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2019529_105528_A Republica - Renato Janine Ribeiro

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Folha Explica 
A REPÚBLICA 
Renato Janine Ribeiro 
 
Texto da contra capa 
A despeito do que se pensa, república não é o contrário de 
monarquia. É, isto sim, o regime da coisa pública, do bem comum. 
Por isso, são poucos os Estados que merecem ser chamados de 
repúblicas. Ser republicano exige muito do cidadão, porque ele 
precisa ser intensamente ético. 
A república é o regime da ética na política. Ora, como podemos 
ser éticos, fazendo passar o bem comum à frente do egoísmo privado, 
quando vivemos numa sociedade que prega, o tempo todo, o interesse 
particular na economia e a afirmação de si nas relações com os 
outros? Queremos a ética na política, mas como, se a sociedade em 
que vivemos é tão egoísta? 
 
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política 
na USP e autor de A Democracia, nesta mesma série. 
 
 
SUMÁRIO 
 
DOIS QUADROS RESSUSCITAM 
O IDEAL REPUBLICANO 
A VIRTUDE VARONIL 
UM ANTIGO INIMIGO: 
A MONARQUIA 
O INIMIGO DA REPÚBLICA (1): 
O PATRIMONIALISMO 
O INIMIGO DA REPÚBLICA (2): 
A CORRUPÇÃO 
A REPÚBLICA FACILITADA: 
MANDEVILLE 
A REPÚBLICA POSSÍVEL 
REPÚBLICA E DEMOCRACIA 
EPÍLOGO: 
IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA 
BIBLIOGRAFIA E SITES 
 
Este livro tem um companheiro, na mesma série, sobre “A Democracia". Consultar os dois é 
o melhor, embora cada um possa ser lido em separado. 
As teses que os unem são: não há política digna de seu nome, hoje, que não seja 
democrática e republicana. Mas há uma tensão entre esses dois ideais. A república 
é o regime no qual prevalece o bem comum, o que exige o sacrifício ou a contenção 
dos desejos e interesses privados. Já a força da democracia, hoje, e seu caráter 
popular estão justamente no fato de que ela mobiliza o desejo de ter mais - e 
sobretudo o desejo de ser mais. 
Dedico este livro a meus amigos do grupo de estudos sobre a república: 
Olgáría, Heloísa, Maria Alice, Werneck, Murilo, Newton, Marcelo, Sérgio e Wander. 
E a meu filho Rafael, para que quando cresça seu país valorize, mais do que hoje, o 
bem comum. 
Finalmente, agradeço a Jean Galard e à Réuníon des Musées Natíonaux a 
cessão das imagens dos quadros de Davíd que vocês verão a seguir. 
 
 
1. DOIS QUADROS RESSUSCITAM O IDEAL 
REPUBLICANOPAI E FILHOS 
No Salão de 17S9, em Paris, o pintor Jacques Louis David (1748-1825) 
expõe seu quadro Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos, 
que hoje está no Museu do Louvre.Todo espectador culto entende de imediato o 
sentido da obra. Refere-se a um episódio da Roma antiga, depois de expulso o 
último rei e proclamada a república. Brutus era um dos dois cônsules eleitos 
anualmente que exerciam, em conjunto, o poder executivo. Seus filhos, porém, 
conspiraram para restaurar a dinastia dos Tarquínios — uma dinastia etrusca, 
portanto de origem externa à cidade — e foram presos. 
O próprio pai os condena à morte. Na sua função pública, não poderia agir 
de outro modo. No quadro, vemos ao fundo os cadáveres, com as mulheres 
soltando todo o desespero, toda a dor pela morte dos rapazes. No primeiro plano, 
o cônsul, em silêncio, meditando - e, na sua forma discreta, máscula, 
condensada, sentindo imensa dor. 
 
 
 
Jacques Louis David, Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos 
(Museu do Louvre, Paris) 
 
O quadro diz muito sobre a república, e isso meses antes da Revolução 
Francesa e alguns anos antes que a França adotasse essa forma de governo. 
Muitos comentam a influência que terá tido a jovem república dos Estados 
Unidos da América sobre a francesa: afinal, a independência norte-americana 
contou com apoio financeiro e militar da França. E Thomas Jefferson, que 
redigiu a Declaração de Independência das 13 Colônias, foi embaixador de seu 
país em Paris, de 1785 ao início da Revolução. 
Mas pensemos um pouco. Os homens da Revolução Francesa eram cultos, 
 
