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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO A CONSENSUALIDADE NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA LETÍCIA GOMES PINTO Rio de Janeiro 2017 / 1º SEMESTRE LETÍCIA GOMES PINTO A CONSENSUALIDADE NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Ms. Larissa Pinha de Oliveira. Rio de Janeiro 2017 / 1º SEMESTRE LETÍCIA GOMES PINTO A CONSENSUALIDADE NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Ms. Larissa Pinha de Oliveira. Data da Aprovação: __ / __ / ____. Banca Examinadora: _________________________________ Orientadora _________________________________ Membro da Banca _________________________________ Membro da Banca Rio de Janeiro 2017 / 1º SEMESTRE Dedico este trabalho a mulher mais inspiradora que eu poderia conhecer, minha mãe. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a Deus por me ajudar a superar todos os obstáculos encontrados durante esses cinco anos de graduação e por ter colocado em meu caminho uma família inspiradora e amigos surpreendentes. À minha mãe, Vera Lúcia, por ser a minha maior fonte de inspiração do que é ser uma mulher que luta por seus objetivos. Por ser aquela que me ensinou que fazer o bem e ajudar o próximo é sempre o melhor caminho a escolher, que me ensinou o significado do amor e de que a felicidade está nas coisas mais simples e bobas que existem. Às minhas irmãs, Letuze e Leiliane, por terem sido verdadeiras mães durante toda a minha vida, terem me mostrado que juntas somos mais fortes e assim podemos qualquer coisa. Aquelas que me ensinaram a importância do estudo e que as dificuldades sempre irão existir, mas no final tudo valerá a pena. Obrigada pela confiança em mim, e em especial, obrigada por me proporcionarem a maior felicidade que eu já pude experimentar, ser tia e dinda do Arthur e do Heitor, meus verdadeiros amores. Ao meu pai, Wagner, que apesar de todas as diferenças me mostrou o que é ser ética e correta na vida pessoal e profissional. Àquele que me mostrou que as dificuldades nos fazem crescer mais fortes. Ao meu amor, Alan, que durante tempos difíceis se mostrou o maior companheiro que eu poderia ter. Um parceiro que encontrei e que se tornou essencial em todas as minhas conquistas. Obrigada pela paciência, carinho e amor, e em especial, por acreditar tanto em mim. Não é sorte, nem privilégio termos um ao outro, é merecimento. À toda minha família que sempre esteve presente em todos os momentos bons e ruins. Aqueles a quem eu devo o que sou hoje, em especial aos meus tios Olair e Ciléia, por toda a atenção e carinho, às minhas primas, que são verdadeiras irmãs, Stella e Stefânia, por todo o amor. Aos amigos que fiz durante o período de formação, e em especial ao grande amigo que levarei para a vida, Paulo Henrique, um verdadeiro companheiro da vida acadêmica tão corrida. Às grandes amigas que me acompanham desde o colégio e que quero levar para toda a vida, Leilane, Shayene e Laíne, que apesar da distância física sempre se fizeram presentes e me proporcionaram momentos felizes e cheios de amor. Aos grandes amigos que fiz durante esse início da vida profissional. Em especial, à Bianca Macário, que me mostrou que as dificuldades sempre irão existir, mas que devem ser superadas; à Bruna Jakobi, que me ensinou que os sonhos existem para serem alcançados; e à Ana Tharoell, que em pouco tempo se tornou uma grande companheira, a qual me ensinou que a vida pode sim te surpreender negativamente, mas cabe a você optar por ficar triste ou simplesmente crescer. Obrigada por me mostraram que um ambiente profissional pode e deve ser baseado no respeito, no carinho e no amor ao próximo. À Faculdade Nacional de Direito, por ser uma instituição que respeita as diferenças e que sempre luta por um ensino de qualidade, apesar de todos os obstáculos. RESUMO A presente monografia objetiva a analisar a consensualidade no âmbito da Administração Pública, com ênfase nos Acordos de Leniência previstos na Lei n° 12.846 de 2013. O exame do tema terá início com breve análise sobre a evolução histórica do Direito Administrativo e a nova leitura da disciplina em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Será abordada a atuação administrativa consensual e os instrumentos dialógicos. O estudo será elaborado a partir da influência dos princípios constitucionais na relação entre Administração Pública e administrados. Neste sentido, será feita uma relação entre a atuação estatal e a democracia substantiva. Posteriormente será realizada uma análise do conceito de acordo de leniência e sua utilização pela Administração Pública como exemplo de ampliação do consenso no direito público. Por fim, efetuar-se-á um estudo de caso sobre o presente objeto de pesquisa tendo em consideração o atual cenário político e econômico do Brasil. Palavras-chave: Consensualidade na Administração Pública; Princípios do Direito Administrativo Contemporâneo; Lei 12.846/2013; Acordo de Leniência para infrações de corrupção; Acordo de Leniência para infrações licitatórias. ABSTRACT This monograph aims to analyze consensuality in the Public Administration, with emphasis on Leniency Agreements provided for in Law 12,846 of 2013. The examination of the topic will begin with a brief analysis on the historical evolution of Administrative Law and the new reading of the discipline in consonance with the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. The consensual administrative action and the dialogical instruments will be approached. The study will be drawn from the influence of constitutional principles on the relationship between Public Administration and administered. In this sense, a relationship will be made between state performance and substantive democracy. It will subsequently be carried out an analysis of the concept of agreement of leniency and its use by the public administration as an example of extension of consensus in public law. Finally, a case study will be carried out on the present research object taking into account the current political and economic scenario of Brazil. Key words: Consensuality in Public Administration; Principles of Contemporary Administrative Law; Law 12.846 / 2013; Leniency Agreement for Corruption Offenses; Leniency Agreement for infractions biddings. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12 1. O DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO ............................... 15 1.1. Contextualização histórica ............................................................................... 15 1.2. Prerrogativas públicas ...................................................................................... 17 1.3. A Constituição da República Federativado Brasil e o Direito Administrativo 19 1.4. Princípios norteadores do Direito Administrativo Contemporâneo ................ 22 1.4.1. Princípio da juridicidade ........................................................................... 23 1.4.2. Princípio da publicidade ........................................................................... 23 1.4.3. Princípio da eficiência e o direito a boa administração ............................ 24 1.4.4. Princípio da cidadania .............................................................................. 26 1.4.5. Princípio da responsividade ...................................................................... 26 1.4.6. Princípio da consensualidade ................................................................... 27 2. O CONSENSO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ......................................... 29 2.1. O Estado e a Democracia ..................................................................................... 29 2.2. Atuação administrativa consensual ...................................................................... 32 2.2.1. Instrumentos da consensualidade .................................................................. 34 2.4. O advento do Novo Código de Processo Civil .................................................... 38 3. O ACORDO DE LENIÊNCIA COMO EXPRESSÃO DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA ........................................................... 42 3.3 Conceito e características essenciais ..................................................................... 47 3.4 Modalidades de Acordos de Leniência previstos na Lei n° 12.846 de 2013 ........ 48 3.4.1 Leniência para infrações de corrupção ........................................................... 49 3.4.2 Leniência para infrações licitatórias ............................................................... 52 3.5 A Medida Provisória n° 703/2015 ........................................................................ 