Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA DO BRASIL REPÚBLICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Resumir os principais acontecimentos dos governos pós-ditadura. > Explicar o desenvolvimento do pensamento neoliberal na sociedade bra- sileira. > Caracterizar os governos PT e os debates acerca do impeachment de Dilma Rousseff. Introdução A historiografia e a memória social forjaram o ano de 1985 como o ano do término da ditadura. Mas será que isso significa, automaticamente, que tivemos nessa data o início da democracia? Lembre-se de que o primeiro presidente civil após o ciclo militar não foi eleito diretamente pela população e que, à época, vigorava a Constituição elaborada pelos militares no final dos anos 1960. Além disso, certas práticas autoritárias não foram extintas com o fim da ditadura, o que evidencia que o regime democrático brasileiro possui algumas contradições. Neste capítulo, você estudará um panorama da história brasileira desde 1985. Além disso, conhecerá os desafios impostos para a conclusão do regime ditatorial e a promulgação da Constituição de 1988. Em seguida, você conhecerá as políticas neoliberais implementadas nos anos 1990, que instituíram um novo padrão econô- mico e social no Brasil. Por fim, conhecerá as mudanças ocorridas nos anos 2000, principalmente após a ascensão dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Panorama da democracia brasileira pós-1985 Caroline Silveira Bauer Anos 1980: esperanças e frustrações O governo de José Sarney (1985–1989) foi marcado pelas tentativas de gestão da crise econômica e pelos debates legislativos e no espaço público sobre a elaboração da nova Constituição. Do ponto de vista econômico, houve uma sucessão de planos para conter a inflação e estimular o consumo. O primeiro deles, chamado de Plano Cruzado, foi lançado em março de 1986, após o primeiro ano do governo Sarney acumular 220% de inflação. Tratou-se de um plano que envolveu os seguintes fatores: uma reforma monetária, com a mudança da moeda (do cruzeiro para o cruzado); o congelamento dos preços e dos salários por um ano, com a existência do “gatilho salarial” (caso a inflação atingisse 20%, os salários aumentavam na mesma proporção); e criação do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), como base para as correções monetárias de aplicações financeiras e da poupança (FERREIRA, 2018). Em um primeiro momento, o Plano foi um sucesso, pois conteve a in- flação e aumentou o poder aquisitivo da população. O clima de euforia e otimismo fez muitas pessoas passarem a se reivindicar como “fiscais do Sarney”, monitorando o aumento de preços e denunciando as remarcações realizadas. Como reação, os fornecedores empreenderam ações de boicote e desabastecimento, o que fez a inflação retornar, prejudicando a execução do Plano (FERREIRA, 2018). Após as eleições de novembro de 1986, o governo editou o Plano Cru- zado II, que liberou o preço dos produtos e dos serviços e alterou o cálculo da inflação, que passou a ser medida a partir dos gastos de famílias com renda de até cinco salários-mínimos. Bebidas alcóolicas e cigarros tiveram os impostos aumentados. Contudo, houve um aumento das importações e uma diminuição das exportações, o que levou ao esgotamento das reservas cambiais (FERREIRA, 2018). Menos de três meses depois, o Governo Federal decretou moratória, suspendendo o pagamento da dívida externa. Como consequência, houve um aumento dos preços de produtos e serviços, e a inflação disparou. Com as críticas e o descontentamento da população, o então ministro Dílson Furtado foi substituído por Luis Carlos Bresser Pereira, em abril de 1987, que implementou o Plano Bresser, que também fracassou. No final de 1987, a inflação anual acumulada havia atingido a marca de 366%. Em janeiro de 1988, Bresser deu lugar a Maílson da Nóbrega (FERREIRA, 2018). Em 15 de janeiro de 1989, Maílson da Nóbrega apresentou um novo plano econômico, o Plano Verão. Com esse plano, foi instituída uma nova moeda, o Cruzado Novo, mas novamente congelaram-se os preços. A solução pro- Panorama da democracia brasileira pós-19852 posta por Maílson da Nóbrega foi a privatização de estatais e a exoneração de funcionários públicos contratados nos últimos cinco anos. Novamente, o plano fracassou, com a disparada da inflação (FERREIRA, 2018). Para além dos sucessivos fracassos dos planos econômicos, o governo de José Sarney também foi marcado por escândalos de corrupção. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi montada no Senado e, em suas investigações, denunciou o presidente da República, ministros de Estado e outras pessoas por utilizarem critérios escusos na liberação de recursos públicos. Contudo, a denúncia não foi levada adiante, e as acusações não foram apuradas. De acordo com Carvalho (2002, p. 203): […] houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do terceiro ano do governo Sarney, o desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam o grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, o Legis- lativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses. Constituição de 1988 No dia 28 de junho de 1985, José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional a proposta de convocação de uma Constituinte. Segundo Bauer (2019, p. 95): Após longos debates metodológicos, em 1º de fevereiro de 1987 iniciaram-se os trabalhos, com deputados e senadores divididos em 24 subcomissões temáticas. A participação popular foi intensa, com o encaminhamento de milhares de suges- tões via emendas populares – eram necessárias 30 mil assinaturas para que as propostas fossem apreciadas pela constituinte –, através das audiências públicas promovidas pelas subcomissões temáticas, para além da mobilização nas ruas. Esse engajamento era fomentado por slogans como “Constituinte sem povo não cria nada de novo”. A aprovação do texto constitucional ocorreu no dia 22 de setembro de 1988, e sua promulgação, em 5 de outubro de 1988. O reconhecimento e o exercício pleno de direitos de todas as ordens, garantidos pela Constituição, fez ela receber o nome de Constituição cidadã (BOTELHO; SCHWARCZ, 2012). Panorama da democracia brasileira pós-1985 3 Uma das curiosidades sobre o texto constitucional é que ele previa a decisão sobre a forma de governo (república ou monarquia cons- titucional) e sobre o sistema de governo (parlamentarista ou presidencialista) para um plebiscito, que foi marcado para o dia 7 de setembro de 1993. A data, posteriormente, foi antecipada para 21 de abril, e a maioria dos votantes escolheu o regime presidencialista (55%) e republicano (66%), de acordo com Andreza Pires Carvalho, em seu trabalho de conclusão de curso intitulado “Voto rebelde é na monarquia!” : a disputa entre monarquistas x republicanos e parlamentaristas x presidencialistas no plebiscito de 1993. Entre as principais medidas instituídas pela Constituição de 1988, pode-se destacar as seguintes, conforme Carvalho (2002): � garantiu a universalidade ao voto, tornando-o facultativo para os anal- fabetos (à época, o Brasil possuía um número expressivo de pessoas com idade superior a 16 anos analfabetas); � tornou o voto facultativo a partir dos 16 anos e obrigatório após os 18 anos; � ampliou os direitos sociais, fixando em um salário-mínimo o valor mínimo para as aposentadorias e pagando uma pensão de um salário mínimo para todas as pessoas com deficiência e maiores de 65 anos. Criou, ainda, a licença paternidade, de cinco dias; � garantiu o direito de habeas data, de modo que qualquer pessoa pode exigir do governo acesso às informações existentes sobre si nos re- gistros públicos, mesmo as de caráter confidencial; � definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível e a tortura como crime inafiançável e não anistiável;� ordenou que o Estado protegesse o consumidor, dispositivo que foi regulamentado na Lei de Defesa do Consumidor, de 1990. Anos 1990: políticas neoliberais As eleições para presidente em 1989 foram o primeiro pleito com voto direto desde 1960. Todo o processo eleitoral foi regido pelas novas normas, esta- belecidas pela Constituição, com ampliação do direito ao voto, liberdade partidária e eleições em dois turnos. No segundo turno, disputaram as eleições Fernando Collor de Mello, pelo partido da Reconstrução Nacional (PRN), e Luis Inácio “Lula” da Silva, pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Panorama da democracia brasileira pós-19854 Collor foi eleito com um programa que incluía o fim da corrupção, a mo- ralização da política com a caçada aos marajás e a contenção da inflação. Além disso, merece destaque a sua política econômica de cunho neoliberal. De acordo com Carvalho (2002, p. 203–204): Seguindo velha tradição nacional de esperar que a solução