Prévia do material em texto
Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social FACETAS DO RÁDIO Uma Etnografia das Emissoras de Ilhéus (Sul da Bahia) Silvia Garcia Nogueira Rio de Janeiro Fevereiro de 2005 Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social FACETAS DO RÁDIO Uma Etnografia das Emissoras de Ilhéus (Sul da Bahia) Silvia Garcia Nogueira Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Marcio Goldman Orientador Rio de Janeiro Fevereiro de 2005 FOLHA DE APROVAÇÃO SILVIA GARCIA NOGUEIRA FACETAS DO RÁDIO UMA ETNOGRAFIA DAS EMISSORAS DE ILHÉUS (SUL DA BAHIA) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2005. __________________________________________________ Marcio Goldman (Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro) __________________________________________________ Federico Neiburg (Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro) __________________________________________________ Antonádia Monteiro Borges (Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro) __________________________________________________ Christine de Alencar Chaves (Doutora, Departamento de Antropologia Universidade Federal do Paraná) __________________________________________________ Isabel Siqueira Travancas (Doutora, Bolsista do CNPq) Para Yasmin, cada minuto no campo e todas as linhas desta tese. AGRADECIMENTOS “ Nada está fora, nada está dentro. Pois o que está fora está dentro” (Bilhete de Erwin para Friedrich, em O Livro das Fábulas, de Hermann Hesse) Os agradecimentos que virão a seguir são dirigidos a todos àqueles com os quais tenho, de maneiras distintas, uma dívida de gratidão fundada nesses cinco anos de caminhada. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos os radialistas com os quais convivi em Ilhéus. A Jonildo Glória, em particular, que mesmo depois da volta para o Rio continuou tão disponível para responder às minhas dúvidas quanto durante meu trabalho de campo. Campo, aliás, somente possível devido ao total apoio do meu orientador, Marcio Goldman, que além de ter viabilizado os recursos necessários para sua realização, me apresentou ao município e contagiou-me com suas conversas sobre o lugar. Aproveito a oportunidade para agradecer também a convivência ao longo dos dez anos da nossa relação acadêmica, que se iniciou no mestrado, e a liberdade e a confiança depositadas para a realização deste trabalho. Ao professores José Sérgio Leite Lopes, Federico Neiburg e Gilberto Velho agradeço os ricos comentários proferidos na ocasião do meu exame de qualificação (primeira e segunda fases). Agradeço ainda a todos os demais professores do PPGAS com os quais convivi e em especial àqueles que contribuíram, por meio de suas aulas, à minha passagem do jornalismo para a antropologia. Só posso dizer muito obrigada aos professores Federico Neiburg, Antonádia Borges, Christine Chaves e Isabel Travancas, que aceitaram participar da banca examinadora desta tese. Longe de ser um agradecimento formal, agradeço sinceramente a oportunidade ímpar de ter um trabalho lido e criticado com tanta dedicação. Estendo os agradecimentos aos suplentes da banca, Otávio Velho e José Carlos Rodrigues, por terem aceitado “correr o risco” de precisarem participar da defesa. Para Isabel Travancas e José Carlos Rodrigues, um agradecimento especial – mesmo que ambos não me inspirassem academicamente com seus trabalhos desenvolvidos na interface Antropologia/Comunicação, os nossos encontros formais ou informais, sempre prazerosos, já justificariam o agradecimento. Sem os recursos financeiros que obtive da Capes (bolsa de doutorado), da Faperj (bolsa de doutorado, “programa Bolsa Nota 10”) e do Nuap/Pronex (que possibilitou minha ida e a permanência em Ilhéus) nada teria sido possível. Obrigada. Aproveito para agradecer também a convivência e a amizade de todos os colegas do Museu Nacional. Isso inclui também os funcionários da secretaria (Tânia, Luís Cláudio, Rose, Rita) e da biblioteca (Maria Izabel, Cristina e Carla). Para estas, um carinhoso agradecimento pelas inestimáveis ajudas, particularmente neste final de tese. Não é possível falar em final de tese sem lembrar de duas pessoas muito generosas: Georgina Marçal e David Rodgers (com Ana Paula). A primeira pelo atendimento de um pedido de última hora para revisar o texto (pagarei com prazer pelos serviços prestados: comprar roupinhas de bebê para uma família carente que ela ajuda). Nas mesmas condições de prazo, de uma noite para um dia, David aceitou sem qualquer porém transformar meu resumo em um abstract. Muito obrigada. Embora sejam os últimos nesta lista de agradecimentos, meus pais, minha filha e meu amor com certeza estão entre aqueles com os quais minha dívida de gratidão é maior – eterna, eu diria. A Heitor e Mirian, não tenho como pagar o apoio operacional, emocional, afetivo e intelectual para a realização desta tese (na verdade, ao longo da vida). A Yasmin, anexo ao agradecimento um pedido de desculpas por tê-la levado involuntariamente para morar longe de casa (consolo-me, contudo, por entender que essa experiência enriqueceu sua vida) e o aviso de que “mamãe voltou”. A Paulo César respondo definitivamente à sua constante pergunta “em que posso te ajudar?”: já ajudou muito e o tempo todo. RESUMO Este trabalho pretende apresentar uma análise etnográfica de cinco emissoras de rádio em Ilhéus (Sul da Bahia), contemplando as relações que se estabelecem dentro desse universo. Procura, ainda, investigar a inserção do rádio em uma dimensão mais ampla no município - por exemplo, em interação com esferas políticas e religiosas -, com a intenção de inspirar reflexões sobre os significados sociais do rádio e o exercício profissional de radialista. Tendo como base as visões nativas acerca das experiências vivenciadas pelos participantes desse universo, esta tese abandona a idéia do rádio como um meio de comunicação de massa para tratá-lo como um espaço social com múltiplas facetas. ABSTRACT This thesis looks to provide an ethnographic analysis of five radio stations in Ilhéus (south of Bahia state, Brazil) through a close examination of the relations generated within this universe. It also investigates the ways in which radio is inserted within a wider local space – including, for example, its interaction with political and religious spheres – as a means of deepening our understanding of the social meanings of radio and the radio broadcasting profession. Taking as its basis native ideas concerning the experiences of people involved in this universe, the study abandons the idea of radio as a medium of mass communication in order to explore it as multi- faceted social space. SUMÁRIO INTRODUÇÃO …………………………………………………………………........................11 CAPÍTULO 1 - OS RADIALISTAS E SUAS MEMÓRIAS ...................................................35 1.1 Trajetórias das rádios....................................................................................................41 1.1.1 Rádio Culturade Ilhéus..................................................................................45 1.1.2 Rádio Jornal/Rádio Santa Cruz .....................................................................49 1.1.3 Rádio Baiana/Rádio NovoTempo/Rádio Baiana...........................................61 1.1.4 Rádio FM Cidade de Ilhéus...........................................................................67 1.1.5 Rádio Gabriela FM........................................................................................70 1.2 Percepções nativas do passado no presente: política, tecnologia e interior..................73 CAPÍTULO 2 – RÁDIO: PROFISSÃO ......................................................................................83 2.1 Trajetória do rádio no Brasil.........................................................................................85 2.1.1 Neutralidade e parcialidade............................................................................88 2.2 Ingresso na carreira de radialista..................................................................................94 2.2.1 Idealismo na época boa do rádio e missão profissional..............................102 2.2.2 Voz, nomes de radialistas e gêneros de programa.......................................104 2.2.2.1 Esporte e polícia............................................................................112 2.3 Premiações..................................................................................................................113 2.3.1 Condutas passíveis de reprovação................................................................115 2.4 Sindicato.....................................................................................................................121 2.4.1 Cargos, salários, jornadas de trabalho..........................................................124 2.5 Conflitos e dilemas profissionais................................................................................129 2.5.1 Locutor ou comunicador?............................................................................132 2.5.2 Script ou improviso?....................................................................................135 2.5.3 AM ou FM?..................................................................................................138 2.5.4 Um vício, um carma ou um grande amor?...................................................141 2.6 Entrosamento e cooperação profissionais...................................................................147 