa língua estrangeira e a penetração numa época 
remota não pode ser encarada com ligeireza; no entanto, a foca­
lização de Schleiermacher na arte da compreensão tende a consi­
derar estes aspectos como se fossem menos problemáticos do que 
a própria compreensão. Gadamer chama a atenção para estes e 
para outros problemas da hermenêutica de Schleiermacher, con­
cluindo com uma afirmação contundente: «O problema para 
Schleiermacher não era o da obscuridade na história mas o da 
obscuridade no Tu (thou) (“ ). Uma concentração deste tipo nas
('•) WM 179.
102
condições psicológicas do diálogo, pode conduzir ao desprezo pelo 
elemento histórico da interpretação e mesmo à ignorância do papel 
central que a linguagem tem na hermenêutica. A concentrnçno no 
diálogo juntamente com a visão errônea de que o processo de 
compreensão é um processo de «imitação» ou de «reconstrução» 
levou Schleiermacher às concepções erradas da última fase da sua 
hermenêutica.
Contudo, Schleiermacher é justamente considerado como o pai 
da moderna hermenêutica enquanto disciplina geral. Joachim Wacl) 
nota que, no último troço do século xix os técnicos da herme­
nêutica das mais variadas disciplinas e orientações foram deve­
dores do pensamento hermenêutico de Schleiermacher, de tal 
modo que as teorias hermenêuticas mais importantes na Alemanha 
do século xix, trazem a sua marca. Entre eles apenas abordaremos 
o contributo maximamente significativo de Wilhelm Dilthey.
103
8
DILTHEY: A HERMENÊUTICA COMO FUNDAMENTO 
DAS GEISTESW ISSENSCHAFTEN
Depois da morte de Schleiermacher em .1834 o projecto dc 
desenvolver uma hermenêutica geral esmoreceu. É certo que o 
problema hermenêutico nos seus vários aspectos ocupou a atenção 
de grandes nomes em diferentes campos, como por exemplo Karl 
Wilhelm von Humboldt, Heymann Steinthal, August Bockh, Leo- 
pold von Ranke, S. G. Droysen e Friedrich Karl von Savigny. Mas 
a consideração do problema tendeu a circunscrever-se aos limites de 
uma disciplina particular e a transformar-se em interpretação his­
tórica, filológica ou judicial, mais do que em hermenêutica geral 
como arte de compreensão. Contudo, perto dos finais do século, 
o talentoso filósofo e historiador literário, Wilhelm Dilthey (1833- 
-1911) começou a ver na hermenêutica o fundamento para as 
Geisteswissenschaften — quer dizer todas as humanidades e as ciên­
cias sociais, todas as disciplinas que interpretam as expressões da 
vida interior do homem, quer essas expressões sejam gestos, actos 
históricos, leis codificadas, obras de arte ou de literatura.
Dilthey tinha como objectivo apresentar métodos para alcançar 
uma interpretação «objectivamente válida» das «expressões da vida 
interior». Ao mesmo tempo reagiu drasticamente à tendência que 
os estudos humanísticos revelavam tomando as normas e os modos 
de pensar das ciências naturais e aplicando-as ao estudo do homem. 
Nem mesmo a tradição idealista era uma alternativa viável, pois 
sob a influência de Augusto Comte e dos seus estudos com Ranke, 
Dilthey determinou que a experiência concreta e não a especulação 
tem que ser o único ponto de partida admissível para uma teoria 
das Geisteswissenschaften. Dilthey percebeu verdadeiramente a in­
consistência epistemológica da pretensão à «objectividade» da «escola 
histórica» alemã, encarando-a como uma mistura acrítica das pers­
pectivas idealistae realista. A experiência concreta, histórica c 
viva tem que ser o ponto de partida e o ponto de chegada dits 
Geisteswissenschaften. É a partir da própria vida que temos que
105
desenvolver o nosso pensamento e é para ela que orientamos as 
nossas questões. Não tentemos encontrar ideias por detrás da vida. 
«O nosso pensamento não pode ir para além da própria vida.» (')
Há um toque romântico nesta ênfase de regresso à própria 
vida, e não nos surpreende que Dilthey tenha publicado estudos 
sobre o movimento alemão Sturm und Drang, sobre Novalis, Goethe 
e Schleiermacher. Mergulha de tal modo na herança romântica 
que lhe eram demasiado óbvias as falhas do positivismo c do rea­
lismo, nas suas diferentes formas, negando todas elas a plenitude, 
imediatez e variedade da própria experiência viva. Sentimos em 
Dilthey alguns dos conflitos fundamentais do pensamento do sé- 
século x ix : o desejo romântico de imediatez e de totalidade 
mesmo quando o objectivo é procurar dados que sejam «objectiva­
mente válidos». A sua mente inquieta lutou contra o historicismo, 
contra o psicologismo e parcialmente ultrapassou-os, pois surge no 
seu pensamento uma compreensão da história muito mais funda 
do que a da escola histórica alemã; ao voltar-se para a hermenêu­
tica, a partir do ano de 1890, ultrapassou decisivamente a tendência 
psicologizante que tinha adoptado a partir de um estudo sobre a 
hermenêutica de Schleiermacher. Como nota H. A. Hodges no seu 
livro sobre Dilthey, há duas importantes tradições filosóficas até 
então nitidamente separadas e que convergem em Dilthey: o rea­
lismo empírico e o positivismo anglo-franceses, e a filosofia da vida 
e o idealismo alemães (J). A tentativa efectuada por Dilthey de 
forjar um fundamento epistemológico para as Geisteswissenschaften 
tornou-se o ponto de encontro de duas perspectivas essencialmente 
conflituosos de uma abordagem correcta do homem.
Para compreendermos a hermenêutica de Dilthey, temos pri­
meiro que clarificar o contexto dos problemas e dos objectivos no 
qual lutava, tentando dar uma base metodológica às suas Geites­
wissenschaften. Isto envolve a compreensão do projecto 1) do con­
ceito de história em Dilthey e 2) da orientação filosófica dada 
à vida.
A tentativa de encontrar uma base metodológica 
para as «Geisteswissenschaften»
O projecto de formular uma metodologia adequada às ciências 
que se centram na compreensão das expressões humanas — sociais 
c artísticas — é primeiramente encarado por Dilthey no contexto de 
uma necessidade de abandonar a perspectiva reducionista e meca-
(') GS V. 5; VIII, 184. 
(■) PliWD, cap. 2.
106
nicista das ciências naturais, e de encontrar uma abordagem ade­
quada à plenitude dos fenômenos. Por esse motivo, uniu ohru re­
cente sobre a teoria literária de Dilthey designou-a dc «ubordugcm 
fenomenológica» (3). Assim, a tarefa de encontrar base, para umu 
metodologia desse tipo foi vista como 1) um problema epislemoló- 
gico, 2) uma questão de aprofundamento da nossa concepção da 
consciência histórica, e 3) uma necessidade de compreender expres­
sões a partir «da própria vida». Quando estes factores forem com 
preendidos, será nítida a distinção entre a abordagem feita pelas 
«ciências humanas» (Geisteswissenschaften) e a das ciências naturais, 
Para Dilthey, qualquer espécie de base metafísica para descrever 
o que se passa quando compreendemos um fenômeno humano é logo 
de início recusada, pois dificilmente levaria a resultados considera­
dos universalmente válidos. O problema está antes na especificação 
de qual o tipo de conhecimento e de qual o tipo de compreensão 
que particularmente adequados para interpretar os fenômenos huma­
nos. Pergunta ele: Qual é a natureza do acto de compreensão que 
constitui a base de todos os estudos sobre o homem? Resumindo, 
ele não coloca o problema em termos metafísicos mas sim em ter­
mos epistemológicos.
Num certo sentido, Dilthey continua o idealismo crítico de Kant 
mesmo não tendo sido um neo-kantiano mas sim um «filósofo da 
vida». Kant escrevera a «Crítica da Razão Pura» colocando os fun­
damentos epistemológicos das ciências. Dilthey atribuiu-se cons­
cienciosamente a tarefa de escrever uma «crítica da razão histórica» 
que colocasse os fundamentos epistemológicos dos «estudos huma- 
nísticos». Não pôs em causa a adequabilidade das categorias kan- 
tianas para as ciências humanas, mas viu no espaço, no tempo, no 
número etc., poucas possibilidades para a compreensão da vida 
interior do homem; nem mesmo a categoria da «sensibilidade» lhe 
parecia fazer justiça ao carácter interior e histórico da subjectividade 
humana. Dilthey afirmava: «Isto é uma temática de (ulterior) desen­
volvimento de toda a atitude crítica kantiana; mas colocando a 
categoria da auto-interpretação (Selbstbesinnung) em vez de uma 
teoria do conhecimento, uma crítica do histórico em vez de uma 
crítica da razão «pura». O
«Chegamos ao conhecimento de nós próprios não através da 
introspecção mas sim através da história.» (’) O problema da com­
preensão do homem era para Dilthey um problema de recuperação 
de consciência da «historicidade» (Geschichtlichkeit) da nossa própria 
existência que se perdeu nas categorias estáticas da ciência. Temos
(5) Kurt Müller-Vollmcr, Towards a Phenomenolofical Theory of Lite-
rature: A Study of Wilhelm Dilthey's Poetik.
(<) GS V, XXI.
(5) Ibid., VII, 279.
107
experiência da vida, não nas categorias mecânicas do «poder», mas 
nos momentos complexos, individuais do «sentido», na experiência 
directa da vida como totalidade e na captação amorosa do particular. 
Estas unidades de sentido exigem o contexto do passado e o hori­
zonte de expectativas futuras; são intrinsecamente temporais e fini­
tas e devem ser compreendidas em termos dessas dimensões — isto 
é, historicamente. (Esta historicidade será discutida mais tarde jun­
tamente com a própria hermenêutica de Dilthey.)
O problema da formulação de uma teoria das ciências humanas 
foi visto no horizonte da filosofia da vida de Dilthey. A filosofia 
da vida é a maior parte das vezes associada a três filósofos do último 
quartel do século xix: Nietzsche, Dilthey e Bergson. A utilíssima 
obra do Professor O. F. Bollnow (*) sobre o desenvolvimento da 
filosofia da vida faz um levantamento desta orientação geral do 
pensamento a partir do protesto efectuado no século xvin contra 
o formalismo, o racionalismo asséptico e mesmo o pensamento 
abstracto que despreza a totalidade da pessoa, a personalidade que 
vive, sente e quer em toda a sua plenitude. Assim Rousseau, Jakobi, 
Herder, Fichte, Schelling e outros pensadores do século xvm 
anteciparam a filosofia da vida no esforço que fizeram de chegar 
à plenitude vivida da existência humana no mundo. Nestes vários 
pensadores podemos ver a luta do filósofo da vida em prol de uma 
realidade não falseada pelos aspectos exteriores e pela cultura. 
A palavra «vida» era então um grito de batalha contra a fixidez 
e as determinações da convenção. Diz Bollnow, «Ela (a vida) refe­
ria-se aos poderes internos do homem, especialmente aos poderes 
irracionais do sentimento e da paixão, contra o poder predominante 
da compreensão racional» (7). Friedrich Schlegel referia-se à «filo­
sofia da vida» como sendo a apresentação viva da consciência hu­
mana e da vida humana contra as especulações abstractas e ininte­
ligíveis da «escola de filosofia». E Fichte tomou como base de 
toda a sua filosofia a antítese entre a fixidez do Ser e o poderoso 
fluxo da vida.
Poderíamos alargar indefinidamente esta lista de pensadores 
com afinidades com a filosofia da vida, incluindo figuras como 
William James, Marx, Dewey, Pestalozzi, Plessner e Scheler. 
Bollnow dá um especial relevo a Georg Simmel (1858-1918), a 
Ludwig Klages (1872-1956) e a José Ortega y Gasset (1883-1955) 0 . 
Em todos eles encontramos a tendênciageral de tentar regressar à 
plenitude da experiência vivida; e para a maior parte deles isso é 
ao mesmo tempo uma oposição às tendências formais, mecânicas
C) L.
O Ibid., 5.
(•) Ibid., 144-50.
108
e abstractas da civilização tecnológica. As forças da Mente (Cicist, 
no sentido em que Scheler utiliza o termo) ou do Scr (Sein, no 
sentido em que Fichte o utiliza) substituíram o que cru rigido c 
moribundo; as forças da vida (Leben) constituíam as fontes ilinft 
micas e inexauríveis de todas as formas de criatividade e de sentido.
Em Dilthey esta antítese exprimia-se como crítica i»s formas dc 
pensamento naturalísticas, orientadas pela causalidade quando se 
aplicavam à tarefa de compreender a vida interior de um homem 
e a sua experiência. Dilthey defendia que a dinâmica da vida intr 
rior de um homem era um conjunto complexo de cogniçào, sen 
timento e vontade, e que estes factores não podiam sujeitar-se às 
normas da causalidade e à rigidez de um pensamento mecanicista 
e quantitativo. Invocar as categorias do pensamento da «Crítica du 
Razão Pura» para a tarefa de compreender o homem, impõe um 
conjunto de categorias abstractas exteriores à vida, de modo algum 
derivadas da vida. Essas categorias são estáticas, intemporais, abs­
trac tas— são o oposto da própria vida.
O objectivo das ciências humanas não deveria ser a compreen­
são da vida em termos de categorias exteriores à vida, mas a partir 
de categorias intrínsecas, derivadas dela. A vida devia ser compreen­
dida a partir da experiência da própria vida. Dilthey notou desde­
nhosamente que «nas veias do sujeito cognoscente construído por 
Locke, Hume e Kant não corre verdadeiro sangue» (*). Há uma 
tendência nítida em Locke, Hume e Kant para restringir o «saber» 
à faculdade cognitiva, separando-o do sentimento e da vontade. 
Mais, a cogniçào é muitas vezes tratada como sendo separável do 
contexto essencialmente histórico da vida interior do homem; con­
tudo, a verdade é que percepcionamos, pensamos e compreendemos 
em termos de passado, presente e futuro, em termos de sentimentos, 
de exigências morais e de imperativos. Há uma necessidade óbvia 
de regresso às unidades significativas presente na experiência vivida.
Regessar à «vida», para Dilthey, não significa regressar a uma 
qualquer base mística ou a uma qualquer fonte da vida, humana 
ou não humana, a alguma espécie de energia psíquica básica. A vida 
é antes encarada em termos de «sentido»; a vida é «a experiência 
humana conhecida a partir de dentro» ('*). Sentimos o sentimento 
metafísico de Dilthey na sua recusa em tratar o mundo fenomé- 
nico com uma mera aparência: «O pensamento não pode ir para 
além da vida.» (” ) As categorias da vida não se enraízam numa 
realidade transcendente mas na realidade da experiência vivida. 
Hegel exprimira a sua intenção de compreender a vida a partir da
(•) GS V, 4; também L 121.
Ò*) L 12; ver GS VIII, 121: «Leben eiíasst hier Leben». 
O1) GS VIII, 184.
109
própria vida; Dilthey coloca esta intenção num contexto antimeta- 
físico— talvez não o tenha feito num contexto realista nem idea­
lista, mas sim num contexto fenomenológico. Dilthey segue Hegel 
defendendo que a vida é uma realidade «histórica»; contudo, a his­
tória para Dilthey não é nem uma meta absoluta nem uma mani­
festação do espírito absoluto mas sim uma expressão da vida. A vida 
é relativa e expressa-se de muitas maneiras; na experiência humana 
não é nunca absoluta.
Ciências humanas «versus» ciências naturais
Em termos de método para um estudo do homem, que signi­
ficado tem o que acabámos de expor? Dilthey sustentou que «os 
estudos humanísticos» ou «ciências humanas» (Geisteswissenschaften) 
tinham que forjar novos modelos de interpretação dos fenômenos 
humanos. Estes tinham que derivar das características da própria 
experiência vivida; tinham que basear-se nas categorias de «sentido» 
e não nas categorias de «poder», nas categorias da história e não 
nas das matemáticas. Dilthey viu a distinção essencial, que existe 
entre os estudos humanísticos e as ciências naturais (12).
Os estudos humanos não lidam com factos e fenômenos que 
silenciam o homem mas com factos e fenômenos que apenas são 
significativos pela luz que trazem aos processos internos do homem, 
à sua «experiência interna». A metodologia apropriada aos objectos 
naturais não é adequada à compreensão dos fenômenos humanos, 
excepto no estatuto que estes têm enquanto objectos naturais. Con­
tudo, os estudos humanísticos dão validade a algo que não é válido 
nas ciências humanas — a possibilidade de compreender a experiên­
cia interna de alguém através do processo misterioso de uma trans­
ferência mental. Diz Dilthey: «Exactamente porque pode ocorrer 
uma transposição real (quando um homem compreende outro 
homem), porque a afinidade e a universalidade do pensamento ... 
podem representar e formar um mundo socio-histórico, os factos 
internos e os processos humanos podem distinguir-se dos dos 
animais (” ). Devido a esta «transposição real» que pode dar-se nos 
objectos que incorporam a experiência interna, o homem pode 
alcançar um grau e uma profundidade de compreensão, impossíveis 
relativamente a qualquer outro tipo de objectos. É óbvio que uma 
transposição deste tipo apenas ocorre porque há uma semelhança 
entre os factos da nossa experiência mental e os que se passam
(w) Ver Carl Michalson, The Rationality of Faith para uma exploração 
cuidadosa das espécies contrastantes de compreensão adequadas a essas duas 
áreas. Ver também GS V, 242-8; VII, passim.
0») GS V, 250.
110
com outra pessoa. Este fenômeno traz consigo a possibilidade de 
encontrar noutra pessoa os abismos mais fundos da nossa própria 
experiência; desse encontro pode advir a descoberto de um mundo 
íntimo mais pleno (“ ).
Dilthey, seguindo Schleiermacher, vê esta transposição como 
uma reconstrução e uma experiência renovada do mundo experien- 
cial íntimo de outra pessoa. Contudo, o interesse não está na outra 
pessoa, mas no próprio mundo, um mundo visto como um mundo 
«socio-histórico»; é o mundo dos imperativos morais internos, uma 
comunidade partilhada de sentimentos e reacções, uma experiência 
comum de beleza. Estamos aptos a penetrar neste mundo interno 
dos homens, não por meio da introspecção mas da interpretação, 
da compreensão das expressões da vida; isto é, através da dccifrução 
das marcas que o homem imprime aos fenômenos.
Portanto, a diferença entre os estudos humanísticos e as ciências 
naturais, não está necessariamente nem num tipo de objecto dife­
rente que os estudos humanísticos possam ter, nem num tipo 
diferente de percepção; a diferença essencial está no contexto dentro 
do qual o objecto percepcionado é compreendido (” ). Os estudos 
humanísticos farão por vezes uso dos mesmos objectos ou «factos» 
das ciências da natureza, mas num contexto de relações diferentes, 
num contexto que inclui ou que refere uma experiência interna. 
A ausência de referência à experiência humana é característica das 
ciências naturais; a presença de uma referência à vida interior do 
homem está inevitavelmente presente nos estudos humanísticos. 
Diz-nos Dilthey: «Do mesmo modo, a diferença entre as ciências 
naturais e as humanas não está fundamentalmente determinada rela­
tivamente a um modo especial de conhecer mas difere nos conteú­
dos.» O O mesmo objecto e o mesmo facto podem conter dife­
rentes sis?emas de relação; os estudos humanísticos deviam tomar
o objecto ou facto e usá-lo em «categorias» novas, não científicas, 
derivadas da própria vida. Por exemplo, um objecto poderia ser 
explicado em termos de categorias puramente causais (i. e. dc um 
modo científico) ou em relação com aquilo que ele rios diz sobre 
a vida interior do homem, ou, mais objectivamente, sobre o mundo 
socio-histórico do homem que é simultaneamente produto c mani­
festação daexperiência interna do homem. As ciências naturais 
não podem usar factos espirituais (geistige Tatsachen) sem que dei­
xem de ser ciências naturais; os estudos humanísticos podem usar 
factos físicos, mas o mundo externo apenas é considerado numa 
relação com o sentimento e com a vontade humana, e os factos
(14) Ibidem. 
(ls) Ibid., 248. 
(" ) Ibid., 253.
111
apenas são significativos na medida em que afectam o comporta­
mento e ajudam (ou impedem) fins humanos.
Dilthey acreditava que «compreensão» era a palavra chave para 
os estudos humanísticos. A explicação é para as ciências. A abor­
dagem dos fenômenos que unifica o interno e o externo é a com­
preensão. As ciências explicam a natureza, os estudos humanísticos 
compreendem as manifestações da vida (I7). A compreensão conse­
gue captar as entidades individuais, mas a ciência tem sempre que 
encarar o individual como um meio de chegar ao geral, ao tipo. 
Especialmente nas artes, valorizamos o particular pelo seu próprio 
mérito e demoramo-nos amorosamente na compreensão dos fenô­
menos] na sua individualidade. Este interesse absorvente pela vida 
interior individual contrasta totalmente com a atitude e com o pro­
cedimento das ciências naturais. Dilthey sustenta que os estudos 
humanísticos devem tentar formular uma metodologia da com­
preensão que transcenda a objectividade reducionista das ciências 
e que regresse à plenitude da «vida», da experiência humana.
Isto dá-nos uma concepção geral da visão de Dilthey sobre os 
estudos humanísticos. Será defensável esta descrição da separação 
entre a ciência humana e as naturais? Mesmo alguns dos mais 
firmes defensores de Dilthey tiveram que responder negativamente. 
Georg Misch, o seu executor literário, cedo reconheceu que uma 
reconciliação produtiva das duas abordagens era possível e desejável. 
