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Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 A CÂMERA ESCURA E A FOTOGRAFIA Mauro Fainguelernt Professor assistente Escola de Belas Artes Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO: O presente trabalho tem como principal objetivo investigar a câmera escura e a fotografia como paradigmas da representação e construção visual. Visando aprofundar essa questão, o percurso histórico da câmera escura e os primórdios da fotografia são abordados considerando o diálogo entre a ciência, arte e a filosofia. Variadas perspectivas das relações espaço-tempo na fotografia são contempladas, buscando-se uma consciência crítica sobre as imagens e as diversas dimensões a elas atribuídas. PALAVRAS-CHAVE: Camera escura, fotografia, experimentalismo, relações espaço- tempo. Introdução Podemos pensar a imagem, como possibilidade latente de algo a ser criado ou processado, que ficaria entre o espaço concreto do real e um espaço imaterial, imaginativo. . A fotografia tornou visível uma série de eventos que passavam desapercebidos a olho nu, esta só foi possível a partir do desenvolvimento de aparatos que datam dos primórdios da ciência.A câmera escura tornou-se um dos paradigmas dessa origem – na qual a realidade do espaço circundante era captada – uma imagem em tempo real que se projetava sobre algum plano espacial.....A imagem fotográfica traz em si a potencia do objeto tridimensional a que ela se referencia, : como exemplo citamos a invenção da Estereoscopia. O primeiro a utilizar o termo foi o cientista inglês Sir David Brewster em seu livro de 1856. Onde a fotografia tirada com dois negativos produziria a percepção de uma imagem tridimensional.Brewster também havia patenteado o caledoscópio. No século XIX , vários estudos fisiológicos sobre o movimento humano e animal, tiveram na imagem fotográfica uma de suas principais ferramentas de Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 estudo . As próteses e aparatos óticos transformaram e continuam ainda a moldar este observador (crary),influenciando a percepção humana e redimensionando as distancias e dimensões. A Câmera Escura A imagem fotográfica remonta à imagem presente no interior da câmera escura, uma visualidade que permitia a duplicação do real, observada há milênios por nossos ancestrais; uma duplicação “mágica”, capaz de provocar espanto, curiosidade, medo, perplexidade, atração, enfim. O modelo da câmera escura espelha de certa forma como somos atingidos e atravessados pelo mundo a partir do espaço e do tempo. Falarmos em imagens fotográficas implica em uma analise da imagem inscrita a partir de um referente. Uma forma de organização e direcionamento dos raios de luz que atravessam um orifício mínimo, ancoradas pelo plano de projeção das mesmas. A câmera escura é um arquétipo da representação – uma forma precursora de todos os aparatos óticos que se desenvolveram. Estas projeções de imagens possibilitadas pela entrada de luz a partir de orifícios mínimos em câmeras escuras são observadas há milhares de anos. Os primeiro relatos sobre a utilização das câmeras escuras datam de escritos deixados na china por Mo Ti por volta de 4000 AC. Aristóteles, em torno de 300 AC, questionava-se sobre a projeção de imagens (RENNER, 2000); já nesta época a observação dos fenômenos espaciais, como os eclipses solares, eram efetuados através de pequenos orifícios a fim de evitar danos a visão. Um dos precursores da ótica moderna foi o medico e matemático egípcio Ibn Al-Haithan (965-1039 DC) conhecido no ocidente como Al Hazen, que conseguiu comprovar a trajetória linear da luz e para isto lançou mão da utilização de orifícios que permitiam a passagem da imagem projetada de três velas, observando o deslocamento da luz em linha reta e sua consequente inversão sobre o plano de projeção, publicando o livro “Tesouros óticos” por volta do ano 1020. Nos séculos seguintes vários cientistas inspiraram-se na câmera escura e no orifício de passagem de luz afim de desenvolver suas pesquisas; Theodoric de Freiberg (1250) e Kamal AL Din AL- Farisi (1320) da Pérsia também analisaram a projeção e trajetória da luz em sua passagem pelo orifício e posteriormente projetada sobre um Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 globo de vidro cheio de água, demonstrando o complexo principio das cores do arco- íris; ambos os cientistas trabalhavam sobre o mesmo experimento de forma isolada. Estes mesmos experimentos iriam ser redescobertos e reinvestigados separadamente por Antonio Dominis (1564-1624), René Descartes (1596-1560) e Johanes Kepler (1571-1630) (RENNER, 2000. pg 10). O primeiro registro histórico da câmera escura data do ano de 1544 a partir do desenho do astrônomo Gema Frisius, que demonstrou a observação do eclipse solar no interior de uma câmera escura.