CAPÍTULO 3 – RÁDIO E POLÍTICA ....................................................................................154 3.1 As rádios, os políticos e a política..............................................................................156 3.1.1 Trabalho social: demandas, encaminhamentos, atendimentos....................162 3.2 As rádios e os recursos................................................................................................167 3.2.1 Popularidade, prestígio e parceria................................................................172 3.2.2 Adesão sem dependência da política...........................................................174 3.3 O jogo.........................................................................................................................179 3.3.1 Radialistas: formas de pressão e procedimentos defensivos........................180 3.3.2 Estratégias dos políticos...............................................................................185 3.4 Assessoria de Comunicação Social.............................................................................191 3.4.1 O Assessor de Imprensa...............................................................................196 3.5 Radialista ou político?................................................................................................200 3.6 Dominação dos meios de comunicação de Ilhéus: breve comentário........................208 CAPÍTULO 4 – RÁDIO E IGREJA .........................................................................................212 4.1 O primeiro contato em 2000.......................................................................................216 4.1.1 Rádio Novo Tempo......................................................................................219 4.1.1.1 Entre marretadas e férias, com respeito........................................223 4.1.2 Rádio Cultura e FM Cidade.........................................................................226 4.1.2.1 As grades e as barreiras invisíveis.................................................228 4.2 A volta em 2002: sem a Novo Tempo........................................................................233 4.2.1 Repórter da Globo disfarçada......................................................................237 4.2.2 Operação credencial.....................................................................................238 4.3 Os radialistas não evangélicos e os pastores...............................................................241 4.3.1 Entre sussurros e espreitas...........................................................................244 4.3.2 Alternativa: ser do sindicato........................................................................248 4.4 Mundo do rádio e mundo da Igreja............................................................................250 4.4.1 Normas de condutas apropriadas dentro e fora da emissora........................254 4.4.2 Status diferenciados.....................................................................................258 4.4.3 Quem quer e quem não quer trabalhar em uma rádio religiosa...................262 4.5 Mundo da Igreja e universo político...........................................................................264 CAPÍTULO 5 – RADIALISTA E OUVINTE ..........................................................................271 5.1 Combate à solidão e meio de socialização..................................................................282 5.2 Personagens, personalidades: o radialista e seu duplo................................................287 5.3 Rádio e Internet...........................................................................................................293 5.4 A voz e a aparência.....................................................................................................298 5.4.1 Voz bonita e padrão de beleza.....................................................................302 5.5 Meios de contatos: cartas, telefonemas, visitas..........................................................308 5.5.1 Por carta: denúncia, apelo, pedido, promoção, elogio.................................309 5.5.2 Ao telefone: opinião, alô e recado...............................................................315 5.5.3 Visitas à rádio..............................................................................................320 5.6 Criar intimidade ou dar ousadia: os limites da relação entre radialista e ouvinte.....323 5.7 Radialistas e ouvintes.................................................................................................330 CONCLUSÃO............................................................................................................................338 GLOSSÁRIO..............................................................................................................................348 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................362 11 INTRODUÇÃO “...o processo químico onde palavras se juntam a outras palavras em sentenças para formar um composto mais complexo” (Louise Varèse) Sobre o que é esta tese? A resposta à pergunta feita ao longo de todo o processo de pesquisa - trabalhode campo, leitura de bibliografia, análise de material e redação - foi ganhando substância ao longo do tempo. É uma descrição analítica de cinco emissoras de rádio de Ilhéus, no Sul da Bahia, e uma análise etnográfica das relações que se estabelecem dentro desse universo, daquilo que o compõe, e o insere em uma dimensão social mais ampla. Trata-se, ainda, de um estudo que pretende inspirar reflexões sobre os significados sociais do rádio e discutir algumas questões relativas ao próprio veículo de comunicação e ao exercício da profissão de radialista. Tais possibilidades de leitura da tese fazem referência a um conjunto de dados coletados ao longo de 11 meses de pesquisa, divididos em dois períodos - julho a dezembro de 2000 e fevereiro a julho de 2002. Durante esse tempo, ocorreu uma modificação de foco. A proposta inicial, norteadora do primeiro trabalho de campo, era investigar a dinâmica dos meios de comunicação em um contexto social relativamente passível de controle analítico, de modo que fosse possível tecer uma espécie de quadro etnográfico local de algo que eu chamaria de meio jornalístico. Essa pretensão correspondia à expressão de um desejo de dar continuidade a um trabalho de pesquisa anterior, que teve como objeto de investigação as redações de dois grandes jornais no Rio de Janeiro (Pereira 1998). Desta vez, a idéia era tentar ampliar o espectro de 12 determinadas linhas de questões levantadas, já que elas foram limitadas naquela ocasião a uma única mídia. A escolha dos veículos para investigação foi estabelecida a partir da pergunta sobre quais eram as principais fontes de informação da população de Ilhéus, o município selecionado por atender a exigências como tamanho da população (pelo Censo Demográfico/2000 do IBGE, 222.127 habitantes, dos quais 162.125 residentes na área urbana) e acesso a diferentes tipos de meios de comunicação.Antes, porém, a opção por Ilhéus se deveu ao fato de que o orientador desta tese e outros pesquisadores a ele relacionados haviam empreendido - ou ainda estavam desenvolvendo - estudos no local, o que facilitaria em grande medida a entrada no campo, tanto em relação aos aspectos operacionais (onde ficar, como circular no município) quanto às informações prévias à pesquisa (quantos e quais os veículos de comunicação social, panorama político municipal, dados sobre diferentes segmentos sociais, literatura local). Para chegar à lista final dos meios de comunicação a serem estudados, foram feitas observações e estabelecidas conversas informais nas bancas de jornal com os jornaleiros, consultas a profissionais da imprensa local, observação do dia-a-dia das pessoas na rua. Foram, portanto, obedecidos dois critérios principais para a seleção final: o primeiro, centrado nas minhas próprias impressões ao chegar ao município e consulta anterior ao orientador deste trabalho; o segundo, tendo por base as indicações de pessoas com quem mantive contato assim que cheguei. Essa última orientação serviu na verdade como direcionamento para quase tudo na pesquisa, em sua dimensão metodológica inicial: procurou-se seguir sempre sugestões nativas sobre quem ouvir. Como numa configuração arbórea, foram sendo tecidos galhos de relações, em níveis cada vez mais complexos. Obviamente, alguns nomes apareciam mais repetidamente que outros, assim como suas respostas às minhas perguntas sobre os meios de comunicação mais 13 utilizados como fontes e outras indagações posteriores. Estariam contempladas, assim, duas emissoras de televisão localizadas no município vizinho (Itabuna), cinco emissoras de rádio em Ilhéus, dois jornais semanais de Itabuna e um diário local. Desse modo, no primeiro trabalho de campo, procurou-se fazer um mapeamento dos meios de comunicação, tentando entender a dinâmica de integração entre eles e suas rotinas particulares. Paralelamente, foi sendo construído um quadro de relações entre os diversos profissionais e destes com outros segmentos da sociedade local, como o político. Para chegar a esses dados, acompanhou-se diariamente o cotidiano das emissoras e redações, e foram realizadas entrevistas formais e informais com os profissionais. No intervalo até o trabalho de campo seguinte, ficou claro que o tempo limitado para realizar a pesquisa não possibilitaria conhecer em profundidade a dinâmica do meio jornalístico local. Analisando o material, foi feita a opção por concentrar a análise nas emissoras de rádio de Ilhéus, uma vez que, se por um lado, era o veículo que estava exclusivamente sediado no município, por outro, e talvez por esse fato mesmo, parecia ser o que interagia com maior proximidade e regularidade da vida social local, tanto em seus níveis institucionais (relações com a prefeitura, a câmara de vereadores, a associação comercial, etc.) quanto de modo interpessoal, no contato constante e direto com as pessoas no município - moradores ou gente de passagem. Um outro fator determinante, de ordem pessoal, foi o fato de desde o início eu ter sido bem recebida entre os radialistas. O acesso a eles e a empatia ocorrida desde o primeiro momento do contato foram significativos. Essa sensação, porém, diz respeito a algo além de uma experiência pessoal. Trata-se de uma característica do próprio meio estabelecer proximidade com quem entra em relação. Por isso, é considerado por eles como o veículo de mais fácil acesso à população em geral. Ou, na linguagem dos radialistas locais, o mais popular. 