estudados, assim como, aliás, os da Americana. Conheciam a tradição clássica. 
O que levariam mais em conta, a experiência recente e ainda pouco testada de 
um punhado de colonos numa terra distante, ou séculos de sucesso num dos 
maiores centros da civilização europeia? Roma e o neoclássico estavam em 
voga, naquele fim do século 18. 
O que nos diz o quadro de David? Antes de mais nada, que o bem público 
se sobrepõe ao privado. Essa frase, que geralmente tomamos por mero lugar-
comum, tem nos valores da República um claro significado: devemos sacrificar 
as vantagens e até os afetos pessoais ao bem comum. O pai executa o filho, 
como o filho eventualmente mataria o pai, em nome da Cidade. O custo dessa 
ação não é negado e nem mesmo ocultado. Ninguém ignora a dor de Brutus - 
seria tão fácil apresentá-lo como um político desumano, que ao poder sacrifica o 
amor! -, mas ele não podia agir decentemente de outro modo. 
A República tem custo alto, mas é justo pagá-lo. Para sairmos, porém, da 
facilidade com que essas palavras são ditas, vamos a um episódio mais recente, 
também gerador de vasta iconografia, que enche de horror quem o conhece. É o 
caso do pequeno Pavel Morozov, um adolescente russo que denunciou o próprio 
pai ao poder soviético, no começo dos anos 30, por esconder cereais. O pai foi 
condenado a uma longa pena num campo de concentração, onde provavelmente 
morreu; já o garoto acabou assassinado na vila em que vivia. Pois Pavel foi 
instituído como o grande herói do Konsomol, a organização da juventude 
comunista, e estátuas em sua honra se espalharam por toda a União Soviética.1 
Há várias razões para que a história nos choque. Pavel traiu o pai. 
Denunciou-o não porque conspirasse contra o país, mas só porque escondia 
comida. Pior que isso, foi convertido em exemplo, em herói. Dizia-se aos 
meninos e meninas: sejam como ele. Uma cultura exortou a denunciar os pais. 
Mas essa história execrável não é diferente da romana que vimos acima. 
Brutus foi herói, sobretudo por ter mandado executar os filhos. E verdade que 
eles haviam cometido crime pior que o pai de Pavel, mas Pavel não foi o juiz 
que mandou matar o pai — embora tenha pedido, ao tribunal, que o punisse. O 
cerne da questão é o mesmo: o bem comum passa à frente dos afetos. 
Tanto Roma quanto Moscou fizeram deles figuras exemplares. 
Provavelmente, o que nos faz detestar a história soviética é que a república hoje 
passa melhor que o comunismo: atualmente, ela é o regime aceito pela maior 
parte da humanidade. 
 
1 A estátua do pequeno Pavel, que reinava sobre o parque Morozov, em Moscou, foi 
derrubada pelo povo da capital em meio às manifestações contra o golpe de 21 de 
agosto de 1991, que tentara depor Gorbatchev. 
 
 
Jacques Louis David, O Juramento dos Horácios (Museu do Louvre, Paris) 
 
PÚBLICO VERSUS PRIVADO 
Sim, a república é hoje o regime aceito pela maior parte do mundo. Mas da boca 
para fora. No Brasil, onde desde 1889 o regime se chama república, só houve 
eleições minimamente decentes para a presidência em 1945, 1955 e 1960 - e 
eleições livres de 1989 para cá, mas ainda com certa manipulação dos meios de 
comunicação. De nossos cento e poucos anos nominalmente republicanos, 
quantos corresponderam a um regime com as liberdades públicas asseguradas? 
O que este livro pretende não é reiterar a velha diferença entre monarquia e 
república, ficando na forma e no nome da república. Quem tem dúvida de que as 
monarquias do norte da Europa têm governos mais respeitosos de seus cidadãos 
e do bem comum do que a maior parte das repúblicas americanas, africanas e 
asiáticas? Pouco após o golpe de 15 de novembro, Eduardo Prado denunciou a 
ditadura militar que se instalara no Brasil e defendeu a monarquia deposta: 
muitos achavam o imperador Pedro II mais cioso do bem comum do que os 
marechais e os oligarcas paulistas e mineiros que se sucederam a ele. 
Mas continuemos no Louvre. David já pintara, em 1784-5, O Juramento 
dos Horácios. Mais uma vez, a referência romana,que naquele tempo qualquer 
espectador — por ser culto — decifraria com facilidade. Muitos quadros 
evocavam uma história conhecida do público. Reza a lenda que Roma e Alba 
combinaram decidir uma guerra num combate de três jovens romanos, os irmãos 
Horácios, com três albanos, os irmãos Curiácios. Tão logo começa a luta, dois 
Curiácios matam dois Horácios. A questão parece resolvida; os Curiácios 
atacam o romano sobrevivente. Ele sai correndo. Mas não é covardia e sim 
esperteza que o move: seus perseguidores correm em velocidade desigual, e o 
 
último Horácio pode a cada etapa parar, enfrentar um inimigo só, matá-lo e 
retomar a corrida. Assim, ele vence os inimigos de Roma. 
A astúcia é essencial para o defensor da república — será essa a moral da 
história? Não. Ou até é, mas a história prossegue. De volta a Roma, o vencedor 
encontra a irmã, Camila. Esta, sabendo o que se passou, chora. Era noiva de um 
dos Curiácios. O irmão, vendo-a chorar um inimigo de Roma, mata-a. 
Se fosse esta uma ópera do século 19, certamente o irmão não saberia do 
noivado e a mataria ao tomar conhecimento dele. Mas nossa história romana não 
é melodrama: é tragédia. O Horácio restante sabia do noivado, e isso torna a 
história mais assustadora. Não só ele matou a irmã, por ter traído o amor à 
pátria, mas antes disso não hesitaram ele, os irmãos e os inimigos em lutar até a 
morte entre amigos, a um passo de se tornar parentes. A república prevalece 
sobre qualquer sentimento, qualquer elo privado. 
A MULHER DESDENHADA (1) 
O lugar da mulher, na república, não é admirável. As mulheres da gen 
Brutus choram à vontade, mas porque valem menos que os homens. Têm maior 
Uberdade de exprimir os sentimentos, mas isso porque contam com menos 
obrigações — de defender a pátria, o bem comum, a coisa pública. No episódio 
dos Horácios, à moça morta não se reconhece nem o direito de chorar o amado. 
A República Romana, que os revolucionários franceses evocam, porque a seu 
tempo é a grande história de sucesso, é viril. É máscula. É de homens. 
 