Também Bollnow observou justamente que por muito úteis que 
essas distinções pudessem ser na autocompreensão teórica dos dois 
grandes ramos do conhecimento, teríamos que admitir que a «com­
preensão» não se limita aos estudos humanísticos nem os processos 
explicativos se limitam às ciências naturais. Antes trabalham con­
juntamente, em graus variáveis, em todos os verdadeiros actos de 
conhecimento. Ironicamente podemos hoje constatar em que medida 
as concepções científicas e mesmo o historicismo de que Dilthey 
combateu, se insinuam realmente na sua concepção dos estudos 
humanísticos, pois a sua procura de um «conhecimento objectiva­
mente válido» é ela própria expressão do ideal científico de dados 
nítidos e claros. Este facto orientou imperceptivelmente o pensa­
mento de Dilthey para as metáforas e imagens intemporais e espa- 
cializadas de uma vida mental compatível com o pensamento cientí­
fico. Por outro lado, a herança de Schleiermacher levou-o a uma 
concepção da compreensão como reconstrução e a uma tendência 
psicologizante, da qual apenas se libertou quando fundamentou a 
sua teoria na hermenêutica e não num novo tipo de psicologia.
Contudo, o projecto de compreender a vida em termos da pró­
pria vida, o desejo de aprofundar o aspecto histórico do conheci­
(,T) «Die Natur erkláhren wir, das Seelenieben verstehen wir» (ibid., 144).
112
mento, a crítica aguda a um cientismo que se insinua nos estudos 
humanísticos — tudo isto desempenhou um papel de relevo em 
hermenêutica, a partir de Dilthey. Vemos que com ele sc abriram 
alguns dos problemas e das finalidades fundamentais da hermenêu­
tica. Heidegger construiu sobre esses objectivos e recuou nitida­
mente até Dilthey, num esforço para ultrapassar as tendências cien­
tíficas do seu mestre, Edmund Husserl ('*).
A fórmula hermenêutica de Dilthey: experiência, 
expressão e compreensão
«Uma ciência só pertence aos'estudos humanísticos», diz Dilthey, 
«se o seu objecto se nos tom ar acessível através de um processo 
baseado na relação sistemática entre vida, expressão e compreen­
são.» (19) Esta fórmula de «experiência, expressão c compreensão» 
está longe de ser explícita pois cada termo tem um sentido dislinlo 
nos termos da filosofia da vida de Dilthey. Vamos então explorar 
separadamente cada um dos termos.
1 — Experiência
Em alemão há duas palavras para «experiência»: Erfahrimn c 
a mais técnica e recente Erlebnis. A primeira refere-se ã experiên­
cia em geral, como quando nos referimos à nossa «experiência» de 
vida. Dilthey usa o termo Erlebnis, mais específico c limitado, for­
jado a partir do verbo erleben (experimentar, especialmente cm 
circunstâncias individuais). O verbo erleben é um termo bastante 
recente, formado pela adição do prefixo er (geralmente usado como 
um prefixo enfático, que aprofunda o sentido da palavra principal). 
Assim o verbo «experimentar» é em alemão aparentado com o 
verbo «viver», uma forma enfática que sugere a imediatez da pró­
pria vida quando nos defrontamos com ela. Erlebnis enquanto subs­
tantivo singular era praticamente inexistente cm alemão antes de 
Dilthey o usar num sentido altamente específico, embora a forma 
plural, Erlebnisse apareça em Goethe, a quem sem dúvida alguma 
Dilthey o foi buscar.
Uma Erlebnis ou ^experiência vivida» é definida por Dilthey 
como uma unidade sustentada por um significado comum:
Aquilo que na cadeia do tempo forma uma unidade no 
presente porque tem um significado unitário, é a mais 
pequena entidade a que podemos chamar experiência.
0 ') Ver SZ § 77.
(>») GS VII, 86; citado em PhWD 249.
113
Indo mais longe, podemos considerar «experiência» cada 
unidade determinada das partes da vida ligadas por um 
sentido comum — mesmo quando as várias partes se sepa­
ram umas das outras por eventos que as interrompem (í0).
Por outras palavras, a experiência significativa de uma pintura, 
por exemplo, pode ter envolvido muitos encontros separados pelo 
tempo e no entanto ser considerada uma «experiência» (Erlebnis). 
Uma experiência de amor romântico não se baseia num só encontro 
mas reúne eventos de vários tipos, tempos e lugares; no entanto, a 
unidade de sentido que têm enquanto «experiência» eleva-as da 
corrente da vida e junta-as numa unidade de sentido, i. e., numa 
experiência.
Quais as características desta unidade de sentido? Dilthey ana­
lisa a questão com bastante pormenor e, para compreendermos a 
sua hermenêutica, é essencial compreendermos a que é que ele 
chama «experiência». Em primeiro lugar, a experiência não deve 
ser construída como o «conteúdo» de um acto reflexivo da cons­
ciência, pois então teria que ser algo de que tivessemos consciência; 
ora ela é antes o próprio acto; é algo no qual e pelo qual vivemos, 
é a própria atitude que temos para com a vida e na qual vivemos. 
Resumindo, é a experiência enquanto tal, tal como é dada de um 
modo pré-reflexivo na significação. Subsequentemente a experiência 
pode tornar-se objecto de reflexão, mas então deixa de ser expe­
riência imediata, torna-se objecto de um outro encontro. Assim a 
experiência mais do que discussão é urr acto de consciência; não 
tem que ser construída como algo que a consciência apreende e 
contra o qual se coloca (J1).
Isto significa que a experiência não tem nem consegue ter cons­
ciência de si mesma, pois fazê-lo seria um acto reflectidamente 
consciente. Também não é um dado da consciência, pois a sê-lo 
teria que se defrontar contra o sujeito como um objecto que lhe 
tivesse sido dado. Assim a experiência existe antes da separação 
sujeito-objecto, separação que é ela própria um modelo usado pelo 
pensamento reflexivo. De facto, experienciar não se distingue do 
próprio percepcionar ou do apreender (innewerden). A Erlebnis 
representa aquele contacto directo com a vida a que podemos cha­
mar «a experiência imediatamente vivida».
A análise descritiva deste campo de difícil compreensão, ante­
rior ao pensamento reflexivo, é essencial tanto para os estudos 
humanísticos como para as ciênciasnaturais, mas é particularmente 
importante para o primeiro, pois as próprias categorias da com­
(*>) GS VII, 194.
C") Ibid., 139; PhWD 38-40.
114
preensão humanística e hermenêutica dela derivam. JÊ justamente 
este campo da consciência pré-reflexiva que é demarcado pela feno­
menologia de Husserle de Heidegger. À medida que Dilthey procura 
desenvolver o seu projecto metodológico numa relação íntima com 
a sua filosofia da vida, à medida que faz uma separação nítida entre 
o mero «pensar» e a «vida» (ou a experiência) vai colocando fun­
damentos para a fenomenologia do século xx.
Assim, por exemplo, Dilthey defende que:
«O modo como a ‘experiência vivida’ se me apresenta (à letra: 
«está ali para mim») é completamente diferente do modo como as 
imagens se colocam face a mim. A consciência da experiência e a 
sua constituição são a mesma coisa: não há separação entre o que 
está-ali-para-mim e o que eu experimento enquanto estando ali- 
-para-mim. Por outras palavras, a experiência não se coloca como 
um objecto em face daquele que a experimenta, mas antes a sua 
própria existência para mim é indiferenciada da ‘qualidade’ que 
nela para mim está presente» (22).
Contudo seria um erro grave pensar a experiência como se 
apontasse para qualquer espécie de realidade meramente subjectiva, 
porque a experiência é precisamente experiência daquilo que eslá- 
-para-mim antes de se tornar objectiva (e consequentemente uma 
separação do subjectivo). É a partir desta unidade primitiva que 
Dilthey tenta forjar categorias que contenham e não que separem 
os elementos do sentimento, saber e vontade que surgem conjun­
tamente na experiência — categorias como por exemplo, «valor», 
«significado» «textura» e «relação». Dilthey encontra dificuldades 
na formulação destas categorias, contudo, a própria tarefa dc as 
formular é da maior importância. A sua selecção teve como meta 
adquirir um conhecimento objectivamente válido, e é esta meta 
que lhe levanta objecções que ele próprio não solicitara. Ao mesmo 
tempo, temos que admirar a impaciência com que exigiu catego­
rias que exprimissem «a liberdade da vida e da história» (” ). A fer­
tilidade das suas intuições está na visão da experiência que coloca 
um campo anterior ao sujeito e ao objecto, um campo cm que o 
mundo e a experiência que dele temos são conjuntamente dados. 
Viu com toda a nitidez a pobreza do modelo do encontro humano 
com o mundo em termos de sujeito-objecto, viu como é superficial 
separar os sentimentos dos objectos, as sensações do acto total da 
compreensão. «Vivemos e movemo-nos», diz ele depreciativamente, 
«não numa esfera de sensações mas sim de objectos que se nos 
apresentam, não numa esfera de sentimentos mas sim de valor, de 
sentido, e assim por diante.» (**) Como é absurdo, diz-nos, separar
C2) GS VII, 139. 
(“ ) Ibid., 203.
(*•) GS VI. 317.
115
as nossas sensações e sentimentos do contexto total de relações que 
surgem conjuntamente na unidade da experiência.
Outro aspecto que deu frutos em Dilthey foi a ênfase concedida 
à temporalidade do «contexto de relações» dadas na «experiência». 
A experiência não é algo de estático; pelo contrário, na sua uni­
dade de sentido, tende a alcançar e a abranger tanto a recolecção 
do passado como a antecipação do futuro no contexto total de 
«significado». O significado não pode ser imaginado a não ser em 
termos daquilo que esperamos que será o futuro, nem pode liber­
tar-se da dependência de materiais cedidos pelo passado. O passado 
e o futuro constituem portanto uma unidade formal com o carácter 
presente de toda a experiência, e este contexto temporal é o hori­
zonte inevitável dentro do qual qualquer percepção presente é inter­
pretada.
Dilthey vai longe provando que a temporalidade da experiência 
não é algo imposto reflexivamente pela consciência (a posição que 
os kantianos tomariam, a mente como agente activo que impõe 
uma unidade à percepção), é antes o que já está implícito na pró­
pria experiência, aquilo que nos é dado. A este respeito, podemos 
considerar Dilthey como realista, mais do que idealista: a tempo­
ralidade da experiência é, como Heidegger diria, «equiprimordial» 
à própria experiência. Nunca é nada que se acrescente à expe­
riência. Suponhamos que alguém tenta captar conscientemente o 
decurso ou a progressão de uma vida (das Lebenstauf) por meio 
de um acto reflexivo. A unidade deste exercício particular é ins­
trutiva pois é quase como que um espelho do modo como essa 
unidade é actualmente dada conscientemente, a um nível pré-refle- 
xivo. Dilthey descreve o seu próprio esforço ao agir desse modo: 
«O que acontece quando a ‘experiência’ (das Erlebnis) se torna 
objecto da minha reflexão? Estou acordado de noite (por exemplo) 
e preocupo-me com a possibilidade de, na minha velhice, poder 
completar o trabalho que comecei; penso e repenso no que hei-de 
fazer. Há nesta ‘experiência’ um conjunto estruturado de relações: 
a base da situação é constituída pela captação objectiva que dela 
faço, e sobre essa base constrói-se uma instância (Stellungsnahme), 
de preocupação ‘para com’ e de ‘dor sobre’ o facto captado objec- 
tivamente, juntamente com uma tentativa de ultrapassar o facto. 
E tudo isto está ali — para — mim, nisso reside o seu (do facto) 
contexto estrutural. É claro que agora trouxe a situação para uma 
consciência discriminativa e dei relevo à relação estrutural — ‘iso- 
leia-a’. Mas tudo aquilo a que aqui dei relevo está realmente contido 
na própria experiência e apenas foi esclarecido por este acto de 
reflexão.» (” )
(” ) GS VII, 139-40; parafraseando e não traduzido literalmente.
116
O «sentido» de «um facto captado objectivamenle» 6 dado 
com o próprio facto, e o sentido é intrinsecamentc temporal, defi­
nido em termos do contexto da vida de cada um. Dilthey continua 
a passagem acima transcrita, defendendo que tal facto tem um «igni- 
ficado essencial para todo o estudo da realidade humana: «As par­
tes constitutivas que formam a visão da progressão da nossa vida 
(Anschauung des Lebens verlaufes) estão todas contidas no prAprUt 
viver.» Ç*) Podendo designar este facto como sendo a temporalidade 
interna da historicidade que não se impõe à vida mas que lhe 6 
intrínseca. Dilthey defende um facto da maior importância para a 
hermenêutica: A experiência é intrinsecamente temporal (quer dizer, 
histórica, no sentido mais fundo da palavra), e portanto a com­
preensão da experiência tem também que ser dada em categorias 
de pensamento proporcionalmente temporais (históricas).
Dilthey, ao insistir na temporalidade da experiência tem pois 
defendido a fundamentação de todos os esforços subsequentes que 
afirmam a «historicidade» da existência humana no mundo. Histo­
ricidade não quer dizer concentração no passado, nem tem a ver 
com qualquer espécie de mentalidade tradicional que nos subordine 
a ideias mortas; historicidade (Geschichlichkeit) é essencialmente a 
afirmação da temporalidade da experiência humana tal como a 
descrevemos. Significa que compreendemos o presente apenas no 
horizonte do passado e do futuro; isto não é uma questão de 
esforço consciente, construindo-se sobre a estrutura da própria expe­
riência. Mas tornar explícita esta historicidade tem na verdade 
conseqüências hermenêuticas, pois a não historicidade da interpre­
tação já não pode ser assumida; não mais ficamos satisfeitos com 
uma análise que se apoie firmemente sobre categorias científicas 
fundamentalmente alheias à historicidade da experiência humana. 
Tornou-se por demais evidente que a experiência não pode ser com­
preendida em categorias científicas. A tarefa é nítida: fabricar as 
categorias «históricas» adequadas às características da experiência 
vivida.
2 — Expressão
O segundo termo da fórmula experiência — expressão — com­
preensão — A usdruck — pode ser traduzido por «expressão». O usodeste termo não deve associar automaticamente Dilthey às teorias 
da expressão na arte, pois tais teorias são estruturadas em termos 
de sujeito-objecto. Por exemplo, ligamos quase automaticamente o 
termo «expressão» a «sentimento»; «exprimimos» os nossos senti­
mentos e uma teoria da expressão em arte encara geralmente a
(*) Ibid-, 140.
117
obra como uma representação simbólica de sentimentos. Words- 
worth, um representante da teoria da expressão na criação poética, 
vê o poema como um transbordar espontâneo de sentimentos pode­
rosos.
Quando Dilthey usa Ausdruck não se refere essencialmente a 
esse transbordar ou a esse sentir, mas a algo muito mais englobante. 
Para Dilthey, uma expressão não é essencialmente a encarnação dos 
sentimentos de uma pessoa, mas antes uma «expressão de vida»; uma 
expressão pode referir-se a uma ideia, a uma lei, a uma forma 
social, à linguagem — qualquer coisa que espelhe a marca da vida 
interior do homem. Não é essencialmente o símbolo de um sen­
timento.
Talvez que Ausdruck se pudesse traduzir, não por «expressão» 
mas sim por «objectificação» da mente — conhecimento, sentimento 
e vontade — do homem. O significado hermenêutico da objectifica­
ção é que, devido a ela, a compreensão pode centrar-se numa 
expressão fixa e «objectiva» da experiência vivida em vez de lutar 
pela sua captação através da introspecção. Dilthey reconhece que a 
introspecção nunca poderia servir de base para os estudos humanos 
pois a reflexão directa sobre a experiência produz quer 1) uma intui­
ção que não pode ser comunicada, quer 2) uma conceptualização 
que é ela própria expressão de uma vida interior. A introspecção 
é pois um modo pouco seguro quer de nos conhecermos a nós pró­
prios, quer de conhecermos o homem pelos estudos humanísticos. 
Os estudos humanísticos têm que necessariamente centrar-se em 
«expressões de vida»; esses estudos, centrados numa objectificação 
da vida, são intrinsecamente hermenêuticos. Em que tipo de objec­
tos poderão centrar-se os estudos humanísticos? Dilthey é peremptó­
rio quanto ao âmbito destes: «Tudo aquilo em que o espírito humano 
se objectificou cai na área das Geisteswissenschaften. O limite des­
tas é tão lato como a compreensão, e a compreensão tem o seu 
verdadeiro objecto na objectificação da própria vida (” )■
3 — A obra de arte como objectivação da experiência vivida
Se o limite dos estudos humanísticos é tão vasto, onde encaixar 
a obra de arte, e mais especificamente, a obra de arte literária? 
Dilthey classificou as várias manifestações da vida ou da experiên­
cia interior humana («a vida» em Dilthey não é algo metafísico, 
não é uma parte profunda para além da própria experiência vivida; 
a experiência humana é aquilo para além do qual a reflexão não 
deveria querer ir) em três categorias fundamentais: 1) As ideias 
(i. e. conceitos, juízos, e formas mais amplas de pensamento), são
(” ) Ibid., 148.
118
«meros conteúdos de pensamento», independentes do lugar, tempo 
e pessoa em que surgem; por esta razão, têm uma certa precisão 
sendo facilmente comunicáveis 2) As acções, são mais difíceis de 
interpretar; numa acção há uma certa meta, mas só com grande 
dificuldade podemos determinar os factores que agem na decisão 
que levou ao acto. Uma lei, por exemplo, é um acto público ou 
comunitário mas aplicam-se-lhe as mesmas dificuldades; por exem­
p lo — ao praticar uma acção não podemos saber o que decidimos 
contra essa acção. 3) Finalmente há expressões de uma experiência 
vivida que vão desde as expressões espontâneas da vida interior, 
tal como exclamações e gestos, até às expressões convencional­
mente controladas incorporadas na obra de arte.
Dilthey refere-se geralmente às primeiras duas categorias—idéias 
e acções — como «manifestações de vida» (Lebensausserungen), 
mas reserva para a terceira o termo mais específico de «expres­
sões de experiência vivida» (Erlebnisausdrücke). É nesta terceira 
categoria que a experiência interior humana chega à sua máxima 
expressão e nela a compreensão sofre o seu maior desafio.
«Como é diferente a expressão de uma experiência vivida (da 
ideia ou do acto)! Existe uma relação especial entre esta, como 
expressão da própria vida, e a compreensão que a provocou. A ex­
pressão contém mais do contexto da vida anterior (seelischen 
Zusammenhang) do que qualquer introspecção pode perceber, pois 
surge das profundidades que a consciência nunca ilumina.» (2‘)
É claro que a obra de arte, na sua flexibilidade e segurança 
ultrapassa de longe os meros gestos ou as exclamações pois os gestos 
podem ser imitados enquanto que a arte aponta para, ou exprime, 
a própria experiência, não sendo assim susceptível de imitação:
«Nas grandes obras de arte liberta-se (sich loslõst) uma visão 
(ein Geistiges) do seu criador, o poeta, o artista, o escritor, c entra­
mos num campo em que aquele que se exprime não nos pode enga­
nar. Nenhuma obra de arte verdadeiramente grande tenta retratar 
uma realidade estranha ao conteúdo interno (geisligen Gehalt) do 
seu autor. De facto, não pretende dizer-nos nada sobre o seu autor. 
É verdadeira em si mesma, mantendo-se fixa, visível, duradoura.» (2“) 
Afasta-se o problema da simulação, presente nos gestos e em 
toda a actividade ou situação humana, com o seu jogo de interesses 
em conflito, pois a obra de arte não aponta dc modo algum para 
o seu autor, mas para a própria vida. É precisamente por esta razão 
que a obra de arte é aquele objecto dos estudos humanísticos em 
que podemos confiar, o mais duradouro e o mais fértil. Com este 
estatuto fixo e objectivo torna-se possível uma compreensão segura
(” ) Ibid., 207. 
C") Ibid.
119
c artística da expressão. «Assim, nos limites do conhecimento e da 
acção, surge um círculo ou campo em que a vida se revela com 
uma profundidade inacessível à observação, à reflexão ou à teo­
ria.» (")
De todas as obras de arte, as da linguagem têm talvez maior 
poder de revelar a vida interior do homem. Devido à presença 
desses objectos fixos e imutáveis, neste caso as obras literárias, 
existe já um corpo de teoria sobre a interpretação dos textos: a her- 
menêuticd. Dilthey sustenta que os princípios da hermenêutica 
podem desbravar caminho a uma teoria geral da compreensão, por­
que «acima de tudo ... a captação da estrutura da vida interior 
baseia-se na interpretação de obras, obras em que a textura da 
vida interior se exprime plenamente» (“ ). Assim, para Dilthey, a 
hermenêutica adquire um significado novo e mais lato: torna-se 
teoria, não só da interpretação do texto mas do modo como a vida 
se revela e se exprime nas obras.
Contudo, neste caso, a «expressão» não é a de uma realidade 
individual e puramente pessoal, pois então não poderia ser perce­
bida por outra pessoa; quando a expressão é escrita utiliza a lin­
guagem, um meio que é comum àquele que compreende, e a com­
preensão ocorre em virtude de uma experiência análoga. Assim 
é possível postular a existência de estruturas gerais nas quais e 
pelas quais o conhecimento objectivo ocorre. E a expressão não 
é por conseguinte a de uma pessoa, como quando se trata de psi­
cologia, mas sim a de uma realidade social e histórica, revelada na 
experiência, a realidade social e histórica da própria experiência.