14 O segundo trabalho de campo consistiu no acompanhamento diário das atividades desenvolvidas nas emissoras, em entrevistas formais e informais com quase todos os radialistas atuantes e na convivência fora dos recintos das emissoras. Com a confiança adquirida a partir do cumprimento da promessa de volta em um outro período para dar seguimento à pesquisa, modificando a natureza das nossas relações - de pesquisadora do Rio de Janeiro para Silvinha -, o método da observação participante foi delineando cada vez mais o meu nível de participação nas atividades profissionais daqueles que formalmente constituíam meu objeto de pesquisa. Se antes eu eventualmente era chamada para opinar no ar sobre determinados assuntos, por minha autoridade acadêmica, passei a ser estimulada a fazer outros tipos de tarefas nos bastidores. Ajudei a produzir programas, fiz sorteios no ar, atendi pessoas que procuravam as emissoras, simulei ser alguém entrevistado na rua, passei até mesmo a ser reconhecida por ouvintes. Tornei-me também confidente, pela aquisição de um status ao mesmo tempo de alguém de fora e da casa, dependendo do tipo de comportamento que se esperava de mim e da visão particular de cada um dos radialistas a meu respeito A união das informações panorâmicas obtidas no primeiro período da pesquisa com os dados mais específicos no segundo permitiu um entendimento maior do modo como cotidianamente os acontecimentos concretos nas emissoras referem-se simultaneamente a um estrutura social mais ampla e a um momento de interação específico. Foi justamente essa percepção que tornou possível a pretensão de tentar construir uma análise do que seja não tanto o “mundo”, mas o universo do rádio em Ilhéus dentro do qual gravitam diferentes atores sociais com variados propósitos e expectativas. A noção de universo implica em compreender aquela realidade recortada para análise de um modo tal que as fronteiras que definem seus limites não possam ser cristalizadas de forma alguma, pois a etnografia realizada indica que os limites não podem ser precisamente definidos 15 nem pela natureza do próprio meio (a imprecisão do alcance das transmissões, a falta de conhecimento sobre todos os que efetivamente ouvem rádio e de que modo, os efeitos instantâneos e de longo prazo dos conteúdos veiculados sobre os ouvintes) nem pela dinâmica das emissoras e dos profissionais em interação entresi e com diversos outros segmentos da vida social em que estão inseridos. Essa opção não significa que não existam particularidades próprias comuns a determinadas pessoas a quem são atribuídos os pertencimentos a um grupo específico, o de radialistas, e tudo o que isso afeta. A identificação indivíduo-universo profissional é definida por meio de muitas frentes, variando desde a legislação profissional que indica quem é ou não formalmente radialista até o que poderíamos chamar de um estilo, um jeito de ser, em determinadas ocasiões. Antes, o que se defende é que essas são marcas importantes na vida real das pessoas identificadas como radialistas, embora não definam necessariamente todas as ações, as visões sobre a realidade experimentada, os sentimentos, as condutas e os valores que, em última instância, compõem o que as pessoas são e como se posicionam no mundo. Em conseqüência da adoção desse tipo de olhar, o rádio como um meio de comunicação de massa é destituído de sua característica de massa e tratada com um meio de comunicação que instaura um tipo particular de sociabilidade, na medida em que serve tanto de cenário quanto de motivo para que relações de diferentes naturezas aconteçam. As pessoas entram em relação e interagem nas rádios, com as rádios (e seus profissionais) e devido às rádios. De modo geral, os sujeitos da comunicação (emissores e receptores das mensagens) não são nem desconhecidos nem indefinidos. O trabalho de pesquisa mostrou, assim, a pouca rentabilidade do uso da noção de massa para analisar as relações concretas que se desenvolvem no universo estudado. Essa constatação etnográfica dá origem, portanto, a uma das teses deste trabalho: a de que as mensagens radiofônicas quase sempre possuem destinatários 16 predeterminados e conhecidos, embora o que poderia ser chamado de massa (ver mais adiante) também capte as mensagens. O mecanismo que permite isso é a existência de um conjunto de códigos dos quais os significados das mensagens estão dotados, cujo acesso é restrito aos reais interlocutores. Assim, quando um radialista dedica uma música para uma ouvinte dizendo que é para você, ouvinte, minha flor, para todas as ouvintes pode significar que ele está dedicando a música para cada uma em particular. No entanto, sua intenção é estabelecer uma comunicação restrita com a pessoa para quem ele efetivamente dedicou a canção – o código flor é combinado previamente com a destinatária da mensagem –, e esta sabe que é para ela que a mensagem foi emitida. Do mesmo modo, quando nas rádios se critica os serviços prestados por uma secretaria municipal, o objetivo de cumprir um serviço de utilidade pública é a leitura feita geralmente pelo público. O grupo político no poder, porém, ao ouvir a mensagem – e foi para ele que se emitiu a mensagem - entende que se trata de um recado enviado no ar de que é preciso negociar novos anúncios e maior apoio financeiro. Trata-se, portanto, de uma “linguagem subterrânea” (Goffman 1975: 180) estabelecida entre eles, embora captada em outro registro pelos demais receptores da transmissão. Uma outra tese que atravessa todo o trabalho é a de que o termo rádio é simultaneamente um lugar físico, uma atividade profissional e um espaço social, fazendo parte da vida cotidiana local em suas dimensões concretas e simbólicas. Em sua constituição, encontram-se bens materiais e imateriais, equipamentos e pessoas, normas e sentimentos, condutas e valores. A definição do que é rádio em Ilhéus ocorre no instante mesmo em que se desenrolam as diversas situações cotidianas e nas referências feitas a ele pelos atores envolvidos. Em decorrência disso, ser radialista corresponde simultaneamente a um processo de construção social – na medida em que os profissionais são legitimamente reconhecidos como tais e seguem trajetórias que os 17 qualifiquem para exercerem essa função – e de construção de si, não só por meio de condutas, preceitos morais e expectativas de comportamentos, mas também por sentimentos e valores que norteiam suas adesões pessoais à profissão, com reflexos em outras esferas de sua vida. Uma terceira tese levantada é a de que as posições ocupadas dentro desse universo do rádio não são de modo algum fixas para os agentes que o compõem, variando conforme a situação, embora cada um deles possua um status social predominante. Assim, existem radialistas que fazem política no rádio, e políticos que fazem rádio; radialistas que se comportam do mesmo modo que ouvintes, e ouvintes que dominam certos códigos profissionais; emissoras religiosas que compartilham a mesma lógica que sustenta a estrutura religiosa do grupo ao qual pertencem, sendo tratadas como partes integrantes, e pastores que utilizam a linguagem radiofônica para fazerem pregação religiosa. A proposta deste trabalho é, então, tratar o rádio como um universo que se delineia na situação a qual está referido, optando quase inevitavelmente por levar às últimas conseqüências as percepções nativas. A conseqüência disso é respeitar o que dizem sobre si nesse contexto e sobre o próprio contexto. Isso significa que a história, a percepção do funcionamento e do papel social, a relação entre as diversas empresas e destas com outros segmentos sociais, e os próprios temas que serão abordados neste trabalho partiram das pessoas com as quais convivi naqueles onze meses. Como de praxe na pesquisa antropológica que se pretende etnográfica, este trabalho resulta do encontro entre o olhar dos radialistas e as minhas reflexões sobre as vivências compartilhadas por/entre nós. No plano concreto, nossas experiências resultaram não somente neste trabalho como também estimulou um radialista e jornalista local, em conjunto com professores do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Santa Cruz, 18 localizada na região, a desenvolver um projeto de preservação da memória do rádio local, em função da observação desta pesquisa e da participação como entrevistado. Em contrapartida, além de desempenharem o papel central como razão de ser da tese, uma herança legada a mim involuntariamente pelo convívio foi o desenvolvimento de percepções antes não detectadas. Um determinado tipo de sensibilidade musical, maior atenção à voz e aos diversos conteúdos que carrega, e o envolvimento emocional nos dramas das pessoas foram alguns dos efeitos do campo. Talvez eles expliquem a cena de despedida para mim realizada por uma amiga locutora - no ar, como não poderia deixar de ser-, que lembrou mais uma vez à analista que eles eram tanto objetos de análise científica quanto de afeto. Foi esse sentimento que possibilitou, portanto, o nível de confiança que imagino ter adquirido dos meus informantes, gerando informações relevantes para se entender o rádio naquele universo. Indicou, ainda, que é impossível falar de rádio sem levar em consideração o quanto as emoções permeiam tudo o que é feito nesse meio. São elas que estimulam os ouvintes a ligarem para os programas ou procurarem a rádio, que faz com que alguns radialistas percebam sua profissão como um vício, um carma ou um grande amor, e que torne mais suportável a vida de algumas pessoas que têm na voz do locutor ou na convivência com os radialistas uma fonte de fantasia e inspiração. 