53 4. O ACORDO DE LENIÊNCIA E O GRUPO J&F ............................................... 57 4.1 O Grupo JBS ......................................................................................................... 57 4.2 Acordo de Leniência celebrado pelo Ministério Público Federal e o Grupo JBS 58 4.3 Consequências da celebração do Acordo de Leniência ........................................ 63 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 66 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 68 12 INTRODUÇÃO O atual cenário econômico e político do Brasil trouxe questionamentos acerca do futuro nos meios acadêmicos e sociais. A propagação da informação, muitas vezes deturpada, resulta em manifestações com limitado conhecimento jurídico e extenso conhecimento midiático. 1 Em meio à recessão econômica, crise política e estrutural 2 , os Poderes da República e cientistas jurídicos e econômicos buscam uma solução rápida e eficaz para adaptar o país a uma nova realidade. Muitas são as indagações envolvendo a adaptação do Direito Administrativo aos novos tempos. Destaca Vladimir da Rocha França que a Emenda Constitucional n° 19/1998 resultou em mudanças na estrutura administrativa, eis que introduziu novos entes e institutos na Administração Pública e incluiu o princípio da eficiência no caput do artigo 37 da Constituição Federal 3 , o qual prevê o dever da boa administração 4 do Estado. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto o princípio da eficiência estabelece que 1 Para Mariene Isabel Silva dos Santos o poder midiático é tão intenso que é capaz de atingir a sociedade no geral e aqueles dotados de conhecimento jurídico, os magistrados: “Atualmente, a mídia tem conseguido criar grande influência nas opiniões tanto populares, quanto dos magistrados, em relação à resolução de casos que ganham grande repercussão, (em especial, os casos do tribunal do júri) e geram alardes, através da própria. A população que em sua grande maioria não tem conhecimento jurídico penal suficiente, estabelece como verdade, muitas das opiniões divulgadas pelos veículos de comunicação, não sendo estas, na maioria das vezes, confiáveis ou totalmente preenchidas de cargas axiológicas negativas. A influência, como dito acima, atinge à sociedade no geral, e por conseguinte, os magistrados. Entretanto, quando se trata da influência nos juízes o peso que recai sobre eles é maior, tendo em vista que representam e proferem decisões em nome do Estado. ” (SANTOS, Mariene Isabel Silva dos. Influências midiáticas nas decisões dos magistrados criminalistas. Revista da Defensoria Pública da União, Brasília, n.7, jan/dez 2014. p. 139/158) 2 “Em meio às turbulências política e econômica, o brasileiro vê, pela primeira vez, políticos e representantes da elite empresarial sendo presos e condenados por crimes de corrupção. E além da turbulência política, agravada pelo afastamento de uma governante eleita democraticamente e pelas denúncia de corrupção não apenas de líderes políticos, como do próprio presidente da Câmara dos Deputados, o desemprego no país chega a 11,2% e mostra as dificuldades também no plano econômico.” (Borba, André. A profunda crise política e econômica e suas consequências para o povo. Jornal do Brasil, 11 Jun. 2016. Disponível em: < http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/06/11/a-profunda-crise- politica-e-economica-e-suas-consequencias-para-o-povo/ >. Acesso em: 15 Jun. 2017.) 3 FRANCA, Vladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, p. 165/177, Abr./Jun. 2000. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47532>. Acesso em: 16 Jun. 2017. 4 Cf. FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à boa administração pública. 3ª ed. Malheiros, 2014. 13 os atos praticados pela Administração Pública devem buscar a excelência e o melhor percurso para se chegar ao fim almejado. 5 Hodiernamente, não há no Direito Brasileiro disciplina que possa ser compreendida de forma isolada, estanque, sendo necessária a existência de um diálogo entre todo o ordenamento jurídico. Fez-se necessário que o Direito Administrativo acompanhasse as mudanças ocorridas no cenário social e se adaptasse a realidade complexa do novo contexto regulatório, o qual privilegia o consenso e não a imperatividade. Esse importante avanço foi reforçado pelo artigo 174 do Código de Processo Civil de 2015, o qual preceitua que os entes políticos deverão criar câmaras de conciliação e mediação com a finalidade de ampliar a solução de conflitos por meio consensual. 6 Neste sentido, o presente trabalho tratará do Acordo de Leniência, previsto na Lei n° 12.846 de 2013, como expressão da consensualidade no âmbito da Administração Pública, e a importância de privilegiar o diálogo com os administrados para se alcançar uma administração efetiva. A Lei 12.846 de 2013 dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. 7 Cabe frisar que há, hoje, no ordenamento jurídico brasileiro três modalidades de Acordos de Leniência: acordo de leniência para infrações de corrupção, na defesa da concorrência e para infrações licitatórias. 8 5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 16ª ed. Forense: 2014. Rio de Janeiro, p 182. 6 Art. 174. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensualde conflitos no âmbito administrativo, tais como: I - dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública; II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública; III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta. (BRASIL, Lei 13.105 de 2015). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 11 Mai. 2017. 7 BRASIL, Lei 12.846 de 2013, de 1° de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 09 de Abr. 2017. 8 MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. São Paulo: Revista Digital de Direito Administrativo, v2, n.2, p. 515, 2015. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm 14 Inicialmente, para compreensão do tema sob análise, será exposta sucinta evolução histórica do Direito Administrativo, da sua gênese até os dias de hoje, no qual há intensa busca pela resolução de conflitos através de acordos entre a Administração Pública e os administrados com a tentativa de redução de um direito administrativo sancionar. Superada a fase histórica, será abordado o instituto da consensualidade no âmbito da Administração Pública e sua importância para a evolução do direito e da sociedade. Após, será realizado o estudo específico do Acordo de Leniência mediante a exposição do conceito e das características essenciais. Ademais, demonstrar-se-á as modalidades previstas na Lei n° 12.846/2013 e sua importância no âmbito administrativo, os avanços e modificações legislativas. Por fim será realizado estudo de caso a partir do Acordo de Leniência propriamente entre a força-tarefa das Operações Greenfield, Sépsis e Cui Bono, procuradores responsáveis pelas Operações Bullish e Carne Fraca, e negociadores da holding J&F, controladora da empresa JBS. O Acordo prevê o pagamento de 10,3 bilhões a título de multa por atos praticados pelas empresas controladas pela J&F, o que representa 5,62% do faturamento líquido do grupo em 2016. 9 Diante do crescimento da consensualidade para a resolução de conflitos, em especial com o advento da Lei n° 13.105 de 2015 (Código de Processo Civil), e os inúmeros e abrangentes questionamentos acercas das mutações do Direito Administrativo, o presente trabalho se propõe a realizar uma análise acerca do Acordo de Leniência como expressão do novo caminho a ser percorrido na evolução do ordenamento jurídico, ou seja, a forma consensual para a resolução de conflitos. 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Notícias: Acordo de leniência: força-tarefa Greenfield e procuradores do MPF fecham acordo com J&F. Disponível em:< http://www.mpf.mp.br/df/sala-de- imprensa/noticias-df/acordo-de-leniencia-forca-tarefa-greenfield-e-procuradores-do-mpf-fecham-acordo- com-j-f >. Acesso em: 07 Jun. 2017. 15 1. O DIREITO ADMINISTRATIVO CONTEMPORÂNEO 1.1. Contextualização histórica Antes de adentramos ao objeto principal deste trabalho, necessário tecer breves considerações acerca da Administração Pública e da gênese do Direito Administrativo marcada por sua atuação imperativa, autoritária 10 até a denominada Administração consensual. Conforme preleciona Hely Lopes Meirelles, para o estudo da estrutura e das atividades da Administração Pública, necessário se faz o estudo do Estado. 11 Para José dos Santos Carvalho Filho, o Estado é um ente personalizado, apresentando-se exteriormente, nas relações internacionais, e internamente, como pessoa jurídica de direito público, capaz de adquirir e contrair obrigações na ordem jurídica. 