4 — A compreensão
A «compreensão» (Versteheri) tal como as outras duas palavras 
chave da fórmula de Dilthey — experiência — expressão — com­
preensão—, é usada num sentido especial. Assim «compreensão» 
não se refere à compreensão de uma concepção racional, como por 
exemplo a de um problema matemático. O termo «compreensão» 
é reservado para designar a operação na qual a mente capta «a 
mente» (Geist) de outra pessoa. Não é de modo algum uma ope­
ração puramente cognitiva da mente, é aquele momento muito espe­
cial em que a vida compreende a vida: «Explicamos por meio de 
processos puramenteintelectuais, mas compreendemos por meio da 
actividade combinada de todos os poderes mentais da apreensão.» (” ) 
O aforismo mais famoso do seu pensamento, expressa-se de um modo 
mais sucinto: «Explicamos a natureza; há que compreender o ho-
(" ) ibid.
(51) Ibid., 322. 
(n ) GS V, 172.
120
mem.» (” ) A compreensão é portanto o processo mental pelo qual 
compreendemos a experiência humana viva. É o acto que constitui 
o nossa melhor contacto com a própria vida. Tal como a experiên­
cia vivida (Erlebnis), a compreensão tem uma plenitude que escapa 
à teorização racional.
A compreensão abre-nos o universo das pessoas individuais, e 
portanto abre também possibilidades para a nossa própria natu­
reza ("). A compreensão não é um mero acto de pensamento mas 
uma transposição e uma nova experiência do mundo tal como o 
captamos na experiência vivida. Não é um acto de comparação, 
consciente e reflexivo, é antes a operação de um pensar silencioso 
que efectua a transposição pré-reflexiva de uma pessoa para a 
outra. Redescobrimo-nos a nós próprios no outro (” ). Um outro 
aspecto que realça o modo como a compreensão contrasta com toda 
a compreensão e explicação meramente científicas é que a com­
preensão tem valor em si mesma, para além de quaisquer consi­
derações práticas. Não é necessariamente um meio para qualquer 
outra coisa, é intrinsecamente boa. É só pela compreensão que 
encontramos os aspectos especificamente pessoais e não conceptuais 
da realidade. «O segredo da pessoa» atrai (— nos) em si mesmo 
pelos esforços de compreensão cada vez mais novos c profundos. 
E numa compreensão desse tipo surge o campo do individual, que 
delimita o homem e as suas criações. Aqui reside a função com­
preensiva mais adequada aos estudos humanísticos ("). Tal como 
anteriormente fizera Schleiermacher, Dilthey afirma «que os estu­
dos humanísticos» se debruçam amorosamente sobre o particular, 
por ele mesmo. As explicações científicas raramente são valorizadas 
em si mesmas, mas sim devido a qualquer outra coisa; quando certos 
tratados são apreciados por si mesmos, como é o caso do De rerum 
natura de Lucrécio vê-mo-los como chaves para a natureza mais 
íntima do homem — por outras palavras, mudamo-nos para os 
estudos humanísticos e para as categorias da compreensão, mais 
do que da mera explicação.
O sentido da historicidade na hermenêutica de Dilthey
Dilthey afirmou repetidas vezes que o homem é «um ser his­
tórico» (eingeschichtliches Wesen). Mas o que denota aqui a palavra 
histórico? A resposta é importante não só para compreendermos a 
hermenêutica de Dilthey como pela influência que teve na teoria 
hermenêutica subsequente.
(” ) Ibid., 144.
(” ) GS VII, 145, 215-16; ver D 170-71.
(” ) GS VII. 191.
(") GS V, 212-13.
121
Dilthey não concebe a história como algo passado que defron­
tamos como se fosse um objecto. A historicidade também não 
aponta para o facto, já objectivamente evidente, de que o homem 
nasce, vive e morre no decurso do tempo. Não se refere ao carác­
ter passageiro e efêmero da existência humana, que constitui um 
tema poético. A historicidade (Geschichlichkeit) significa duas 
coisas:
1) O homem compreende-se a si próprio, não pela introspec­
ção mas sim por meio de objectivações da vida. «O que o homem 
é, só a história o pode dizer.» (” ) Algures, mais detalhadamente 
diz: «O que o homem é e o que ele quer, só o experimenta no 
desenrolar da sua natureza através dos milênios e nunca até à 
última sílaba, nunca em conceitos objectivos mas sempre apenas 
na experiência vivida que brota das profundezas do seu próprio 
ser.» C') Por outras palavras, a autocompreensão do homem não 
é directa mas indirecta; tem que sofrer um desvio hermenêutico 
através de expressões fixas que datam do passado. Dependente da 
história, é essencial e necessariamente histórico.
2) A natureza humana não é uma essência fixa; em todas 
as suas objectificações o homem não se limita a pintar murais 
intermináveis nas paredes do tempo de modo a perceber em que 
é que a sua natureza sempre consistiu. Pelo contráiio, Dilthey 
concordaria com outro filósofo da vida, Nietzsche, em que o homem 
é «o animal-ainda-não-determinado» (noch nicht festgestellte Tier), 
o animal, que ainda não determinou aquilo que é (39). Para mais, 
não está simplesmente a tentar descobri-lo; ainda não decidiu o 
que há-de ser. O que há-de ser aguarda ainda as suas decisões 
históricas. Não é tanto o timoneiro de um navio já pronto como 
o arquitecto do próprio navio. A isto chamou mais tarde Ortega 
y Gasset «o privilégio ontológico» (“ ). Um homem está constante­
mente a tomar posse das expressões já formadas que constituem 
a sua herança, torna-se criativamente histórico. Este captar do pas­
sado não é uma forma de escravatura mas de liberdade, a liberdade 
de um autoconhecimento ainda mais pleno e a consciência de ser 
capaz de querer aquilo que irá ser. Visto que o homem tem o poder 
de alterar a sua própria essência, poderíamos dizer que ele tem o 
poder de alterar a própria vida; tem poderes verdadeiros e radicais 
de criação.
Uma outra conseqüência da historicidade é que o homem não 
foge à história, pois ele é o que é, na e pela história. «A totalidade 
da natureza humana é apenas história.» f11). Para Dilthey, isto tinha
(” ) GS VIII, 224.
(3«) GS VI, 57; IX, 173; também D 219.
(M) L 42.
(40) L 44.
(«) GS VIII. 166.
122
como conseqüência um relativismo histórico. Afirmnvu i|iic «nflo 6 
de todo possível recuar para além da relatividade di» consciência 
histórica ... o tipo de ‘homem’ dissolve-se e ultcru-xc no processo 
da história» (“ ). A história é em última instância uma sérlc dc 
visões do mundo, não temos padrões determinados c fixos para jul­
gar em que é que uma visão do mundo é superior a outra (*’).
Tudo isto apenas reforça o que dissemos anteriormente nobre 
a temporalidade intrínseca da compreensão: o significado coloca 
sempre num contexto horizontal que se estende pelo passado c pelo 
futuro. Gradualmente, esta temporalidade torna-se parte intrínseca 
do conceito de «historicidade» de modo que o termo acaba por 
referir-se não só à dependência do homem relativamente à história 
pelo autoconhecimento e pela auto-interpretação, pela sua finitude 
criativa na determinação histórica da própria essência, mas também 
à inevitabilidade da história e à temporalidade intrínseca dc toda 
a compreensão.
As conseqüências hermenêuticas da «historicidade» são eviden­
tes em toda a obra de Dilthey, de tal modo que Bollnow tem razão 
ao notar que, juntamente com a concepção da unidade da vida 
e da expressão, a concepção da historicidade é fundamental para 
a compreensão de Dilthey (“ ). Quando diferenciamos Dilthey dos 
outros filósofos da vida, é precisamente esta historicidade que o 
demarca de Bergson e dos outros. Dilthey deu um verdadeiro 
avanço ao moderno interesse pela historicidade. Como diz Bollnow: 
«Todos os esforços recentes para compreender a historicidade 
humana têm em Dilthey o seu início decisivo.» (4!) Resumindo, ele 
é o pai das concepções modernas da historicidade. Nem a própria 
hermenêutica de Dilthey nem a de Heidegger ou Gadamer, que 
serão abordadas resumidamente, se concebem excepto em termos 
de historicidade, especialmente de temporalidade da compreensão. 
Na teoria hermenêutica, o homem é visto na sua dependência 
relativamente a uma interpretação constante do passado, e assim, 
quase poderíamos dizer que o homem é «o animal hermenêutico» 
que se compreende a si próprio em termos de interpretação de 
uma herança e de um mundo partilhados que o passado lhe trans­
mite, uma herança constantemente presente e activante' em todas 
as suas acções e decisões. A moderna hermenêutica encontra a 
sua fundamentação teórica na historicidade.
(« ) Ibid., 6.
(“ ) GS I, 123 ff.; V 339 ff.; VIII passim; todos eles discutem a suadoutrina da visão do mundo. Pode-se encontrar uma abordagem deste tema, 
em inglês, cm PhWD 85-95.
(«) D 221.
(") L 6.
123
O círculo hermenêutico e a compreensão
As operações da compreensão são consideradas por Dilthey 
enquanto ocorrendo no interior do princípio do círculo hermenêu­
tico já enunciado por Ast e Schleiermacher. O todo recebe a sua 
definição das partes, e, reciprocamente, as partes só podem ser 
compreendidas na sua referência ao todo. O termo «sentido» é 
crucial em Dilthey: o sentido é aquilo que a compreensão capta 
na interacção essencial recíproca do todo e das partes.
Como foi já indicado, a frase fornece um exemplo nítido da 
interacção do todo e das partes e da necessidade de ambos: a partir 
do sentido das partes individuais vai-se revelando a compreensão 
do sentido do todo, que por sua vez transforma a indeterminação 
das palavras num modelo mais preciso e significativo. Dilthey 
cita este exemplo e depois sustenta que existe a mesma relação 
entre as partes e o todo da vida de cada um. O significado do todo 
é um «sentido» que deriva do significado das partes individuais. 
Um evento ou uma experiência podem alterar de tal modo as nossas 
vidas que aquilo que anteriormente tinha significado pode deixar 
de o ter e que uma experiência passada aparentemente sem sentido 
pode tornar-se rectrospectivamente significativa. O sentido do todo 
determina a função e o sentido das partes. E o sentido é algo his­
tórico; é uma relação do todo e das partes encarada por nós de 
determinado ponto de vista, num determinado tempo, para uma 
dada combinação de partes. Não é algo acima ou fora da história, 
mas a parte de um círculo hermenêutico, sempre historicamente 
definido
O sentido e a significação são portanto contextuais; são parte 
da situação. Por exemplo, o sentido da afirmação «Venho desejar 
boa noite ao meu Rei e Senhor» só num sentido trivial é clara 
e significativa, independentemente da situação em que se integra. 
O sentido da afirmação é diferente se for formulada 1) pelo criado 
velho em The Cherry Orchard, 2) pelo criado no Fausto, 3) por 
Smerdyakov em Os Irmãos Karamazov ou na sua origem literal, 
neste caso 4) Kent no R ei Lear.
Analisemos sumariamente o significado da frase no seu con­
texto. No último acto da peça, depois de terminada a batalha, tendo 
o traidor Edmund sido derrotado e estando a morrer, entra o fiel 
Kent. Exprime a sua lealdade em palavras de despedida simples 
e tocantes. Que universo significativo exprime aqui a palavra 
«Senhor»! Nele escutamos não só a relação de Kefit a Lear mas 
em ressonância, o tema da simples lealdade na ordem hierárquica 
das coisas. É claro que estas palavras são mais do que uma mera 
expressão do carácter de Kent e da sua relação com Lear; têm 
um significado funcional, pois a essa simples frase segue-se ime­
diatamente a pergunta: «Ele não está cá»? que desencadeia a acção
124
final trágica da peça. Imediatamente a atenção se centra na 
ausência nefasta de Lear e Cordelia, que leva Edmund a dizer 
que ordenou a sua morte e a fazer um esforço inútil de anular 
a ordem. Entra então o velho «Senhor», agora senhor dc si mesmo 
mas não senhor dos acontecimentos desencadeados pela ausência 
funesta de um verdadeiro poder; entra trazendo nos braços o 
tesouro que em tempos recusara como não tendo qualquer valor. 
Como mudou para Lear o sentido de «amor» e «lealdade» no 
decurso da peça! De que maneira os eventos alteraram terrivel­
mente o significado da sua decisão de dividir o reino!
O significado é histórico: mudou com o tempo; é uma questão 
de relação, sempre ligada com a perspectiva a partir da qual os 
eventos são considerados. O significado não é fixo e determinado. 
Mesmo o significado do Rei Lear enquanto peça, se altera. Para 
nós, que estamos num universo pós-hierárquico e pós-deístico e 
num contexto social muito diverso, o sentido é obviamente diferente 
do que era para os contemporâneos de Shakespeare. A história 
das interpretações de Shakespeare mostra que há um Shakespeare 
dos séculos xvu, xviii, xix e xx, tal como há uma versão aristo- 
télica de Platão, um Platão dos primeiros cristãos, um Platão me­
dieval, um Platão do século xvi e do século xvu e mesmo um Platão 
do século xx. A interpretação coloca-se sempre na situação em que 
o intérprete se coloca; o significado depende disso, por muito cir­
cunscritos que pareçam a peça, o poema ou o diálogo. Assim vemos 
como é justa a asserção de Dilthey de que pode haver vários tipos 
de sentido, mas que se trata sempre de uma espécie de coesão, de 
relação ou de força de ligação; estamos sempre num contexto 
(Susammenhang). Embora o significado seja constantemente uma 
questão de relação e de contexto, isto não significa que ele «paire 
no ar», como uma construção artística flutuante. Não é algo que 
se feche em si mesmo e que se coloque contra nós, como um objecto; 
é aquele algo não objectivo que nós objectificamos parcialmente ao 
tornarmos explícito um sentido. Diz Dilthey: «O significado surge 
essencialmente a partir da relação da parte com o todo que se baseia 
na natureza da experiência vivida O . Por outras palavras, o signi­
ficado está imanente na textura da vida, isto é, na nossa participação 
na experiência vivida; é em última instância a categoria restrita 
fundamental a partir da qual captamos a vida.» O Tal como foi 
afirmado antes, «a vida» não é algo metafísico mas sim «experiência 
vivida». De um modo muito característico, Dilthey fala-nos deste 
dado básico, a vida: «A vida é o elemento ou facto básico (Grund- 
tatsche) que deve constituir o ponto de partida para a filosofia.
(«) GS VII, 233. 
(") Ibid., 232.
125
É conhecida a partir de dentro. É aquilo que não podemos ultrapassar. 
A vida não pode ser apresentada ao tribunal da razão.» O O nosso 
acesso à compreensão da «vida» é mais fundo do que a razão pois a 
vida torna-se compreensível através das suas objectificações. Aqui, no 
domínio dos objectos, podemos construir um mundo de verdadeiras 
relações que são captadas pelos indivíduos na actualidade da expe­
riência vivida. O sentido não é subjectivo; não é uma projecção 
do pensamento ou do pensar, sobre o objecto; é a percepção de 
uma relação real adentro de um nexo anterior à separação sujeito- 
-objecto feita pelo pensamento. Compreender o sentido implica 
entrar numa relação real e não imaginária com as formas do 
«espírito» objectificado, que se encontram por todo o lado, à nossa 
volta. É uma questão de interacção da pessoa individual e do Geist 
objectivo, num círculo hermenêutico que pressupõe a actuação 
conjunta de ambos. Significado é o nome dado às diferentes espécies 
de relações desta interacção.
A circularidade da compreensão tem outra conseqüência de 
grande importância para a hermenêutica: não há realmente um 
verdadeiro ponto de partida para a compreensão, pois toda a parte 
pressupõe as outras partes. Isto significa que não há compreensão 
«sem pressupostos». Todo o acto de compreensão se dá num deter­
minado contexto ou horizonte; mesmo nas ciências, apenas expli­
camos «em termos de» um contexto referencial. A compreensão 
nos estudos humanísticos toma a «experiência vivida» como o seu 
contexto e compreensão que não tenha relação com a experiência 
vivida não é adequada aos estudos humanísticos (Geisteswissen­
schaften). Uma abordagem interpretativa que ignore a historicidade 
da experiência vivida e aplique categorias intemporais a objectos 
históricos, só ironicamente pode pretender chamar-se «objectiva» 
pois desde o início que deturpou o fenômeno.
Visto que compreendemos sempre a partir do nosso próprio 
horizonte, fazendo este parte do círculo hermenêutico, nada pode 
ser compreendido de um modo não posicionai. Compreendemos 
por uma constante referência à nossa experiência. A tarefa meto­
dológica do intérprete não é portanto ade mergulhar totalmente 
no seu objecto (o que de qualquer modo seria impossível) mas sim 
a de encontrar modos de uma interacção viável entre o nosso hori­
zonte e o horizonte do texto. Como demonstraremos, Gadamer 
dá um relevo considerável a esta questão: como é que. dentro do 
nosso horizonte, poderemos conseguir uma abertura ao texto que 
não imponha previamente sobre ele as nossas próprias categorias.
(" ) Ibid., 359.
126
O significado de Dilthey para a hermenêutica: 
conclusão
O contributo de Dilthey foi alargar o horizonte da hcrmcnôuticu 
colocando-o no contexto da interpretação dos estudos fíumunlNtlco.i. 
O seu pensamento sobre o problema hermenêutico começou muito 
na sombra do psicologismo de Schleiermacher, e só gradualmente 
concebeu uma interpretação centrada na expressão da «experiòm in» 
vivida sem referência ao seu autor. Mas quando o fez, a herme­
nêutica e não a psicologia, tornou-se a base dos estudos h u m u n ls - 
ticos. Isto satisfez dois objectivos básicos em D ilth ey . Primeiramente 
focar o problema da interpretação num objecto com um estatuto 
fixo, duradouro e objectivo; assim os estudos humanísticos podiam 
prever a possibilidade de um conhecimento objectivamente válido, 
pois o objecto em si mesmo era relativamente imutável. Segundo, 
o objecto apelava claramente para modos «históricos» de com­
preensão, mais do que para modos científicos; só podia compreen­
der-se por uma referência à própria vida, em toda a sua histori­
cidade e temporalidade. A penetração cada vez mais funda no 
significado das expressões da vida apenas ocorria através de uma 
comprensão histórica.
Isto trouxe como conseqüência para a teoria literária, o poder­
mos de novo falar significativamente na «verdade» de uma óbra. 
Como corolário, a forma não é vista em si mesma como um 
elemento mas sim como um símbolo de realidades mais íntimas. 
A arte para Dilthey é a expressão mais pura da vida. A grande 
literatura enraíza-se na experiência vivida dos mistérios da vida; 
o porquê e o como do nascimento e da morte, da alegria e da 
tristeza, do amor e do ódio, do poder e da fragilidade do homem, 
do seu lugar ambíguo na natureza. Como nota Bollnow «Quando 
valorizamos a arte porque consegue exprimir a vida, negamos a 
ideia de que a valorizamos apenas por si mesma.» f 9) Assim embora, 
a obra de arte seja em si mesma um bem e o nosso encontro com 
ela não seja um meio para qualquer outro fim, a obra não silencia 
o homem, antes fala à sua natureza íntima, relaciona-se com algo 
para além dela. Por outras palavras, a arte não é o jogo de formas 
puro e sem finalidade que alguns estetas supõem; é uma espécie 
de alimento espiritual que obriga as fontes da vida em que nos 
movemos a ganhar expressão. No título da obra de Dilthey The 
Three Epochs o f M odem Aesthetics and Its Present Task (1892) 
surge como divisa a afirmação de Schiller: «Talvez que finalmente 
pudéssemos desistir da busca da beleza, substituída total e com­
pletamente pela busca da verdade.» (” ) A arte não é fantasia poética
("■> L 74.
(5>) Die drei Epochen der modernen Asthetik und ihre heutige Aufgabc, 
GS VI.
127
nem deleite mas sim expressão da verdade da experiência vivida. 
Claro que «verdade» aqui não é usada num sentido metafísico mas 
como representação fiel da realidade interior.
Assim, a interpretação da obra de arte literária é colocada 
por Dilthey no contexto da historicidade da autocompreensão 
humana. Não só é histórica porque tem que interpretar um objecto 
herdado historicamente, mas também porque tem que compreender 
o objecto no horizonte da temporalidade de cada um e da posição 
que cada um ocupa na história. Porque a obra expressiva envolve 
a autocompreensão do homem, abre uma realidade que nem é 
«subjectiva» nem é verdadeiramente «objectiva» (i. e. separada do 
horizonte da nossa autocompreensão). Metodologicamente, isto 
confronta a interpretação com o problema de compreendermos 
o sentido de um modo exterior à dicotomização sujeito-objecto, 
característico no pensamento científico.
Muito mudou em hermenêutica desde Dilthey. Notamos em 
seu desfavor que não conseguiu libertar-se totalmente do cientismo 
e da objectividade da escola histórica que tinha procurado ultra­
passar. Hoje vemos mais claramente que a procura de um «conhe­
cimento objectivamente válido» é em si mesmo um reflexo de ideais 
científicos totalmente contrários à historicidade da nossa autocom­
preensão. Podemos mesmo defender que a própria «vida» é uma 
categoria suspeitosamente próxima do «espírito objectivo» de Hegel, 
por muito que Dilthey proteste contra o idealismo absoluto e 
tente fundamentar a hermenêutica em factos empíricos livres de 
toda a metafísica (51). Podemos criticar o facto de Dilthey ter con­
siderado a compreensão — tal como Schleiermacher — enquanto 
nova experiência e enquanto reconstrução da experiência do autor, 
sendo portanto análoga ao acto de criação. Porque o nosso acto 
de compreensão da Nona Sinfonia de Beethoven tem certamente 
características muito diferentes do acto realizado por Beethoven 
ao criá-lo. A obra na sua totalidade tem impacte; os processos da 
sua criação implicam um conhecimento que não precisamos ter 
de modo a «compreender» o que nele é «dito».