dos problemas venha de figuras messiânicas, as expectativas populares se dirigiram para um dos candi- datos à eleição presidencial de 1989 que exibia essa característica. Fernando Collor, embora vinculado às elites políticas mais tradicionais do país, apresentou-se como um messias salvador desvinculado dos vícios dos velhos políticos. Baseou sua campanha no combate aos políticos tradicionais e à corrupção do governo. Repre- sentou o papel de um campeão da moralidade e da renovação da política nacional. Um dia após a sua posse, ocorrida em 15 de março de 1990, Collor lançou o chamado Plano Collor para a recuperação da economia. Foram tomadas medidas como o confisco monetário, o congelamento de preços e salários e a reformulação dos índices de correção monetária. Além disso, ele promoveu ações para diminuir o tamanho do Estado e seus custos, exonerando ser- vidores públicos e extinguindo autarquias, fundações e empresas estatais. Collor permitiu, também, uma abertura da economia nacional ao capital estrangeiro, seja por meio da entrada de mercadorias ou do financiamento externo. Essas medidas foram apoiadas pelas elites econômicas do País, que receberam positivamente a redução da intervenção do Estado na economia (MACIEL, 2011). De acordo com Muller (2003, p. 21): A transição para o neoliberalismo no Brasil deu-se de forma lenta, gradual e se confundiu com a ‘década perdida’ (década de 1980) e com a transição para a demo- cracia no país. Por isso, o estudo da transição para o neoliberalismo deve percorrer desde o início do processo de abertura democrática (1979) até a implantação do plano real (1994), momento de consolidação das políticas neoliberais no país. Nesse período de 15 anos ocorrem as mudanças que transformam a face do capitalismo brasileiro, alteram estruturalmente a vida política e ideológica do país, encerram o ciclo longo de desenvolvimento (1930-1980), e ao mesmo tempo tornam viável historicamente a fase neoliberalizante. No entanto, no ano seguinte, as dificuldades do plano de estabilização apareceram, pois a inflação não foi extinta, e a economia seguiu em reces- são. Além disso, circulavam rumores sobre a existência de um esquema de corrupção com a participação de alto funcionários e ministros do governo Collor (MACIEL, 2011). Panorama da democracia brasileira pós-1985 5 As suspeitas foram confirmadas quando o irmão do presidente, Pedro Collor de Mello, deu uma entrevista à revista Veja, em abril de 1992, falando sobre esse esquema de corrupção, baseado em tráfico de influências e irregu- laridades financeiras, organizado pelo empresário Paulo César Farias, amigo de Collor e coordenador financeiro de sua campanha eleitoral. No dia 26 de maio, o Congresso Nacional instalou uma CPI para apurar as denúncias quanto ao presidente, e, a partir de então, outras tantas entrevistas e reportagens realizadas pela imprensa explicitaram a corrupção do governo, de acordo com Maciel (2011). Com isso, setores da população passaram a exigir o “fora Collor”, principalmente os estudantes, que organizaram diversas passeatas exigindo o impeachment do presidente. Esse movimento ficaria conhecido como o movimento dos caras pintadas. Pressionado pela população, o Congresso aprovou o impeachment do presidente em dois turnos. Primeiro, na Câmara dos Deputados, em 29 de setembro de 1992, e, depois, no Senado Federal, em 29 de setembro de 1992. O Congresso destituiu o primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura por corrupção, e ainda cassou os seus direitos políticos por oito anos (MACIEL, 2011). Carvalho (2002, p. 205) afirma que: O impedimento foi sem dúvida uma vitória cívica importante. Na história do Brasil e da América Latina, a regra para afastar presidentes indesejados tem sido revo- luções e golpes de Estado. No sistema presidencialista que nos serviu de modelo, o dos Estados Unidos, o método foi muitas vezes o assassinato. Com exceção do Panamá, nenhum outro país presidencialista da América tinha levado antes até o fim um processo de impedimento. O fato de ele ter sido completado dentro da lei foi um avanço na prática democrática. Deu aos cidadãos a sensação inédita de que podiam exercer algum controle sobre os governantes. Com o impeachment de Collor, o vice-presidente Itamar Franco assumiu a presidência da República para o término do mandato. Todavia, seu governo também foi marcado por escândalos