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Sociologia do Conhecimento MERTON, R. K. A ciência e a ordem social. In: MERTON, R. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1968. Merton destaca, neste capítulo, que o apoio e fomento à ciência dependem de condições culturais apropriadas. Nesse sentido, considera interessante a busca pelos fatores que motivam as carreiras científicas, bem como quais fatores levam as sociedades a darem prestígio para algumas disciplinas e áreas do conhecimento em detrimento de outras. Para demonstrar os impactos que as mudanças na estrutura social possuem sobre o apoio ou não da ciência, Merton retrata a Alemanha Nazista, a partir de 1933, como exemplo de processos lógicos e não lógicos para modificar ou reprimir as ciências. Além disso, é interessante pontuar, nesse contexto, a própria instrumentalização da ciência para manutenção dos interesses do partido nazista. Durante esse período, Merton observa a desvalorização do saber teórico e intelectual para exaltar o “homem de ação”, o que refletiu na sociedade alemã no final da década de 1930 assimetrias nos interesses acadêmicos nas universidades alemãs decorrentes do antiintelectualismo propagado. Isto é, as ciências, à época, deveriam seguir uma lógica utilitarista e estar à disposição do Estado e da indústria, o que demonstra uma relação contraditória sobre o apoio à atividade científica durante o nazismo, pois ao mesmo tempo que fomentou e impulsionou a pesquisa das ciências naturais, físicas, biológicas e matemáticas, por exemplo, as ciências humanas ficaram à margem e limitadas pelo regime. Isto ocorre porque a ampliação da estrutura estatal exige uma lealdade para com o Estado em que o cientista deve renunciar às normas do ethos científico. A partir dessa demanda, nasce entre o Estado totalitário e o cientista, um conflito resultante da própria incompatibilidade entre a ética científica e a ética política, pois a ciência moderna considera o coeficiente pessoal um fator que leva fortemente ao equívoco, buscando tornar-se cada vez mais objetiva e avaliada por critérios impessoais e lógicos. O ethos da ciência moderna exige que as generalizações e hipóteses teóricas sejam avaliadas logicamente em consonância com os fatos. A produção científica que não se resigna aos juízos políticos acaba por ser descredibilizada por meio de estigmas como ciências “liberais”, “cosmopolitas”, “burguesas”. Em suma, os regimes totalitários geram conflitos institucionais entre a ciência e Estado que põe o ethos da ciência em cheque, visto que a autonomia tradicional das ciências passa a ser ameaçada por uma autoridade externa, fazendo necessário, portanto, a resistência a tais mudanças estruturais, pois por mais que a ciência reivindique objetividade, é produto cultural das estruturas sociais em vigor. No âmbito da objetividade científica, Merton relaciona esse distanciamento pessoal à uma pureza das ciências, que se sente ameaçada ao ser controlada por outras instituições. Devido ao temor à violabilidade da pureza científica ocorre a exaltação de sua objetividade como um mecanismo de defesa do controle de terceiros. Embora não cite diretamente o positivismo de Auguste Comte, Merton aborda, na sequência, as problemáticas do apego excessivo à objetividade científica, que tende a desconsiderar as consequências sociais da pesquisa e ameaçar a própria origem da ciência, pois não há controle sobre as reações que tais descobertas científicas podem gerar sobre a sociedade. Exemplo disso são as armas, bombas, entre outras máquinas de destruição humana. A partir do momento que as consequências dessas descobertas científicas passam a ser indesejáveis, a culpa recai sobre a ciência, contribuindo para sua descredibilização. Ademais, questiona a justificativa do fazer científico e suas motivações, que tendem a se misturar com a ideia de que as descobertas científicas necessariamente precisam promover algum tipo de bem-estar a curto ou longo prazo para a sociedade. Outro aspecto que Merton considera relevante para entender a conexão entre ciência e ordem social e que considero extremamente interessante dado o cenário geopolítico global, é o abismo que vem sendo endossado entre o cientista e o leigo. O leigo é induzido a acreditar repetidamente de que se beneficia dos progressos tecnológicos decorrentes das investigações científicas. Contudo, essa crença se dá de uma maneira quase que “cega”, pois o leigo não detém a mesma profundidade de conhecimento científico que o cientista, o que lhe causa certo receio em sua própria crença. Diante dessa insegurança na compreensão dos feitos científicos, são internalizadas pelo senso comum versões popularizadas e desvirtuadas da nova ciência que se aproximam do senso comum. O que eu entendi a partir dessa parte do texto foi uma crítica ao próprio acesso à ciência, de que forma ela se torna entendível pelos cidadãos de fora da comunidade científica. Se a ciência não é clara e acessível para a sociedade, a crença sobre ela se torna cega e gera desconfiança em algum momento, o que facilita a crença em interpretações, ideias e notícias, por exemplo, acerca da produção científica que são completamente deturpadas, porém, apresentadas em uma forma popular, prática, acessível. “Para a mentalidade pública, a ciência e a terminologia esotérica estão entrelaçadas de modo indissolúvel” (MERTON, 1968, p. 647). Nesse sentido, as declarações presumidamente científicas feitas pelos porta-vozes totalitários sobre raça, economia e história, tornam-se, para os leigos, de fácil “entendimento”, pois o leigo não testa a validade científica de tais afirmações, visto que estas se ajustam facilmente ao senso comum e ao preconceito cultural. Merton demonstra, a partir dessa análise, a ascensão dos discursos totalitários nas massas e pontua que, em parte, essa é uma fragilidade da ciência moderna decorrente do próprio progresso científico, pois “o povo tornou-se maduro para novos misticismos revestidos de um jargão aparentemente científico” (MERTON, 1968, p. 647). Ademais, Merton também critica o extremo ceticismo das ciências sobre outras esferas que demandam uma fé inabalável, tal como é a religião. Ao longo da história, a Igreja perdeu parcela significativa de poder e novas instituições se consolidaram, como o Estado e a economia. Por conta dessa intromissão cética que a ciência faz sobre novos terrenos e instituições em expansão de sua zona de controle, ocorrem conflitos entre instituições e ciência que são instrumentalizados pelos regimes totalitários para se consolidar. Isso ocorre de modo que, na sociedade totalitária o poder é centralizado como principal fonte de oposição à ciência. Já nas estruturas liberais a ausência de tal centralização permite um grau necessário de isolamento, que garante a cada esfera da sociedade certa autonomia, permitindo, por conseguinte, a integração gradual de elementos temporariamente incongruentes. Em suma, observa-se ao longo de todo o texto do Merton, que a propagação do anticientificismo está intrinsecamente ligado à consolidação dos regimes totalitários. Nesse sentido, o anticientificismo nasce do conflito do ethos científico e o ethos de outras instituições sociais, como o Estado. “O conflito produz-se quando os efeitos sociais das aplicações dos conhecimentos científicos se consideram indesejáveis, quando o ceticismo do homem de ciência se dirige para os valores fundamentais de outras instituições, quando a ampliação da autoridade política, religiosa ou econômica limita a autonomia do cientista, quando o antiintelectualismo discute o valor e a integridade da ciência e quando se introduzem critérios nao científicos para escolher o campo da pesquisa científica." (MERTON, 1968, p. 650).
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