Contudo Dilthey renovou o projecto de uma nova hermenêutica 
e deu-lhe um impulso significativo. Colocou-a no horizonte da 
historicidade, adentro do qual sofreu ulteriormente um conside­
rável avanço. Colocou os fundamentos do pensamento de Heidegger 
na temporalidade da autocompreensão. Pode com razão ser con­
siderado como o pai da «problemática hermenêutica contemporâ­
nea».
( n ) A defesa de Dilthey diz essencialmente: «Hegel construiu de um modo 
metafísico; eu analiso o dado» (GS VII, 150), mas o princípio parece ser o 
mesmo: as objectificações históricas da mente revelam o homem a si mesmo.
128
9
O CONTRIBUTO DE HEIDEGGER PARA A HERMENÊUTICA 
EM SER E TEMPO
Husserl e Heidegger; dois tipos de fenomenologia
Tal como Dilthey considerou a hermenêutica no horizonte do 
seu projecto de procurar uma teoria do método para as Geistes­
wissenschaften historicamente orientada, também Heidegger usou 
a palavra «hermenêutica» no contexto da sua busca, mais ampla, 
de uma ontologia «fundamental». Poderia dizer-se que Heidegger 
defendeu as pretensões de Leben contra Geist 11a tradição desses 
dois grandes filósofos da vida, Nietzsche c Dilthey, mas dc um 
modo diferente e a um nível diferente. Tal como Dilthey, Heidegger 
queria um método que revelasse a vida nos seus próprios termos, 
e em Ser e Tempo (1927) citou apavoradoramente o objectivo de 
Dilthey de querer compreender a vida a partir da própria vida ('). 
Desde o começo que Heidegger procurou um método de ultrapassar 
as concepções de Ser defendidas no Ocidente, um método que per­
mitisse ir às raízes dessas concepções, uma «hermenêutica» que 
lhe permitisse tom ar manifestos os pressupostos sobre os quais se 
têm baseado. Tal como Nietzsche, desejava pôr em causa toda a 
tradição metafísica ocidental.
Na fenomenologia de Edmund Husserl encontrou Heidegger as 
ferramentas intelectuais inacessíveis a Dilthey ou a Nietzsche, e 
um método que explicava os processos do ser na existência humana 
de tal modo que o ser, e não simplesmente a ideologia de cada um, 
pudesse tornar-se patente. Porque a fenomenologia tinha aberto 
o campo de uma apreensão pré-conceptual dos fenômenos. Este 
novo «campo» tinha contudo um significado totalmente novo em 
Heidegger, diferente daquele que tivera em Husserl. Enquanto 
Husserl o utilizara com a ideia de tornar visível o funcionamento
(») SZ 398.
129
da consciência como subjectividade transcendental, Heidegger viu 
ne!e o meio vital do ser-no-mundo histórico do homem. Na sua 
historicidade e temporalidade viu pistas indicativas da natureza 
do ser; o ser, tal como serevela na experiência vivida, escapa às 
categorias conceptualizaníes, especializantes e intemporais de um 
pensamento centrado em ideias. O ser era o prisioneiro escondido, 
quase esquecido, das categorias estáticas do Ocidente, que Heidegger 
esperava libertar. Conseguiriam o método fenomenológico e a teoria 
fenomenológica fornecer-nos meios para essa libertação?
Em parte conseguiram; mas era grande a dívida de Heidegger 
para com Dilthey e Nietzsche; o tipo de busca que efectuava cri­
ticando a metafísica ocidental, particularmente a ontologia, torna­
va-o pouco seguro quanto ao desejo de Husserl de fazer remontar 
todos os fenômenos à consciência humana, isto é, à subjectividade 
transcendental. Heidegger defendia a facticidade do ser como sendo 
um problema ainda mais essencial do que a consciência e o conhe­
cimento humanos, enquanto que Husserl tendia a encarar a própria 
facticidade do ser como um dado da consciência (2). Um ponto de 
vista deste gênero, fundado na subjectividade, não fornecia o con­
texto em que o tipo de crítica que Heidegger tinha em mente 
pudesse ser levado a cabo com êxito. Era suficiente para uma 
revisão epistemológica de longo alcance, cujas ramificações ainda 
se fazem hoje sentir em muitos campos (3), mas não era em si 
mesmo o que Heidegger podia usar para questionar de novo o 
problema do ser.
É significativo, para uma definição de hermenêutica, que o 
tipo de fenomenologia que Heidegger desenvolveu em Ser e Tempo 
seja por vezes designado como hermenêutica fenomenológica (*). Esta 
designação é mais do que uma subdivisão da área que Husserl tinha 
em mente: pelo contrário, antes indica dois tipos de fenomenologia 
muito diferentes. É grande a dívida de Heidegger para com Husserl 
e são inúmeros os conceitos primitivos de Heidegger que podem 
ser referidos a Husserl; colocam-se no entanto num novo contexto 
e ao serviço de um objectivo diferente. Assim, seria um erro con­
siderarmos o «método fenomenológico» como uma doutrina for­
mulada por Husserl e usada por Heidegger para outros fins. Pelo 
contrário, Heidegger repensou o próprio conceito de fenomenologia 
de modo a que a fenomenologia e o método fenomenológico adqui­
rissem um carácter radicalmente diferente.
Esta diferença concentra-se na própria palavra hermenêutica. 
Husserl nunca a usou relativamente à sua obra, enquanto que
(J) WM 241.
(3) Ver Hcrbcrt Spiegclbcrg, The Phenomenological Movement.
(4) Como em ibid., I, 318-26, 339-49.
130
Heidegger afirmou em Ser e Tempo que a autêntica dimensfio de 
um método fenomenológico o torna hermenêutico; o seu projecto 
em Ser e Tempo era o de uma «hermenêutica do Dasein». A esco­
lha feita por Heidegger do termo hermenêutica — uma palavra 
carregada de associações, desde as suas raízes gregas até ao seu 
uso moderno em filologia e teologia — sugere um desvio anticicntí- 
fico fortemente contrastante com Husserl. A mesma orientação 
é transposta para a «hermenêutica filosófica» de Hans-Georg Gada­
mer, marcando a própria palavra com laivos de anticientismo.
As atitudes contrastantes relativamente à ciência podem ser 
tomadas como a chave das diferenças existentes entre Husserl e 
Heidegger. Surgem como a seqüência lógica da prática do primeiro 
nas matemáticas e do segundo em teologia. Para Husserl, a filo­
sofia tem que tornar-se uma «ciência rigorosa» (5) um «empirismo 
mais alto»; para Heidegger, todo o rigor do mundo nunca poderá 
fazer com que o conhecimento científico se torne uma meta final. 
As inclinações científicas de Husserl reflectem-se na sua busca de 
um saber apodítico, nas reduções que faz, na tendência em pro­
curar o visualizável e o concebível através da redução eidética; 
os escritos de Heidegger não mencionam virtualmente um saber 
apodítico, nem reduções transcendentais nem a estrutura do ego. 
Depois de Ser e Tempo Heidegger volta-se cada vez mais para a 
reinterpretação dos filósofos anteriores — Kant, Nietzsche, Hegel — 
e para a poesia de Rilké, Trakl, ou Hõlderlin. O seu pensamento 
torna-se mais hermenêutico, no sentido tradicional de centração 
na interpretação de textos. A filosofia em Husserl mantém-se 
essencialmente científica, e isso reflecte-se no significado que hoje 
tem para as ciências; em Heidegger, a filosofia torna-se histórica, 
é uma reconstrução criativa do passado, uma forma de interpre­
tação (6). Mesmo que Heidegger nunca tivesse designado por «her­
menêutica» a sua análise do Dasein, mesmo assim podia ser conside­
rado como um filósofo hermenêutico por excelência, pelo impacte 
que teve a última fase da sua obra.
A fronteira entre os dois tipos de fenomenologia é claramente 
traçada noutro problema: a historicidade (Geschichlichkeit). Husserl 
tinha observado a temporalidade da consciência e fornecera uma 
descrição fenomenológica do tempo interior da consciência; no 
entanto, a sua ânsia em encontrar um conhecimento apodítico 
levou-o a traduzir essa temporalidade nos termos estáticos e repre­
sentativos da ciência — essencialmente para renegar a temporalidade
(’) Ver uma das primeiras obras de Husserl Philosophie ais slrenge Wis-
srnschaft.
(°) Os dois tipos antitéticos de interpretação que Ricoeur descreve — ré- 
nilleclion du sens (desmitologização) e exercice du soupçon (dcsmitifica- 
lAo) — existem em Heidegger, embora o primeiro predomine. (Ver Dl 36-44.)
131
do próprio ser e estabelecer um campo de ideias que ultrapassassem 
o devir.
Assim, em 1962, Heidegger proclama que a fenomenologia de 
Husserl elaborou «um padrão estabelecido por Descartes, Kant e 
Fichte. A historicidade do pensamento mantém-se totalmente alheia 
a esta posição» O- Ao mesmo tempo Heidegger sentiu que a sua 
análise em Ser e Tempo «era, como ainda hoje penso (1962), uma 
subordinação ao princípio da fenomenologia, materialmente jus­
tificada» ('). A fenomenologia não precisa de ser construída como 
sendo necessariamente uma revelação da consciência; pode também 
ser um -meio de revelar o ser, em toda a sua facticidade e histo­
ricidade. Para compreendermos o que isto significa, voltemo-nos 
para a discussão que Heidegger faz da fenomenologia do § 7 de 
Ser e Tempo.
A fenomenologia enquanto hermenêutica
Na secção de Ser e Tempo intitulada «O método fenomenoló­
gico de investigação», Heidegger refere-se explicitamente ao seu 
método como sendo uma «hermenêutica». Se nos podemos inter­
rogar quanto ao significado deste facto para a fenomenologia, há 
uma outra questão que é também importante para o presente 
estudo: que significado tem isto para a hermenêutica? Contudo, 
antes de abordarmos esta questão há que explorar a redefinição 
que Heidegger dá de fenomenologia.
Heidegger remonta às raízes gregas da palavra: phainomenon 
ou phainestai, e logos. Phainomenon, diz-nos Heidegger, significa 
«aquilo que se mostra, o manifesto, o revelado (das Offenbare).» 
Pha é semelhante ao grego phos, significando luz ou brilho, «aquilo 
em que algo pode tornar-se manifesto, pode tornar-se visível» (*). 
Phenomena, portanto, é «o conjunto daquilo que se revela à luz 
do dia, ou que pode ser revelado, aquilo que os gregos identifica­
ram simplesmente com ta onta, das Seiende, aquilo que é» (10).
Este «tornar-se manifesto» ou forma de revelar algo «tal como 
é», não devia ser interpretado, diz-nos Heidegger, como uma forma 
secundária de referência — como acontece quando algo «parece ser 
qualquer outra coisa». Também não é um sintoma de algo que 
indica um fenômeno primitivo. É antes um mostrar ou um tornar 
aparente algo, tal como ele é, na sua manifestação.
O Carta a W. J. Richardson em Abril, 1962, publicada como prefácio a 
TPhT XV de Richardson.
(*) Ibid.
(e) SZ 28.
0») Ibid.
132
O sufixo logia em fenomenologia, remonta, é claro à pttltt vi >« 
grega logos. Logos, diz-nos Heidegger, é aquilo que 6 transmitido 
na fala; portanto, o sentido mais fundo delogos é deixar que ul(jo 
apareça. Não é definido por Heidegger como «razão» ou «funil» 
mento» mas antes sugere a função da fala, que torna possíveis, 
quer a razão quer o fundamento. Tem uma função apofânticu 
aponta para os fenômenos. Por outras palavras, tem uma funçOo 
de «como» visto que deixa que algo seja visto como algo.
Contudo, essa função não é livre. É uma questão de descoberta, 
ou de manifestação, do que uma coisa é; trá-la para fora do escon­
derijo, para a luz do dia. A mente não projecta um sentido no 
fenômeno; é antes o que aparece que é uma manifestação ontoló- 
gica da própria coisa. Claro que devido a uma atitude dogmática 
uma coisa pode ser forçada a ser apenas encarada no aspecto que 
desejamos. Mas deixar que uma coisa apareça como aquilo que é, 
torna-se uma questão de aprendermos a deixá-la proceder desse mo­
do, pois ele revela-se-nos. Logos (a fala) não é na verdade um poder 
dado à linguagem por aquele que a utiliza, mas sim um poder 
que a linguagem dá a essa pessoa, um meio que ela tem de ser 
captada por aquilo que através da linguagem se torna manifesto.
Portanto, a combinação de phainestai e de logos, enquanto 
fenomenologia, significa deixar que as coisas se manifestem como 
o que são, sem que projectemos nelas as nossas próprias categorias. 
Significa uma inversão da orientação a que estamos acostumados; 
não somos nós que indicamos as coisas; são as coisas que se nos 
revelam. Isto não sugere qualquer animismo primitivo, antes é 
o reconhecimento de que a própria essência do conhecimento ver­
dadeiro é ser orientado pelo poder que a coisa tem de se revelar. 
Esta concepção é uma expressão da própria intenção de Husserl 
de regressar às próprias coisas. A fenomenologia é um meio de 
ser conduzido pelo fenômeno, por um caminho que genuinamente 
lhe pertence.
Um método deste tipo deveria ser da maior importância para 
a teoria hermenêutica, pois implica que a interpretação não se fun­
damente na consciência humana e nas categorias humanas, mas 
sim na manifestação da coisa com que deparamos, da realidade 
que vem ao nosso encontro. Mas a preocupação de Heidegger era 
a metafísica e o tema do ser. Poderia um método deste tipo acabar 
com a subjectividade e com o carácter especulativo da metafísica? 
Poderia aplicar-se à questão do ser? Infelizmente a tarefa compli- 
ca-se pois o ser não é realmente um fenômeno mas sim algo mais 
lato e indefinível. Nunca pode tornar-se verdadeiramente um 
objecto para nós, dado que somos ser no próprio acto de constituir 
qualquer objecto enquanto objecto.
Contudo em Ser e Tempo Heidegger encontra uma espécie de 
saída no facto de cada um ter, com a sua existência, ao mesmo
tempo que ela, uma certa compreensão do que é a plenitude do ser. 
Não é uma compreensão fixa, antes se forma historicamente, 
acumula-se com a própria experiência de quem encontra fenômenos. 
Podemos talvez interrogar o ser analisando o modo como ele apa­
receu. A ontologia tem que se tornar fenomenologia. A ontologia 
tem que se voltar para os processos de compreensão e de interpre­
tação pelos quais as coisas aparecem; tem que descobrir o modo 
e a orientação da existência humana; tem que tornar visível a estru­
tura invisível do ser-no-mundo.
Como é que isto se relaciona com a hermenêutica? Significa 
que a ontologia deve, enquanto fenomenolgia do ser, tornar-se uma 
«hermenêutica» da existência. Mas este tipo de hermenêutica não 
se identifica com uma metodologia filológica antiquada, nem mesmo 
é a tal metodologia geral das Geisteswissenschaften prevista por 
Dilthey. Revela o que estava escondido; não constitui uma inter­
pretação de uma interpretação (que é em que consiste a explicação 
de texto) mas sim um acto primário de interpretação que faz com 
que uma coisa saia do seu esconderijo.
«O sentido metodológico da descrição fenomenológica é inter­
pretação (Auslegung, tornar aberto). O logos de uma fenomenologia 
do Dasein tem o carácter de herméneuein (interpretar), através do 
qual se tornam conhecidos ao Dasein, a estrutura do seu próprio 
ser e o significado autêntico do ser dado na sua compreensão (pré- 
-consciente) do ser. A fenomenologia do Dasein é hermenêutica no 
sentido original da palavra, que designava um trabalho da inter­
pretação.» (” )
Com este impulso a hermenêutica, transformou-se em «inter­
pretação do ser do Dasein» (” ). Filosoficamente, coloca as estru­
turas básicas da possibilidade do Dasein; é uma «análise da existen- 
cialidade da Existenz» O3), isto é, das possibilidades autênticas <me 
o ser tem de existir. A hermenêutica, diz Heidegger, é aquela fun­
ção anunciadora fundamental pela qual o Dasein torna conhecida 
para si a natureza do ser. A hermenêutica enquanto metodologia 
da interpretação dos estudos humanísticos é uma forma derivada 
que assenta na função ontológica primária da interpretação e a 
partir dela cresce. É uma ontologia regional que tem que se basear 
numa ontologia fundamental.
Efectivamente, a hermenêutica transforma-se numa ontologia 
da compreensão e da interpretação. Enquanto alguns críticos dc 
Heidegger, em nome da disciplina filológica da hermenêutica, en­
caram com certa inquietação esta deserção relativamente a uma
(>■) Ibid., 37.
(12) Ibid.
(” ) (Ibid., 38.
134
definição já aceite, o facto é que ela pode aprofundar c alargar n 
tendência histórica de definir hermenêutica de uma formo ainda 
mais lata. Porque a hermenêutica em Schleiermacher, tinlm 
procurado um fundamento nas condições comuns a todo o diálogo, 
e Dilthey tentara tornar a compreensão como um dos poderes do 
homem, um poder pelo qual a vida encontra a vida. Contudo, a 
compreensão em Dilthey não era universal; agradava-lhe a ideia dc 
uma compreensão «histórica» separada de uma compreensão cien­
tífica. Heidegger dá o impulso final e define a essência da herme­
nêutica como o poder ontológico de compreender e interpretar, o 
poder que torna possível a revelação do ser das coisas e em última 
instância das potencialidades do próprio ser do Dasein.
Dizendo de outro modo: a hermenêutica ainda é a teoria da 
compreensão, mas a compreensão é definida de um modo diferente 
(ontologicamente).
A natureza da compreensão: como Heidegger 
ultrapassa Dilthey
A compreensão (Verstehen) é um termo específico em Hei­
degger, não significando o que a palavra inglesa geralmente denota, 
nem aquilo que o termo significava em Dilthey. Em inglês, «com­
preensão» sugere simpatia, capacidade de sentir aquilo que outra 
pessoa experimenta. Falamos de um «olhar compreensivo» c com 
ele sugerimos mais do que um mero conhecimento objectivo, é 
como se participássemos na coisa percebida. Poder.qs ‘.cr cru grande 
conhecimento e uma fraca compreensão, pois a compreensão parece 
chegar ao que é essencial e, nalgumas das suas aplicações, ao que é 
pessoal. Em Schleiermacher a compreensão baseava-se na afirmação 
filosófica da identidade das realidades internas (Identiicitsphilosophie) 
de modo que ao compreendermos vibrávamos em uníssono com quem 
falava, à medida que íamos compreendendo; a compreensão tanto 
envolvia fases comparativas como divinatórias. Em Dilthey, a com­
preensão referia-se ao nível mais fundo da compreensão incluído 
na captação de uma pintura, de um poema ou de um facto, fosse 
ele social, econômico ou psicológico. Era mais do que um mero 
dado, era como que a «expressão» de «realidades internas» e em 
última instância da própria «vida».
Todas estas concepções de compreensão acarretam associações 
totalmente estranhas à definição de Heidegger. Para Heidegger. a 
compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem 
de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe. 
Não é capacidade ou o dom especial de sentirmos a situação de 
outra pessoa, nem é o poder de captar mais profundamente o signi­
ficado de «alguma manifestação da vida». A compreensãonão se
135
1
concebe como algo que se possua mas antes como um modo ou 
elemento do ser-no-mundo. Não é uma entidade no mundo, antes 
é a estrutura do ser que torna possível o exercício actual da com­
preensão a um nível empírico. A compreensão é a base de toda a 
interpretação; é contemporânea da nossa existência e está presente 
em todo o acto de interpretação.
A compreensão é assim ontologicamente fundamental e anterior 
a qualquer acto de existência. Um outro aspecto do problema está 
no facto da compreensão sempre se relacionar com o futuro; nisso 
consiste o seu carácter projectivo (Entwurfscharakter). Mas a pro- 
jecção tem que ter uma base, e a compreensão está também rela­
cionada com a situação de cada um (Befindlichkeit). Contudo, a 
essência da compreensão não está na simples captação de situação 
de cada um mas sim na revelação das potencialidades concretas do 
ser, no horizonte da situação que cada um ocupa no mundo. 
Heidegger usa o termo «existencialidade» (Existenzialitàt) para este 
aspecto da compreensão.
Uma característica importante da compreensão tal como Hei­
degger a encara, é que ela opera sempre no interior de um conjunto 
de relações já interpretadas, num todo relacionai (Bewandtnisganz- 
heit). Para a hermenêutica, as implicações deste facto são de longo 
alcance, especialmente quando relacionadas com a ontologia de 
Heidegger. Dilthey já estabelecera que a significação se referia sem­
pre a um contexto de relações (Strukturzusammenhang), exemplifi­
cando o princípio já conhecido de que a compreensão opera prefe­
rencialmente no interior de um «círculo hermenêutico» e não na 
progressão ordenada que vai das partes simples e auto-suficientes ao 
todo. Contudo, a hermenêutica fenomenológica de Heidegger, 
avança mais um passo; explora as implicações do círculo herme­
nêutico no que respeita à estrutura ontológica de toda a compreen­
são e interpretação existenciais do homem. É claro que a com­
preensão não pode conceber-se como algo metafísico, acima da 
existência sensível do homem, mas sim enquanto inseparável desta; 
Heidegger não nega a visão de Dilthey orientada para a experiência 
mas coloca-a num contexto ontológico. Isso vê-se no facto da com­
preensão não ser separável da nossa disposição. Nem tão pouco a 
podemos imaginar se o «mundo» ou sem a «significação». O ponto 
chave em Heidegger é que a compreensão se tornou ontológica. 
Um exame do conceito heideggeriano de mundo, irá clarificar este 
aspecto.