2. A VIRTUDE VARONIL 
 
Quarenta anos antes de David ter pintado seus quadros, Montesquieu (1689-
1755) publicava sua grande obra, Do Espírito das Leis (1747). Sua meta era 
mostrar que as leis que vigoram nos diversos países do mundo, tanto as 
decretadas por um rei ou uma assembleia quanto as encarnadas em costumes, 
não são puro efeito da vontade ou arbítrio humano, mas têm uma lógica. Uma 
lógica, porém, que varia conforme várias causas: o clima (talvez a principal 
delas), a educação e os costumes em geral. 
Montesquieu vê três grandes lógicas organizando as leis. São os três 
regimes, ou “governos”, que ele analisa: monarquia, república e despotismo. 
Mesmo o despotismo, que à primeira vista parece o reinado do capricho, do 
arbítrio e da desmedida, tem uma lógica interna. O sultão manda a seu bel-prazer 
porque esse é o único meio de controlar homens e mulheres que, vivendo em 
clima muito quente, têm literalmente os nervos à flor da pele e por isso não 
 
conhecem nenhuma autodisciplina, nenhuma contenção de suas paixões - a não 
ser a imposta pelo medo aos piores suplícios. 
Já a monarquia é, diz Montesquieu, o regime de nossos dias. Não é o 
regime perfeito. Baseia-se em preconceitos, errados teoricamente, mas de bom 
resultado prático. O principal preconceito chama-se honra: é o desejo que 
sentem os nobres de ter prioridade e precedência uns sobre os outros. Ora, a 
honra inviabiliza o despotismo. O nobre preza a honra mais que a vida. Por isso, 
não admitirá o tipo de arbitrariedade que um sultão pratica. Assim, um erro 
filosófico, a excessiva crença no próprio valor, termina produzindo um beneficio 
na prática - que é a defesa das liberdades ou da Constituição tradicional contra 
os excessos do rei. Aliás, quando se aproxima a Revolução Francesa, vai-se 
tornando comum denunciar o rei da França como uma espécie de sultão, e entra 
nessa imagem até o harém que Luís XV, falecido em 1774, tinha no Parque dos 
Cervos. 
E a república? Seria o melhor dos regimes, idealmente falando. Mas é 
impossível em nosso tempo, diz Montesquieu. Por uma razão simples: se para 
haver despotismo é preciso o medo, e para haver monarquia a honra, para a 
república é requisito a disposição afetiva chamada virtude. Por ela Montesquieu 
entende o que chamaríamos abnegação, a capacidade de ceder a um bem 
superior as vantagens e desejos pessoais, ou de negar a si próprio em favor de 
algo mais alto. 
Por que a abnegação se tornou impossível na modernidade? Essa é a grande 
pergunta a formular. Lendo Montesquieu com alguma pressa, chama a atenção o 
grande erro dele — logo dele, que com esse livro abriu as portas para o que hoje 
chamamos de sociologia e de ciência política — ao dizer que a república era 
inviável, poucas décadas antes de surgirem os dois grandes modelos 
republicanos da era moderna, um na América do Norte e outro na Europa. 
Mas prestemos atenção. A república que ele louva, mas ao modo de um 
elogio fúnebre, é a antiga. Podemos hoje até recitar as frases de Cícero e de 
outros grandes romanos (em nossa República Velha se estudava latim, como na 
Europa, lendo-os), mas nenhum de nós se disporia a repetir Brutus sem enorme 
horror. Brutus, atualizado para nosso tempo, é o infeliz menino soviético, cuja 
fama se tornou infâmia, ao acabar o regime que o utilizou como arma de 
propaganda. Nossa abnegação, nossa virtude, é limitada. 
RES PUBLICA E PÁTRIA 
República é um conceito romano, como democracia é um termo grego. Vem de 
res publica, coisa pública. Surgiu em Roma substituindo a monarquia, mas mo-
 
narquia e república não se definem pelo mesmo critério. Monarquia se define 
por quem manda: significa o poder (arquia) de um (mono) só. Já a palavra 
república não indica quem manda, e sim para que manda. O poder aqui está a 
serviço do bem comum, da coisa coletiva ou pública. Ao contrário de outros 
regimes, e em especial da monarquia, na república não se busca a vantagem de 
um ou de poucos, mas a do coletivo. 
Jean-Jacques Rousseau (1712-78), contemporâneo de Montesquieu, dará a 
chave para entendermos isso ao distinguir, no Contrato Social, a vontade geral 
da vontade de todos. Uma decisão pode satisfazer a grande maioria e, ainda 
assim, ser ilegítima — quando a união de todos se dá por vantagens pessoais, e 
não pelo bem comum. O bem comum não coincide com o bem de muitos, nem 
mesmo com o bem de todos. E isso porque o essencial, na república, não é 
quantos são beneficiados, e sim o tipo de bem que se procura. Bem comum é um 
bem público, que não se confunde com o bem privado. Por exemplo, um 
candidato pode prometer vantagens a todos, à custa dos cofres públicos — 
enquanto outro, que reprime o acesso das pessoas ao erário, seria o verdadeiro 
defensor da res publica. 
Aqui entra a ideia de pátria. Não há república sem pátria. Esta, em primeiro 
lugar, é o espaço comum, coletivo, público — diferente do que é privado ou 
particular. Em segundo, é um intenso alvo afetivo. A pátria envolve amor, 
identidade, pertencimento. E, em terceiro, remete ao pai, isto é, ao progenitor do 
sexo masculino. 
A MULHER DESDENHADA (2) 
Por que o lugar da mulher, na república, é secundário, é ruim? Devemos 
remontar ao dramaturgo grego Esquilo para entender. É verdade que ele escreve 
na Atenas antiga, que em nossa tipologia é democracia e não república, mas o 
papel que confere à mulher valerá até pelo menos o século 19. Uma das sete 
tragédias suas que chegaram a nós é As Eumênides, que encerra a trilogia 
conhecida como Oréstia (458 a.C.). 
A trilogia começa quando Agamêmnon, rei de Argos, voltando vitorioso de 
Troia, é assassinado pela mulher, Clitemnestra, ajudada pelo amante. A filha do 
rei morto, Electra, educa o irmão mais novo, Orestes, para vingar o pai. Ele mata 
a mãe. Mas esse crime desperta a ira das erínias ou fúrias, divindades que punem 
as ações cometidascontra o sangue — por exemplo, o crime do filho contra o 
pai ou a mãe. Finalmente, as erínias e Orestes concordam em se submeter a um 
julgamento, em Atenas, presidido pela deusa da cidade, Palas Atena (a Minerva 
dos romanos). 
É essa a origem do júri: centenas de atenienses se reúnem para ouvir as 
 