12 Não se sabe ao certo o momento em que o Estado surgiu, entretanto, sabe-se que a partir do momento em que o homem 13 passou a viver em comunidade, mesmo aquelas 10 Para o autor Emerson Gabardo (...)”A alusão a uma pretensa origem autoritária tem como escopo reduzir a força legitimatória de princípios como o do interesse público, ou mais especificadamente, da “supremacia do interesse público”.(...) As idéias típicas do Direito administrativo do final do século XVIII e início do século XIX, mesmo aquelas inerentes ao “autoritário” contencioso administrativo (que nunca existiu no Brasil), ou ao “autoritário” interesse público governamental (totalmente privatizado pelas práticas sociais brasileiras – e não só pelo Estado), produziram de forma intensa um efeito libertador e não o contrário. (...)O Direito administrativo não possui raízes autoritárias justamente por ser um contraponto axiológico ao regime anterior, somente tendo sido realmente cultivado depois que seus princípios passaram a ser deduzidos da natureza do homem e da sociedade e não do poder divino. (GABARDO, Emerson. O jardim e a praça para além do bem e do mal. 13.02.2009. 409f. Tese – Doutorado em Direito do Estado. Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2009). Disponível em: < http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/19053/TESE_Emerson_Gabardo_Correta.pdf?sequence =1>. Acesso em: 15 Jun. 2017. 11 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 60. 12 CARVALHO FILHO, Jose dos santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 1. 13 Entende Judivan Juvenal Vieira que “O homem é a razão de ser de todo o processo gnosiológico. Não há Estado nem Direito sem grupamentos humanos. Toda obra humana no Planeta de alguma forma se relaciona com os afetos humanos, sobretudo os vinculados à sobrevivência e a conquista do poder com o qual se possa produzir e repartir bens ou subjugar os bens do próximo ao tesouro pessoal. O direito que rege o Estado e sua Administração Pública por ser construção intelectual humana está repleto de exemplos de como os afetos dos agentes públicos podem gerar efeitos bons e ruins, justos e injustos, legais e ilegais, com reflexos na qualidade e quantidade das políticas e serviços públicos prestados ao cliente-cidadão” (VIEIRA, Judivan Juvenal. Affectus e effectus na justiça administrativa brasileira e italiana: um estudo comparado. Publicações da Escola da AGU, 2° Curso de Introdução ao Direito Europeu: Tradizione Civilistica e Armonizzazione Del Diritto nelle Corti Europee, v. 2, p. 7, 2013) 16 mais primitivas, ali estavam estabelecidas as funções administrativas do Estado, apesar da ausência da estrutura organizacional. A doutrina tradicional reitera que o Direito Administrativo teve como marco inicial a Lei n° 28 de Pluvioso do ano VIII, editada em 1800, a qual organizava e limitava a Administração Pública no Estado Francês. Tal lei simbolizou o fim da estrutura do poder do Antigo Regime, fundada sob a vontade do monarca, e o início da organização e estruturação da burocracia estatal e definição de contenção do poder do Estado. 14 A doutrina majoritária assegura que o Direito Administrativo, como sistema de normas e princípios é um ramo recente do Direito Público, o qual sobreveio com a instituição do Estado de Direito. Neste sentido ensina José dos Santos Carvalho filho: O Direito Administrativo, contudo, como sistema de normas e princípios, somente veio a lume com a instituição do Estado de Direito, ou seja, quando o poder criador do direito passou também a respeitá-lo. O fenômeno nasce com os movimentos constitucionalistas,cujo início se deu no final do século XVIII. Através do novo sistema, o Estado passava a ter órgãos específicos para o exercício da administração pública, e por via de consequência, foi necessário o desenvolvimento do quadro normativo disciplinador das relações internas da Administração e das relações entre esta e os administrados. Por isso, pode-se considerar-se que foi a partir do século XIX que o mundo jurídico abriu os olhos para esse novo ramo jurídico, o Direito Administrativo. 15 O mesmo entendimento é adotado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a qual preceitua que o Direito Administrativo teve início como ramo autônomo no Estado Moderno, quando se iniciou o desenvolvimento do conceito de Estado de Direito, o qual é estruturado sobre o princípio da legalidade, onde os governantes e governados se submetem a Constituição. 16 O período histórico foi considerado como o grande marco para o direito do cidadão, eis que o Estado teria que observar, como qualquer outro integrante da sociedade, as leis. O autor Celso Antonio Bandeira de Mello esclarece que, erroneamente, há a impressão de que o Direito Administrativo é concebido em favor do poder ao invés de 14 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 9-22. 15 CARVALHO FILHO, Jose dos santos. Manual de Direito Administrativo. op. cit. p. 7. 16 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 2. 17 ser considerado como uma forma de limitação aos poderes do Estado e como um conjunto de deveres da Administração perante os administrados, eis que foi encarado como um direito excepcional por dissentir do direito comum, o direito privado. 17 De acordo com Gustavo Binenbojm, a gênese defendida por parcela majoritária da doutrina, a qual preceitua a visão garantística do Direito Administrativo, o Estado subordinado à lei com o objetivo de garantir o interesse público, não passa de um mito, eis que o direito administrativo estabeleceu institutos mais voltados à autoridade do que à liberdade. Para o autor, a criação jurisprudencial apenas demonstra que não houve submissão do Estado a vontade do Legislador, mas tão somente a perpetuação do Antigo Regime, vide as peculiaridades da supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração e outras, as quais expressam o poder administrativo. Por esta razão, que, para o autor, os direitos fundamentais não ganharam no Direito Administrativo tamanha proporção albergada pelo Direito Constitucional. 18 1.2. Prerrogativas públicas Parcela majoritária da doutrina administrativa preleciona que as prerrogativas públicas intensificam a superioridade da Administração Pública em face do particular, são frutos do poder administrativo. Ao mesmo tempo estas prerrogativas têm a finalidade de assegurar o interesse público, e para atingir tal objetivo, faz-se necessário a limitação do direito do particular. Neste sentido, esclarece José Cretella Júnior: As prerrogativas públicas são as circunstâncias favoráveis ou propícias, que os sistemas jurídicos atribuem às pessoas jurídicas a fim de que, do melhor modo e com a maior economia possível, possam concretizar o interesse público, mediante limitações impostas ao interesse do particular. 19 Tem-se a exorbitância e a instrumentalidade como principais características das prerrogativas públicas. A exorbitância, no sentido de busca pela autonomia científica, indica a particularidade dos institutos, das regras, princípios e finalidades do Direito 17 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 38-42. 18 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Op. cit. p. 49-78. 19 CRETELLA JÚNIOR, José. Prerrogativas e sujeições da administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 103, p. 16-32, jan. 1971. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/35280>. Acesso em: 09 de Mai. 2017. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/35280 18 Administrativo quando comparado ao Direito Comum. Ao passo que a instrumentalidade está relacionada a poderes instrumentais que a prerrogativa pública detém para tornar possível ou otimizar suas atividades em prol do interesse público. De maneira singela, as finalidades das prerrogativas públicas são satisfazer o dever de tutela do interesse público, afirmar a supremacia do interesse público sobre o privado e a melhor consecução dos seus fins, por meio da eficiência. 20 Pode-se dizer que a Escola de Puissance Publique 21 influenciou de maneira significativa as prerrogativas públicas no Direito Administrativo. Veja-se que, conforme conceitua José Cretella Júnior, a Administração é beneficiária de prerrogativas, que a colocam numa posição de superioridade ao particular, mas também de restrições e limitações estranhas a este: Esse regime jurídico público, que regula os diferentes momentos da ação administrativa é, pois, constituído de altos e baixos, de majorações e minorações, de maximizações e minimizações, de senhorio e servidão, de potestade e sujeições, informando cada ato administrativo ou cada operação da Administração, a tal ponto que o administrador caminha por um iter e desenvolve um programa, que não é o seu, mas o do interesse público, alicerçando-se em cada pronunciamento, no pedestal privilegiado que lhe dá sua condição de potestade pública, mas ao mesmo tempo, ficando circunscrito a uma série de ligamentos ou sujeições que lhe policiam a vontade, lembrando-lhe a cada instante o princípio da indisponibilidade dos interesses públicos. 