O mundo e a nossa relação com os objectos no mundo
O termo «mundo» em Heidegger não significa o meio ambiente, 
objectivamente considerado, o universo tal como aparece aos olhos
136
de um cientista. Está mais próximo daquilo a que poderíamos cha­
mar o nosso mundo pessoal. O mundo não é a totalidade de todos 
os seres mas a totalidade em que o ser humano está mergulhado; 
o ser humano encontra-se rodeado pela manifestação dessa tota­
lidade. Ela revela-se-lhe através de uma compreensão sempre englo- 
bante, anterior a qualquer captação.
Conceber o mundo separado da pessoa é totalmente contrário 
à concepção de Heidegger, pois pressupõem a separação sujeito- 
-objecto que aparece no interior do contexto relacionai a que cha­
mamos mundo. O mundo é anterior a qualquer separação da pes­
soa e do mundo num sentido objectivo. É anterior a qualquer «objec­
tividade», a qualquer conceptualização: é também anterior à .sub­
jectividade, dado que tanto objectividade como subjectividade são 
concebidas dentro do esquema sujeito-objecto.
Não podemos descrever o mundo tentando enumerar as enti­
dades que o formam; num processo desse tipo o mundo seria igno­
rado pois ele é justamente aquilo que é pressuposto em todo o 
acto de conhecer uma entidade. Todas as entidades do mundo são 
captadas como entidades em termos do mundo, sendo este algo já 
dado. As entidades que formam o mundo físico do homem não 
são o mundo mas estão no mundo. Só o homem tem mundo. 
O mundo é tão englobante e ao mesmo tempo tão fechado que se 
esquiva ao conhecimento. Vemos através dele, no entanto sem ele 
nunca nos poderíamos aperceber da manifestação das coisas. Desa­
percebido, pressuposto, englobante, o mundo está sempre presente, 
transparente, iludindo as tentativas feitas para o captar enquanto 
objecto.
Abre-se assim um novo campo à exploração — o mundo. Não 
é de abordagem fácil, pois nem a descrição das entidades empíricas 
que o constituem nem mesmo a interpretação ontológica do seu 
ser individual como tal responderão ao fenômeno mundo (M). O 
mundo é algo que é sentido «juntamente com» as entidades que 
aparecem nele; contudo, a compreensão tem que dar-se através do 
mundo. Isto é fundamental em toda a compreensão; o mundo e a 
compreensão são partes inseparáveis da constituição ontológica da 
existência do Dasein.
Tal como o mundo não é obstrutivo também não são obstrutivos 
certos objectos do mundo com os quais diariamente nos relaciona­
mos. Os instrumentos usados diariamente, os movimentos do corpo 
realizados sem pensar, todos eles se tornam transparentes. Só os 
notamos quando há qualquer ruptura. Na ocasião da ruptura pode­
mos observar um facto significativo: o sentida dos objectos está na 
relação que eles têm com uma totalidade estruturada de significados
(“ ) Ibid.. 64.
137
e de intenções inter-relacionados. Na ruptura, por um breve mo­
mento, o sentido dos objectos ilumina-se, emergindo directamente 
do mundo.
Como esta compreensão de um objecto difere de uma com­
preensão meramente intelectual! Usando o exemplo usual de Ser 
e Tempo: um martelo que se limita a estar presente é algo que 
pode ser pesado e catalogado relativamente às propriedades de 
outros martelos; um martelo partido mostra imediatamente o que 
um martelo é (15). Esta experiência sugere um princípio hermenêu­
tico: que o ser de algo se revela, não ao olhar analítico e contem­
plativo mas no momento em que bruscamente sai da penumbra 
ingressando no contexto plenamente funcional do mundo. De igual 
modo, captaremos melhor as características da compreensão, não 
através de um catálogo analítico dos seus atributos, nem no 
decurso do seu funcionamento adequado mas sim quando há qual­
quer ruptura, quando esbarra contra uma parede, talvez quando 
lhe falta algo que deveria ter.
A significação pré-predicativa, compreensão 
e interpretação
O fenômeno da ruptura que por momentos esclarece o ser de 
um instrumento enquanto instrumento, aponta, como acabámos de 
ver, para um «mundo» em grande parte imperceptível, no qual vive­
mos. Este mundo é mais do que apenas o campo das operações 
pré-conscientes da mente aquando da percepção; é o campo em 
que as actuais resistências e as possibilidades da estrutura do ser 
moldam a compreensão. É o campo onde a temporalidade e a his­
toricidade do ser estão radicalmente presentes, é o lugar em que o 
ser se traduz em significação, em compreensão e interpretação. 
Numa palavra, é o campo do processo hermenêutico, processo pelo 
qual o ser se tematiza enquanto linguagem.
Como foi dito, a compreensão actua numa fabricação de 
relações (Bewandnisganzheit). Heidegger inventou o termo «signifi­
cação» (Bedeutsamkeit) para designar a base ontológica que permite 
compreender essa fabricação de relações. Como tal, forneceu às 
palavras a possibilidade ontológica de terem um significado pleno 
de sentido; é a base da linguagem. Com isto Heidegger prova que 
a significação é algo mais fundo do que o sistema lógico da lin­
guagem, funda-se sobre algo anterior à linguagem — e que se insere
(ls) Ibid., 69. WB Macomber vê o martelo partido como uma imagem 
clrnvc do pensamento de Heidegger; ver o seu esclarecedor estudo The Ana- 
lomy of Disitlusion sobre a noção heideggeriana de verdade.
138
no inundo — a totalidade relacionai Por muito que as palavras 
possam moldar ou produzir sentido, apontam sempremais além 
do que o seu próprio sistema, para uma significação que já reside 
na totalidade relacionai do mundo. A significação portanto, não é 
algo que o homem dê a um objecto; é aquilo que um objecto dá 
ao homem, fornecendo-lhe a possibilidade ontológica das palavras 
e da linguagem.
A compreensão tem que ser vista inserida neste contexto, e a 
interpretação é simplesmente tornar explícita a compreensão. A in­
terpretação não é pois uma questão de imprimir valor a um objecto 
isolado, pois aquilo que encontramos surge como já visto numa rela­
ção particular. Mesmo na compreensão, as coisas no mundo são 
vistas como isto ou como aquilo. A palavra como explicita-se pela 
interpretação. O fundamento da compreensão é anterior a toda a 
afirmação temática. Heidegger di-lo resumidamente: «Toda a visão 
simplesmente pré-predicativa do mundo invisível do que está ‘íi 
mão’ e iá em si mesma uma visão ‘compreensiva interpreta- 
tiva’.» (16)
Quando a compreensão se torna explícita como interpretação, 
como linguagem, entra em acção um outro facto extra-subjectivo, 
pois «a linguagem já esconde em si mesma um modo elaborado dc 
ideação», uma «maneira de ver já moldada» (17). A compreensão c 
a significação conjuntamente constituem, a base da linguagem e da 
interpretação. Em trabalhos posteriores dá-se ainda mais ênfase à 
relação entre linguagem e ser, de modo a considerar o próprio ser 
como lingüístico: Heidegger nota por exemplo, cm «Introdução à 
Metafísica» que «as palavras e a linguagem não são envólucros com 
que se embrulham as coisas para o comércio daqueles que escrevem 
e falam. É pelas palavras e pela linguagem que as coisas ganham 
ser e existem» (’*). Este é o sentido em que devemos interpretar a 
afirmação muito comum de Heidegger, «A linguagem e a casa do 
ser» (” ).
Assim a compreensão tem uma certa «estrutura prévia» que 
actua em toda a interpretação. Isto torna-se muito evidente na 
análise que Heidegger faz da pré-estrutura trifacetada da compreen­
são. Não precisamos de a expor aqui, visto que o seu carácter e
('*) «Alies vorprãdikative schlichte Sehen des Zunhandcnen ist an ihm 
selbst schon vertstehend-auslegend» (SZ 149).
(’7) «Die Sprache je schon eine ausgebildete Begrifflichkeit in sich birgt» 
(ibid., 157).
('*) IM 13.
(») p l — BH 53. A Carta começa na p. 53; assim, as citações das pági­
nas anteriores são de PL e as posteriores de BH.
significado essenciais estão implícitos no que já dissemos sobre o 
mundo e sobre a significação (20).
A impossibilidade de uma interpretação 
sem pressupostos
A estrutura prévia da compreensão, sempre interpretada e inse­
rida no mundo, ultrapassa o modelo mais antigo da situação inter- 
pretativa em termos de sujeito-objecto. De facto, levanta graves 
questões à validade básica de uma descrição interpretativa em ter­
mos da relação sujeito-objecto. Também levanta questões ao que 
devemos entender por interpretação objcctiva, ou «interpretação 
sem pressupostos». Heidegger coloca a questão de um modo claro: 
«A interpretação nunca é a captação sem pressupostos de algo pre­
viamente dado.» (J1)
A esperança de uma interpretação «sem preconceitos e sem 
pressupostos» desapareceu ultimamente, face ao modo como a com­
preensão opera. O que aparece do «objecto» é o que deixamos que 
apareça, é aquilo que a tematização do mundo actuante na com­
preensão, traz à luz. Seria ingênuo pretender que «o que ali está 
realmente» é «auto-evidente». A própria definição de auto-evidência 
assenta num corpo de pressupostos que passam despercebidos, mas 
que estão presentes em toda a construção interpretativa feita pelo 
intérprete «objectivo» e sem «pressupostos». É este corpo de pres­
supostos já dados e admitidos que Heidegger põe a nu na análise que 
faz da compreensão.
Na interpretação literária, tal facto significa que o intérprete 
mais «destituído de pressupostos» de um texto de poesia lírica tem 
já posições prévias. Mesmo quando aborda um texto, pode já tê-lo 
considerado como um certo tipo de texto, digamos, como um texto 
lírico, e assim coloca-se logo na posição que considera adequada 
a um texto desse tipo. O seu encontro com a obra não se dá num 
contexto exterior ao tempo e ao espaço, exterior ao seu próprio 
horizonte de experiências e de interesses; dá-se sim num tempo 
e num lugar determinados. Por exemplo, há uma razão pela qual 
se voltou para este texto e não para outro qualquer, e assim aborda 
o texto colocando-lhe perguntas, e não em branco.
É pois importante lembrarmo-nos que, a pré-estruturação da 
compreensão não é simplesmente uma propriedade da consciência
C2») Ver SZ 150-53, esp.: «Die Auslegung von Etwas ais Etwas wesenhaft 
durch Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff fundiert» p. 150; e «Sinn ist das durch 
Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff (a estrutura tri-facetada da pré-compreensão) 
strukturierte Woraufhin des Entwurfs, aus dem her etwas ais etwas verstàndlich 
wird» (p. 151).
C1) Ibid.. 150.
140
que se coloca diante de um mundo já dado. Considerar as coisas 
deste modo seria cair no modelo interpretativo do sujeito-objecto, 
que a análise de Heidegger transcende. A estrutura prévia assenta 
preferentemente, no contexto do mundo que já contém sujeito e 
objecto. Heidegger descreve a compreensão e a interpretação de 
modo a colocá-las anteriormente à dicotomia sujeito-objecto. 
Discute como é que as coisas começam a ser vistas através do signi­
ficado, da compreensão e da interpretação. Discute aquilo a que 
poderíamos chamar a estrutura ontológica da compreensão.
A hermenêutica, como teoria da compreensão, é consequente­
mente uma teoria da revelação ontológica. Pois a existência humana 
é em si mesma um processo de revelação ontológica. Heidegger 
não permite que encaremos o problema ontológico separadamente 
da existência humana. A sua análise junta a hermeneutica à onto­
logia existencial e à fenomenolog.ia e aponta para um fundamento 
da hermenêutica que não se baseia na subjectividade mas na facti­
cidade do mundo e na historicidade da compreensão.
O carácter derivativo das asserções
Uma conseqüência ulterior das considerações que temos vindo 
a abordar e de considerável importância hermenêutica está na 
discussão que Heidegger faz das asserções lógicas — e, extensiva­
mente, da própria lógica. Para Heidegger um «juízo» (Aussage) 
não é uma forma fundamental de interpretação; ele assenta cm 
operações anteriores de compreensão e de interpretação da — com­
preensão — prévia. Sem eles, as asserções não teriam sentido.
Heidegger dá um exemplo: «O martelo é pesado.» Na própria 
asserção, diz ele, já actua um determinado modo de concepção, 
o modo lógico. Antes de qualquer interpretação ou análise real­
mente visíveis, a situação foi estruturada em termos lógicos para 
se adequar à estrutura de uma asserção. O martelo foi já interpre­
tado como uma coisa com propriedades, neste caso o peso. A estru­
tura da frase, na asserção, com o seu modelo de sujeito, cópula e 
adjectivo predicativo, colocou logo o martelo diante de nós, como 
um objecto, como algo que possui propriedades.
Mas os processos fundamentais de interpretar o mundo não 
ocorrem nas asserções lógicas e nos juízos teóricos. Muitas vezes 
as palavras estão ausentes, como quando pegamos num martelo 
e o pomos de parte, sem palavras. Isto é um acto interpretativo 
mas não é uma asserção. Continuando com o exemplo do martelo 
Heidegger interroga-se como é que surge uma asserção:
«O martelo que possuímos no ‘pré-adquirido’ está à mão como 
ferramenta. Quando o seu ser se torna ‘objecto’ de uma asserção, 
com a própria construção da asserção dá-se uma mudança no ‘pré-
141
-adquirido’. A tendência imediata para pensar ‘com quê’ torna-se o 
‘sobre quê?’ de uma asserção referencial. A visão do objecto na 
pré-compreensão centra-se agora no manipulável deste estar à mão. 
E o ‘estar à mão’enquanto tal, passa a esconder-se.» (2!)
A revelação do martelo como objecto, é simultaneamente uma 
ocultação do martelo como instrumento. O martelo como objecto 
é arrancado do seu contexto vivo, e a sua essência como instru­
mento que pode martelar, é escondida.
O exemplo do martelo pode ser usado para clarificar a distinção 
de Heidegger entre as formas «apofânticas» e «hermenêuticas» da 
palavra «como». No contexto de «estar à mão», o martelo desa­
parece como objecto sendo substituído pela função que tem como 
instrumento; não o abordamos como um objecto mas como um 
instrumento. O «como» que se limita a apresentar o martelo como 
um objecto à mão, como algo que se apresenta ao nosso olhar e 
para o qual apontamos, é o «como apofântico». O martelo que desa­
parece na sua função como instrumento representa o «como-exis- 
tencial-hermenêutico». O «como apofântico» assinala uma mudança 
subtil na compreensão, encaminhando-a para um estádio de designa­
ção objectiva, uma designação que já não relaciona o martelo com 
a totalidade primordial de um contexto vivo, relacionai (o Bewand- 
tnisganzheit); corta-o do campo da significação no «estar à mão» e 
coloca o fenômeno à nossa frente, como algo que apenas pode­
mos ver.
Heidegger exige que avancemos para um «como» mais original. 
«Devíamos examinar com mais cuidado» diz ele, «o que Aristóteles 
pretendia com ‘unir e separar’ na unidade que ambos formam, e 
ao mesmo tempo, atender ao fenômeno de qualquer coisa como 
qualquer coisa.» (” ) De acordo com esta estrutura, tomamos con­
juntamente uma coisa e outra a partir da qual a primeira é com­
preendida, de modo a que a interpretação e a articulação formem 
uma unidade. Destruir a unidade original e ignorar o «como» mais 
original, abre caminho a uma mera «teoria do juízo» (Uhrteilstheo- 
rie), uma teoria que considera as asserções como mera ligação e 
separação de ideias e conceitos, uma teoria que se mantem ao nível 
superficial das realidades objectivas, «à mão» (M). Afirmar o «como- 
-existencial-hermenêutico» primordial, é reconhecer que as asserções 
derivam todas de um nível anterior de interpretação, enraizando-se 
todas elas nesse nível. É ver que as asserções só têm sentido quando 
consideradas nas suas raízes existenciais.
Verificamos a importância desta distinção ao examinarmos o 
modo como actualmente a linguagem é tratada nas «ciências» da
(“ ) Ibid., 157-8. 
(” ) Ibid.. 159. 
(«) Ibid.
142
linguagem. Isto torna-se especialmente evidente se alentarmos como 
são insuficientes todas as definições de linguagem que se mantêm 
ao nível das asserções e da lógica, ou que adoptam uma visão ins­
trumental da linguagem como mera consciência manipuladora dc 
juízos e de ideias. Porque o verdadeiro fundamento da linguagem 
ê o fenômeno da fala, onde algo se revela; esta ê a função (herme­
nêutica) da linguagem. Considerando a fala como ponto de partida, 
remontamos ao evento em que a palavra funciona como palavra, 
remontamos ao contexto vivo da linguagem. Gerhard Ebeling repete 
a perspectiva de Heidegger quando diz: «A própria palavra tem 
uma função hermenêutica.» (” ) Dc facto, a função hermenêutica 
primordial da linguagem torna-se um factor central no último Hei­
degger e na Nova Hermenêutica Teológica. Esta visão da linguagem 
significa que a compreensão, mais uma vez como Ebeling a con­
sidera, «não é compreensão da linguagem mas compreensão através 
da linguagem» ("). Nunca é demais o valor teológico atribuído a 
esta perspectiva; pois ela restaura a ênfase dada à função da fala (” )•
A linguagem como fala deixa de ser um corpo objectivo de 
palavras que manipulamos como objectos; toma o seu lugar no 
mundo «do que está à mão». É claro que pode passar para a objec­
tividade daquilo que está diante de nós como um mero objecto, 
mas essencialmente, a linguagem é encontrada pelo homem como 
algo «à mão», transparente, contextual.
Contudo, a linguagem como fala não deve ser encarada como 
expressão de uma «realidade interior». É uma situação que se torna 
explícita nas palavras. Mesmo a linguagem poética não é um 
veicular de pura interioridade, mas um partilhar do mundo. Como 
revelação do ser no mundo e não daquele que fala, não é nem um 
fenômeno subjectivo nem um fenômeno objectivo, é simultanea­
mente ambos, pois o mundo é anterior a ambos e engloba ambos.
(“ ) WF 318; NH 93-94.
( J') Ib id .
(Jr) Ver cap. 2 sobre o significado de hermeneuin «como dizer» ou «anun­
ciar». Heidegger acentua esta dimensão primordial. Ver também Gerhard Ebeling 
Theology and Proclamation onde a palavra «proclamação» tem este significado.
143
10
O ÜLTIMO CONTRIBUTO DE HEIDEGGER PARA A TEORIA 
HERMENÊUTICA
Mesmo que Heidegger não tivesse escrito mais nada depois de 
Ser e Tempo, o seu contributo para a hermenêutica teria sido 
decisivo pois nessa obra ele coloca o problema da compreensão num 
contexto radicalmente diferente. Como modo fundante de existir, 
transcende os limites definicionais em que Dilthey o colocara ao 
concebê-lo como a forma histórica contra a forma científica da 
compreensão. Heidegger foi mais longe defendendo que toda a 
compieensão é temporal, intencional, histórica. Ultrapassou con­
cepções anteriores ao encarar a compreensão, não como um pro­
cesso mental mas como um processo ontológico, não como um 
estudo de processos conscientes e inconscientes mas como uma 
revelação daquilo que é real para o homem. Antes dele, aceitávamos 
simplesmente como certa a definição prévia daquilo que era real, 
e só depois perguntávamos como é que os processos mentais colo­
cavam essa realidade; ora Heidegger veio provar que a compreensão 
é um passo prévio indicativo do acto de «fundamentação — revela­
ção» da realidade, com o qual se completa a definição anterior. 
Um dos últimos temas de Heidegger é o esforço para ultrapassar o 
facto que funda a realidade, facto sobre o qual hoje se tematiza o 
próprio ser.
«Todo o grande poeta faz poesia a partir de um só poema» diz 
Heidegger em Unterwegs zur Sprache (l) e dado que o fenômeno 
originário é essencialmente poético, todo o grande pensador enuncia 
um único pensamento que se mantém como algo nunca totalmente 
dito. Num certo sentido, podemos considerar os últimos escritos de 
Heidegger como uma série de notas de rodapé a Ser e Tempo, 
tentando continuamente a mesma procura de acesso ao ser, apro­
fundando e tornando mais radicais as intuições da sua obra-prima.
0) US 37.
145
Transforma-se talvez no filósofo mais poético e mais hermenêutico 
desde Platão; contudo, a busca essencial do seu pensamento não 
sc altera, apenas se revela mais plenamente. De facto, ao com­
preendermos a focalização de Heidegger na compreensão e suas 
articulações, compreendemos também porque é que os últimos escri­
tos se preocuparam com o «pensamento» e por que razão Heidegger 
define o pensamento em termos de resposta, mais do que de mani­
pulação de ideias. É usual considerar uma «viragem» no pensamento 
de Heidegger. Contudo o seu pensamento quando considerado de um 
ponto dê vista actual, é constituído por uma só peça. Ser e Tempo 
é o soio a partir do qual se desenvolve a última fase do seu pen­
samento. Do início ao fim da sua obra, Heidegger preocupa-se com 
o processo hermenêutico, pelo qual o ser se revela. Isto foi abor­
dado em Ser e Tempo como uma fenomenologia do Dasein e tor- 
nou-se, em obras subsequentes, numa exploração do não ser, da 
própria palavra ser, de concepções quer gregas quer actuais de ser, 
de verdade, de pensamento e de linguagem. É um facto aceite que 
Heidegger se tornou mais poético, obscuro e profético nos seus 
últimos escritos, mas que a revelação do ser se mantem nele como 
um tema cons'.ante.