alegações e decidir. As erínias seguem um modelo de sociedade que é arcaico. O 
deus Apolo lhes pergunta por que querem castigar Orestes, se não puniram 
Clitemnestra. Elas respondem que só perseguem o pior dos crimes, que é contra 
o sangue. Sua visão do crime parte — como toda visão do crime — de uma 
concepção da sociedade. Para elas, o fundamento é a família ou o clã. Quem fere 
um consanguíneo comete ato pior do que quem ataca um associado, que não 
descende dos mesmos avós. 
Apolo, advogado de Orestes, contesta essa tese. Por que castigar a quebra 
do elo de sangue, e não a quebra da fé, da palavra dada, do compromisso 
firmado, do contrato? Uma sociedade é a união de vários sangues. Quando me 
caso, o que faço fora da família e geralmente fora do sangue comum, vou além 
do clã, para estabelecer o que se chama sociedade. Mas, se a palavra dada não 
valer, ou se valer menos que a reiteração do sangue, que paz existirá entre os 
humanos? Nenhuma. 
A linguagem de Apolo é a nossa. Não espanta que Orestes seja absolvido. 
(Na verdade, os jurados atenienses chegam a um empate, e sua absolvição se 
deve ao desempate decidido pela deusa que preside a corte - por isso tal tipo de 
decisão é conhecido como “voto de Minerva”.) Mas um dos argumentos do deus 
é significativo. Vamos a ele. 
O pior crime contra o sangue é o matricídio, o assassínio da mãe, dizem as 
erínias.2 Mas, pergunta Apoio, qual é o papel da mãe e qual o do pai, na geração 
da prole? A mulher é só um vaso, no qual o varão deposita sua semente, ou 
sêmen. Dá para igualar o papel da terra, que é o elemento feminino, ao da 
semente? Prevalece a contribuição do homem. 
Hoje essa explicação não convence. Mas, se ela não justifica mais a 
desigualdade sexual, não foi porque a genética mostrou que toda geração inclui 
em partes iguais os cromossomos do pai e os da mãe. Foi porque a sociedade 
mudou, com as mulheres clamando por direitos, que se tornou possível não a 
descoberta genética, mas a eventual citação dela para se contestar a concepção 
esquiliana da mulher. 
Na peça, a sociedade se constrói, contra a família e para além dela, como 
um espaço de contratos e leis que são respeitados, como uma abertura para o 
outro, para a paz; mas isso teve como custo reduzir o papel da mulher, liquidar a 
memória ou a fantasia do matriarcado. E a república, sem ser necessariamente 
um patriarcado, é pátria e é varonil. 
 
2 Depois da decisão, as erínias ameaçam vingar-se de Acenas. Mas a deusa Atena as 
acalma, convidando-as a ficarem na cidade. Elas aceitam e se tornam divindades 
benfazejas (isto é, eumênides). É a domesticação do feminino. 
 
UM COMPROMISSO MODERNO 
Fechando esta parte: a república, quando reaparece na Idade Moderna, será um 
meio-termo entre Roma e Montesquieu. Ela retomará, de Roma, a ideia matriz 
de que há um bem comum superior ao particular. Condenará a tendência de 
quem está no poder a se apropriar do bem público como se fosse seu patrimônio 
privado. Mas exigirá menos dos cidadãos. Aceitará que eles sejam movidos, 
sobretudo, por seus interesses particulares. 
 