18 Dialogando com algumas teorias O rádio está presente em mais de 90% dos lares brasileiros (Moreira 2002: 9). As explicações teóricas para essa maciça presença do rádio é a de que é o veículo de comunicação de massa mais barato, transmite informação imediata, explicando as notícias para as pessoas que estão em movimento e que são iletradas (Carneiro 1994: 118), e, além desses motivos, por estabelecer uma intimidade em sua recepção (Bordenave 1988: 73-74). As principais funções do rádio seriam a de oferecer entretenimento e informação (Mendelsohn 1979: 93), funcionando como um importantecanal de socialização (Dominick 1979: 99). Para outros autores (Nordlund 1979: 190; Katz et all. 1979: 214) o rádio pode tanto gerar algum tipo de “escapismo” da realidade vivida, que leva à solidão dos indivíduos, quanto pode servir como um modo de conectá-los em um outro registro. Apesar dessas características serem reconhecidas pelos estudiosos de comunicação em geral, como aponta Moreira (2002: 9-11), ainda existem poucos estudos sobre rádio, em especial os de caráter etnográfico, como os de Chagas (1993) e Boff (1994). Alguns trabalhos nessa área têm como tema o que poderia ser chamado de uma história geral do rádio no Brasil (Moreira 2000; Sampaio 1984; Murce 1976); outro conjunto de trabalhos voltou-se para o registro das trajetórias de emissoras (Saroldi & Moreira 1998; Chagas 1993; Moreira 1987), de programas (Casé 1995; Boff 1994; Costa 1992) e de profissionais do rádio em particular (Costa 1984; Pereira 1967); outros estudos, ainda, relacionam rádio à esfera política (Haussen 1997; Motter 1994) ou defendem a mídia como um meio de participação popular (Souza 2003; Charrasse 1981). 19 Nem mesmo na área de conhecimento, que ficou conhecida como da Teoria de Comunicação, nas pesquisas sobre a “indústria cultural”1, o rádio, abordado como um meio de comunicação de massa, vem sendo investigado em profundidade. Os estudo sobre esse meio, nas análises empreendidas, tendem a enfatizar o caráter de massa, que inclui também outras mídias, no lugar de tentar descrever a sua dinâmica particular. O conceito de massa relacionado aos meios de comunicação social tem sido objeto de discussão dentro de uma tradição de estudos e pesquisas que se iniciou no início do século passado (cf Araújo 1996, capítulo 2). Para Blummer (1971), a massa é destituída das características de uma sociedade ou de uma comunidade. Não possui organização social, costumes, tradição, um corpo estabelecido de regras ou rituais, um conjunto organizado de sentimentos, nem qualquer estrutura de status-papel ou liderança institucionalizadas. Na verdade, é constituída por um agregado de indivíduos que se encontram separados, desligados e anônimos e, mesmo assim, formando um grupo homogêneo em termos de comportamento de massa que, justamente por não resultar de regras ou expectativas preestabelecidas, é espontâneo, inato e elementar. A partir dessa definição, Freidson (1971) avança sobre a discussão acerca dos meios de comunicação de massa colocando em dúvida a adequação do termo para os veículos que seriam enquadrados nessa categoria (jornais, televisão, rádio e cinema), uma vez que os receptores das mensagens de modo geral não são compostos por pessoas anônimas entre si, 1 Desse modo, estudar as emissoras de Ilhéus a partir de pressupostos teóricos contidos em análises realizadas no âmbito das análises sobre a chamada “indústria cultural” (Adorno & Horkheimer 1985; Bourdieu 1997; Araújo 1996), “visão mediática” (Martín-Barbero 1995; Champagne 1997b) ou meio de comunicação de massa (Blummer 1971; Katz et al 1979; Araújo 1996) significaria, neste trabalho, reduzir a complexidade dos fenômenos encontrados e ignorar a premissa básica desta tese de respeitar as visões e percepções nativas. Tais termos, e tudo o que de algum modo podem engendrar – por exemplo uma certa passividade dos receptores das informações e a presença de uma espécie de conspiração política ou comercial 20 mas, ao contrário, costumam interagir com outras pessoas de seus grupos sociais comentando a respeito dos conteúdos emitidos. Por outro lado, o próprio Freidson aceita a aplicação do conceito de massa desde que a perspectiva seja não dos indivíduos mas dos grupos sociais. Schramm (1971) afirma ainda que o receptor da mensagem nunca pode ser classificado como passivo ou ativo, pois o que existe para ele é um contínuo que vai do mais ativo para o menos ativo. Analisando essa discussão presente entre os teóricos da comunicação, Rego (1986: 21) afirma que existem várias definições do conceito de massa e que “está quase universalmente aceito” que todas as mensagens transmitidas são “filtradas” pelos grupos sociais a que estão afiliadas quase todas as pessoas. Ele afirma, por fim, que “o que caracteriza o meio como sendo de massa [...] é o fato de que, sob o ponto de vista do comunicador, a mensagem é endereçada a quem interessar possa [grifo do autor]”, atingindo um grande número de pessoas (:24). À frente de uma das diversas correntes teóricas da Teoria da Comunicação que estudos ou meios de comunicação de massa, um dos autores que influenciou diversas gerações de estudiosos do assunto foi Marshall McLuhan (1979). Entre suas teorias, criticadas por diversos autores (entre eles, Orvell 1983; Meyrowitz 1985; Thompson 1998) a de que o meio é a mensagem, uma vez que modifica por si só a vida das pessoas ao desenvolver novas sensibilidades. Para McLuhan, os meios seriam classificados de acordo com sua natureza: quente, que se dirige a apenas um sentido, saturando-o, não deixando espaços para serem preenchidos - o rádio, o cinema, o livro, etc.-, e frio, que se dirige a mais de um sentido, deixando espaço para a imaginação completar o que não foi saturado, permitindo a distração - televisão, telefone, etc. (cf. discussão sobre o assunto em Araújo 1996). dos empresários do ramo – não são nem discutidos nem temas de reflexão para os radialistas de Ilhéus em seus afazeres diários. 21 Uma análise do rádio em Ilhéus, do ponto de vista das situações concretas presenciadas, permite afirmar que alguns desses pressupostos teóricos que vêm predominando nas teorias de comunicação devem ser problematizados. Em primeiro lugar, o alcance do rádio no município não parece direcionar-se especifica e intencionalmente com esse propósito para as pessoas iletradas, com objetivos de levar informações para um público que não teria acesso às notícias. Tal dimensão, embora algumas vezes constatadas no dia-a-dia das atividades radiofônicas, nunca pareceu ser necessariamente relevante para os atores sociais em questão (radialistas ou ouvintes). As distinções entre os ouvintes obedeciam a outros critérios que não necessariamente o letramento: proximidade com os radialistas, interações com os profissionais e visitas às emissoras, pertencimentos a redes sociais específicas, etc. Um outro pressuposto teórico e analítico utilizado por alguns teóricos da comunicação, como visto acima, descartado desde o início da pesquisa, foi a rentabilidade do conceito de massa para dar conta da investigação do universo do rádio em Ilhéus. Compartilhando da idéia apresentada por Thompson (1998: 30) de que “comunicação ‘de massa’ é uma expressão infeliz”, uma vez que o termo massa evoca a imagem de uma vasta audiência, o que se encontra em Ilhéus é que os receptores das mensagens transmitidas no rádio, o ouvinte, quase sempre tem voz, nome, endereço, sentimentos, e agência, não sendo passivos de modo algum. Nesse sentido, pode-se dizer que os sujeitos da comunicação por meio do rádio naquele universo social são quase sempre definidos. Mesmo que as mensagens tenham sido também proferidas para receptores sem rosto. Desse modo, uma mensagem era tanto proferida quanto decodificada de modo diferenciado em sua emissão e em sua recepção de acordo com o tipo de relação existente entre os interlocutores, que criam códigos comuns anteriores2 para a transmissão e o entendimento desejado da mensagem. Ou seja, apesar de atingir um grande 22 número de pessoas, nas situações concretas do dia-a-dia, quase tudo o que é transmitido é direcionado na maioria das situações para um indivíduo ou um grupo específico conhecido com intenções tambémsingulares: ouvintes fiéis, namorados (as), amigos (as), autoridades, políticos, diretores de órgão públicos, comerciantes, taxistas, etc. Pretende-se, portanto, abandonar o conceito de massa, uma vez que em sua dimensão concreta da vida cotidiana em Ilhéus, a comunicação via rádio funciona como uma conversa entre interlocutores que se conhecem ou que a partir do rádio fundam uma relação. Da perspectiva adotada para a análise do material coletado, optou-se por abandonar esse pressuposto de difusão para e em massa - salvo quando essa característica era discutida concretamente pelos agentes envolvidos - por entender-se que nada acrescentaria à percepção das relações em jogo naquele contexto local, um dos objetivos deste trabalho. Sob esse aspecto, este trabalho aproxima-se das abordagens etnográficas empreendidas por Chagas (1993) e Boff (1994), que acompanharam in loco o que se desenrolava na Rádio Farroupilha de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A primeira, buscando investigar os modos de interação de diversos segmentos populares com a emissora e seus profissionais, em especial com o radialista Sérgio Zambiasi. A segunda, focalizando freqüentadores de um programa radiofônico de namoro (“Namoro no Rádio”), com faixa etária entre 40 e 70 anos, para observar manifestações de afeto e meios de sociabilidade ali inaugurados. Distancia-se desses trabalhos especialmente pelo recorte analítico adotado: o foco de ambos direciona-se para o que as autoras denominam de grupos “populares”, freqüentadores da Rádio Farroupilha, que compartilham um determinado “ethos” – “tom jocoso, estilo melodramático, oralidade como característica fundamental da expressão” (Boff 1994: 9). Embora estabeleçam uma série de ressalvas a respeito do uso do termo “popular”, ao longo de 2 É preciso ressaltar que, como já observado por Chagas em pesquisa sobre uma emissora de rádio no Rio Grande do Sul (1993: 41), muitas vezes “o locutor partilha da mesma ‘origem’ de uma grande parte de seus 23 suas etnografias acabam por reforçá-lo, não somente por ele ter servido como critério para seleção dos sujeitos a serem investigados, como por terem explicitamente como contraponto longínquo – ou, seja, não tratadas diretamente mas citadas - as “manifestações culturais consagradas como legítimas (...) da ‘cultura dominante’” (: 41). Na pesquisa realizada em Ilhéus, o centro em torno do qual todas as fases de investigação giraram localizou-se nos radialistas em atividade profissional. Mesmo quando ouvintes e freqüentadores das emissoras foram analisados, as referências sempre foram os acontecimentos ocorridos dentro das rádios ou que envolviam diretamente algum radialista em atividade. Nesse sentido, o termo “popular” ao qual os informantes da pesquisa se referiam é tratado ao longo desta tese como um termo nativo e não proveniente de uma construção teórica analítica a priori. A noção nativa popular é muito mais maleável do que as apresentadas em tais estudos. Pode ter um sentido relacionado ao ethos, de que fala Boff, mas também pode estar ligado a uma idéia de amplitude. Pode, ainda, servir quase como uma palavra utilizada por “inércia”, sem muitas reflexões a seu respeito, uma vez que há uma representação difundida entre os radialistas de que toda rádio AM é popular. A manifestação de tal identificação (AM-popular) pode servir também como uma forma dos radialistas de AM dizerem que são diferentes dos profissionais de FM. O significado do termo e sua utilização pelos radialistas dependem, então, da situação e dos interlocutores nela envolvidos. A abordagem adotada nesta tese, aproxima-se, assim, de uma perspectiva interacionista, definida por Blumer (1980: 136-138) como relacionada a três premissas: o comportamento humano fundamenta-se nos significados dos elementos do mundo; a fonte dos significados é a interação social; a utilização dos significados ocorre através de um processo de interpretação. Para Goffman (1975), que além desta tese inspirou outros trabalhos sobre mídia (Meyrowitz 1985; Altheide 1985; Ericson et al.1989), a interação pode ser definida ouvintes-participantes”. 24 como toda intenção que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos, uns se encontram na presença imediata de outros (Goffman 1975: 23). Quando isso ocorre, suas ações influenciarão a definição que se vai apresentar (: 15). Quando um indivíduo desempenha o mesmo movimento para o mesmo público em diferentes ocasiões, “há a probabilidade de surgir um relacionamento social” (: 24), pois ele executa uma representação em um período caracterizado pela sua presença contínua junto a esse público sobre o qual exerce alguma influência (: 29). Fora da presença do público, do mesmo modo, nos bastidores ou fora dos cenários das rádios, também ocorrem interações contínuas, com tempos de durações variáveis, formando outros tipos de relações (: 137-139). Como observado por Goffman, “assim como é conveniente executar os diversos papéis do indivíduo diante de diferentes platéias, também é conveniente separar as diversas platéias que alguém tenha para o mesmo papel” (:129). O presente estudo, portanto, foi construído a partir das observações diárias das interações desenvolvidas nas rádios e fora delas, desde que envolvessem de algum modo os radialistas e seus relacionamentos sociais – nos termos apontados por Goffman. A percepção desta tese do que é universo do rádio em Ilhéus e de quem são os radialistas que o integram foi construída a partir da análise das situações em que os atores principais (radialistas) desempenhavam com destreza em suas representações seus papéis junto à platéia (os outros com quem interagem), tentando manter o controle das impressões (Goffman 1975: 114-115). A impressões causadas é que definiam, em grande medida, o estabelecimento e a manutenção dos relacionamentos sociais de diversas naturezas e por vezes simultâneas: profissionais, amorosas, religiosas, de amizade, por interesses financeiros e políticos. 25 O campo Para difundir um estilo de vida específico, e atrelado a interesses particulares dos fazendeiros de cacau e líderes políticos da região, foram criados em Ilhéus os primeiros meios de comunicação social. Desde o início, com a fundação do primeiro jornal, em 1901, as principais motivações para o surgimento de um veículo de comunicação estiveram ligadas às questões políticas municipais e regionais (Barbosa 1994: 30). Essa representação persiste ainda junto aos profissionais de imprensa em atividade, ao fazerem uma análise do que pode ser chamado de imprensa local. Ilhéus foi fundada em 1534, como sede da Capitania doada por D. João III a Jorge de Figueiredo Correia. A partir de 1753 a Capitania foi incorporada à Coroa portuguesa, ficando subordinada à da Bahia na condição de Comarca. A partir de 1860, a produção cacaueira, uma nova atividade voltada para o mercado externo, passou a ser incrementada e expandida em Ilhéus, atraindo trabalhadores ociosos em região da fronteira, em busca de enriquecimento e possibilidade de ascendência social. A divulgação dessas possibilidades, porém, fazia parte de um projeto que envolvia os setores governamentais e os grandes proprietários rurais (Freitas & Paraíso 2001: 84-85). O período de implantação da monocultura do cacau pode ser localizado entre 1890 e 1920, tornando-se o principal produto baiano de exportação e influenciando a região sob vários aspectos: demográficos, sociais, econômicos, administrativos e políticos (:99). Isso ocorreu, em parte, pela crise da mão-de-obra, docapital e das condições do mercado internacional do açúcar na segunda metade do século XIX (Ribeiro 2001: 154). A partir do final da década de 1920 e início dos anos 30, no entanto, a monocultura do cacau passou a alternar sucessivas crises – a primeira grande crise ocorreu entre 1928 e 1931 - 26 e retomadas de crescimento, até que na década de 1980 ocorreu a última grande crise – da qual ainda não saiu -, com a chegada da vassoura-de-bruxa na plantação, um problema não completamente sanado (Silva 2004). Se até o fim do século XIX a vila de São Jorge dos Ilhéus funcionava como um simples “aglomerado humano”, tendo como cultura de subsistência a pesca e o artesanato, com a implantação da monocultura do cacau surge um centro urbano, Ilhéus (Freitas & Paraíso 2001: 133-134). Em 1920 a população era de 10.779 habitantes, e 20 anos depois já era de 15.807 (: 138). Ao longo desse tempo, formou-se uma burguesia cacaueira, composta por grandes produtores e comerciantes exportadores (: 168). O capital formado e acumulado com o cacau foi aplicado na formação e manutenção de partidos políticos. O município tornou-se o reduto por excelência dos coronéis (Ribeiro 2001: 15), estabelecendo uma “estreita relação entre família, poder e território” (: 16). Os primeiros meios de comunicação social do município foram criados justamente para que essa elite política e econômica pudesse divulgar um estilo de vida específico e atender a seus interesses particulares. De acordo com Barbosa (1994: 30), o primeiro jornal de Ilhéus foi a “Gazeta de Ilhéus”, “periódico político e noticioso”, bissemanal, que funcionou de 1901 a 1906. O autor lista, além dele, até os anos 1970, o surgimento de 23 jornais, com tempos de funcionamento diferenciados – alguns resistiram a dois números outros permaneceram em atividade ao longo de vários anos. Entre estes, um jornal sempre citado durante o trabalho de pesquisa pelos radialistas e jornalistas locais foi o “Diário da Tarde”, fundado em 1928 e de propriedade de uma importante referência política local, Francisco Dórea. Na década de 90 ele é extinto, e alguns funcionários, então desempregados, se reúnem para fundar o “Diário de Ilhéus”, totalmente tipográfico, que passou a circular em 24 de julho de 1999. 