Nos últimos escritos, o carácter hermenêutico do pensamento 
de Heidegger apresenta outras orientações mantendo-se no entanto 
hermenêutico, tornando-se mesmohermenêutico, no sentido de se 
preocupar com a exegese. A temática é ainda «como foi que o ser 
se tornou compreendido» e «corno foi que se articulou em termos 
estáticos e essencialistas», mas o objecto da interpretação afasta-se 
de uma descrição geral do contacto quotidiano do Dasein com 
o ser, enveredando pela metafísica e pela poesia. Cada vez mais se 
volta para a interpretação de textos; na história da filosofia oci­
dental, poucos pensadores deram tanta importância, no interior da 
sua filosofia, à exegese dos textos, especialmente à exegese dos 
fragmentos antigos. E mesmo que Heidegger não tivesse dado o 
contributo filosófico fundamental que deu à teoria da compreensão 
no seu Ser e Tempo, poderia no entanto continuar a ser designado 
como o mais hermenêutico dos filósofos ocidentais.
Talvez que esta abordagem se deva à natureza intrinsecamente 
hermenêutica da tentativa de lidar com o «ser» se este for abordado 
no contexto do processo de compreensão, pelo qual as coisas se 
revelam. E torna-se mais hermenêutico se quisermos ultrapassar o 
«texto» do pensamento ocidental, indo para os problemas que deram 
origem a essa tradição. Então, dá-se a tentativa de destacar o sen­
tido oculto do texto, não nos basta a exploração de um sistema nos 
seus próprios termos. É isto que Heidegger tenta fazer dando-nos 
simultaneamente a sua própria perspectiva quanto à posição cor­
recta da hermenêutica no que respeita ao homem, na relação que 
este tem com o ser e com a tradição. Uma exposição pormenorizada
146
do pensamento do último Heidegger ultrapassaria o âmbito «IchIc 
capítulo O ; no entanto focaremos resumidamente nas restantes sei 
ções alguns temas fundamentais e o significado que tiveram para n 
teoria hermenêutica.
Crítica ao pensamento apresentacional, subjectismo 
e terminologia
Heidegger em Ser e Tempo tinha já sugerido a orientação das 
suas últimas críticas ao pensamento apresentacional, na discussão 
que faz do carácter derivado das «asserções» enquanto tendentes a 
apresentar as coisas como algo para que olhamos. Aí mostra como, 
no interior da estrutura prévia da compreensão, a visão do objecto 
tende subtilmente a ordenar-se segundo as exigências do pensamento 
lógico e conceptual, e como por exemplo um martelo é arrancado 
ao seu contexto vital das (Zuhandene) e colocado no campo abs- 
tracto do pensamento apresentacional. Em escritos posteriores, Hei­
degger tenta sintetizar como é que o pensamento ocidental chegou 
à definição de pensamento, de ser e de verdade em termos essen­
cialmente apresentacionais.
Em «A doutrina da verdade em Platão» Heidegger aborda a 
famosa alegoria da caverna. Em todos os seus aspectos a alegoria 
sugere que a verdade é desocultação, pois saímos da caverna, para 
a luz, e regressamos à caverna; mas a concepção de verdade como 
«correspondência» acabou por predominar sobre a concepção mais 
dinâmica da verdade como desocultação. A verdade transformou-se 
em visão correcta e o pensamento transformou-se numa questão de 
colocação de ideias face à visão da mente, isto é, transformou-se 
em manipulação adequada de ideias.
Com esta visão do pensamento e da verdade, armou-se o palco 
para todo o desenvolvimento da metafísica ocidental, para a abor­
dagem teórica da vida — ideologicamente, em termos de ideias:
«A essência da ideia reside na aparência e na visibilidade. Isto 
leva a que se realize plenamente em cada ser, a presença do ‘quid’ 
que cada ser é. Apresenta-se na ‘quiddidade’ do ser. A natureza do 
ser é considerada contudo como sendo o estar ‘presente’. Por essa 
razão, o ser para Platão tinha a sua natureza mais autêntica ‘aquilo 
que é’. Uma terminologia posterior diz-nos que a quidditas é o ver­
dadeiro esse; a essência e não a existência. Assim, aquilo que se
(r) Ver no entanto The Anatomy of Desillusion de W. B. Macomber, 
assim como a discussão detalhada que Richardson faz em TPhT; também reco­
mendamos vivamente a obra (em alemão) de Otto Poggeler Der Denkwtg 
Martin Heideggers. Em inglês, há discussões interessantes cm Koclcclmnn, 
Langer, Versényi e outros, citados na bibliografia.
147
torna visível enquanto ‘ideia’ para aquele que contempla, é a reve­
lação da coisa tal como aparece. Assim, a coisa revelada é desde o 
começo (e apenas) captada como aquilo que se percebe quando 
percebemos a ideia de algo, aquilo que é conhecido no acto de 
conhecer.» (’)
Heidegger sustenta que, à medida que tudo se ordena de acordo 
com a concepção das ideias e com a ideação, e, mais importante 
ainda, de acordo com o conceito de razão, vai-se perdendo a con­
cepção primitiva da verdade como revelação. O homem ocidental 
já não sente o ser como algo que constantemente aparece e desa­
parece do seu alcance; antes o vê sob a forma da presença estática 
de uma ideia. A verdade torna-se algo que se vê: «orthotes, correcção 
da percepção e da asserção» O . Isto significa que o pensamento 
que visa a verdade, não se fundamenta na existência mas sim na 
percepção de uma ideia: o ser não é concebido em termos de expe­
riência vivida mas em termos de ideia — estaticamente, como pre­
sença constante e atemporal.
Poder-se-ia dizer que o ocidente construiu a metafísica e a 
teologia sobre esse rochedo. Logo em 1921, nas suas conferências 
(não publicadas) sobre Augustinus und der Neuplatonismus, Hei­
degger traça o conflito patente no livro X das Confissões, entre 
um cristianismo que surge da facticidade da experiência vivida, 
cuja realização não está tanto no conhecimento de Deus como no 
viver n ’Ele, e um cristianismo orientado para a «fruição» de Deus 
como o Summum bonum (i. e. a ideia de fruitio Dei). Esta última 
concepção do Ser e da vivência de Deus, mais estática e apresen- 
tacional, liga-se directamente ao neo-platonismo. Quando a expe­
riência de Deus é definida como fruitio Dei, e quando Deus é fruído 
com a «paz» que cala a inquietude do coração, então Ele é colo­
cado fora do fluxo da vida, factual e histórica, e a Sua vitalidade 
enquanto Deus da experiência vivida é silenciada. Já não é o Deus 
vivo, temporal, finito, disponível. Está meramente «disponível» 
para ser contemplado e fruído; Deus torna-se um Ser Eterno fora 
e acima do tempo, do lugar e da história (s).
Numa conferência realizada em Junho de 1938, intitulada «A 
fundamentação da imagem moderna do mundo pela metafísica», 
Heidegger traça as conseqüências que teve esta abordagem geral da 
verdade e do pensamento quando unida com a perspectiva carte- 
siana, pois com Descartes, o pensamento ocidental sofre uma nova 
e decisiva viragem. A verdade para Descartes, é mais do que mera 
adequação entre aquele que conhece e o que é conhecido, é a cer-
(s) PL-BH 35.
(«) Ibid. 42.
(") 1’oggclcr, pp. 38-45; Ho 338-39.
148
teza racional que o sujeito tem desta adequação. Tal facto, tiu/ 
como conseqüência o facto de o sujeito humano ser considerado 
como o último ponto de referência no que se refere ao estatuto dc 
tudo aquilo que é visto. Isto significa que cada ser apenas o 6 cm 
termos da polaridade sujeito-objecto entre a consciência e os objei 
tos da consciência. Aquilo que é conhecido não é visto, em última 
instância, como uma entidade ontologicamente independente que se 
apresenta tal qual «é», revelando-se-nos e manifestando-se-nos no 
poder que tem de existir; aquilo que é conhecido antes é encarado 
como objecto, como algo que o sujeito consciente apresenta a si 
próprio. Porque o estatuto do mundo se fundamenta na subjectivi­
dade humana passa a centrar-se no sujeito, e a filosofia passa a 
centrar-se na consciência. A este síndroma chama Heidegger o «sub- 
jectismo» moderno (Subjektitãt) (').
Subjectismo é um termo mais lato do que subjectividade pois 
significa que o mundo é considerado como sendo essencialmente 
medido pelo homem. Nesta perspectiva o mundo tem sentido ape­
nas relativamente ao homem,cuja tarefa é dominar o mundo. São 
muitas as conseqüências do subjectismo. Em primeiro lugar as ciên­
cias ganham relevo pois servem a vontade de domínio presente no 
homem. Contudo, dado que no subjectismo o homem não reconhece 
qualquer meta ou sentido que não estejam fundamentados na sua 
própria certeza racional, fica fechado no círculo do próprio mundo 
em que se projecta. Os objectos de arte são vistos como «objectifi- 
cações» da subjectividade, ou como «expressões» da experiência 
humana. Uma cultura só pode ser a objectificação colectiva daquilo 
que os sujeitos humanos valorizam, uma projecção da actividade 
sem fundamento do homem. Nem a actividade cultural nem a 
actividade individual humanas podem neste contexto ser encaradas 
como resposta à actividade de Deus (ou do Ser), dado que tudo 
tem fundamento no homem. Em última instância, mesmo Deus é 
redefinido como «o infinito, incondicionado e absoluto» e o mundo 
é dessacralizado; a relação do homem com Deus é vista como sendo 
meramente a sua «experiência religiosa» particular. Enquanto a
(') Subjectismo distingue-se de subjectivismo pois constitui quer a objecti­
vidade do objecto quer a subjectividade do sujeito. A subjectividade implica 
necessariamente que o ego humano seja o sujeito que se apresenta e esta subjec­
tividade é a forma que toma o subjectismo em Descartes. Mas Heidegger vê o 
subjectismo como residindo em toda a posição filosófica que toma o fenômeno 
humano como o seu último ponto de referência, seja ele o colectivismo, o abso- 
lutismo ou o individualismo, O subjectismo está latente na interpretação pla­
tônica do ser, dado que uma ideia é algo visto por alguém. Mas com Descartes 
a situação explicita-se — o homem não é aquele que recebe emanações do ser 
que lhe é anterior (i. e., o homem já não é uma criatura); ele 6 antes um 
ser criador, o fundamento de um mundo que ele próprio forma e projecta. 
Ver TPhT 320-30.
149
antiga concepção da fruitio Dei purificava Deus colocando-o fora 
do fluxo da vivência quotidiana, o subjectismo faz de Deus uma 
projecção do homem, considerando a relação com Ele como sendo 
um sentimento humano de dependência O-
As modernas «filosofias dos valores» não são mais do que con­
seqüências da metafísica do subjectismo. Os valores são conceitos 
substitutivos que pretendem completar «coisas» (agora que o seu 
valor se fundamenta subjectivamente) com o sentido que perderam 
ao colocarem-se no contexto do subjectismo. Perdeu-se o sentido da 
sacralidade das coisas, com ou sem o homem; o estatuto das coisas 
reduziu:se à utilidade que têm para o homem. Quando o homem 
«atribui» valor aos objectos, filosoficamente falando há apenas uma 
pequena distância relativamente à visão dos próprios valores en­
quanto objectos. Um valor é então algo que se coloca sobre os 
objectos no mundo, como se fosse uma camada de tinta. A ciência 
e o humanismo transformam-se em divisa, numa idade em que o 
homem é verdadeiramente o centro e a medida de todas as coisas.
Como definir o pensamento num contexto deste tipo? Nova­
mente em termos apresentacionais que remontam a Platão. Como 
conceber a verdade? Em termos de correcção, de certeza de que 
o juízo sobre algo corresponde ao modo como o objecto se nos apre­
senta. Esta apresentação não pode ser realmente uma auto-reve- 
lação de algo, pois é captada pelo sujeito nesse acto de poder exces­
sivo que é a objectificação. Por conseqüência, diz-nos Heidegger, 
os grandes sistemas metafísicos tornam-se expressões da vontade, 
quer formulados em termos de razão (Kant), liberdade (Fichte), 
amor (Schelling) quer em termos de vontade de poder (Nietzsche) (*).
A vontade de poder que se fundamenta no subjectismo não 
conhece qualquer valor absoluto, apenas tem sede de um poder 
cada vez maior. Nos tempos que correm, expressa-se num desejo 
frenético de domínio tecnológico. No entanto, o impacte do pen­
samento tecnológico é mais subtil e universal, pois temos vindo 
gradualmente a considerar o próprio pensamento em termos de 
domínio. O pensamento torna-se tecnológico, molda-se às exigên­
cias de conceitos e de ideias que permitirão um controle sobre os 
objectos e sobre a experiência. Pensar já não é uma questão de 
resposta directa ao mundo, antes se coloca como tentativa incons­
ciente para o dominar; o pensamento não se mantém nem actua 
como protector dos ricos da terra, antes esgota o mundo ao tentar 
recstruturá-lo de acordo com as finalidades do homem. Um rio, por 
exemplo, deixa de ter valor intrínseco e o homem orienta o seu 
curso para satisfazer os seus objectivos, construindo grandes bar-
C7) Ho 70.
(•) VA 114-122; TPhT 381.
150
rager.s e descarregando nele resíduos venenosos. Os deuses 1'unirum 
e a terra está a ser implacavelmente consumida. É assim que se 
gundo Heidegger se dá o desenlace melancólico do desenvolvimento 
do pensamento desde Platão, passando por Descartes e Nietzsche 
até aos nossos dias.
A hermenêutica como teoria da compreensão e da interpretado 
é directamente afectada por essas considerações, pois quando o pro­
blema interpretativo é abordado no interior do contexto do pensa­
mento tecnológico, a interpretação fornece meios para um domínio 
conceptual do objecto. Quando o pensamento é definido como mani­
pulação de ideias e de conceitos, deixa de ser criativo passando a 
ser manipulatório e inventivo. Quando o subjectismo se coloca na 
base da situação interpretativa, o que é ser interpretado senão uma 
objectificação? O conceito de verdade como adequação enquadra-se 
Icgicameníe nestas abordagens, e a verdade torna-se mera «cor- 
recção».
Portanto, para a teoria da interpretação, é muito diferente con­
ceber o pensamento em termos estritamente ideacionais pois assim 
interpretação não lida com uma matéria desconhecida que tem que 
ser clarificada mas sim com a clarificação e a avaliação de dados 
já conhecidos. A sua tarefa não é uma primeira «revelação» da 
coisa mas sim chegar à interpretação correcta, entre as várias pos­
síveis. Tais pressupostos tendem a manter-nos sempre na claridade 
daquilo que já é conhecido, em vez de construir uma ponte entre luz 
e escuridão. A linguagem passa a ser concebida como um sistema 
de signos aplicados a um conjunto de objectos já conhecidos.
Ora para Heidegger, todo este conjunto de definições — de lin­
guagem, de verdade, de pensamento — e os conceitos de com­
preensão e de interpretação que sobre ele se constrói, representam 
uma tematização da doutrina platônica da verdade. Desde Platão 
que o pensamento ocidental e especialmente a metafísica, repre­
sentam o «texto» desta tematização. Heidegger considerou que a sua 
tarefa hermenêutica seria interpretar esse texto, procurando ver o 
que estaria por trás dele. Em Kant, Hegel e Nietzsche, Heidegger 
encontra aspectos da antiga abordagem que os Gregos fizeram à ver­
dade como desocultação. As pretensões dos Gregos são defendidas 
sucintamente tornando-se depois obscuras e perdendo-se. Portanto, 
desde o início que Heidegger definiu a sua tarefa filosófica em 
termos essencialmente hermenêuticos. Neste contexto a hermenêu­
tica não significa simplesmente uma interpretação em termos de 
correcção e de concordância; a hermenêutica continua com as suas 
teses tradicionais mais fundas ao querer descobrir um significado 
cscondido, ao querer esclarecer o que é desconhecido: a revelação 
é desocultação. Assim, quando Heidegger «interpreta» Kant não se 
limita a dizer o que o autor pretendeu pois proceder desse modo 
xeria parar no ponto exacto em que deve começar a verdadeira
1S1
interpretação. Heidegger antes se interroga sobre o que o texto não 
disse, perguntando porque é que Kant fez certas revisões entre a 
primeira e a segunda edição da Crítica da Razão Pura. Vai para 
além do texto, interrogando-se sobre o que é que o autor não disse 
e não podia dizer e que no entanto apareceno texto como sendo 
a sua mais íntima dinâmica (*)• O texto final, acabado, não é o 
único objecto de interpretação. Preocupam-no sim, a violência e a 
luta que actuaram na criação do texto.
Isto traz à hermenêutica, duas conseqüências já tradicionalmente 
familiares: 1) violentar o texto e 2) compreender melhor o autor 
do que ele se compreendeu a si próprio. Quando a verdade é con­
cebida como algo que simultaneamente emerge e de novo se esconde, 
quando o acto hermenêutico coloca o intérprete na fronteira de um 
vazio criativo a partir do qual a obra emergiu, então a interpretação 
tem que ser criativamente aberta ao que ainda não foi dito. Porque 
«o nada» é o pano de fundo criativo de toda a criação positiva; 
contudo, esse nada só é significativo no contexto do ser, na sua 
positividade. Quando a obra de arte é considerada, não como uma 
objectificação da subjectividade humana mas como uma revelação 
do ser, ou como uma janela para um domínio sagrado, então o 
encontro que com ela temos é como que receber uma dádiva, não 
mais é o acto de um sujeito que capta a sua subjectividade.
A interpretação de uma grande obra não é pois um exercício 
arqueológico nem a tentativa, comum ao humanismo, de tomar os 
Gregos como modelo de vida. É antes uma repetição e uma recupe­
ração do facto original da desocultação. Tenta penetrar nas cama­
das acumuladas de interpretação errônea (Heidegger adora «polir» 
palavras até que o seu esplendor original volte a brilhar) e ocupar 
um lugar no centro daquilo que é dito e daquilo que não é dito. 
Contudo, não é um simples regresso ao passado mas sim um novo 
facto de desocultação; tentar ressuscitar Kant tal como ele era, 
seria uma restauração idiota. Assim, toda a interpretação tem que 
violentar as formulações explicitadas no texto (10). A recusa em 
ultrapassar uma mera explicitação do texto é realmente uma forma 
de idolatria bem como de ingenuidade histórica.
Será que podemos compreender o autor melhor do que ele se 
compreendeu a si próprio? Não, porque o autor estava no pleno 
domínio das considerações que animaram a sua composição; não 
compreendemos melhor o autor; compreendêmo-lo de um modo 
diferente. Em Uriterwegs zur Sprache na célebre conversa com um 
japonês, Heidegger explica que o seu objectivo é «pensar o pensa­
mento grego de um modo profundamente grego» (“ )• Perguntam-lhe
(“) KPM 181; na tradução inglesa., 206. 
(">) KPM 181-83; trad. inglesa 206-8.
(") US 134.
152
se isto significa compreender os Gregos melhor do que c l c x so iom 
preenderam a si próprios. Não, não é tanto isso como também rctn 
mar àquilo que foi pensado. Heidegger quer penetrar no pano do 
fundo do pensamento grego, tal como ele surgiu: no vazio criativo 
e no não ser que estão por detrás da sua emergência positiva podr 
estar a chave para um outro tipo de pensamento, para uma oulru 
captação do ser, da verdade e da linguagem. Enquanto isto não ,sc 
der, as coisas serão meros objectos e o mundo será um brinquedo 
do homem. Não precisamos de avançar no desenvolvimento do 
pensamento apresentacional; precisamos sim de recuar, partindo de 
um tipo de pensamento meramente ideacional, i. e., explicativo, 
rumo a um pensamento meditativo (andenkende) (12).
A caminho do pensamento
É vulgar dizer que Heidegger formulou uma crítica devastadora 
à metafísica ocidental ou que colocou de novo a questão ontológica; 
contudo também seria correcto dizer-se que os seus últimos escritos 
se relacionam virtualmente com o processo hermenêutico pelo qual 
o homem, no pensamento «essencial» ou noutros tipos de pensa­
mento, constrói a fronteira entre o ser e o não ser. A questão cru­
cial relativamente ao ser não é apenas a da natureza do ser mas 
sim a de como pensar o ser, a de como é que o ser aparece; dá-se 
muita importância, por exemplo, à situação do homem neste evento 
hermenêu^co em que o ser se coloca ou se torna «compreendido» 
de um certo modo. Tentar traçar o tema do «pensamento» seria 
um esforço complexo e multifacetado, um esforço que já foi feliz­
mente realizado em inglês, pelo Padre W. J. Richardson ("). Basta 
aqui realçar o carácter geralmente hermenêutico de um tal tema, e 
tocar apenas em alguns dos seus aspectos que tenham um signi­
ficado especial para a hermenêutica.
É significativo que no diálogo com um japonês e precisamente 
no ponto a que acima nos referimos, Heidegger defenda que o ho­
mem se coloca numa «relação hermenêutica» (ein hermeneutischen 
Bezug) em que ele é o mensageiro, aquele que enuncia o ser (“ ). 
O homem é o ser que constrói a ponte entre o ser que se' esconde 
e o que se revela, noutras palavras, entre o não ser e o ser. O homem, 
ao falar, interpreta o ser. O pensamento verdadeiro é definido por 
Heidegger não como manipulação daquilo que já foi revelado, mas 
como revelação do que estava escondido. Contudo, no texto dito
(13) VA 180.
( ” ) Ib id .
(“ ) US 125-27, 135-36.
153
por um grande pensador ou por um grande poeta, muito fica ainda 
oculto e por dizer; portanto, um diálogo pensante com o texto 
acarretará uma nova desocultação. Isto torna-se hermenêutica no 
seu sentido mais tradicional (e os escritos de Heidegger contêm mui­
tos destes diálogos). Contudo, este acto secundário de interpretação 
tem que recuar continuamente para uma repetição amorosa da 
desocultação original, tem que se manter na fronteira entre aquilo 
que se esconde e o que é revelado.