de corrupção, assim como o de seus antecessores. Uma nova CPI do Congresso Nacional, que funcionou entre 1993 e 1994, investigou e confirmou um esquema de corrupção que envolvia o orçamento da União, com desvios de dinheiro. Seis deputados tiveram os seus mandatos cassados e outros quatro renunciaram para não perder os seus direitos políticos. Além dos escândalos de corrupção, no governo de Itamar Franco, foi anunciado, no final de 1993, o Plano Real, elaborado pelo ministro da Fa- Panorama da democracia brasileira pós-19856 zenda Fernando Henrique Cardoso. O Plano Real, a ser implementado ao longo de 1994, previa a implantação dos preceitos do neoliberalismo no Brasil, segundo Motta (2018a). O sucesso do Plano foi um dos motivos que impulsionou a candidatura de Fernando Henrique Cardoso, que ganhou as eleições de 1994 à presidência da República ainda no primeiro turno, dando início à chamada era FHC. Era FHC Fernando Henrique Cardoso foi presidente da República por dois mandatos consecutivos, eleito sempre em primeiro turno, e o período entre 1995 e 2002 ficou conhecido como era FHC. O governo FHC foi marcado por modificações na política interna e externa do Brasil. Na política externa, destaca-se a criação do Mercosul. O acordo entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai previa a criação de uma área de livre comércio entre os países, o que foi efetivado não sem conflitos entre os países- -membros. Posteriormente, Bolívia e Chile se tornaram membros associados. A criação do Mercosul inseria-se em uma conjuntura de formação de blocos econômicos, a exemplo da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte). Já na política interna, FHC obteve apoio do Congresso Nacional para a aprovação de suas propostas de emendas constitucionais e, assim, dar pros- seguimento aos seus planos econômicos neoliberais. A reforma constitucional proposta por FHC era justificada como necessária para a modernização da economia e a retomada do crescimento econômico. Dessa forma, foram realizadas modificações na Constituição que permitiram a quebra dos mono- pólios do petróleo e das telecomunicações, entre outras medidas de caráter liberal. De acordo com Filgueiras (2006, p. 194): O processo de desregulamentação – com a quebra dos monopólios estatais em vários setores da economia – juntamente com o processo de privatização das empresas públicas, reduziu bastante a presença do Estado nas atividades direta- mente produtivas, fortalecendo grupos privados nacionais e estrangeiros – dando origem a oligopólios privados,redefinindo a força relativa dos diversos grupos econômicos e enfraquecendo grupos políticos regionais tradicionais; além de permitir demissões em massa e enfraquecer os sindicatos. FHC também deu continuidade ao Plano Real, realizando ajustes econô- micos nas taxas de juros e no câmbio, a fim de estimular as exportações e equilibrar a balança comercial. Embora o Plano tenha sido exitoso no controle Panorama da democracia brasileira pós-1985 7 à inflação, ele não impediu a queda no consumo e as demissões em massa, resultantes da recessão econômica (MOTTA, 2018). Esse foi um período em que o Brasil recorreu inúmeras vezes a emprés- timos de organizações estrangeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). A dívida externa brasileira cresceu exponencialmente no período, e os contratos com o FMI exigiam compensações, tais como medidas de austeridade e reajuste fiscal (desvalorização cambial, aumento de impostos e diminuição de gastos públicos) (FILGUEIRAS, 2006). Com a diminuição dos gastos públicos, áreas como a educação e a saúde foram bastante atingidas, bem como as condições de trabalho. De acordo com Filgueiras (2006, p. 188): […] junto com o desemprego e como produto de uma ampla desregulação do merca- do de trabalho – efetivada na prática pelas empresas e por diversos instrumentos jurídicos emanados dos sucessivos governos –, veio um processo generalizado de precarização das condições de trabalho – formas de contratação instáveis que contornam ou burlam a legislação trabalhista, prolongamento da jornada de trabalho, redução de rendimentos e demais benefícios, flexibilização de direitos trabalhistas e ampliação da informalidade – tudo isso, enfraquecendo e deslocando mais ainda a ação sindical para um comportamento defensivo. Assim, pode-se afirmar que as políticas econômicas e sociais