(RENNER,2000.pg 20). A utilização do principio da câmera escura foi marcante no Renascimento e decerto foi um dos alicerces para a invenção da perspectiva Artificialis; diversas experiências foram conduzidas por artistas, cientistas e curiosos; a visão humana objetiva tornou-se um referencial para a representação (AUMONT, 1993). A introdução da perspectiva foi determinante na ascensão de um sistema capaz de representar de forma cientifica e realista o espaço, de forma análoga à qual o homem apreendia o mundo, num período em que as grandes navegações e descobertas de novos territórios demandavam o mapeamento do espaço, um espaço a ser matematicamente ordenado a partir da observação sistemática da natureza. A perspectiva Artificialis trazia em si uma idealização, o ponto fixo de observação, uma representação que se naturalizou de forma dominante até os dias de hoje. A representação pictórica passou a perseguir a experiência de imersão no mundo – sendo o homem centro deste universo. “Ou seja, a perspectiva é um sistema centrado, cujo centro corresponde, quase, automaticamente, a um observador humano. Um centramento no humanismo.” (AUMONT, 1993, pg216) O sistema proposto pela perspectiva Artificialis foi utilizado por Filippo Brunelleschi (1377-1446) e Leon Batitista Alberti (1404 – 1472), através de um aparato chamado Tavolleta, que ilustrou a substituição do real pela própria representação, demonstrando o principio da perspectiva enquanto simulação bidimensional de uma realidade tridimensional (PARENTE 1997); as câmeras escuras com orifício integravam suas experimentações. Giovanni Baptista Della Porta (1538-1615) descreveu o processo ótico que ocorria no interior da câmera escura na primeira edição de Magia Naturalis editada em 1558. Por muito tempo Della Porta foi considerado seu “descobridor”, o que já havia sido feito há séculos atrás. Sua atitude Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 na divulgação destes fenômenos óticos repercutiu em reações contrárias pelo clero papal forçando-o ao exílio. As imagens produzidas no interior das câmeras escuras não eram facilmente decrifáveis pelo senso comum, para quem possuíam um caráter mágico e sobrenatural, produzindo espanto e medo (RENNER, 2000, pg. 11). Podemos encontrar vestígios destas aparições “diabólicas” no registro do cientista e monge Roger Bacon (1219-1292), que fez uma ilustração onde uma câmera escura aparece junto a elementos simbólicos que remetem ao desconhecido metafísico, à religião e à ciência, como um artefato imbricado na interação de todas essas dimensões. Decerto a pintura (o quadro) materializou uma imagem/paisagem que orientou nossos sentidos através de uma perspectiva exemplar, inaugurada e amplamente desenvolvida a partir do renascimento. A representação bidimensional, que tem suas bases ancoradas na pintura, ganha grande impulso com o advento de aparatos como a câmera escura e a câmera lúcida , precursores da possibilidadedo registro fotográfico. O período renascentista foi marcado pela invenção e desenvolvimento de aparatos óticos que provavelmente influenciaram as representações pictóricas da época. David Hockney, artista do século XX, ressaltou em seus polemicos estudos, a utilização destes aparatos óticos na execução das pinturas renascentistas desde o Séc. XVI algo que já havia sido relatado pelo Conde Francesco Algarotti em 1764 (HOCKNEY, 2001). Hockney chama atenção sobre a existência e utilização da câmera obscura com orifício como um mecanismo de percepção do real, ainda numa época bem anterior ao surgimento da fotografia. Desde o século XVII inúmeros filósofos pensaram a imagem produzida na câmara escura - John Locke, Rousseau, Marx, Engels; podemos perceber entre eles um traço comum, a reflexão sobre o que era visto no interior da câmera em relação à percepção humana, i.e, em que medida a imagem representada reproduziria e/ou influenciaria a compreensão da vida pelo Homem (RENNER, 2009). As ciências positivistas e mecanicistas acreditavam na racionalidade como forma de apreensão do mundo; o homem estaria na posição de receptor das imagens produzidas – na pintura ou na câmera obscura - de modo objetivo. Foi a partir do Romantismo que o sujeito foi colocado em posição ativa na apreensão dos fenômenos, e percebido como um observador possuidor de singularidades capaz de conferir sentidos, através de sua percepção e história. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 Goethe, assim com Shopenhauer, alçou o individuo como produtor de interioridade e dotado da possibilidade de um entendimento do tempo como forma diferenciada dos eventos objetivos. O movimento romântico inaugurou esta linha de pensamento e do sentir poético, onde a própria consciência do ser era provedora de singularidades; uma fisiologia propriamente humana trazia à tona o ponto inaugural do sujeito moderno . A persistência retiniana, estudada por Goethe, possibilitou o entendimento do impacto do visível a partir da subjetividade do observador; a percepção, a partir desta compreensão, rompeu com a ideia de um corpo transparente equivalente ao paradigma da câmera escura. A transparência conceitual que perpassava a ótica newtoniana foi revista e o corpo assumiu um papel importante enquanto algo que se desvela em camadas e opacidade (CRARY, 2008). No início do Séc. XIX, a fixação das imagens obtidas na câmera obscura era uma meta pesquisada e almejada por muitos, tornando-se uma possibilidade, a partir do empreendimento colaborativo entre dois franceses, Nicéphore Niépce e Louis Daguerre, criadores do daguerreótipo. Esse suporte consistia numa placa de cobre revestida por prata e sensibilizada com iodeto de prata a ser exposta no interior de uma câmera obscura. Após a revelação com vapor de mercúrio, as placas tinham que ser manipuladas para que as tonalidades das imagens fossem percebidas: “Eram peças únicas, em média, o preço de uma placa, em 1839, era de 25 francos-ouro. Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias” (BENJAMIN, 1985, p. 93). Estes primeiros daguerreótipos possuíam uma tonalidade sem muito contraste, mas produziram grande perplexidade, pois pela primeira vez a face humana era retratada de forma fotográfica, provocando grande assombro. O fato dos daguerreótipo ser montado no interior de estojos expressava a necessidade de colocá-lo num ambiente mais protegido, evitando o contato com o ar e sua oxidação, o que levaria ao escurecimento de toda superfície da imagem. A fotografia passava a ser outro referencial visual além da natureza. Pintores como Utrilo e David Octavius Hill utilizaram-se dela como fonte imagética para suas pinturas. O surgimento da fotografia inaugurava de certa forma, uma nova realidade. Aspectos que a olho nú passavam despercebidos, como nuances de movimento, passavam a ser revelados através de suas lentes, da câmera lenta, da ampliação. A percepção do espaço e do tempo foi ampliada e reconfigurada. Benjamin nomeou Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 estas novas visibilidades como “inconsciente ótico” (BENJAMIN, 1985), indo alem do caráter racional na percepção: A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. (...) Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, assim como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional (BENJAMIN, 1985, p. 94). Walter Benjamin em seu celebre ensaio “ A obra de arte e sua reprodutibilidade técnica” faz uma crítica da fotografia, ressaltando o papel fundamental que imagem assume nas relações políticas e econômicas na era da reprodutibilidade técnica. Sua análise é inaugural, visto que sua leitura se interpõe e vai ao encontro ao sujeito fotógrafo e sua relação com o mundo. A imagem técnica, assim como a escrita, possui importância preponderante na atualidade. Em seu ensaio “ A Filosofia da caixa preta”, o filosofo Vilem Flusser nos coloca diante de uma situação inexorável: a urgência de conferirmos sentido ao deciframento das imagens em um contexto, no qual o aparato fotográfico de certa forma reveste-se do caráter de um brinquedo que já vem da fábrica codificado. Ö aparelho fotográfico é por certo, objeto duro feito de plástico . Mas não é isso que o torna brinquedo. Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadres, jogo. São as virtualidades contidas nas regras: o software”.(FLUSSER,1985, pg 17). Na atualidade a fotografia digital através do desenvolvimento de sensores e de novas programações ampliam e problematizam a fotografia advinda de um referente – pois o que vemos é uma capacidade exponencial de processamento da imagem – no que tange a sua edição . Podemos concluir que a virtualização e potencia da própria imagem fotográfica caminha para recriação do objeto em si. Podemos intuir uma nova maquina fotográfica que capte o interior e o exterior das formas – uma forma de scaneamento e de leitura . Tanto oto o caráter construtivo e representacional da fotografia são coexistentes na atualidade. Uma fotografia que tende a ocupar o próprio espaço do real. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248 REFERÊNCIAS ASIMOV, Isaac.Cronologia das ciências e das descobertas.Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1993. AUMONT, Jaques. A Imagem. São Paulo, Editora Papirus, 2002. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – O. Escolhidas. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985. CRARY, Jonathan. Las técnicas Del Observador, Murcia, Cendeac, 2008. COSTA, Helouise & SILVA,Renato Rodrigues. A Fotografia Moderna no Brasil.São Paulo, Ed.Cosacnaify,2004. FAINGUELERNT,Mauro. A Fotografia Pinhole: Representações e Multiplicidade Imagética .Dissertação de Mestrado Linha Poéticas Interdisciplinares –Escola de Belas Artes UFRJ 2012 FLUSSER, Vilém. 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