 
UM ANTIGO INIMIGO A MONARQUIA 
 
 
DOIS SENTIDOS DE REPÚBLICA 
 
Aprendemos na escola que república se opõe a monarquia e que as 
qualidades estão com a primeira. No Brasil até houve um plebiscito, em 1993, 
para decidir entre elas. 
O problema é que a monarquia já foi a antagonista da república, mas não 
entenderemos nada dessa última se continuarmos a opô-las. Hoje há monarquias 
que respeitam mais a lei do que regimes que se dizem republicanos, mas que são 
ditaduras. Não discutiremos aqui o nome república, mas seu conceito, seu núcleo 
duro, seu conteúdo forte e poderoso. 
Quando se começa a falar mais em república, por volta do século 16, usa-se 
o termo em dois sentidos básicos. Um é mais genérico e hoje Causa estra- nheza, 
Por esse sentido, até o regime monárquico é república, ou há um elemento 
republicano na própria monarquia. Alguns juristas franceses dizem que o rei 
defende a república. Explica-se: quando se fala em república, dentro da 
monarquia, acentua-se o modo pelo qual ela promove a coisa pública. O rei seria 
o defensor da coisa pública, o promotor da justiça, o paladino do bem comum. 
Assim se chega ao paradoxo de 1804, quando Napoleão se torna imperador 
dos franceses. Um plebiscito decide que “o governo da República é confiado a 
um imperador”. Não diz: acabou a República. Continua a República, só que com 
um monarca. Por dois anos, as moedas exibem, de um lado, as armas e o nome 
da República, e do outro, a efígie e o título do imperador. Isso só se explica por 
esse sentido mais amplo de república, em que ela não é um regime específico, 
mas um modo de exercer o poder, favorável à coisa pública. 
Contudo, já em 1649 os ingleses haviam deposto e executado seu rei, 
Carlos I, proclamando um regime a que chamam Commonwealth of England. 
Common é comum, público, wealth ou weal é riqueza ou bem. A tradução do 
título seria “bem comum” ou “coisa pública”— isto é, República da Inglaterra. 
 
Seus partidários, os Commonwealthmen ou republicanos, serão perseguidos, 
uma vez restaurada a realeza, em 1660. Esse é o segundo sentido de república, 
no qual ela é um regime oposto à monarquia, porque o poder é atribuído pelo 
povo em eleições. 
É certo que Cromwell, chefiando a república inglesa, acaba assumindo 
todos os poderes e mesmo emblemas da antiga realeza. Mas vemos crescer uma 
acepção mais precisa de república, até porque nos Países Baixos e em alguns 
cantões da Suíça, país então bem atrasado, há formas republicanas. A república, 
porém, aparece ainda como regime do atraso (a Suíça), do pequeno território 
(Países Baixos e Suíça), temporário e fracassado (Inglaterra). É exceção, mais 
que regra. Por isso Montesquieu pode dizer que funcionou no passado, entre os 
romanos, mas não mais hoje. 
Na década de 1780, porém, quando as 13 províncias da América do Norte 
agora independentes da Inglaterra formam os Estados Unidos, volta a haver 
repúblicas importantes — sim, num território afastado do europeu, atrasado, mas 
que inspira algum entusiasmo por toda a parte. E, em 1792 na prática, em 1793 
na lei, a França se torna república. Uma grande guerra europeia começa, com as 
monarquias atacando, quase em bloco, o novo regime. A república está na 
ordem do dia, e sua antagonista é a monarquia. O que é essa monarquia? 
A MONARQUIA MEDIEVAL E A MODERNA 
A monarquia moderna — não a contemporânea, isto é, a de hoje - origina-se nos 
poderes instituídos em começos da Idade Média, quando os bárbaros ocuparam 
o que restava do Império Romano. Esfacelou-se o poder central latino, e em seu 
lugar se formaram, em processo que demorou séculos, Estados de menor 
dimensão. Ora, cada chefe guerreiro se cercava de um grupo de companheiros, a 
quem atribuía funções que hoje diríamos pertencer à vida privada. Por exemplo, 
uns garantiam a segurança do chefe, um cuidava da despensa, outro do dinheiro 
etc. 
Quando o chefe se tornava um potentado ou mesmo rei, essas funções 
“privadas” (na linguagem de hoje) assumiam uma dimensão “pública”: o 
tesoureiro da bolsa privada do rei cuidava do dinheiro do reino. Os dois 
adjetivos vão entre aspas porque na verdade as coisas mal se distinguiam. 
Diferenciá-las foi demorado. Assim, só na segunda metade do século 18 o rei da 
Inglaterra transfere as propriedades da Coroa - seus bens privados - para a nação, 
recebendo em troca uma dotação no orçamento para ele e sua família. E na 
década de 1780 a jovem rainha da França, Maria Antonieta, ainda evoca, 
nostálgica, os tempos emque seu avô, duque de Lorena, precisando de dinheiro, 
ia à igreja de sua capital e pedia dinheiro aos cidadãos. São dois casos que 
 
mostram que mal se separavam o plano público e o privado. 
Na Idade Média há uma fusão dos vários poderes. Não há, porém, 
centralização deles. Isso quer dizer (sempre usando a linguagem de hoje) que o 
rei reúne o poder executivo, o legislativo e o judiciário — mas o duque faz a 
mesma coisa, e o simples cavaleiro também. Dois processos paralelos se 
produzem, ao longo de séculos. Pelo primeiro, diferentes funções lentamente se 
emancipam das mãos do rei (ou duque, ou cavaleiro). Um legislativo, um 
judiciário e finalmente um executivo se separam do monarca. Mas também os 
papéis de legislar, de julgar e de agir deixam de se repartir entre rei, duque e 
senhor local, sendo geralmente centralizados no plano mais alto, o do Estado 
que - bem mais tarde - às vezes se chamará nacional. 
A Inglaterra talvez seja o melhor caso a estudar. E também um dos mais 
precoces. Em 1265, reune-se um Parlamento, o primeiro da história. Tem nobres 
(lordes) e plebeus (comuns). Fixa-se a praxe de que o rei não cobrará impostos 
sem aval do Parlamento. Sempre que precisa de dinheiro, mas só nessa ocasião, 
ele convoca um Parlamento, o qual, embora não seja constitucionalmente o 
poder legislativo, aproveita para conseguir do rei as medidas legais que deseja. 
O rei também delega ajuízes, que ele nomeia, a tarefa de julgar. Imagens 
como a de S. Luís, rei da França, que em meados do século 13 pessoalmente 
ministrava justiça sob um carvalho, em Vincennes, ficam para o passado. E 
verdade que até a revolução de 1688 os juízes ingleses eram nomeados durante 
bene placito, ou seja, enquanto agradasse ao rei, que os demitia quando quisesse 
e sem explicações. Desde então, só podem ser demitidos se comprovadamente 
agirem mal. 
Não é preciso detalhar todo o processo, que Norbert Elias estudou em seu 
O Processo Civilizador.3 O fato é que as monarquias, de boa ou má vontade, 
abriram mão dos três poderes (sempre lembrando que esses são termos de nossa 
época, e não do tempo em que isso ocorreu). Quando os norte-americanos e 
franceses erguem a bandeira republicana, o rei da Inglaterra já começou a 
transferir o poder executivo para um primeiro-ministro, que é o líder do partido 
vitorioso nas eleições à Câmara dos Comuns. Mas, no resto do mundo, a 
monarquia continua enfeixando em suas mãos todos – ou quase todos – os 
poderes. E mesmo na Inglaterra o monarca manipula as eleições. 
O século 19 será atravessado pelo conflito entre república e monarquia. 
Mas essa última é forçada a ceder, e muito. Amplia-se para vários países a 
prática, inicialmente inglesa, da monarquia constitucional. O rei continua sendo 
a principal figura do Estado e individualmente a mais poderosa. Mas admite que 
haja uma câmara de deputados eleitos, ainda que geralmente equilibrada por 
 