dos dois mandatos de FHC seguiram o preconizado pelo chamado Consenso de Wa- shington, que ditava as premissas para os governos neoliberais. Houve a abertura comercial e financeira, as privatizações e as reformas que previam austeridade, como a diminuição do Estado e sua interferência na economia, bem como a condução do País por meio de uma política econômica ortodoxa, com juros altos e contenção de gastos correntes (MOTTA, 2018). Anos 2000: governos Lula e Dilma Rousseff A vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT nas eleições de 2002 representou um marco na história brasileira. De acordo com o historiador Motta (2018b, p. 415): […] após as tentativas fracassadas de 1989, 1994 e 1998, finalmente o operário metalúrgico e sindicalista chegou ao poder. Pela primeira vez uma candidatura claramente de esquerda ganhava as eleições presidenciais no Brasil, com a novi- dade extra de ter no comando alguém com o perfil de Lula, retirante nordestino e trabalhador braçal. As origens sociais e a imagem radical de Lula e do PT repre- sentavam uma parte do eleitorado e atraíam votos, porém, em outros segmentos, provocavam o medo que contribuiu para as derrotas anteriores. Panorama da democracia brasileira pós-19858 Conforme Motta (2018b), diferentemente do que propalavam os seus adversários políticos, o PT, majoritariamente, não possuía um projeto político revolucionário, apenas algumas alas internas defendiam propostas mais radicais, mas a maioria de seus membros situava-se no espectro político de centro-esquerda. Para Filgueiras (2006, p. 186): [...] com o abandono do programa histórico do PT, de caráter social-democrata- -nacional-popular, e com a manutenção do programa e das políticas neoliberais, o Governo Lula evitou enfrentamentos com o bloco dominante, governando com e para ele. Portanto, nem de longe, está se vivendo uma fase de transição pós- -neoliberal, mas sim um ajustamento e consolidação do modelo neoliberal – que tem possibilitado uma maior unidade política do bloco dominante, isto é, tem reduzido o atrito no seu interior. A vitória de Lula se deu devido ao esgotamento do projeto econômico e social da democracia-social, representado por FHC e o Plano Real, incapaz de manter a moeda valorizada e a inflação baixa. Além disso, houve uma aproximação com os setores empresariais e industriais, além da ala mais moderada da política, como pode ser percebido pela composição de sua chapa, com José de Alencar como vice-presidente (MOTTA, 2018b). Os governos de Lula foram marcados pelo cumprimento das promessas moderadas durante a campanha e pela negociação, por meio da formação de compromissos e coalisões, do ponto de vista político. Economicamente, para reverter a situação de desvalorização do real e a alta da inflação, o governo Lula investiu em medidas ortodoxas para estabilizar a situação econômica. De acordo com Filgueiras (2006, p. 186): […] o Governo Lula deu prosseguimento (radicalizando) à política econômica imple- mentada pelo segundo Governo FHC, a partir da crise cambial de janeiro de 1999: metas de inflação reduzidas, perseguidas por meio da fixação de taxas de juros elevadíssimas; regime de câmbio flutuante e superávits fiscais acima de 4,25% do PIB nacional. Adicionalmente, recolocou na ordem do dia a continuação das reformas neoliberais – implementando uma reforma da previdência dos servidores públicos e sinalizando para uma reforma sindical e das leis trabalhistas –, além de alterar a Constituição para facilitar o encaminhamento, posterior, da proposta de independência do Banco Central e dar sequência a uma nova fase das privatiza- ções, com a aprovação das chamadas Parcerias Público-Privado (PPP), no intuito de melhorar a infraestrutura do país – uma vez que a política de superávits primários reduz drasticamente a capacidade de investir do Estado. Por fim, completando o quadro, reforçou as políticas sociais focalizadas (assistencialistas). Ainda assim, segundo Motta (2018b), não é possível dizer que houve uma manutenção sem modificações das políticas neoliberais instituídas na década Panorama da democracia brasileira pós-1985 9 de 1990. A visão de Estado mínimo e privatista dos governos anteriores foi abandonada para uma ideia de um Estado como agente e planejador econô- mico. Sem dúvida, um dos principais destaques das duas gestões do governo Lula foram as políticas culturais e sociais, que