22 O principio da superioridade do interesse público sobre o interesse privado foi objeto de reflexões pelo autor Fábio Medina Osório. Em sua obra expõe o autor que o referido princípio não é absoluto, uma vez que deve observar a legalidade e o respeito ao Estado Democrático de Direito. Ademais, esclarece que o princípio ostenta status constitucional, mesmo não existindo norma que consagre como princípio geral da Administração Pública. Esta deve agir sempre com a finalidade de satisfazer os interesses da coletividade por meio da observância do princípio da eficiência, de modo 20 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Atuação administrativa consensual: estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. 26.02.2010. 332f. Tese (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010. p. 42-45. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-18112011-141226/pt-br.php> Acesso em: 12 Mai. 2017. 21 Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, “(...) a ideia base inicialmente considerada como o fator de desencadeamento do Direito Administrativo e pólo aglutinador de seus vários institutos foi a ideia de puissanse publique, isto é, da existência de poderes de autoridade detidos pelo Estado e exercitáveis em relação aos administrados.” MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. Op. cit., p. 44. 22 CRETELLA JÚNIOR, José. Prerrogativas e sujeições da administração pública. Op. cit., p. 32. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-18112011-141226/pt-br.php 19 que o autor considera que os princípios mencionados estão intrinsecamente ligados já que o Poder Público é detentor de certas prerrogativas para tornar o serviço eficiente. 23 1.3. A Constituição da República Federativado Brasil e o Direito Administrativo Luís Roberto Barroso destaca que o grande marco para o direito constitucional na Europa foi o pós Segunda Guerra Mundial, ao passo que no Brasil foi a promulgação da Constituição de 1988 e o período de redemocratização albergado por esta. 24 A Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado Democrático de Direito, o qual conferiu grande avanço na adoção das soluções consensuais no âmbito da Administração Pública, uma vez que valorizou a participação do cidadão no exercício das funções públicas. As constituições contemporâneas destacaram elementos normativos vinculados a valores e a dignidade da pessoa humana. Ana Paula de Barcellos destaca que o neoconstitucionalismo, denominado por parcela da doutrina como constitucionalismo contemporâneo, é um fenômeno humano ligado diretamente a própria história do Direito Constitucional. Organiza as características do fenômeno em dois grupos: um que congrega elementos metodológico-formais e outro que reúne elementos materiais. Quanto aos elementos metodológico-formais os subdividem em normatividade da constituição (normas jurídicas dotadas de imperatividade), superioridade da constituição e centralidade da carta nos sistemas jurídicos. Quanto aos materiais os subdividem em incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais e expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional. 25 23 OSÓRIO, Fabio Medina. Supremacia do interesse público sobre o privado. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 220, p. 69-107, mar. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47527>. Acesso em: 22 Mai. 2017. 24 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em: < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp- content/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 30 Maio 2017. 25 BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle de políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 15, janeiro/fevereiro/março de 2007, p. 1-31. Disponível em: < http://www.ninc.com.br/img/pesquisa/arquivo_20160225212830_59.pdf > Acesso em: 30 Mai. 2017. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47527 20 A característica destacada pela autora no que tange a centralidade da Carta nos sistemas jurídicos fornece a ideologia de que os demais ramos do Direito devem ser interpretados a partir da Constituição. Neste sentido o Direito Administrativo passa a valorar os princípios e valores albergados pela Constituição. Luís Roberto Barroso observa ainda que: Três conjuntos de circunstâncias devem ser considerados no âmbito da constitucionalização do direito administrativo: a) a existência de uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplina da Administração Pública; b) a seqüência de transformações sofridas pelo Estado brasileiro nos últimos anos; c) a influência dos princípios constitucionais sobre as categorias do direito administrativo. Todas elas se somam para a configuração do modelo atual, no qual diversos paradigmas estão sendo repensados ou superados. 26 A consensualidade no âmbito do direito administrativo é, de certa forma, reflexo do princípio da eficiência, da participação democrática nas decisões administrativas e da construção de uma cultura de consensualidade administrativa. O grande objetivo passa a ser a atualização da atividade de administração pública, tendo como base princípios liberais e democráticos, com a finalidade de levar eficiência ao desempenho da Administração. 27 De acordo com Luis Carlos Bresser Pereira o “Estado brasileiro passou por duas grandes reformas administrativas – a burocrática, iniciada em 1937, e a gerencial, que começa em 1995”. A primeira ocorreu no Governo Vargas, foi uma reforma própria do Estado Liberal, com o objetivo de transformar a Administração Pública em serviço profissional baseado no Estado de Direito e na competência técnica. A segunda surge em resposta ao desequilíbrio entre a forma administrativa de Estado, Estado burocrático, e o modelo político adotado pelo Brasil, Estado Democrático Social. Foi necessária a 26 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Op. cit., p. 30. 27 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo - Novas Considerações (Avaliação e controle das transformações). Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 2, junho/julho/agosto/2005, p. 12-14. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/rere-2-junho-2005-diogo%20figueiredo.pdf. Acesso em: 22 Maio 2017. http://www.direitodoestado.com/revista/rere-2-junho-2005-diogo%20figueiredo.pdf 21 transformação em uma Administração Pública capaz de prestar com eficiência os serviços sociais e científicos de relevância pública. 28 A despeito de sua origem autoritária, foi possível verificar sua transformação, lenta e gradual, em busca de pactuar com o Estado Democrático de Direito, o qual indica que o Estado deve estar submetido à vontade do povo e da ordem jurídica. 29 Assevera Diogo de Figueiredo Moreira Neto que o Direito Administrativo se constitucionalizou à medida que a ordem jurídica passou a ter como norma fundamental a Constituição. Desta feita, passou a apresentar características do neoconstitucionalismo, como qualquer ramo do Direito Interno: 1 – a supremacia dos direitos fundamentais constitucionais; 2 – a força preceptiva das normas constitucionais, sejam elas regras ou princípios; 3 – a sobreinterpretação da Constituição, para dela deduzir princípios implícitos; 4 – a universalidade aplicativa da Constituição, ou seja, a possibilidade de aplicação direta sobre todas as relações jurídicas, seja de que ramo forem; e 5 – a orientação ética da Constituição, com o rigoroso respeito dos valores implícitos nos direitos fundamentais e no seu ethos democraticamente legitimado. 30 O autor ainda esclarece que o grande objetivo passou a ser a atualização da atividade da Administração Pública, levando em consideração os princípios liberais e democráticos, na tentativa de recuperar os atrasos na legislação e na jurisdição, com o fim de levar eficiência no desempenho. Para isso foi necessário vencer os atrasos: 1º a imperatividade sem limites, à outrance; 2º a intangibilidade de atos políticos da Administração Pública; 3º a insindicabilidade da discricionariedade administrativa; 4º a exclusão do administrado das decisões, inclusive por deficiências processuais; e 5º a persistência mítica do conceitos de razões de Estado e de supremacia do interesse público. Vários temperamentos foram necessários para superar esses cinco pontos críticos (oferecidos também em lista exemplificativa): 1º a introdução da consensualidade sempre que possível; 2º a submissão jurídica ao controle de qualquer atoda Administração Pública; 3º os controles de realidade e de razoabilidade do ato discricionário; 4º as garantias de crescente participação 28 PEREIRA, Luís Carlos Bresser. Os primeiros passos da reforma gerencial do estado de 1995. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 16, dez./2008-fev./2009, p. 02-03. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-16-DEZEMBRO-2008-LUIZ%20CARLOS%20BRESSER.pdf>. Acesso em: 21 de maio de 2017. 29 CRETELLA JÚNIOR, José. Prerrogativas e sujeições da administração pública. Op. cit. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 103, p. 16-32, jan. 1971. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/35280>. Acesso em: 19 Mai. 2017. 30 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Op. cit. p. 137 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/35280 22 do administrado; e 5º a afirmação da supremacia do s direitos fundamentais, notadamente do megaprincípio da dignidade da pessoa humana. 31 Contudo, ainda há severas críticas doutrinárias em razão das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, da discricionariedade dos atos administrativos e do poder de polícia. 1.4. Princípios norteadores do Direito Administrativo Contemporâneo Gustavo Binenbojm destaca que o avanço do constitucionalismo moderno influenciou diretamente os princípios do Direito Administrativo, uma vez que os direitos fundamentais passaram a constar expressamente nas constituições e terem como destinatário principal o homem. Passou-se a valorizar a dignidade da pessoa humana e a legitimação e limitação do poder estatal: A grande inovação das Constituições da modernidade consiste em que, permeadas pelos ideais humanistas, posicionam o homem no epicentro do ordenamento jurídico, verdadeiro fim em si mesmo, a partir do qual se irradia um farto elenco de direitos fundamentais. Tais direitos têm assento, sobretudo, nas ideias de dignidade da pessoa humana e de Estado Democrático de Direito, servindo, concomitantemente, à legitimação e à limitação do poder estatal. Em que pese o destaque que ostentam os direitos fundamentais no regime democrático-constitucional, fato é que, como condição mesma à vida em sociedade e à própria proteção e promoção dos aludidos direitos, faz-se necessário, também, tutelar interesses de cunho nitidamente coletivo, voltados a atender demandas que ultrapassam a esfera individual dos cidadãos. É essa a justificativa para o constituinte, em um número significativo de casos, ter reconhecido direitos de natureza transindividual e permitir a limitação de interesses individuais em prol da tutela de anseios difusos. Citem-se, nesse sentido, o direito do meio ambiente e a função social da propriedade; o instituto da desapropriação e a cobrança de tributos, todos avessos a aspirações puramente particulares. Depreende-se, assim, que as dimensões individual e coletiva convivem, lado a lado, no texto constitucional, impondo-se como paradigmas normativos a vincular a atuação do intérprete da Constituição. A despeito da dificuldade em torno da caracterização do que seja interesse público, conceito jurídico indeterminado por excelência, pode-se afirmar que a expressão aponta, em sentido lato, para os fundamentos, fins e limites a que se subordinam os atos e medidas do Poder Público. 32 31 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo - Novas Considerações (Avaliação e controle das transformações). Op. cit. p. 12-13. 32 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 239, p. 1- 32, jan. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43855>. Acesso em: 25 Mai. 2017. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43855 23 Insta salientar que embora não seja o objeto do presente estudo, interessante tecer breves considerações acerca de relevantes princípios aplicáveis ao Direito Administrativo Contemporâneo, sem o intuito de esgotá-los, mas apenas demonstrar sua crescente importância. 1.4.1. Princípio da juridicidade Hodiernamente, é conceituado pela doutrina como uma nova acepção do princípio da legalidade. 33 Este, por sua vez, está relacionado como Estado de Direito, ou seja, o Estado cria a lei e se submete a mesma, sempre com o dever se observar a segurança jurídica e os direitos individuais. Nesse sentido a atuação da Administração Pública deve ter como base a lei, mas também deve estar em consonância com valores éticos. Como exemplo elucidativo, tem-se a Súmula Vinculante n° 13, a qual veda o nepotismo. A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. 34 Noutro giro, o princípio da juridicidade é uma consequência do neoconstitucionalismo. Em razão disto, pode ser definido como uma sujeição dos atos estatais a uma legalidade ampla, ou seja, a atuação administrativa deve observar o ordenamento jurídico como um todo (princípios gerais do direito, princípios constitucionais, valores e regras). 35 1.4.2. Princípio da publicidade 33 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense: 2013, p. 58. 34 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Aplicação das Súmulas no STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=1227>. Acesso em: 02 Jun. 2017. 35 ARAGÃO, loc. cit. 24 A publicidade dos atos administrativos revela papel fundamental na concretização do Estado Democrático de Direito já que possibilita ao administrado maior participação fiscalizatória. Neste sentido, para o autor Diogo de Figueiredo Moreira Neto o princípio da publicidade é instrumental já que imprescindível para que o administrado exerça o controle da legalidade, legitimidade e moralidade das ações do Poder Público, somente assim é possível constatar a conformidade ou desconformidade com o ordenamento jurídico. 36 Para Hely Lopes Meirelles a publicidade, como princípio de administração pública “abrange toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como, também, de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes”. 37 A publicidade confere ao administrado o poder de participar e controlar a atuação da Administração Pública. Neste sentido, foi promulgada a Lei n° 12.527 de 2011, que regulou o acesso a informações previsto no artigo 5°, XXXIII da Constituição Federal e foi considerada instrumento fundamental para concretizar a democracia na sociedade brasileira, eis que permitiu o acesso aos critérios adotados pela Administração em sua atuação. 38 1.4.3. Princípio da eficiência e o direito a boa administração O princípio da eficiência destaca o homem e seus direitos fundamentais como destinatários finais de toda a atuação do poder público. Hely Lopes Meirelles destaca o princípio da eficiência como um dever imposto a todo agente público de realizar suas funções com a maior excelência possível. O autor ainda destaca que é o princípio mais moderno da função administrativa, a qual deve ser desempenhada não apenas observando a legalidade, mas esta e os resultados positivos 36 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Op. cit. p 152. 37 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Op. cit., p. 90. 38 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Lei nº 12.527/2011e o planejamento da ação estatal: uma interpretação orientada a prevenir a desinformação. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 109-133, fev. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46460>. Acesso em: 17 Jun. 2017 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46460 25 para o serviço público. Relembra ainda que o dever de eficiência corresponde ao direito à boa administração prolatado pela doutrina italiana. 39 Em sentido semelhante o autor Diogo de Figueiredo Neto preceitua que a boa administração é “um dever constitucional de quem quer que se proponha a gerir, de livre e espontânea vontade, interesses públicos.” 40 Diogo de Figueiredo Moreira Neto explicita ainda que a eficiência administrativa está intrinsecamente relacionada com a melhor realização de gestão dos interesses públicos, com a plena satisfação dos administrados e o menor custo à sociedade. O poder público tem o objetivo de produzir resultados com excelência por meio de uma boa administração, a qual é considerada pelo autor como um direito cívico, implícito na cidadania. 