27 Antes, nas décadas de 70 e 80, são fundados alguns veículos de comunicação, também em circulação, embora com periodicidade nem sempre regular: “Ilhéus Revista”, “Jornal da Manhã” (de um jornalista e radialista local) e outros informativos esporádicos. Além deles, publicações do vizinho município de Itabuna circulam no município: os semanários “Agora” (fundado em 1981) e “A Região” (de 1987), e o “Diário do Sul” (de 1999). As primeiras emissoras de rádio do município foram a Cultura de Ilhéus (1949), de Alceu Nunes da Fonseca, com o prefixo ZYW 7; a Jornal (1959), de Osvaldo Bernardes, ZYN 34; e Baiana (1961), de Robert Assef, ZYN 36. Depois vieram as rádios FM Cidade de Ilhéus (1983), do fazendeiro de cacau Roy Cox e Gabriela FM (1994), do empresário mineiro Valderico Reis. A rádio Jornal em 1979 transforma-se em Rádio Santa Cruz devido a um projeto político não concretizado de separação do sul da Bahia do resto do estado –recebendo o nome de Estado de Santa Cruz - e em 1994 a Baiana dá lugar à Rádio Novo Tempo, da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta, em 2001, é vendida para o ex-funcionário Salomão Batista, voltando a receber a denominação Rádio Baiana. A população de Ilhéus a partir de 1987 passa a contar com a emissão da TV Cabrália, vinculada à extinta Rede Manchete de Televisão. Em 1988, a TV Santa Cruz, afiliada à Rede Globo, entra em operação e, por fim, em 2003, passa a funcionar a TV Sul Bahia, ligada ao Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Todas localizadas em Itabuna. Embora funcionem como empresas distintas e com dinâmicas específicas, os meios locais de comunicação interagem permanentemente, seja por intermédio de seus profissionais que muitas vezes trabalham em mais de um tipo de veículo e pelas relações que mantêm entre si, seja devido ao fato deles constituírem simultaneamente como meios e fontes de informações para a divulgação de notícias produzidas pelos demais veículos. 28 Assim, um jornal tanto divulga uma notícia apurada por seus repórteres, quanto uma informação transmitida em uma emissora de rádio. Do mesmo modo, o conteúdo divulgado nos informativos das rádios tem como fonte principal as matérias publicadas nos jornais locais e estaduais, informações colhidas na Internet e revistas de divulgação nacional (“Veja”, “Istoé”, revistas de fofocas em geral). Essa prática ultrapassa os limites do rádio em Ilhéus: de acordo com Carneiro (1995: 118) é uma característica os jornais serem fontes para as rádios e a maioria das emissoras de rádio não contratarem repórteres. A interação entre esses meios de comunicação é que permite falar de uma imprensa local. Submetidas a características regionais, em especial aquelas relacionadas a uma estreita proximidade com a esfera política municipal – desde o surgimento do primeiro jornal, ou acompanhando a trajetória das rádios no município, as motivações para a criação de um veículo de comunicação tenderam a ser políticas -, a imprensa local sempre acompanhou os ciclos e ritmos mais amplos da vida social de Ilhéus: prosperidade obtida com a monocultura do cacau e o comércio, decadência financeira do município pela crise da produção e ligações cada vez mais estreitas com grupos políticos que se alternam no poder e ocupam a lacuna deixada pela falta de investimento do comércio local nos meios de comunicação em geral. Estrutura da tese A tese está dividida em cinco capítulos, além da Introdução, da Conclusão, do Glossário e dos Anexos. Cada um dos capítulos funciona de modo relativamente autônomo. Embora tenham como referencial o mesmo objeto, correspondem tanto a aspectos distintos do universo do rádio quanto a abordagens diferenciadas dos temas focalizados. Essa autonomia remete à opção analítica adotada, pelo entendimento de que a variação de algum modo está presente no próprio objeto de pesquisa, cuja característica principal é a diversidade: de estilos 29 de programas e radialistas, de ouvintes, de papéis que desempenham, de modos de interação com variados segmentos sociais, de sentimentos e emoções que envolvem a prática profissional cotidiana. A escolha por apresentar os dados da forma mais próxima possível da visão dos radialistas e de seu cotidiano se refletiu ainda na linguagem adotada ao longo de todo este trabalho: um tom coloquial, utilizado no dia-a-dia dos atores sociais analisados, e a incorporação no texto em fonte normal de palavras e expressões específicas do meio profissional, que foram usados para dar uma espécie de “clima” das experiências compartilhadas pelos agentes estudados e pela própria analista . Para facilitar a leitura dos termos nativos, ao final da tese, um glossário trará explicações a respeito de seus significados. Para uma melhor compreensão gráfica sobre as procedências dos termos utilizados (idéias minhas, dos radialistas em geral ou algum em particular, de autores citados) foram seguidos os seguintes critérios: 1) toda vez que uma palavra, uma expressão ou uma fala aparecer em itálico, indica uma palavra, uma expressão ou uma fala dita literalmente por algum nativo, podendo estar incorporada no texto de modo corrente, ou explicitamente destacada como uma citação nativa; 2) as “aspas duplas” serão utilizadas sempre que um termo corresponder a uma palavra ou uma expressão da analista - inspirada pelo contexto estudado - ou por uma pequena citação de algum autor, com a respectiva indicação da fonte; 3) as citações de autores com mais de três linhas serão destacadas com margens, corpos de letras e entrelinhas diferenciados no corpo do texto, aparecendo sem nenhum tipo deaspas ou caracterização do estilo da fonte usada. A narrativa da tese, além de coloquial, procurou seguir um modelo de apresentação que abrange simultaneamente descrições etnográficas e respectivas análises, em vez de separar o que poderia ser identificado como um conjunto descritivo, de um lado, e de outro, 30 um conjunto interpretativo e teórico. Espera-se que, assim, ocorra uma melhor fluidez na leitura deste trabalho, com a construção processual de uma interpretação sobre o objeto da análise em questão. Assim como ocorreu em relação aos aspectos gráficos e formais da tese, a opção pela proximidade estabelecida com os atores sociais estudados fez com que a abordagem etnográfica, a “descrição densa” tal qual definida por Geertz (1973: 15-17), norteasse todas as etapas da investigação, da pesquisa de campo à análise final cujo resultado é esta tese. Isso significa que os pontos de vistas e dados apresentados nesta etnografia baseiam-se em relatos e representações nativas – mesmo que em alguns momentos conflitantes entre si - sem que se entre no mérito de suas correspondências necessariamente concretas. O posicionamento adotado, portanto, tenta afastar-se ao máximo de qualquer julgamento moral pessoal, ou mesmo verificação se o que foi dito era “verdade”. Tal procedimento ocorreu por entender-se que as visões nativas devem ser levadas a sério, possuindo um valor em si mesmas, uma vez que resultam das experiências vividas e das interpretações dos agentes sobre elas, bem como compõem o que analiticamente está sendo chamado de universo do rádio em Ilhéus. Duas últimas observações em relação à estrutura da tese. Os nomes aqui utilizados são fictícios, para garantir a proteção daqueles que em mim depositaram sua confiança. As exceções ocorreram sempre que se julgou que a identidade de alguém e as práticas de uma instituição eram amplamente conhecidas localmente - sendo inócua a manutenção do sigilo -, e que a revelação do nome não afetaria de modo significativo a vida daquela pessoa ou instituição citada. Ao contrário, há ainda alguns casos que a omissão da fonte tornou-se primordial, gerando três estratégias assumidas: uma identificação extremamente geral (de radialista, antigo radialista, etc.), uma não identificação de qualquer espécie (aparecendo 31 somente o depoimento ou a descrição de um acontecimento) e uma troca de caracterização (por exemplo, atribuir um nome masculino a uma mulher, e vice-versa). Por fim, a observação de que o acesso às diversas fontes de pesquisa (documentos, pessoas, organizações formais, etc.) foi diferenciado. Isso implicou tanto em uma variação relativa ao nível de profundidade dos assuntos abordados quanto à dimensão quantitativa dos dados apresentados. Para sanar essas limitações, procurou-se explicitar ao máximo o grau de acesso aos dados. Ainda em relação às fontes de pesquisa utilizadas em cada capítulo particularmente, a natureza de cada um provocou a utilização predominante de um ou mais tipos de fontes. Sendo assim, o primeiro capítulo, Os Radialistas e Suas Memórias, foi o que utilizou como principais fontes depoimentos formais, gravados (em sua maioria), e informais, dos agentes sociais em estudo, ou mesmo relatos registrados por eles em livros sob a forma de narrativas na primeira pessoa. O capítulo procura apresentar as trajetórias das emissoras de rádio em Ilhéus, a partir da memória dos radialistas que acompanharam e fizeram parte dos acontecimentos ao longo do tempo. Como fica claro nos depoimentos coletados, é possível perceber que os profissionais fazem uma distinção qualitativa entre o passado (época boa) e o presente do rádio, e que, embora tenha ocorrido um avanço tecnológico no meio, de modo geral as condições de trabalho atuais não são julgadas como as ideais. Isso faz com o exercício profissional seja avaliado pelos radialistas como típico de rádio no/do interior (em oposição à radio na/da capital). Finalmente, será apresentada a representação compartilhada entre os radialistas de que, desde o surgimento da primeira emissora, o rádio no município sempre esteve atrelado a interesses e grupos políticos e/ou religiosos. 