permitiram um aumento da renda para os setores mais empobrecidos da população, bem como ampliaram o mercado para setores produtivos, criando oportunidades para investimento. Dos programas assistenciais desenvolvidos por Lula, destacam-se o Fome Zero, o Bolsa Família e as diferentes medidas culturais e educacionais para manter crianças e adolescentes nas escolas e os jovens nas universidades, cuja rede de unidades públicas foi aumentada. Contudo, também houve denúncias de corrupção durante os governos Lula, notadamente o chamado “escândalo do mensalão”, a partir das denún- cias do deputado Roberto Jefferson, que apontou o então deputado federal José Dirceu, do PT, como comandante de um esquema que envolvia outras lideranças do partido, conforme destacado por Motta (2018b). Entretanto: […] não houve denúncias diretas contra o presidente [Lula], apenas contra o segundo escalão do governo. Por outro lado, as forças de oposição parecem ter escolhido circunscrever o impacto da crise, talvez acreditando que o estrago já era suficiente para derrotar Lula nas eleições de 2006. Além disso, a situação econômica era positiva e tendia a melhorar, para muitos atores não fazia sentido aprofundar uma crise que poderia estragar o bom momento (MOTTA, 2018b, p. 429). Ainda assim, o PT sofreu uma perda importante de popularidade nas cidades, entre setores mais escolarizados e lideranças sociais, o que criou problemas com a imagem do partido, ainda que não tenha impedido Lula de se reeleger em 2006. De acordo com a análise do historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2018b, p. 430): O segundo mandato foi a fase áurea de Lula, quando ele atuou com mais segurança e desenvoltura e obteve notável reconhecimento. A liderançae o carisma do ex- -operário metalúrgico se firmaram em várias dimensões, alcançando fama mundial. Para isso contribuíram os bons resultados econômicos e sociais, a estabilidade política interna, a maneira como o governo enfrentou a crise econômica mundial em 2008 e a ousada política externa. Os resultados das políticas sociais distribu- tivistas apareceram com mais destaque nessa fase, em que ocorreram também os mais importantes investimentos educacionais. Igualmente, foi na segunda gestão de Lula que se consolidou o seu modelo desenvolvimentista, com destaque para ações no campo da infraestrutura e da energia. Panorama da democracia brasileira pós-198510 As vitórias políticas angariadas pelo PT durante o segundo mandato de Lula possibilitaram a vitória de Dilma Rousseff, apresentada como a “sucessora de Lula” na campanha presidencial de 2010. O novo governo manteve as políticas de Lula, dando continuidade ao desenvolvimentismo com o investimento estatal, além de manter as políticas de transferência de renda. Dilma apro- fundou as políticas de educação e de direitos humanos, principalmente no que diz respeito ao passado da ditadura civil-militar brasileira, com a criação da Comissão Nacional da Verdade. Para Motta (2018b, p. 434–435), do ponto de vista econômico: […] no primeiro momento, seu objetivo principal foi segurar a inflação e melhorar as contas públicas, já que o crescimento não parecia um problema, dado o ritmo expansionista no último ano de Lula. Por isso, Dilma concordou em reduzir o crédito e aumentar as taxas de juros, esperando provocar uma queda suave da atividade econômica. No entanto, a situação internacional se agravou, com novas baixas nos preços das commodities e queda nas exportações brasileiras. Além disso, o aumento da insegurança entre os empresários levou a que reduzissem investimentos na atividade produtiva. Em comparação com o governo Lula, a gestão de Dilma apresentou uma queda no crescimento do PIB: em 2011, o PIB cresceu 4%, porém, em 2012, ficou em 1,9%; em 2013, 3%; e, em 2014, apenas 0,5%, conforme o capítulo de livro “O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda”, de Rodrigo Patto de Sá Motta. Apesar dos problemas econômicos ainda em decorrência dos efeitos da crise de 2008, as maiores dificuldades do governo de Dilma vieram do campo político, com as manifestações de 2013 e dos anos seguintes, que foram radicalizadas por setores conservadores e da direita, passando a exigir intervenção militar e a destituição da presidenta. Ainda assim, Dilma saiu vitoriosa nas eleições de 2014, porém com uma margem pequena de votos, segundo Motta (2018b). Contudo, os