Como se processa um diálogo criativo com o texto? Nos últimos 
escritos, ao longo dos anos quarenta e cinqüenta, tais como por 
exemplo Gelassenheit (15), «Carta sobre o Humanismo» e «A que se 
chama pensar»?, a posição do homem é uma espécie de passividade 
devota que se abrirá totalmente à luz do ser. Contudo, em «Intro­
dução à Metafísica», anterior a estas obras, há uma discussão signi­
ficativa do ponto de vista hermenêutico, sobre a natureza da inter­
rogação quando procura ser criativa, uma discussão que unifica 
uma série de aspectos relevantes do pensamento do último Hei­
degger.
A «Introdução à Metafísica» começa com uma pergunta. Para 
Heidegger, perguntar não precisa de ser uma mera investigação, 
podendo ser um meio de revelação. A pergunta inicial do ensaio — 
«Porque há o ser e não o nada?» leva a uma segunda questão que 
se dirige àquele que interroga: «Como se coloca o ser»? Aquele que 
pergunta vê-se imediatamente transportado para um ponto de vista 
diferente daquele que a questão inicial colocara pois a questão é de 
modo a voltar-se para quem pergunta. No processo de colocação 
de uma questão deste tipo, diz-nos Heidegger, «parece que perten­
cemos inteiramente a nós próprios. Contudo é este perguntar que 
nos abre caminho desde que, ao interrogar, se transforme (o que 
faz toda a verdadeira interrogação) e estabeleça um novo espaço 
sobre todas as coisas e em todas as coisas» (” ).
Interrogar é pois algo com que o homem se defronta obrigando
o ser a mostrar-se. Une a diferença ontológica entre o ser e o ser 
dos seres. A interrogação que se mantém simplesmente ao nível do 
ser dos seres e não faz qualquer tentativa de se dirigir para o fun­
damento (negativo) de um tal ser não é uma interrogação verdadeira 
mas antes manipulação, cálculo, explicação. É típico de Heidegger 
afirmar: «Há muito que existe em nós uma paralisia de toda a 
paixão dc in terrogar... A interrogação como elemento fundamental 
da existência histórica, desapareceu (n).
A essência da mundancidade do homem é precisamente o pro­
cesso hermenêutico dc interrogar, um tipo de interrogação que na
(*•) Trad. como DT. 
('*) IM 29-30.
(") Ibid., 143.
154
sua verdadeira forma alcança o ser que não se manifestou c que 
o faz revelar-se numa ocorrência concreta, histórica. Através dit 
interrogação, o ser torna-se então história. A inter-relaçüo cntrc o 
ser, a história e a personalidade torna-se clara na seguinte passagemde Introdução à Metafísica:
1 — A determinação da essência do homem nunca é uma res­
posta mas essencialmente uma pergunta.
2 — O colocar desta pergunta é histórico, no sentido essencial 
de que este interrogar cria primeiro a história.
4 — Só há história quando o ser se revela na interrogação e 
com a história surge o ser do homem.
6 — O homem só se torna ele próprio enquanto ser interrogante 
e histórico; só deste modo ele é um «eu». A personalidade humana 
tem este significado: o homem tem que transformar o ser que se 
lhe revela na história e tem que se colocar na história.
Nos últimos escritos dá-se relevo não tanto à interrogação feita 
pelo homem como à necessidade de uma abertura atenta relativa­
mente ao ser. O ser ainda ê histórico, mas a sua ocorrência é uma 
dádiva que parte do ser, mais do que produto de uma inquirição 
c capíação feitas pelo homem (**).
Contudo, devemo-nos precaver, não vendo aqui qualquer tran­
sição radical ou qualquer viragem, pois Heidegger não está a con­
tradizer-se; antes completa a sua posição anterior; nos últimos tra­
balhos tenta dar ênfase a uma posição não centrada no sujeito, e 
por essa razão a imagem afasta-se de uma visão do homem «lutando» 
inquisitivamente com o ser, para uma visão do homem como «pastor 
do ser». Contudo, mesmo enquanto pastor do ser, a tutela do ho­
mem é referida em termos de «pensar» e «poetizar»; ambas são 
acções por parte do homem, se bem que respondendo ao ser, e 
ambas mantém o seu caracter histórico. Na «Carta sobre o Huma­
nismo» Heidegger afirma:
«Na medida em que o pensamento, enquanto historicamente 
ponderável, atende ao destino do ser, já se ligou àquilo que é fatal, 
que se mede pelo destino ... O carácter fatal (Geschichlichkeit) do 
dizer do ser enquanto dádiva da verdade — nisto e não em regras 
lógicas, consiste a primeira lei do pensamento ... O ser é como que 
a ocorrência fatal (Geschick) do pensamento. Este evento é em si 
mesmo histórico. A sua história já se tornou linguagem no acto de 
dizer, realizado por aquele que pensa.» (l>)
Como pastor do ser, o homem perde o carácter prometeico 
sugerido em Sófocles, na «Ode ao homem» (antígona) (” ) sobre a
(>•) Ibid.
(") PL-BH 118. 
(M) IM 146-165.
155
qual Heidegger se debruça na «Introdução à Metafísica»; em Ge- 
lasser.heit Heidegger diz mesmo que «não deveríamos fazer nada, 
apenas deveríamos esperar» (” )•
Em «O que se chama pensar» o pensamento é descrito como 
uma resposta ao chamamento e às imposições do ser. É algo que 
vem do mais íntimo do homem, no qual «tudo o que fica para ser 
pensado é ocultado e escondido» (” ). A palavra chave não é per­
guntar mas sim responder. E no entanto o homem ainda é o ser 
que, na resposta, chega à negatividade do ser, ao seu carácter não 
revelado, misterioso.
A discussão da interrogação conduziu a alguns dos temas mais 
importantes do último Heidegger: a historicidade, a diferença onto­
lógica, a poesia e o pensamento, a atitude de receptividade neces­
sária que nos permite orientar para o «Aberto», que possibilita a 
interpelação. Tudo isto sugere uma postura hermenêutica radical­
mente diferente da atitude objectiva que é conseqüência de uma 
consideração da interpretação como acto conceptual primitivo, como 
uma espécie de análise.
A linguagem e a fala
Na passagem da «Carta sobre o Humanismo» acima citada, a 
referência ao «acto de dizer efectuado por aquele que pensa» sugere 
um outro tema importante nos últimos escritos de Heidegger: a 
linguisticidade do ser. O interesse de Heidegger pela linguagem data 
do começo da sua carreira, com a sua dissertação: «A doutrina do 
juízo no psicologismo: uma contribuição crítica e positiva para a 
lógica» (” ) e com a sua dissertação sobre a doutrina de Duns Escoto 
sobre as categorias e o significado. Nela defendia a necessidade de 
colocar os fundamentos teóricos da linguagem (” )• Heidegger fala 
deste primeiro período no seu recente «Diálogo com um Japonês». 
Significativamente, as observações que faz ligam-se ao porquê da 
sua escolha em usar a palavra «hermenêutica» em «Ser e Tempo»;
Conhecia o termo «hermenêutica» dos meus estudos teológicos. 
Nessa altura interessava-me especialmente a questão da relação 
entre a palavra bíblica e o pensamento teológico especulativo. Era, 
se quiserem, a mesma relação— nomeadamente a relação entre lin­
guagem e ser, para mim então escondida e inacessível — que eu 
cm vão procurava encontrar, uma chave que levasse aos caminhos 
mais fundos, que levasse aos desvios (” ).
(’■) G 37; DT 62.
(” ) VA 139; ver TPhT 599-601.
(” ) TPhT 675.
(“ ) 1'òggcler, p. 269.
(>•) US 96.
156
A linguagem colocou-se num novo contexto quando da anrtllir, 
em Ser e Tempo, da mundancidade do Dasein, feita em termo* 
de situação, compreensão e interpretação. Era a articulação du com 
preensão existencial. De tal modo estava ligada à compreensão c i\ 
inteligibilidade que o pensamento lógico e toda a manipulação con 
ceptual dos objectos no mundo se tornaram secundários e derivados, 
comparados com a linguagem no contexto vivo da articulação 
essencial da compreensão (” ). Logo em Ser e Tempo o campo da 
lógica e das asserções integra a categoria do pensamento apresen­
tacional, enquanto que a linguagem na sua verdadeira essência, 
como articulação essencial da compreensão situacional, histórica, 6 
algo que pertence ao modo de ser do homem. Deste ponto de vista, 
Heidegger podia criticar as teorias que encaravam a linguagem 
como um mero instrumento de comunicação C7).
O tema da linguagem tem importância em «Introdução à Meta­
física». Dedicado à questão «O que é o ser?», o ensaio remete para 
um fragmento de Parménides no qual Heidegger encontra a asserção 
de que o ser é idêntico àquilo pelo qual ocorre a apreensão. Isto 
significa que «apenas há ser quando há uma aparição, uma desocul­
tação, quando há revelação» (” ). Tal como não pode haver ocor­
rência de ser sem apreensão nem apreensão sem ser, também não 
pode haver ser sem linguagem, nem pode haver linguagem sem ser.
Suponnamos que o homem. não tinha qualquer conhecimento 
prévio do ser, que desconhecia todo e qualquer sentido indetermi­
nado do ser. Heidegger interroga-se: «Haveria apenas um substan­
tivo e um verbo a menos na nossa linguagem? Não. Não haveria 
qualquer linguagem. Nenhum ser enquanto tal se revelaria por meio 
de palavras, não mais seria possível invocá-lo e falar dele com 
palavras; pois falar de um ser enquanto tal implica compreendê-lo 
previamente como sendo um ser, isto é, compreender o seu ser.» (” )
Por outro lado, «se a nossa essência não incluísse o poder da 
linguagem, todos os seres se nos fechariam»; nós próprios não somos 
menos que o ser que não somos (50). Sem a linguagem nunca pode­
ríamos imaginar o homem. Heidegger avança abruptamente com o 
tema: «Porque ser homem é falar.» (” ) Que ilusão, diz Heidegger, 
pensar que o homem inventou a linguagem! O homem não inventou 
a linguagem, tal como não inventou a compreensão, nem o tempo
(” ) Ver a discussão do carácter derivado das asserções no capítulo anterior. 
(*0 Relativamente a um novo tipo de lógica, ver Hans Lipps, llntersu- 
chungen zu einer hermeneutischen Logik, e Kitarô Nishida, Intelligibility and 
the Philosophy of Nothingness.
(” ) IM 139.
(” ) Ibid., 82.
(«) Ibid.
(” ) Ibid.
157
nem o ser ele mesmo. «Como poderia o homem ter alguma vez 
inventado o poder que o penetra, que só por si lhe permite ser 
homem?» (” ) Mesmo o acto poético de nomear é uma resposta que 
o homem dá ao ser dos seres.
Em escritos posteriores a «Introdução à Metafísica», aumenta 
a ênfase dada ao homem considerado enquanto aquele que responde 
às interpelações ou chamamentos do ser. Por exemplo, na «Carta 
sobre o Humanismo», Heidegger sustenta que «a única ocupação 
do pensamento é trazer cada vez mais para uma forma faiada, aocorrência do ser; um ser que permanece e que na sua permanência 
espera pelo homem» (” ). E é óbvio que o ser se revela na linguagem. 
A ocorrência do ser na linguagem é descrita em termos da palavra 
Geschick, fado ou destino. «A fatalidade do ser que se diz, tal como 
a fatalidade da verdade, é a primeira lei do pensamento.» (” ) O tema 
da história não é novo pois na «Introdução à Metafísica» Heidegger 
apresenta a linguagem como a dinâmica do ser do homem que lhe 
permite tornar-se histórico — que !he permite na realidade fundar a 
história. A apreensão e a fala foram apresentadas como actos espe­
cificamente históricos, em que o ser surge no iempo, acontece. 
A diferença é essencialmente uma diferença de ênfase: mais do que 
lutar com o ser, o homem abre-se ao ser, à interpelação do ser. 
Contudo, a interrogação não é posta de lado por Heidegger pois 
interrogar é precisamente pôr em causa as concepções apresenta- 
cionais. Títulos posteriores como «A que chamamos pensar?» ou o 
desejo expresso por Heidegger de colocar de um modo interroga­
tivo das Wesen e der Sprache (como das Wesen? e der Spraehe?) 
mostram isso. De facto, a interrogação mantém-se um método bá­
sico no seu pensamento. A mudança de ênfase é apenas um esforço 
para apontar de um modo mais forte a primazia do ser.
Isto tem como implicações na linguagem, a inversão da orien­
tação habitual da fala; não se diz que o homem fala mas sim que 
a própria linguagem fala. Tal facto torna-se mais explícito numa 
colecção de ensaios sobre a linguagem Unterwegs zur Sprache. 
«A linguagem na sua essência, não é nem expressão nem actividade 
do homem. A linguagem fa!a.»(35) As palavras ecoam no silêncio e 
através delas colocam-se as realidades do nosso mundo e o conflito 
entre a terra e o mundo: «o som no silêncio não tem nada de 
humano. Pelo contrário, o humano é lingüístico na sua essên­
cia» (■’"). E o acto humano de dizer que é especificamente humano. 
Contudo o dizer é em si mesmo um acto pela linguagem. Aquilo
(” ) Ibid., 156.
(«) PL-BH 118.
(M) Ibid. Mudei um pouco a tradução da primeira versão dada na p. 151.
(” ) US 19.
(«) Ibid., 30.
158
que pela linguagem se revela, não é algo de humano mas sim t> 
mundo, o próprio ser.
Em Unterwegs zur Sprache Heidegger encontra na fala, espe­
cialmente no dizer (das Sagen), a própria essência da linguagem. 
Dizer é mostrar (J7)- Assim, o silêncio pode por vezes dizer mais do 
que as palavras. Ao dizer pertence a capacidade de escuta, de modo 
que aquilo que tem que ser dito se possa mostrar; o dizer conserva 
aquilo que é cuvido (3‘). Nele, o ser mostra-se sob a forma de ocor­
rência. Colocando o tema em termos de expressão e de aparição: 
a iinguagem não é uma expressão do homem mas uma aparição 
do ser. O pensamento não exprime o homem, deixa que o ser 
aconteça como e\ento lingüístico (30). Neste deixar que aconteça 
está o destino do homem, e também o destino da verdade. Em 
última instância o destino do ser.
A viragem de Heidegger para uma crescente ênfase da linguis- 
ticidade (Sprachlichkeii) do modo de ser do homem, e a sua afir­
mação de que o ser conduz e chama o homem, de modo que em 
última instância não é o homem que se mostra mas sim o ser, têm 
de facto uma importância incalculável para a teoria da compreensão.
Faz com que a própria essência da linguagem consista na função 
hermenêutica de obrigar uma coisa a mostrar-se. Significa que a 
disciplina da interpretação se transforma numa tentativa de aban­
donar decisivamente uma mera análise e explicação, enveredando 
pela realização de um diálogo pensante com o que aparece no 
texto. Compreender torna-se uma questão não só de interrogar que 
pretende ser aberto e não dogmático, mas também de aprender a 
esperar e a encontrar um lugar (Ort) a partir do qual o ser do texto 
se revele. A interpretação transforma-se numa ajuda para o evento 
lingüístico. Este terá que ocorrer pois acentua-se a função herme­
nêutica do próprio texto, como sendo o lugar onde o ser se revela. 
A linguagem é em si mesma hermenêutica, é hermenêutica no seu 
mais alto grau na poesia, pois como Heidegger diz em Sobre a 
essência da Poesia o poeta é o mensageiro, o hermeneuta, dos deuses 
para o homem.
Heidegger identificou a essência do ser, do pensamento, do 
homem, da poesia e da filosofia com a função hermenêutica do 
dizer. Não vamos aqui discutir se essa posição é ou não sustentável. 
Um facto é que a sua própria filosofia se torna essencialmente her­
(") Ibid., 258.
(” ) Ibid., 255.
(39) Assim o termo Sprachereignis (evento lingüístico) como Leitworl da 
Nova Hermenêutica de Ernst Fuchs. Ver Das Sprachereignis in der Verkiin- 
digung lesu in der Theologie des Paulus und im Oslergeschehen, HPT 281-305; 
e The Essence oj the Language Event in Christoiogy, Studies of the Hiltorlcul 
Jesus, pp. 213-28.
159
menêutica e que os temas centrais se integram na área da herme­
nêutica. É claro que ele mudou todo o contexto da hermenêutica, 
abandonando a antiga concepção desta como disciplina filológica 
de interpretação de textos. O esquema sujeito-objecto, a objectivi­
dade, as normas de validação, o texto como expressão de vida 
— nada disto consta na abordagem de Heidegger. A hermenêutica é 
definida como lidando com o momento em que o sentido se revela, 
concepção que Ricoeur considera uma compreensão «demasiado 
geral» pois não inclui necessariamente o acto de interpretação de 
um texto. Esta definição trouxe uma mudança radical à topografia 
da hermenêutica. E o próprio acto de interpretação redifiniu-se, 
colocando-se numa perspectiva ontológica.
A explicação e a topologia do ser
Será imprudente e talvez pouco justo, tomar as explicações de 
Heidegger como paradigmáticas de uma teoria da exegese poética 
em geral, pois o uso que o filósofo delas faz circunscreve-se ao con­
texto da sua investigação sobre a natureza do ser e sobre a natureza 
da linguagem. Numa nota introdutória em «Sobre a Essência da Poe­
sia», Heidegger nega particularmente que elas possam constituir um 
contributo para uma investigação em história da literatura ou em 
estética (,0)- Contudo a título de exemplo, podemos aqui mencionar 
duas passagens em que Heidegger se volta para a questão da expli­
cação, uma em Introdução à Metafísica, uma das suas primeiras 
obras, e outra em Unterwegs zur Sprache. N a última parte de 
Introdução à Metafísica Heidegger explica a «Ode sobre o Ho­
mem», coral da Antígona de Sófocles, numa tentativa de definir 
mais claramente a primitiva concepção grega do homem nela 
expressa. Diz-nos então:
«A nossa interpretação comporta três fases, em cada uma das 
quais consideraremos o poema de um ponto de vista diferente.
Na primeira fase, colocaremos o significado intrínseco do poema, 
aquele que sustenta o edifício das palavras, situando-se acima deste.
Na segunda fase atravessamos toda a seqüência de estrofes e 
antiestrofes e delimitamos a área que o poema abriu.
Na terceira fase, tentamo-nos situar no centro do poema, jul­
gando o que é o homem de acordo com este discurso poético.» (41)
É evidente que Heidegger não envereda por uma abordagem 
dc tipo formal, pois esta seria incompatível com as intenções e 
problemas por ele levantados. É interessante notar que o procedi­
(«) EHD; EB 232. 
(«) IM 148.
160
mento que aqui demonstra, antecipa uma posterior ubordutioin 
«topológica» em que a explicação tenta colocar o lugar (topos) u 
partir do qual o poema fala, a localização de uma justificação no 
interior do ser, que a passagem ilumina. Assim, a primeira fase nfto 
começa serialmente mas sim com a tentativa de encontrar um sen 
tido que sustente todo o edifício das palavras e que se situe acima 
dele. Aquilo que se diz situa-se no interior de um significado que 
não é totalmente explícito, o significado que está sob e sobre o 
texto. Este significado circundante,esta Gestalt que é mais do que 
a soma das partes, é o princípio que governa o poema, clarificando 
as suas partes individuais. É a verdade do poema, o ser que se des­
venda — poderíamos dizer que é a alma do poema. Só a essa luz 
é que Heidegger empreende a segunda fase, que é a passagem da 
estrofe para a antiestrofe e, através do poema, um recuo até «à 
delimitação da área que o poema abriu».
«Na terceira fase tentamo-nos situar no centro do poema» — isto 
é, na fronteira determinante entre a ocultação e a revelação estabe­
lecida pelo acto criativo do poeta ao nomear o que é o homem, e 
ao repensar em profundidade o que foi nomeado. Isto significa, é 
claro, que se vá mais longe do que o poema, que se enverede por 
aquilo que não foi dito:
«Se nos contentarmos com o que o poema diz directamente, a 
interpretação acaba (com a segunda fase). Na verdade apenas come­
çou. A interpretação real tem que mostrar o que não está nas pala­
vras mas que no entanto é dito. Para que isto se dé o exegeta tem 
que usar de violência. Tem que procurar o essencial onde a inter­
pretação científica já nada mais encontra, essa interpretação que 
estigmatiza como não científico tudo aquilo que transcende os 
seus limites.» (“ )
O processo hermenêutico no que tem de essencial, não surge 
na explicação científica daquilo que já está formulado no texto; 
antes é o processo do pensamento originário, pelo qual o significado 
desvenda o que não era explicitamente presente.
Em Unterwegs zur Sprache, um ensaio intitulado Die Sprache 
im Gedicht prefacia a discussão sobre a poesia de Trakl, com algu­
mas considerações gerais sobre a explicação poética. Heidegger toma 
como ponto de partida a discussão da palavra alemão «discussão»: 
Eròrterung. Primitivamente, o título do ensaio fora: Georg Trakl: 
Eine Eròrterung seines Gedichtes e Heidegger procurou definir o 
seu próprio ensaio não como histórico, biográfico, sociológico ou 
psicológico, mas como uma consideração do «lugar» (Ort) a partir 
do qual Trakl fez poesia, o lugar que se clarifica com a sua poesia. 
Pois todo o grande poeta fala a partir de um único «poema» cir­
(« ) Ibid., 162.