41 O princípio da eficiência está intimamente relacionado à boa administração. Aquele foi expressamente inserido no caput do artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil em 1998 pela Emenda Constitucional n° 19. O desenvolvimento da administração pública gerencial reconheceu que não era suficiente apenas a produção de resultados, mas estes deveriam ser produzidos com excelência, sempre na busca do melhor atendimento possível a finalidade do ato praticado. O poder público tem o dever de prestar uma boa administração. O artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais consagra a boa administração como um direito inerente ao homem, nos seguintes termos: Artigo 41°. Direito a uma boa administração 1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Este direito compreende, nomeadamente: - o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente, - o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial, 39 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit. p. 93. 40 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Op. cit. p 184. 41 Ibid. p 182. 26 - a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. 3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da Comunidade, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros. 4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir as instituições da União numa das línguas oficiais dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua. 42 Na Constituição Federal, o dever da boa administração decorre do caput do artigo 37 e é complementado pelos comandos específicos do caput do artigo 70, o qual determina a obrigatoriedade da legitimidade e da economicidade da gestão pública. 43 Os parâmetros albergados pelo princípio eficiência e o direito/dever a boa administração estão vinculados ao regime de juridicidade do Estado Democrático de Direito na medida em que preza pela melhor prestação do serviço ao destinatário final, ou seja, ao administrado. 1.4.4. Princípio da cidadania O autor Diogo de Figueiredo Moreira Neto destaca que este princípio ressalta o cidadão como real protagonista de toda atuação política e jurídica do Estado. Ou seja, o cidadão por um lado é capaz de definir a finalidade, o conteúdo, os limites e os meios das ações estatais e por outro é o destinatário das ações, irá usufruir das ações de maneira direita ou indireta. 44 1.4.5. Princípio da responsividade 42 UNIÃO EUROPEIA. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf>. Acesso em: 15 Mai. 2017. 43 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) Artigo 70 A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. (BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 10 Mai. 2017). 44 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 147. http://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm#art3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm#art3 27 O autor Diogo de Figueiredo Moreira Neto o destaca como característico do Estado Democrático de Direito, eis que visa à harmonia entre o interesse da coletividade e da racionalidade pública. Os atos administrativos devem ser legais e legítimos, ou seja, devem observar os preceitos legais e a vontade dos administrados. Destaca o autor que “responsividade é a esperada reação governamental nas democracias em concordância e obediências à vontade dos governados”. 45 1.4.6. Princípio da consensualidade A substituição do Estado Totalitário pelo Estado Democrático de Direito resultou em uma crescente participação de diversos setores da sociedade nas questões de natureza pública, com maior participação popular nas decisões políticas. Passou a ser necessário que o exercício político fosse resultado de uma vontade coletiva. 46 Neste sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto aponta que: A moderna literatura sociopolítica sobreleva o papel das instituições do consenso na construção de sociedades livres em substituição aos sistemas que se fundavam fortemente nas instituições de comando. É certo que a coerção é imprescindível para a existência das sociedades humanas mas também é certo de que não é suficiente para que elas progridam livremente, de modo a permitir o pleno desenvolvimento das potencialidades individuais. 47 Diogo de Figueiredo Moreira Neto acrescenta que apesar da imperatividade ser característica marcante do Estado, o qual concentra o poder coercitivo, é inquestionável que o progresso da sociedade, o avanço da educação, da informação e da democracia resultaram na maior atuação consensual do Poder Público. Assim, é possível observar o crescimento do consenso como método mais célere para se atingir o interesse público. Portanto, “a consensualidade vem sobressaindo como uma válida alternativa para incrementar a eficiência administrativa, plenamente suportada, assim, no art. 37, caput, com sua atual redação ampliada” 48 . 45 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 154. 46 GONÇALVES, Claudio Cairo. O princípio da consensualidade no Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 232, p. 105-114, fev. 2015. ISSN 2238-5177.Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45687>. Acesso em: 16 Mai. 2017. 47 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 231, p. 129-156, fev. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45823>. Acesso em: 15 Mai. 2017 48 Idem, Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p 173. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45687 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45823 28 Odete Medauar salienta que o Direito Administrativo deve acompanhar a evolução da sociedade para que se torne mais efetivo, para que priorize o administrado e não apenas a autoridade. Para se atingir este fim é fundamental o crescimento do consensualismo no âmbito da Administração contemporânea: O administrativista contemporâneo tem consciência da diversificação e capilariedade das funções do Estado atual, realizadas em grande parte, pela atuação da Administração Pública. Por conseguinte, o direito administrativo, além da finalidade de limite ao poder e garantia de direitos individuais ante o poder, deve preocupar-se em elaborar fórmulas para a efetivação de direitos sociais e econômicos, de direitos coletivos e difusos, que exigem prestações positivas. O direito administrativo tem papel de relevo no desafio de uma nova sociedade em constante mudança. A transformação sociopolítica é propícia a mudança de conteúdo e de forma do direito administrativo para que se torne mais acessível nos seus enunciados, para que traduza vínculos mais equilibrados entre Estado e sociedade, para que priorize o administrado, isolado ou em grupos, e não a autoridade. O enfoque evolutivo do direito administrativo significa, sobretudo, o intuito do seu aprimoramento como técnica do justo e, por isso, da paz social. 49 O que se pretende com a inserção do consenso na resolução de conflitos na relação entre Administração Pública e o administrado é reduzir a imperatividade albergada no Estado imperativo, verticalizado e fazer destacar formas mais céleres e menos autoritárias defendidas sob a égide de um Estado Democrático de Direito. 49 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. P. 267. 29 2. O CONSENSO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 2.1. O Estado e a Democracia A relação entre Estado e sociedade ecoa consequências diretas no direito administrativo. O modelo político anterior ao Estado Democrático de Direito raramente permitia o uso do consenso na resolução dos conflitos entre Administração e administrados, já que considerava a concentração do poder a razão da paz e segurança 50 , mas como destaca Norberto Bobbio “o Estado de hoje está muito mais propenso a exercer uma função de mediador e de garante, mais do que a de detentor do poder de império.” 51 A evolução do homem e da sociedade aproximou o homem do Estado e como consequência cresceu o interesse na participação da construção de um Estado mais democrático. Segundo Odete Medauar: Os vínculos mais estreitos entre Estado e sociedade vão acarretar, ainda, novo mecanismos nas atividades administrativas, nem sempre possíveis de enquadrar em figuras jurídicas clássicas, elaboradas para uma outra realidade. Por exemplo: as parcerias entre administração e particular, as mediações entre grupos da sociedade. 52 No mesmo sentido destaca Maria Sylvia Zanella di Pietro que a participação popular é uma característica do Estado Democrático de Direito a qual aproxima o particular do Estado. Esta participação se dá pela atuação direta na gestão e no controle da Administração Pública: Nesta terceira fase da evolução da Administração Pública, a participação do particular já não se dá mais nem por delegação do poder público, nem por simples colaboração em uma atividade paralela. Ela se dá mediante a atuação do particular diretamente na gestão e no controle da Administração Pública. É nesse sentido que a participação popular é uma característica essencial do Estado de Direito Democrático, porque ela aproxima mais o particular da 50 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendências da democracia: consenso e direito público na virada do século – o caso brasileiro. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 13, março/abril/maio/2008, Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-13-MAR%C7O-2008-DIOGO-DE-FIGUEIREDO- MOREIRA-NETO.PDF> Acesso em: 20 Mai. 2017. 51 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 26. 52 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 29. http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-13-MAR%C7O-2008-DIOGO-DE-FIGUEIREDO-MOREIRA-NETO.PDF http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-13-MAR%C7O-2008-DIOGO-DE-FIGUEIREDO-MOREIRA-NETO.PDF 30 Administração, diminuindo ainda mais as barreiras entre o Estado e a sociedade. 53 A promulgação da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o Estado Democrático de Direito e assegurou ao povo a titularidade do poder, a qual é exercida de forma direta ou por meio de seus representantes eleitos. 54 Ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto que o Estado Moderno, formado pelas sociedades monoclasse e biclasse, é caracterizado, até meados do século XX, pelas democracias formais, onde apenas é consagrado o exercício da democracia mediante a escolha dos agentes políticos. O surgimento das sociedades pluriclasse tornou os cidadãos mais exigentes, os quais consagram a ampliação da participação no governo, não basta apenas escolher os governantes, para o real exercício da democracia é relevante a escolha de políticas públicas. Trata-se da democracia substantiva, ainda em construção nas sociedades contemporâneas. Neste sentido o autor afirma que: Assim, não mais bastando o consenso na escolha de pessoas pelo voto formal, trata-se de buscar um consenso mais amplo sobre a escolha de políticas públicas através de outras formas institucionais que possam disciplinar com fidelidade e segurança o processo de formação da vontade participativa, ou seja, a crescente importância da processualidade adequada como instrumento democrático. 55 A democracia substantiva aponta maior participação dos cidadãos na definição de políticas públicas e na tomada de decisões administrativas, razão por que é indicada, por teóricos jurídicos, como determinante na atuação administrativa consensual. A consensualidade no âmbito da Administração Pública é considerada uma consequência natural da redemocratização albergada pela Constituição de 1988, já que 53 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 191, p. 26-39, fev. 2015. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45639>. Acesso em: 23 de maio de 2017. 54 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL. Constituição Federal 1988. Brasília,DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 Mai. 2017) 55 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendências da democracia: consenso e direito público na virada do século – o caso brasileiro. Op. cit., p. 2. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45639 31 determina maior cidadania participativa. Mas ainda há grandes dificuldades para o seu completo desenvolvimento. Neste sentido, aponta Maria Sylvia Zanella di Pietro: A participação popular na gestão e no controle da Administração Pública constitui o dado essencial que distingue o Estado de Direito Democrático do Estado de Direito Social. Corresponde às aspiração do indivíduo de participar, quer pela via administrativa, quer pela via judicial, da defesa da imensa gama de interesses públicos que o Estado, sozinho, não pode proteger. A Constituição de 1988 trouxe alguns avanços nesse sentido. Mas grandes são as dificuldades, quer porque muitos dos instrumentos de participação estão previstos em normas programáticas, quer pelo desinteresse da grande massa da população, voltada que está para a própria sobrevivência, quer pelo desinteresse do poder público em implantar esses mecanismos. 56 Assim, um dos fatores que propiciaram a evolução da consensualização pelo ordenamento jurídico foi a evolução da democracia substantiva. Entretanto, é possível observar outros fatores responsáveis pelo crescimento deste instituto. Destaca Gustavo Justino de Oliveira e Cristiane Schwanka a contratualização e concertação administrativa como fatores da ascensão da consensualização no Direito Administrativo. Aquele retrata a mudança das relações administrativas baseadas na imperatividade e unilateralidade por relações baseadas na negociação. Já a concertação administrativa indica a renúncia da Administração de seus poderes de império para realizar acordo com particulares. 57 A eficiência é indicada como outro fator de ascensão. Tornou-se princípio expresso mediante a alteração do texto constitucional introduzido pela Emenda Constitucional n° 19 de 1998. Hodiernamente, é considerado um direito fundamental, conforme preleciona o artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais do Homem. Deve a Administração utilizar os menores custos e menores sacrifícios da sociedade para obter os melhores resultados. Conforme Hely Lopes Meirelles, a 56 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Op. cit., p. 38. 57 OLIVEIRA, Gustavo; SCHWANKA, Cristiane. A Administração Consensual como a Nova face da Administração Pública no séc. XXI: Fundamentos Dogmáticos, Formas de Expressão e Instrumentos de Ação. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 104, p. 303-322, jan/dez. 2009. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67859>. Acesso em: 20 Mai. 2017. 32 eficiência é um “dever que se impõe a todo agente público”. 58 Ou seja, deve-se buscar o maior aproveitamento possível dos meios existentes e os melhores resultados. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto a utilização do poder resulta na formação das instituições, que, em conjunto, formam as civilizações. Neste processo de formação, o dinamismo do poder comporta a relação entre a cooperação e o antagonismo. Este é o grande responsável pelos conflitos, guerras, mas de certa maneira leva ao progresso, apesar do alto preço em vida e valores humanos. Aquela, por sua vez, é responsável por desenvolver virtudes sociais como a tolerância e a confiança, o que torna possível o surgimento do consenso. 59 2.2. Atuação administrativa consensual Antes de tecer considerações acerca da consensualização no âmbito administrativo, importante destacar que o autor Thiago Marrara orienta que consenso, consensualidade e consensualização não são sinônimos. Neste sentido, leciona que: A consensualização propriamente dita representa um fenômeno de construção teórico-normativa de canais jurídico-operacionais aptos a viabilizarem consenso no planejamento e na execução das funções administrativas. Esses canais assumem caráter orgânico (como a previsão de direito de voz e voto para alunos em colegiados de universidades públicas ou de representantes do povo em conselhos nacionais de políticas públicas), procedimental (como audiências realizadas no licenciamento ambiental) ou contratual (como os compromissos de cessação de prática infrativa e a própria leniência). Todos eles constituem meios para a busca do consenso nas relações entre Estado e Administração, nas relações entre entes públicos ou em relações entre órgãos de um mesmo ente. Como meios, sua existência por si só não garante consenso. É perfeitamente possível que eles estimulem até dissensos em certos casos. Por isso, consensualização, consenso e consensualidade jamais poderiam ser tomados como sinônimos. Consenso significa consentimento recíproco; consensualidade indica o grau, maior ou menor, de consenso na construção ou execução das políticas públicas. Os dois termos apontam para resultados. Consensualização, por sua vez, é movimento de transformação da Administração Pública e de seus processos administrativos em favor da edificação de consensos. 60 A Administração Pública consensual ecoa como a nova fase do Direito Administrativo no século XXI. Os juristas não negam a evolução, seja pela 58 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Op. cit., p. 93 59 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Op. cit., p. 131-132. 60 MARRARA, Thiago. Acordo de Leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Op. cit., p. 510. 