partidos da oposição não aceitaram o resultado das eleições e passaram a questioná-lo na justiça, iniciando um processo de desestabilização do governo, trancando pautas encaminhadas pelo Executivo para a votação do Legislativo. Em pa- ralelo às denúncias e às apurações da Operação Lava Jato, deu-se início, em 2016, ao processo de impeachment da presidenta, acusada de crime de responsabilidade fiscal. Panorama da democracia brasileira pós-1985 11 Michel Temer, do PMDB, então vice-presidente, assumiu a presidência para o término do mandato, dando uma guinada neoliberal nas políticas econômicas e sociais, resultando em uma estagnação econômica semelhante à vivenciada nos anos 1990. De acordo com Souza e Hoff (2019, p. 14): […] a primeira reforma realizada foi a Proposta de Ementa Constitucional (PEC) nº 241/2016, a qual foi aprovada em 15 de dezembro de 2016 (Emenda Constitucional nº 95). Com o argumento de retomar o crescimento econômico, o Governo Temer limitou constitucionalmente os gastos públicos por 20 anos, diminuindo o Estado e impedindo que o sistema constitucional de proteção social (que inclui saúde, previdência e assistência sociais) funcionasse de maneira adequada às necessi- dades da população. Referências BAUER, C. S. Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da população sobre a prática da tortura. Estudos Ibero-Americanos, v. 45, n. 1, p. 91–103, 2019. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoameri- cana/article/view/31164. Acesso em: 20 out. 2020. BOTELHO, A.; SCHWARCZ, L. M. (org.). Cidadania, um projeto em construção: minorias, justiça e direitos. São Paulo: Claro Enigma, 2012. CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. FERREIRA, J. O presidente acidental: José Sarney e a transição democrática. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. A. N. (org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. Cap. 2. FILGUEIRAS, L. O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. In: BASUALDO, E. M. et al. Neoliberalismo y sectores dominantes: tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires: Clacso, 2006. p. 179–206. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf. Acesso em: 30 ago. 2020. MACIEL, D. O governo Collor e o neoliberalismo no Brasil (1990-1992). Revista UFG, v. 13, n. 11, p. 98–108, 2011. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/ view/48390. Acesso em: 20 out. 2020. MOTTA, M. A estabilização e a estabilidade: do Plano Real aos governos FHC (1993-2002). In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. A. N. (org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018a. Cap. 7. MOTTA, R. P. S. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. A. N. (org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018b. Cap. 12. MÜLLER, M. M. A transição ideológica para o neoliberalismo no Brasil contemporâneo (1979 a 1994). Revista do Centro Sociais e Humanas CCSH / UFSM, v. 16, n. 1, p. 21–32, Panorama da democracia brasileira pós-198512 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/1226. Acesso em: 20 out. 2020. SOUZA, M. B.; HOFF, T. S. R. O governo Temer e a volta do neoliberalismo no Brasil: possíveis consequências na habitação popular. Revista Brasileira de Gestão Urbana (URBE), v. 11, p. 1–14, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/urbe/v11/2175- 3369-urbe-11-e20180023.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. Leituras recomendadas CARVALHO, A. P. “Voto rebelde é na monarquia!”: a disputa entre monarquistas x re- publicanos e parlamentaristas x presidencialistas no plebiscito de 1993. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História) — Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs. br/handle/10183/189308?show=full. Acesso em: 20 out. 2020. SALLUM JUNIOR, B. O impeachment de Fernando Collor: sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. SINGER, A. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014). Novos Estudos CEBRAP, v. 102, p. 39–67, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/n102/1980-5403-nec-102-39.pdf. Acesso em: 20 out. 2020. TELES, E.; SAFATLE, V. (org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. ZAVERUCHA, J. Frágil democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares (1990-1998). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Panorama da democracia brasileirapós-1985 13
Compartilhar