32 O segundo capítulo, Rádio: Profissão, baseia-se na mesma proporção em depoimentos formais e informais dos atores sociais, e nas observações diretas e participantes da analista. É o capítulo da tese que trata de modo mais restrito o rádio como um ofício, e os radialistas como profissionais, sob uma ótica em que as relações do meio e as interações com outras esferas da vida social não são tratadas especialmente na análise – o que será realizado nos capítulos subseqüentes (Rádio e Política, Rádio e Igreja, e Radialista e Ouvinte). Para isso, apresenta algumas formas de ingresso na carreira, bem como as habilidades necessárias para o exercício profissional, e o papel desempenhado pelo sindicato da categoria. Mostra, ainda, alguns dilemas e conflitos vivenciados pelos radialistas, cujas performances podem ser passíveis tanto de premiações quanto de sanções formais. O terceiro capítulo, Rádio e Política, parte dos depoimentos formais, mas baseia-se principalmente nos depoimentos informais - alguns dados com pedidos de segredo de fonte - e na observação direta das situações presenciadas no cotidiano do trabalho de campo. Fontes documentais também foram utilizadas, em especial os jornais locais ou regionais, de modo assistemático. Ao analisar a rede de relações formada por profissionais do rádio e da política, por emissoras e órgão públicos e pela população em geral de Ilhéus, o capítulo busca mostrar que, no município, os radialistas ao desenvolverem suas atividades fazem de diversas maneiras política, e que os políticos fazem política por intermédio dos meios de comunicação. A existência de práticas comuns e representações coincidentes nos universos político e do rádio gera uma percepção pelos agentes – políticos, radialistas e população em geral – de que em Ilhéus rádio é política, frase repetida em vários depoimentos nativos. O quarto capítulo, Rádio e Igreja, assim como o capítulo anterior, definiu-se a partir de uma representação nativa de que fazer rádio em Ilhéus é mover-se entre a política e a religião. Os dados obtidos para descrever o “mundo” das emissoras evangélicas locais foram 33 os de mais difícil acesso. Desse modo, as descrições e análises empreendidas no capítulo basearam-se principalmente nos depoimentos formais e informais coletados junto aos radialistas não evangélicos e alguns poucos evangélicos, mas principalmente pelas observações diretas dos acontecimentos e as vivências particulares da analista. Entre elas, a submissão a uma série de constrangimentos e limitações impostos em relação à presença de alguém de fora nas emissoras. Este capítulo procura analisar, portanto, as especificidades das emissoras evangélicas de Ilhéus, que inseridas em uma rede social mais ampla, são norteadas por expectativas de condutas e valores religiosos à quais estão referidas. Tais orientações marcam o exercício profissional dos radialistas nessas emissoras e delimitam fronteiras simultaneamente concretas e simbólicas sobre aqueles que são da Igreja e aqueles que não são. Nesse sentido, o grau de confiança depositado sobre os integrantes das rádios e/ou do grupo religioso é que define os status sociais nessa rede que tende a misturar profissão com religião. O último capítulo, Radialista e Ouvinte, fecha a tese e a abordagem do rádio e dos radialistas em relações sociais mais amplas com outros segmentos. Observação direta e participante, conversas informais e depoimentos formais, além de documentos como cartas dos ouvintes foram as fontes utilizadas. O capítulo busca explorar tanto os aspectos formais da relação entre radialistas e ouvintes quanto os aspectos informais que norteiam as interações cotidianas, perto ou longedos microfones da rádio. Pretende-se discutir etnograficamente alguns pressupostos mais gerais no campo da teoria da comunicação - a abordagem do rádio como um meio de comunicação de massa e a utilização da categoria padronizada “ouvinte”, definidora dos receptores das mensagens radiofônicas -, mostrando como eles são pouco rentáveis para analisar a diversidade de experiências que ocorre entre os agentes envolvidos no processo de comunicação por intermédio de e no rádio. 34 Assim, serão abordados assuntos como solidão e socialização dos ouvintes via rádio; radialistas como personalidades no município e seus duplos ou personagens; a voz como instrumento de sedução e construção de existência do radialista e/ou ouvinte; os limites da intimidade estabelecida e construída entre radialistas e ouvintes, e seus efeitos concretos. Serão ainda traçados um breve paralelo entre rádio e Internet em seus aspectos relacionais, e um rápido comentário sobre a proposição desta tese, apresentada menos explicitamente ao longo da etnografia, de que todo radialista é ouvinte. A Conclusão procurará reunir algumas das principais questões abordadas no decorrer de todo este trabalho, funcionando como um fio condutor que costura todos os demais capítulos da tese. O Glossário, espera-se, cumprirá mais do que a função de tradutora de expressões nativas, tornando mais inteligível a compreensão dos termos utilizados pelos agentes sociais estudados. Acompanhados de fotos que servem de exemplos locais específicos, os termos trarão em alguns casos descrições e explicações relativas a acontecimentos presenciados, indo além das definições formais das palavras. Serão contemplados tanto os termos e as expressões, quanto os gestos correspondentes a códigos profissionais estabelecidos na comunicação interna ao grupo de radialista em atividade. Nos Anexos estão contemplados materiais que de algum modo enriquecem a compreensão do rádio em Ilhéus: programações das emissoras, cartas de leitores, notícias sobre o meio profissional em variados veículos de comunicação locais, fotos. 35 CAPÍTULO 1 OS RADIALISTAS E SUAS MEMÓRIAS “Porque os homens passam, e as opiniões duram, os homens perecem, e as opiniões germinam” (Rui Barbosa, “Ontem e Amanhã”) Em Ilhéus há uma relativa preocupação com o registro escrito dos acontecimentos históricos do município por aqueles que acompanharam seus desenvolvimentos de perto ou de longe (Freitas & Paraíso 2001; Macêdo & Freitas 2001; Sá Barreto 1988; Almeida 1996; Andrade 1996; Barbosa 1994; Heine 1994; Asmar 1987 e 1983). Apesar disso, quase nada existe sobre o que pode chamar-se de uma trajetória do rádio local, que implicaria no acompanhamento dos acontecimentos relativos às cinco emissoras do município. Se é que é possível falar de uma “história” das emissoras de Ilhéus, entendida como um desenrolar de fatos ao longo de uma linha de tempo, quase todas as informações obtidas para tal fim convergem para uma mesma fonte: os depoimentos e relatos daqueles que viveram os acontecimentos. Enquanto o registro de tais acontecimentos nas memórias individuais tende a obedecer a critérios afetivos que transformaram as vivências em lembranças, o momento do relato implicou, além dos mesmos critérios, em um julgamento racional do que deveria ser dito. A raridade de registro sobre esse assunto reflete uma não preocupação dos atores em formar o que foi denominado por um dos radialistas como uma memória do rádio local3. O 3 Não se pretende aqui dizer que é exclusividade do campo estudado a predominância do registro oral sobre o passado, com base nas memórias e seus respectivos relatos, mas tentar enfatizar que no caso das rádios em Ilhéus, o “sonoro” é uma referência para os atores que constroem o universo do rádio. O resultado disso é uma exacerbação da predominância do oral não apenas por características individuais dos que vivem ou viveram 36 próprio acesso aos documentos necessários ao funcionamento legal das rádios é tarefa difícil - ninguém sabe bem onde está4. Além disso, as fitas e o material escrito, contendo as programações diárias, duram em média de 30 a 60 dias, tempo exigido pela lei para o armazenamento dos dados para fins de fiscalização do órgão governamental responsável (Anatel). Assim, como quase tudo o que se produz em rádio é oral, se não for gravado e armazenado por um longo período, perde-se na memória dos ouvintes ou dos profissionais. Como é recorrente, para ter acesso a tal memória, é preciso que seus depositários sejam estimulados por alguma situação interna ou externa a torná-la pública, como, no caso, a coleta dos depoimentos para esta pesquisa. Os relatos, no entanto, foram inicialmente obtidos com a intenção de conhecer as trajetórias profissionais dos radialistas em atividade. Conforme iam contando suas vidas, falavam também do próprio entorno: das trajetórias das emissoras e da vida social de Ilhéus. Foram ouvidos, com esse propósito específico, 37 radialistas. Além de apresentarem as formas de entrada na profissão e o modo como as relações profissionais efetivamente vão sendo construídas, possibilitaram ainda a compreensão de como a rede de interações dos agentes nesse universo é tecida cotidianamente. Seria ingenuidade imaginar a existência de uma explicação simplista para o fato das pessoas não registrarem o passado do rádio de modo mais formal. Ao longo do trabalho de campo, tal questão não estava em jogo nem para aqueles sobre quem a investigação trata, e por isso mesmo, nem para aquela que os estava escutando. No entanto, analisando os depoimentos e interpretando vivências cotidianas compartilhadas, algumas pistas foram reveladas pelos dados obtidos, o que não significa que expliquem o fato, mas que auxiliam a nesse universo, mas por características que definem o próprio rádio, implicando em uma não preocupação dos agentes com o registro da própria “vida” do rádio local. 