33 interpretação em consonância com a Constituição Federal ou pela busca da maior efetividade e eficácia no âmbito administrativo, mas também reconhecem que ainda há muito a se progredir. Odete Medauar discursa acerca da importância da Administração Pública e sua evolução em paralelo ao Direito Constitucional ao reconhecer que os cidadãos são detentores de direitos fundamentais e não apenas administrados: A importância da Administração se revela pelo tratamento amplo que hoje recebe nas Constituições, inclusive a brasileira. Revela-se, ainda, pela preocupação, quase universal, em modernizá-la, para que se tenha eficiência, atue sem corrupção, não desperdice recursos públicos e respeite o indivíduo, tratando-o como cidadão, portador de direitos, não como súdito que recebe favor. A tentativa de modernizar a Administração muitas vezes se expressa em propostas de reforma administrativa, que, em geral permanecem na condição de promessa de campanha ou se limitam a extinguir órgãos, com dispensa de servidores. O tema de reforma administrativa, então, vem sendo reiterado, também no Brasil, o que se mostra necessário, até que medidas efetivas propiciem melhoria contínua e crescente no funcionamento da Administração 61 . Neste mesmo sentido é a reflexão de Gustavo Justino de Oliveira e Cristiane Schwanka ao indicar que o Direito Administrativo transformou-se ao permitir a possibilidade do uso da consensualização, por meio de contratos, acordos, diálogos, negociação, transação, em meios essencialmente imperativos com o objetivo de buscar a eficácia da atuação. Uma das linhas de transformação do direito administrativo consiste em evidenciar que, no âmbito estatal, em campos habitualmente ocupados pela imperatividade há a abertura de consideráveis espaços para a consensualidade. Aplicada ao terreno da Administração pública, essa orientação gerou expressões como Administrar por contrato, Administrarpor acordos, Administração paritária Administração dialógica, e mais recentemente, Administração consensual. Cumpre notar que tal diversidade terminológica acaba tendo efeitos positivos, principalmente porque evoca o fato de que administrar por meio de métodos ou instrumentos consensuais não significa, necessariamente, lançar mão da figura clássica do contrato administrativo. O sentido das expressões elencadas sinaliza um novo caminho, no qual a Administração pública passa a valorizar (e por vezes privilegiar) uma forma de gestão cujas referências são o acordo, a negociação, a coordenação, a cooperação, a colaboração, a conciliação, a transação. Isso em setores e atividades preferencial ou exclusivamente reservados ao tradicional modo de administrar: a administração por via impositiva ou autoritária. 62 61 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. Op. cit., p. 31. 62 OLIVEIRA, Gustavo; SCHWANKA, Cristiane. A Administração Consensual como a Nova face da Administração Pública no séc. XXI: Fundamentos Dogmáticos, Formas de Expressão e Instrumentos de Ação. Op. cit., p. 61. 34 Assim, apesar da gênese imperativa, a Administração Pública, em virtude da promulgação da Constituição Federal, deve zelar pelos objetivos do Estado Democrático de Direito, o que é inferido de maneira mais acessível com o uso do consenso quando possível. Não se pretende a redução completa da imperatividade no âmbito administrativo, mas o reconhecimento dos direitos fundamentais do indivíduo e de que certos meios são mais eficazes que outros para zelar pelo bem comum. 63 Conforme reconhece Alexandre Santos de Aragão, “(...) a Administração consensual é um corolário necessário da tese que vê a legitimação da Administração não mais na lei, mas na satisfação das necessidades sociais dos cidadãos”. 64 2.2.1. Instrumentos da consensualidade Tradicionalmente a atuação administrativa é marcada por atos administrativos dotados de imperatividade e unilateralidade. Destaca Juliana Bonacorsi de Palma que o elemento caracterizador da atuação administrativa imperativa é a prerrogativa imperativa, que é a possibilidade da Administração impor sua decisão de forma unilateral, fruto de um poder estatal que marca a verticalidade entre Estado e administrados. É uma prerrogativa genérica, pois fundamenta os poderes detidos pela Administração Pública e é externada através de atos e contratos administrativos. Já a prerrogativa sancionatória é a possibilidade da Administração Pública impor ou não sanções administrativas, é fruto do poder administrativo, reconhece-se a possibilidade de aplicação de sanção por ilícito penal. Destaca-se que aqui há uma aproximação do Direito Administrativo Sancionador com o Direito Penal. Esta aproximação resultou em diversos estudos acerca da limitação das sanções administrativas em respeito aos direitos fundamentais principalmente nos sistemas da Europa Ocidental, que repercutiram no sistema administrativo brasileiro. 65 63 LIMA, M. S. DE. Fundamentos para uma administração pública dialógica. Disponível em: <http://www.uricer.edu.br/site/pdfs/perspectiva/126_109.pdf>.Acesso em: 22 Mai. 2017. 64 ARAGÃO, Alexandre dos Santos. “A consensualidade no Direito Administrativo: acordos regulatórios e contratos administrativos”, in Revista de Informação Legislativa, vol. 42, n. 167, jul/set 2005. 65 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Atuação administrativa consensual: estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. Op. cit. p., 56-81. 35 A atuação administrativa consensual não é recente no ordenamento jurídico brasileiro, vide o instituto da desapropriação amigável prevista no Decreto-Lei 3.365/41, o qual disciplina a desapropriação ordinária. É possível notar o instituto da consensualidade no artigo 10 e 22 no Decreto: Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará. (Vide Decreto-lei nº 9.282, de 1946) Neste caso, somente decorrido um ano, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração. Parágrafo único. Extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.183-56, de 2001) (...) Art. 22. Havendo concordância sobre o preço, o juiz o homologará por sentença no despacho saneador. 66 Entretanto, até 1980 as normas que previam acordos entre a Administração e administrador eram pontuais, predominando ainda a imperatividade, “resumindo-se a mencionada desapropriação amigável administrativa ou judicial e ao Decreto 94.764 na matéria ambiental” 67 , o qual foi revogado pelo Decreto 99.274/90. A década de 1990 e início dos anos 2000 marcou grande avanço na normatividade dos acordos administrativos e judiciais, não mais restringidos às matérias de desapropriação e ambiental, mas também ao mercado de capitais. Destaca Juliana Bonacorsi de Palma que o aumento da previsão normativa deve ser vista pela maior perspectiva de celeridade e eficácia do processo, o que gerou a positivação de termos de compromisso, termos de ajustamento de conduta, mediação, conciliação e arbitragem. Grande exemplo do aumento da normatividade da funcionalidade do processo é a Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Cíveis e Criminais. Pouco a pouco os instrumentos consensuais foram surgindo ao longo da efetivação da Constituição Federal de 1988. 68 Gustavo Justino de Oliveira e Cristiane Schwanka destacam os seguintes exemplos de consensualidade no ordenamento jurídico brasileiro: 66 BRASIL, Decreto Lei 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 27 Mai. 2017. 67 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Atuação administrativa consensual: estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. Op. cit.. p. 171. 68 Ibid. p. 172-173. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del9282.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del9282.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2183-56.htm#art1 36 (...) o art. 10 do Decreto lei n. 3.365/41, segundo o qual “a desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente ...”; (ii) o compromisso de ajustamento de conduta, previsto no §6° do art. 5° da Lei federal n. 7.347/85 (Ação Civil Pública); (iii) os acordos no âmbito da execução dos contratos administrativos, nos termos da Lei federal n. 8.666/93, 8.987/95, 11.079/04 e 11.107/05;49 (iv) o compromisso de cessação de prática sob investigação, nos processos em trâmite na órbita do CADE (art. 53 da Lei federal n. 8.884/ 94), e (v) o contrato de gestão, previsto no § 8º do art. 37 da Constituição de 1988 (preceito inserido com a EC n. 19/98). 69 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto o instituto da consensualidade tem sido aplicado em diversos setores do Direito Administrativo, que pode ser adotado pela via contratual e pela via do acordo não contratual. Estabelece o autor uma classificação das modalidades consensuais da administração concertada segundo a natureza da função e o resultado administrativo visado: (i) decisão consensual, o qual abrange o plebiscito, referendo, debate público e audiência pública; (ii) execução consensual, presente em contratos administrativos de parceria e acordos administrativos de coordenação; e (iii) solução de conflitos consensual, que inclui a prevenção de conflitos, como nas comissões de conflito e acordos substitutivos, e na