161
cundante, que nunca é dito; a tarefa de um diálogo pensante com 
o poeta terá que ser encontrar o lugar no ser que seja o funda­
mento do poema: «Só a partir do lugar que ocupa o poema (não 
dito) é que o poema individual brilha e ecoa.»(“ )
Heidegger sustenta que um diálogo intelectual com um poema 
pode «perturbar aquilo que o poema diz, em vez de o deixar dizer 
tranquilamente ... uma discussão do poema nunca poderá substi­
tuir-se a uma verdadeira audição de poemas, nunca poderá tomar 
a liderança. Uma discussão intelectual pode, quanto muito, pro- 
bleinatizar uma audição, ou, num caso favorável, tornar uma audi­
ção m?is significativa» (“ ). Terá Heidegger aqui abandonado a 
primitiva controvérsia sobre a violentação do texto? Temos que 
ir mais longe, procurar o que é mais fundo do que uma aparente 
mudança. À primeira vista poderia parecer que Heidegger quer 
deixar falâr o texto, com a sua própria verdade, com a sua própria 
voz. A solução de «fazer violência ao texto» é essencialmente uma 
réplica aos críticos que queriam restringir a interpretação àquilo 
que no texto é inexplícito. Reafirma a necessidade de finalmente 
transcender o texto e de recolocar a questão com que o texto lida.
Mais ainda, o processo de Eròrterung em cada um dos seus 
degraus, parece ir para além do texto, parece ír às raízes de cada 
palavra, pela repetição contínua de um verso ou versos, fazendo-se 
a explicação ouvir cada vez mais a partir do próprio verso. Essas 
repetições evidenciam que a funçãq da explicação é deixar falar 
o poema e não querer dizer mais do que ele diz. A própria ideia 
de iluminar o «lugar» do poema é uma tentativa de «construir 
a cena» do poema e não de tomar o seu lugar em cena. Tal como 
na Nova Crítica, o próprio poema é preponderante e não constitui 
um background biográfico. O background de um poema não é a 
vida do autor mas sim o tema do poema. A Nova Crítica e Hei­
degger estariam de acordo sobre a autonomia ontológica do poema 
e sobre a heresia da paráfrase; a diferença está em que a Nova 
Crítica tem dificuldade em defender a verdade do poema no con­
texto dos seus pressupostos. Nela, o texto transforma-se facilmente 
num objecto de explicação, num exercício conceptual lidando ape­
nas com o «dado», aceitando as restrições da objectividade cien­
tífica; o tipo de explicação que Heidegger dá é radicalmente dife­
rente de qualquer «análise» objectiva ao que é incontestavelmente 
dado. Mas para além de diferenças de estilo, a existência de afini­
dades essenciais sugere que a hermenêutica de Heidegger poderia 
dar à Nova Crítica bases para uma revitalização.
(<3) US 38. 
(") Ibid., 39.
162
Uma concepção hermenêutica da obra de arte
Em 1936, Heidegger efectuou três conferências sobre arte, com 
o título «A Origem da Obra de Arte». Não foram publicadas ulé 
1950, aparecendo então como abertura de Helzwege (Caminho» 
na Floresta). Nelas encontramos a abordagem mais completa que 
Heidegger faz à natureza da arte. São uma transposição paru o 
domínio da arte das concepções essencialmente hermenêuticas da 
verdade e do ser, do conflito entre as formulações positivas e uma 
fundamentação negativa embora criativa, da linguagem como falar 
e dizer, acima abordadas. Uma obra de arte verdadeiramente grande 
fala, e ao fazê-lo constrói um mundo. Este falar, como todo o dizer 
verdadeiro simultaneamente revela e esconde a verdade. «A beleza 
é o modo como a verdade, enquanto desocultação, ocorre.» (“ ) 
O poeta nomeia o sagrado, e desse modo fá-lo aparecer, numa 
forma; Heiddeger encara toda a arte como intrinsecamente poética, 
como um meio de forçar o ser dos seres e desocultar-se e como 
um meio de transformar a verdade num acontecimento histórico 
concreto.
Esta situação estética é descrita em termos da tensão intrínseca 
entre a terra, como fundamento criador das coisas, e o «mundo». 
A terra representa para Heidegger a mãe inexaurível, a origem 
primordial e o fundamento de tudo. A obra de arte, como aconte­
cimento em que a verdade se revela, representa a captação desta 
tensão criativa numa forma. Assim, traz para o domínio dos seres, 
como sendo um todo, e abre ao homem, essa luta interna entre 
a terra e o mundo. Por exemplo um templo grego num vale, cria 
um espaço aberto ao ser, cria o seu próprio espaço vivo. Na beleza 
da sua forma faz com que brilhem, em todo o seu esplendor, os 
materiais de que é feito. Organiza de tal modo os materiais que 
os «anuncia», fazendo com que brilhem. O tempo nada copia; 
limita-se a construir, a partir de si mesmo, um mundo em que 
sentimos a presença dos deuses. Visto que a materialidade dos 
materiais desaparece nos instrumentos, quanto melhor estes desem­
penhem a sua função de instrumentos, a obra de arte abre-nos um 
mundo precisamente através da revelação da materialidade dos 
materiais:
«A pedra move-se e repousa e assim se torna verdadeiramente 
pedra; o metal começa a emitir luz e a brilhar; as cores começam 
a cintilar como cores; os tons convertem-se verdadeiramente cm 
sons; e a palavra fala. Tudo isto acontece pelo facto de que a obra 
se coloca de novo na massa e no peso da pedra, na firmeza e na 
maleabilidade da madeira, na dureza e no brilho do metal, nu
(«) Ho 44; UK 61.
163
sonoridade dos tons e no poder que a palavra tem de nomear (“ ).
Dizer isto é simplesmente observar que a obra de arte «deixa 
a terra ser terra» (,7). A terra não se limita a ser apenas algo sobre o 
qual caminhamos, tal como uma árvore não é apenas uma coisa que 
está no nosso caminho; a terra é algo que aparece no brilho do 
metal e na sonoridade dos sons — e que depois recua. Não faz 
esforços e não se cansa. «Sobre a terra e dentro dela, o homem 
históricocimenta a sua morada no mundo.» (**) No domínio da 
arte, a construção de uma obra a partir da terra, cria um mundo; 
«a obra capta a terra e mantém-na firme na abertura de um 
mundo» (,9). A construção da terra e a exibição do mundo, são 
segundo Heidegger, as duas tendências básicas da obra de arte.
A essência da arte, por conseguinte, não está na mera perícia 
técnica, mas sim na revelação. Ser uma obra de arte significa abrir 
um mundo. Interpretar uma obra de arte significa mudar para 
o campo aberto que a obra ergueu. A verdade da arte não é uma 
questão de concordância superficial com algo que já está dado 
(i. e., a visão tradicional da verdade como correcção); revela a 
terra, de tal modo que a podemos ver. Por outras palavras, a gran­
deza da arte tem que ser definida em termos da sua função herme­
nêutica. No seu ensaio, Heidegger enunciou uma teoria hermenêu­
tica da arte.
O contributo de Heidegger para a teoria hermenêutica é pois 
verdadeiramente multifacetado. Em Ser e Tempo voltou a conceber 
a compreensão num contexto totalmente novo, mudando assim o 
carácter fundamental de qualquer teoria conseqüente da interpre­
tação. Redefiniu a própria palavra «hermenêutica» identificando-a 
com a fenomenologia (também tal como ele a definia) e com a 
função essencial das palavras que é tornar compreensível. Nos seus 
últimos trabalhos adoptou a exegese de textos como método típico 
do filosofar, propondo-se como um filósofo hermenêutico no 
sentido mais tradicional do termo. Mas, para Heidegger, o sentido 
mais fundo da palavra é o de um processo misterioso de revelação, 
pelo qual o ser ganha existência. Nos termos desse processo essen­
cialmente hermenêutico. Heidegger abordou a linguagem, as obras 
de arte, a filosofia e a própria compreensão existencial.
Foi decididamente mais longe do que a concepção aparente­
mente lata de Dilthey. da hermenêutica como base metodológica 
de todas as disciplinas humanísticas; em Heidegger, a hermenêu­
tica aponta para o facto da compreensão enquanto tal, não por
(«) Ho 35; Uk 47.
(") Ibid.
(«) Ibid.
(«) Ibid.
164
métodos históricos de interpretação que superam e contrurium us 
métodos científicos. A dicotomia histórico-científica a que Dilthey 
dedicou toda a sua vida é abandonada, sustentando-sc u posiçflo 
de que toda a compreensão se radica no carácter histórico da com 
preensão existencial; abre-se o caminho para a hermenêutica «filo­
sófica» de Gadamer.
165
11
A CRÍTICA DE GADAMER À ESTÉTICA MODERNA 
E À CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
No desenvolvimento da teoria hermenêutica moderna deu-se 
um acontecimento decisivo com a publicação de Wahrheit und 
Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik (Verdade 
e Método: Elementos de uma Hermenêutica Filosófica) pelo filó­
sofo de Heidelberg, Hans Georg Gadamer. Num único volume 
apresenta-nos não só uma revisão crítica da estética moderna e da 
teoria da compreensão histórica, numa perspectiva essencialmente 
heideggeriana, como também uma nova hermenêutica filosófica 
baseada na ontologia da linguagem.
Profundamente filosófica, esta obra só tem comparação com 
outras duas monumentais abordagens da teoria hermenêutica escri­
tas neste século: Das Verstehn, de Joachim Wach e Teoria generale 
delia interpretazione de Emilio Betti. Cada uma destas três obras 
defende uma finalidade distinta e assim, cada uma deu um con­
tributo diferente. Os três volumes de Wach sobre a história da 
hermenêutica no século xix constituem uma referência indispen­
sável para todo o estudante que queira abordar seriamente o 
tema da hermenêutica. Foram no entanto escritos nos últimos anos 
de 1920, situando-se necessariamente no contexto da concepção de 
hermenêutica professada por Dilthey.
Betti faz uma revisão do espectro dos diferentes tipos de inter­
pretação tendo em mente a formulação de uma teoria geral global 
e sistemática e pretendendo desenvolver um conjunto de regras 
básicas para uma interpretação mais válida. Desde o início que 
esta obra põe como meta um organon sistemático das formas de 
interpretação, mais do que uma simples história; assim, a sua 
extensão e a sua abundante documentação tal como a sua finali­
dade sistemática, constituem um complemento inestimável à obra 
<le Wach que lhe é anterior. No entanto, Betti mantém-se essen­
cialmente no interior da tradição idealista germânica, filosofica­
mente falando,' tendendo a aceitar previamente, como axiomas, os
167
pressupostos que Heidegger põe radicalmente em causa. Para 
Betti, Heidegger é uma ameaça à ideia de resultados objectivamente 
válidos no campo da filologia e da historiografia. Depois de Betti, 
restou a Gadamer percepcionar e desenvolver as conseqüências 
positivas e frutíferas da fenomenologia no campo da teoria her­
menêutica, em particular o pensamento de Heidegger. Foi Gadamer 
quem teve que lutar com o problema filosófico de desenvolver 
uma nova ontologia do evento da compreensão.
Assim, com o aparecimento de Verdade e Método, a teoria 
hermenêutica entra numa nova e importante fase. Gadamer 
exprime agora, de um modo totalmente sistemático, a nova con­
cepção radical de Heidegger relativamente à compreensão, traçada 
no capítulo anterior; esclarecem-se as implicações desta concepção 
no modo como se concebem o estético e o histórico. Abandona-se 
a antiga concepção de hermenêutica como sendo a base metodo­
lógica específica das Geisteswissenschaften; o próprio estatuto do 
método é posto em causa, pois o título do livro de Gadamer é 
irônico: o método não é o caminho para a verdade. Pelo contrário, 
a verdade zomba do homem metódico. A compreensão não se 
concebe como um processo subjectivo do homem face a um objecto 
mas sim como o modo de ser do próprio homem; a hermenêutica 
não se define enquanto disciplina geral, enquanto auxiliar das 
humanidades, mas sim como tentativa filosófica qua avalia a com­
preensão, como processo ontológico — o processo ontológico — do 
homem. O resultado destas reinterpretações é um tipo diferente de 
teoria hermenêutica, a hermenêutica «filosófica» de Gadamer.
É essencial percebermos, logo desde o início, a distinção entre 
a hermenêutica filosófica de Gadamer e o tipo de hermenêutica 
que se orienta para os métodos e para a metodologia. Gadamer não 
se preocupa directamente com os problemas práticos da formulação 
de princípios interpretativos correctos; antes pretende esclarecer 
o próprio fenômeno da compreensão. Isto não significa que negue 
a importância da formulação de tais princípios; pelo contrário, eles 
são necessários às disciplinas interpretativas. Significa sim que Ga­
damer trabalha sobre uma questão preliminar e fundamental: como 
é possível a compreensão, não só nas humanidades mas em toda 
a experiência humana sobre o mundo? Esta é uma questão que 
se coloca às disciplinas da interpretação histórica mas que vai muito 
mais longe do que elas. É neste ponto que Gadamer liga explici­
tamente a Heidegger a sua definição de hermenêutica:
«Penso que a análise temporal que Heidegger faz da existência 
humana, demonstrou eficazmente que a compreensão não é uma 
entre várias atitudes de um sujeito humano, mas um modo de ser 
do próprio Daseirt. Neste sentido usei aqui o termo «hermenêutica» 
(em Wahrheit und Methode). Designa o movimento básico da 
existência humana, constituído pela sua finitude e historicidadc,
168
e por conseguinte abrangendo a globalidade da sua cxpcriêncln no 
mundo ... O movimento de compreensão é englobante e univci 
sal.» (')
É claro que a universalidade da hermenêutica traz consequôn 
cias às tentativas realizadas pelas disciplinas interpretativas no que 
respeita à metodologia. Por exemplo, o carácter englobante da com­
preensão levanta a questão de podermos, com um simples jiat, 
limitar o campo de acção da compreensão, ou reduzi-lo a outro 
aspecto. Gadamer defende quea experiência de uma obra de arte 
transcende todo e qualquer horizonte subjectivo da interpretação, 
tanto o do artista como o daquele que percepciona a obra de arte. 
Por esta razão, «a mens auctoris não é a medida possível para 
avaliar o significado (Bedeutung) de uma obra. De facto, falar de 
uma obra de arte isolada, separada da sua relidade, incessantemente 
renovada, tal como aparece na experiência, é adoptar um ponto de 
vista muito abstracto» (2). O decisivo não é a intenção do autor 
nem a obra como coisa isolada, fora da história, mas o quid que 
aparece repetidamente nos encontros históricos.
Para alcançarmos as condições metodológicas trazidas por esta 
hermenêutica mais universal de Gadamer, temos que entrar mais 
profundamente nas raízes heideggerianas do pensamento de Gadamer 
e no carácter dialéctico da hermenêutica tal como Gadamer a con­
cebe. À semelhança de Heidegger, Gadamer é um crítico da ren­
dição moderna ao pensamento tecnológico, radicado no subjectismo 
(Subjektitàt), isto é, na consideração da consciência humana sub­
jectiva, e das certezas da razão que nela se fundam, como se cons­
tituíssem um ponto de referência último para o conhecimento 
humano. Os filósofos pré-cartesianos, como por exemplo os antigos 
gregos, viram o seu pensamento como parte do próprio ser; não 
tomaram a subjectividade como ponto de partida, fundamentando 
depois sobre ela a objectividade do seu conhecimento. A sua 
abordagem foi mais dialéctica, foi uma abordagem que tentou 
guiar-se pela natureza daquilo que estava a ser compreendido. 
O conhecimento não era algo que adquirissem como uma posse, 
mas algo em que participavam, deixando-se guiar e mesmo ser 
possuídos pelo seu conhecimento. Deste modo os Gregos realizaram 
uma abordagem da verdade que ultrapassou as limitações do pensa­
mento moderno de um sujeito-objecto, radicado num conhecimento 
subjectivamente certo.
A abordagem de Gadamer está pois mais próxima da dialéctica 
socrática do que do pensamento moderno, manipulativo e tecno­
lógico. A verdade não se alcança metodicamente mas dialectica-
0) WM. Prefácio à 2.» ed., XVI. 
O Ibid., XVII.
169
mente; a abordagem dialéctica da verdade é encarada como a antí­
tese do método; ela é de facto um meio de ultrapassar a tendência 
que o método tem de estrutura previamente o modo individual de 
ver. Rigorosamente falando, o método é incapaz de revelar uma nova 
verdade; apenas explicita o tipo de verdade já implícita no método. 
A própria descoberta do método não se alcançou metodicamente 
mas sim dialecticamente, isto é, como resposta problematizante 
ao tema com que deparamos. No método, o tema a investigar 
orienta, controla e manipula; na diàléctica, é o tema que levanta 
as questões a que irá responder. A resposta só pode ser dada se 
pertencer ao tema e situando-se nele. A situação interpretativa 
não é mais a de uma pessoa que interroga e a de um objecto, 
devendo aquele que interroga construir «métodos» que lhe tornem 
acessível o objecto pelo contrário, aquele que interroga desco­
bre-se como sendo o ser que é interrogado pelo tema (Sache). Numa 
situação destas «o esquema sujeito-objecto» é enganador pois o 
sujeito torna-se agora objecto. Na verdade, o próprio método é 
geralmente encarado como estando no interior do contexto da 
concepção sujeito-objecto da situação interpretativa do homem, 
servindo de fundamento ao pensamento moderno, manipulador e 
tecnológico.
Poder-se-ia perguntar: Não será a dialéctica hegeliana a essên­
cia mesma do pensamento subjectivo, pois não é verdade que o 
pensamento dialéctico leva à auto-objectificação da consciência? 
A autoconsciência está no centro do pensamento hegeliano, mas 
a hermenêutica dialéctica de Gadamer não segue o conceito hege­
liano de Geist na fundamentação última que este tem na subjec- 
tividade. Fundamenta-se, não na autoconsciência mas sim no ser, 
na linguisticidade do ser humano no mundo e por conseguinte no 
carácter ontológico do acontecimento lingüístico. Não se trata de 
uma dialéctica de teses requintadas que se opõem; é uma dialéctica 
entre o contexto em que cada pessoa se insere e o contexto da 
«tradição» — o que desce até nós, o que vem ao nosso encontro, 
e cria aquele momento de negatividade que é a vida da dialéctica 
e a vida da interrogação.
Assim, embora a hermenêutica dialéctica de Gadamer tenha 
afinidade com Hegel, ela não procede do subjectivismo implícito 
em Hegel e aliás em toda a metafísica moderna anterior a Hei­
degger. Embora tenha semelhanças com a dialéctica de Platão, 
não pressupõe a doutrina platônica das ideias nem a sua concepção 
de verdade e de linguagem. Antes propõe uma dialéctica baseada 
na estrutura do ser tal como foi explicada pelo último Heidegger, 
e na estrutura prévia da compreensão tal como se coloca em Ser 
e Tempo. O objectivo da dialéctica é eminentemente fenomenoló- 
gico: fazer com que o ser, ou a coisa que encontramos, se revele. 
O método envolve uma forma específica de questionamento que
170
desoculta um aspecto da coisa; uma dialéctica hermenêutica abrr *r 
a um questionamento pelo ser das coisas, de modo que as colrmn 
que encontramos se possam revelar no seu ser. Isto é possível, 
defender Gadamer, devido à linguisticidade da compreensão hu­
mana e em última instância, do próprio ser.
Esta orientação do pensamento para o problema hermenêutico 
está eminentemente implícita em Heidegger. Só é nova a ênfase 
especulativa e dialéctica — poderíamos dizer hegeliana — e a expo­
sição agora totalmente revelada das implicações da ontologia hei­
deggeriana em estética e em interpretação de textos. Pede-se ao 
leitor que tenha presente o facto de que as concepções heideggerianas 
básicas sobre pensamento, linguagem, história e experiência humana 
são transpostas para Gadamer. Isto é essencial pois as teses de 
Wahrheit und Methode baseiam-se nelas e o resvalar inconsciente 
para as concepções pressupostas na maior parte dos pensadores 
ingleses e americanos contemporâneos que se debruçam sobre a 
interpretação, criará ainda mais dificuldades à compreensão. Para 
mais, as concepções de Gadamer inter-relacionam-se, de modo a que 
só gradualmente entramos no círculo das suas considerações. Final­
mente, as teses de Gadamer assentam essencialmente nas suas 
minuciosas análises críticas a um pensamento anterior sobre a 
linguagem, sobre a consciência histórica e sobre a experiência 
estética. Assim há obstáculos de peso que se colocam à compreen­
são do pensamento de Gadamer. No entanto, far-se-á uma tentativa 
de apresentar algumas das linhas essenciais do modo como Gadamer 
transforma a teoria heideggeriana da compreensão numa critica 
formal da estética moderna e das concepções históricas da inter­
pretação.
A crítica à consciência estética
Segundo Gadamer, é relativamente moderno o conceito de 
«consciência estética», distinguindo-se e isolando-se dos domínios 
«não estéticos» da experiência. De facto, é conseqüência da subjec- 
tivação geral do pensamento efectuada a partir de Descartes, ten­
dência a fundamentar todo o conhecimento numa autocerteza 
subjectiva. De acordo com esta concepção, o sujeito que contempla 
um objecto estético é uma consciência vazia recebendo percepções 
e gozando de certo modo, da imediatez de uma forma puramente 
sensível. A «experiência estética» é assim isolada e descontínua 
relativamente a outros domínios mais pragmáticos; não é mensu­
rável em termos de «conteúdo» visto ser uma resposta à forma. 
Não se relaciona com a autocompreensão do sujeito, ou com o 
tempo; é encarada como um momento atemporal sem qualquer 
outra preferência que não seja a si própria.
171
As conseqüências de uma concepção deste gênero são inúmeras. 
Em primeiro lugar não há qualquer modo adequado de avaliação 
da arte que não seja o da satisfação perceptiva. Não há preceitos 
para a arte em termos

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