3 Norbert Elias, O Processo Civilizador: uma História dos Costumes (Rio de Janeiro: 
Zahar, 1990 [v. 1] e 1992 [v. 2], trad. R. Jungmann, apresentação Renato Janine 
Ribeiro). 
 
uma câmara de nobres nomeados (um senado), reconhece autonomia ao 
judiciário e em alguns casos — porém nem sempre — aceita passar o poder 
executivo para o partido vencedor das eleições populares. 
Monarcas Brasileiros 
No Brasil, Pedro I exerceu diretamente o poder executivo e ainda criou um 
quarto poder, o moderador, pelo qual o monarca intervinha no legislativo e no 
judiciário. Depois do experimento republicano que foi a regência (1831-
40),Pedro II, quando adulto,passou a nomear como primeiro-ministro o vitorioso 
nas eleições. O problema é que estas eram fraudadas... Mas nossa situação ainda 
era melhor que a da Prússia, na qual o controle do rei era bem mais forte. 
MORAL E IDENTIDADE NACIONAL 
A grande mudança começa, como é praxe na política moderna, pela Inglaterra. 
Em 1837 sobe ao trono a rainha Vitória. Seu longo reinado, que terminou em 
1901, parece hoje um período sem nenhuma contestação ao primado ideológico 
do espírito vitoriano. Mas em 1837 a realeza é impopular no país. Os últimos 
monarcas foram loucos ou dissolutos. A causa republicana está na ordem do dia. 
Apesar de formalmente o primeiro-ministro ser o líder da maioria parlamentar, o 
rei interfere na política, negocia, frauda. 
A genialidade de Vitória e seu marido, o príncipe Alberto, esteve em mudar 
radicalmente o papel da monarquia. Esta saiu da política e ocupou a moral. Não 
foi fácil. A rainha teve seus preferidos entre os primeiros-ministros, adorando 
lorde Melbourne, liberal, que a orientou nos primeiros anos de reinado, e mais 
tarde aceitando a adoração de Disraeli, conservador, que a lisonjeou coroando-a 
imperatriz da índia. Mas soube refrear a vontade de interferir no mundo político. 
Em compensação, a realeza passou a oferecer ao povo inglês um modelo 
moral. Essa moral significava uma vida de família irreprochável, somada à 
conhecida discrição em matéria sexual que ficou associada ao adjetivo vitoriano. 
“Não achamos graça nenhuma” (We are not amused), dizia a rainha, quando se 
contava uma piada mais atrevida perto dela. A família real passou a ser a família 
por excelência, o modelo das relações estáveis, o palco em que se produzia o 
caráter firme e honesto do cavalheiro inglês. 
Evidentemente essas virtudes eram as de uma classe, a da alta ou baixa 
nobreza (respectivamente, aristocracy e gentry). As classes pobres ficaram asso-
ciadas a uma vida dissoluta, em sexo e bebida, que foi reprimida e, pior que 
isso, desprezada. Isso se lê nas entrelinhas da série de livros de Arthur Conan 
Doyle com o detetive Sherlock Holmes. Foi um toque de gênio tornar as 
qualidades dos pobres e miseráveis não temíveis, mas desprezíveis. Quem é 
 