37 sua compreensão. Essa não preocupação nativa com a preservação de uma memória do rádio é sintomática de três características específicas do rádio: imediatismo, improviso e o sentimento de que tudo acontece por acaso. De acordo com os depoimentos e com a própria dinâmica diária das atividades nas rádios, o que importa é o agora, o que está indo ao ar, o preenchimento de cada instante com uma informação sonora. A programação vai sendo construída com a sucessão de cada fração de tempo, acompanhada pelos que comandam os programas por meio da observação contínua de um relógio. Os tempos são todos regulados - a hora do comercial, a hora de um quadro dentro do programa, o tempo para participação de ouvinte. Não é possível voltar ao instante passado. Nem é possível avançar. No ar, para seus profissionais, só existe o presente. Mesmo que eles tenham em mãos, como é comum, material organizado para ser consultado ao longo do programa, que ouvintes fiquem na linha telefônica aguardando o momento certo de entrar no ar ou que sejam esperadas ligações de repórteres em determinadas partes do município para dar informações frescas sobre acontecimentos nas áreas de polícia, hospital ou esporte. Nesse sentido, rádio, para seus profissionais, é imediatismo, e como tudo o que é percebido como imediato, é singular. Em parte, isso pode ser explicado pelo que Goffman (1975: 52) notou a respeito dos atores (radialistas) em interação com o que ele denominou “platéia habitual” (os ouvintes): “os atores tendem a alimentar a impressão de que o atual desempenho de sua rotina e seu relacionamento com a platéia habitual tem um caráter especial e único”. O idioma para se chegar ao ponto em que todos sentem aquele momentocomo específico, especial, único, é o 4 Desconfiei que alguns soubessem, mas o fato é que não consegui ver nenhum documento. É bom lembrar, claro, que as concessões dos serviços possuem duração de 10 anos (Art. 223 parag. 57, Constituição Federal. Para uma reflexão acerca das renovações das concessões de rádio e TV ver Amorese 2000. 38 da “espontaneidade” - ainda para utilizar uma expressão de Goffman - ou o que os nativos chamam de improviso. Há uma polêmica local entre os profissionais de rádio se o programa fica melhor quando é feito com base no improviso ou se ele deve ser completamente planejado, para evitar erros ou problemas, uma vez que não há a possibilidade de apagar o erro, mas apenas de remediá-lo em uma transmissão radiofônica. De qualquer modo, há um consenso de que o bom radialista é capaz de improvisar bem, contribuindo para o sucesso do programa junto aos ouvintes, e que o mal ou o inexperiente não conseguirá fazê-lo bem. Além disso, sendo o programa planejado ou não, o ouvinte deve captar sinceridade/espontaneidade nas palavras do locutor, formando assim a impressão de que o momento é realmente único, especial5. E como tal, não se repete. Ao lado do imediatismo e do improviso no rádio, uma outra idéia marca tanto as trajetórias profissionais dos radialistas quanto as atividades que eles desenvolvem quando estão no exercício do seu trabalho: o acaso. Por acaso eles entendem algo que não foi planejado, que não era esperado, sobre o qual não tinham controle. Geralmente as referências são feitas a acontecimentos externos, cujas narrações são quase sempre iniciadas por um dia, de repente, por um acaso, não sei como. Pode estar relacionado a alguém que chamou para fazer um teste numa emissora, um ouvinte que ligou no meio de um programa ou que apareceu na rádio com alguma informação de última hora, ou ainda uma coincidência qualquer. Desse modo, os radialistas constroem seu cotidiano profissional - por meio do desempenho de suas atividades - em uma rotina baseada no imediatismo, no improviso e no 5 O contrário desse tipo de percepção causaria problemas para a relação radialista/ouvinte. Para citar Goffman mais uma vez, “uma falsa impressão mantida por um indivíduo em qualquer de suas práticas pode ser uma ameaça ao relacionamento ou papel inteiro do qual a prática é apenas uma parte, pois uma revelação desonrosa 39 acaso. Mesmo que seja feito um planejamento das tarefas executadas no ar, uma preparação prévia de material para os programas ou uma repetição de determinados artifícios e recursos a serem utilizados, esses três elementos são inerentes ao papel de radialista. Em um certo sentido, pensar em rádio, falar de rádio ou fazer rádio em Ilhéus é de algum modo ter no horizonte tais características, influenciando em maior ou menor grau, de formas e sob aspectos distintos, tudo o que a ele está relacionado. Inclusive, o nível de envolvimento com o que foi feito no rádio. O que foi produzido, já foi. Não mereceu registro formal, salvo os previstos pela legislação. O que ficou retido foi o produto da sucessão de vivências daqueles inúmeros “presentes”: as lembranças afetivas e as conseqüências concretas do que os conteúdos geraram para fora do universo do rádio (relações com diversos agentes sociais, com ouvintes, etc.). Em boa parte dos relatos formais ou informais, gravados ou não, os entrevistados sempre se emocionavam ao falar do passado de suas vidas. Alguns informaram nunca terem parado para pensar em suas trajetórias, outros disseram que nunca lhes haviam perguntado sobre suas carreiras. A memória do rádio existente, até o momento, é, assim, uma memória oral-afetiva. Aliás, seguindo uma idéia nativa de que o carisma e a capacidade de emocionar são elementos fundamentais para aqueles que exercem a profissão, pode-se dizer que as emoções são algumas das substâncias de que são feitas as rádios - e suas memórias - em Ilhéus. Essa é uma marca presente mesmo nos registros formais, escritos em primeira pessoa, dos dois profissionais da região que lançaram livros sobre o assunto (Valadares 2002; Aquino 1999)6 - ambos em tons testemunhais, utilizando como recurso estilístico a narração dos assuntos sob a forma de casos assistidos, vivenciados ou transmitidos por outras pessoas, em uma área de atividade do indivíduo lançará dúvida sobre as múltiplas outras, nas quais não tenha que ocultar” (1975: 65). 40 modo de narração típica de radialistas (Guedes 2003). O primeiro autor, com a utilização de poucas referências a datas mais precisas; o segundo, enfocando mais precisamente os meios de comunicação na vizinha Itabuna. Além deles, dois estudantes tiveram o tema como escolha de suas monografias de conclusão de curso de graduação (Souza 2003; Lopes 2001), em que falavam de modo mais genérico sobre o rádio ou, em particular, das emissoras ou radialistas de Itabuna. Este primeiro capítulo, portanto, pretende trazer algumas informações contextuais que, acredita-se, deverão ajudar a apreensão de um quadro mais geral sobre quem são os agentes dos quais trata esta tese e do ambiente em que tudo se desenrola, respeitando as ênfases nos assuntos levantados pelos entrevistados. Serão analisados ainda alguns aspectos levantados nos próprios depoimentos, mesmo que representem um pequeno desvio na narrativa relativamente linear. Sendo assim, o objetivo não é construir uma “história” das emissoras de rádio em Ilhéus, do município ou dos radialistas, mas fornecer elementos para a compreensão de posteriores análises, empreendidas nos capítulos subseqüentes, como as relações estabelecidas com os políticos locais e as igrejas evangélicas, o exercício profissional e as relações entre radialistas e ouvintes. A tarefa de construção sistemática de uma Memória do Rádio de Ilhéus e Itabuna - título do projeto - está atualmente a cargo de uma professora do Departamento de Letras e um jornalista/radialista da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)7. Inspirados pela iniciativa empreendida para esta pesquisa de coleta de depoimentos dos radialistas e pela escassez de registro escrito ou oral sobre o tema deram início a tal projeto, atualmente em desenvolvimento. 6 Até 2002, essas foram as únicas referências encontradas. 7 A UESC possui um curso de graduação em Telejornalismo e Radiojornalismo - subordinado ao Departamento de Letras - que formou há menos de cinco anos sua primeira turma. Antes do curso, os jornalistas da região que 41 A maior dificuldade ao se tentar traçar uma linha de relativa continuidade neste trabalho, ordenando os fatos cronologicamente, tendo como fonte principal os depoimentos, foi alcançar uma precisão quanto às datas. Desse modo, algumas delas são aproximadas. Outra dificuldade foi a recuperação completa de dados para a tentativa de formação de uma genealogia dos donos8 das emissoras, o que ocasionou algumas lacunas no empreendimento dessa tarefa. De qualquer forma, a opção foi por apresentar pessoas, fatos e datas reunidos na convergência e, algumas vezes, na divergência dos depoimentos, por se entender que ainda assim tornam mais inteligível o universo do rádio em Ilhéus. 1.1 Trajetórias das rádios9 A primeira emissora de rádio no Brasil foi inaugurada oficialmente no Rio de Janeiro, por ocasião da Exposição do Centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922 (Murce 1976)10.