temido conserva dignidade. Mas, se a vida dos miseráveis é considerada imoral, 
eles ameaçam menos: podem ser controlados, por uma série de ações as-
peramente caridosas. 
O projeto vitoriano foi um sucesso. A realeza ficou acima dos partidos. É 
claro que isso teve seus limites. Jorge V, em 1924, não gostou de ter que con-
viver com um primeiro-ministro trabalhista, o primeiro da história, Ramsay 
MacDonald. Mas, entre liberais e conservadores, e hoje entre conservadores e 
trabalhistas, a realeza é neutra. Renunciando à política, ela assegurou o papel de 
representante do Estado, da unidade nacional, de ponto comum de identidade. 
E esse o sentido da monarquia constitucional, hoje, lá onde ela funciona - 
no Reino Unido, na Escandinávia, na Holanda, Bélgica, Espanha. O monarca, 
sendo neutro politicamente, não tendo parte no governo, não votando nem 
sequer nas eleições, representa ou mesmo encarna a figura do Estado. Isso não é 
pouca coisa. Talvez seja nas monarquias constitucionais, depois da abdicação de 
quase todos os papéis históricos da realeza, que melhor funcione a separação 
entre Estado, por um lado, e governo ou partidos, por outro. E isso justamente 
porque o rei não está filiado a partido algum, ao contrário das repúblicas, 
mesmo no parlamentarismo. Nelas, a presidência quase sempre cabe a um 
partido — o que torna difícil distinguir o Estado, que é de todos, e o governo, 
que cabe a uma parte, ainda que hegemônica, da sociedade. 
Uma curiosidade: os filatelistas ou simples interessados talvez tenham 
notado que um único país no mundo não coloca seu nome em seus selos - a Grã-
Bretanha.Talvez porque foi o primeiro a emitir selos postais, em 1840. Mas em 
todos os selos britânicos aparece a efígie do monarca reinante. O que identifica a 
sua origem é a imagem do rei. Ou seja, a identidade, o nome nacional, está na 
figura estilizada do monarca. E é porque todos se unem em torno da realeza que 
podem divergir à vontade na política: um ponto essencial, a unidade e a 
identidade, está preservado. 
Outro Modelo Para a Realeza Britânica 
Será uma monarquia assim concebida o contrárioda república? É claro que não. 
Ela pode até ser mais republicana, já que preserva dos conflitos partidários um 
núcleo comum a todos, que é exatamente a ideia de res publica. 
Isso não é fácil, e as monarquias são criticadas por estabelecerem uma 
distinção de nascença entre a família real e os súditos, como se ela fosse melhor 
do que estes. No Reino Unido, a casa real é riquíssima e ainda recebe muito 
dinheiro do Estado. E, como sabemos, os filhos de Elizabeth II não foram exem-
plo de controle sexual — aliás, seria isso desejável em nossos dias, quando a 
antiga condenação ao sexo foi substituída pela convicção difusa de que ele é 
bom? Hoje a realeza britânica está em busca de seu papel. O modelo vitoriano, 
da autocontenção sexual, não faz mais sentido nem para os atores, os príncipes, 
 
nem para o público, o povo. Mas a ideia mais genérica do monarca como fiador 
de um espaço que não se esgota nos conflitos entre partes pode continuar 
produtiva. 
"MONARQUIA" E "REPÚBLICA" 
O importante neste capítulo era libertar a discussão daquilo que é enganoso nos 
nomes. Nem república nem monarquia podem ser confundidas com alguma 
forma histórica que assumiu seu nome. Por república, entendemos o respeito à 
coisa pública. Paradoxalmente, esse respeito pode estar assegurado, desde a 
segunda metade do século 20, por algumas monarquias constitucionais. 
Mas isso também significa que as monarquias que restaram somente 
sobreviveram deixando de enfrentar a república, rendendo-se a seus valores. Não 
é que elas tenham vencido a parada: abriram-se aos tempos novos. O grande 
antagonista da república está hoje em outro lugar — é a usurpação da coisa 
pública por interesses particulares. Disso vamos tratar agora. 
 
4. O INIMIGO DA REPÚBLICA (1): O PATRIMONIALISMO 
 
O conflito entre monarquia e república opunha a transmissão do poder pela via 
hereditária e a sua atribuição por eleições. Mas, quando o rei se torna, ao menos 
na Europa, uma figura cerimonial, essa diferença perde sentido — até porque, 
nas monarquias constitucionais, o poder efetivo é conferido ao primeiro-ministro 
pelo voto do povo. 
Qual o cerne, então, da república? A definição de monarquia destaca quem 
exerce o poder, e a de república para que serve o poder. Na monarquia manda 
um, e na república o poder é usado para o bem comum. Assim, embora quando 
um único mande ele tenda a usar o poder em benefício próprio, a verdadeira 
ameaça à república está nesse uso do poder, e não na forma institucional: está 
nos fins, e não nos meios. 
Resumindo: o inimigo da república é o uso privado da coisa pública. É sua 
apropriação, como se fosse propriedade pessoal. 
 
 
O PATRIMONIALISMO 
Emprega-se hoje muito o termo patrimonialismo, no Brasil, mas há um equívoco 
em seu uso corrente.Tornou-se sinônimo — crítico e mesmo pejorativo — para a 
apropriação privada da coisa pública, por políticos ou por quem tenha poder. 
 
Contudo, na sua elaboração por Max Weber (em Economia e Sociedade*) e na 
sua notável retomada por Raymundo Faoro (em Os Donos do Poder, 1a ed., 
1958) como a grande chave explicativa para o Brasil, patrimonialismo é um con-
ceito científico, definindo um tipo de sociedade. Tratemos rapidamente desse 
ponto, remetendo o interessado a Os Donos do Poder.4 
Portugal conhece um desenvolvimento precoce, comparado ao resto da 
Europa. A revolução de 1383 leva ao poder o rei João I, com forte apoio do 
povo e da burguesia. Mas esta é uma burguesia mercantil, e a precocidade 
portuguesa no capitalismo, paradoxalmente, fará que o país não consiga dar o 
salto, mais tarde, para a indústria. 
Fica-se no comércio, com tudo o que esse terá de predatório, especialmente 
na expansão marítima, que leva a estabelecer feitorias e colônias na América, 
África e Ásia. Mais até: esse é um capitalismo “politicamente orientado” 
(Faoro), não só dominado pelo Estado, mas com el-rei considerando o próprio 
Estado como sua empresa. Este é o sentido preciso de patrimonialismo: o Estado 
é bem pessoal, patrimônio (termo que designa a propriedade que vem do pai e 
que passa por herança). 
Vimos que a monarquia medieval nascia da indistinção entre a bolsa do rei 
e o que depois seria o tesouro público. A diferença é que, no patrimonialismo e 
em Portugal, essa fusão entre o privado do rei e o público é pensada em termos 
capitalistas, como uma empresa de comércio. Há na governança portuguesa uma 
racionalidade superior à de muitos reis medievais. Em 1400, Portugal é um dos 
países mais avançados da Europa. 
Contudo, esse avanço português, que no final da Idade Média serviu ao rei 
contra a nobreza, acabou esterilizando a economia e a sociedade — na in-
capacidade de definir o indivíduo como detentor de liberdade, o capital como 
produtor de riquezas na manufatura e o Estado como uma esfera pública a 
distinguir-se do rei e de seus próximos. Isso resultou numa hipertrofia do Estado 
e do estamento burocrático ligado a ele, em prejuízo de uma organização mais 
autônoma da sociedade, como a que houve na Inglaterra e em suas colônias 
norte-americanas. 
O patrimonialismo é, pois, o Estado que o príncipe dirige como sua 
empresa pessoal, no quadro do capitalismo mercantil. Por extensão, ele suscita 
corrupção à sua volta e neutraliza a iniciativa dos produtores. Hoje, porém, no 
Brasil é comum chamar de patrimonialismo o modo pelo qual o “coronel” — 
patente que foi da Guarda Nacional, no Império, e sob a República Velha 
adquiriu o sentido honorífico de prestigiar os fazendeiros — assumiu em sua 
 
4 Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (São Paulo; Globo/Publifolha, 2000,2 v.). 
* Max Weber, Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva (Brasília: 
Editora da UnB, 1991). 
 
região o poder público, além do privado. Numa extensão mais atual, diz-se 
patrimonialista o modo pelo qual governantes de qualquer nível, do presidente 
ao simples funcionário, se valem do bem comum para sua vantagem privada. 
Esses usos da palavra, porém, só cabem por analogia — ou como consequência 
de um processo que, no seu centro, não era a genérica e vaga utilização por 
qualquer um da coisa pública, mas sua apropriação pelo príncipe, pelo 
governante, pelo soberano. 
CONSEQUÊNCIAS 
Dois comentários. O primeiro é que a explicação pelo patrimonialismo é uma 
das que pensam o atraso brasileiro a partir da história portuguesa, da qual 
provimos. Tal atraso se mede pela dificuldade de nutrir um projeto capitalista 
industrial, que, este sim, emanciparia a sociedade da tutela estatal. Isso se nota já 
pelo uso, por Weber e Faoro, da palavra estamento, em vez de classe, para o 
Estado patrimonial. Classe remete a uma diferenciação promovida pelo capital 
entre as categorias da sociedade. Já estamentos são ordens ou categorias sociais 
mais fechadas, definidas pelo prestígio social e pela honra mais que pelo lucro 
ou pelo capital. 
O segundo é que a exacerbação dos poderes estatais gera uma corrupção 
que não decorre da imoralidade pessoal, mas é intrínseca ao sistema. “Vede um 
homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai 
quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o 
escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-
o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. 
São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os 
corvos senão depois de executado e morto; e 0 que anda em juízo, ainda não está 
executado nem sentenciado, e já está comido.” Quem diz isso é o padre 
AntonioVieira, expondo como se dão as coisas no Brasil em meados do século 
17.5 
 
 
5. O INIMIGO DA REPÚBLICA (2) A CORRUPÇÃO 
Qual a sua ideia de corrupção? É quase certo que você fale em desvio, por um 
administrador desonesto, do dinheiro público. É a ideia que se firmou hoje em 
dia. Mas, antes disso, a corrupção era termomais abrangente, designando a 
degradação dos costumes em geral. 
 
5 Cit. por Raymundo Faoro, op. cit. , v. i, p. 212 (cap. vi, 2). Faoro faz frequente uso das denúncias de Vieira contra a corrupção. 
 
Como a corrupção veio a se confinar no furto do bem comum? Talvez seja 
porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime aca-
bam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem 
comum é entendido como propriedade coletiva — e até como bem condominial, 
aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação. 
Mas o bem comum é diferente, por natureza, do bem privado. No estatuto 
de uma sociedade comercial, é obrigatório incluir o destino a dar aos bens, caso 
ela se dissolva. Se constituo uma firma com um sócio, caso a fechemos 
repartiremos os bens que pertencem a ela. Mas isso é impossível quando se trata 
da coisa pública. Há certos “bens” que só ela produz e que não podem ser 
divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como 
enriquece, humanamente, a nós mesmos. 
Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica 
demais as coisas. E sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O 
corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele 
elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A 
indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício 
enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”), a mídia ignora — e faz 
ignorar — o que é a confiança, o que é o elo social, o que é a vida republicana. 
UM TEMA REPUBLICANO 
 
Pode haver corrupção em outros regimes, mas sem esse nome ou sem os perigos 
que traz para a república. Lembremos a tipologia de Montesquieu: há três 
regimes, monarquia, república e despotismo. O despotismo é um fantasma; 
reside no Oriente; é a grande ameaça à política, porque nele tudo é comandado 
pelo desejo. Os súditos do déspota desejam muito, porque, com os nervos 
excitados, são sensíveis a toda impressão externa. Daí que sejam lúbricos, 
luxuriosos, imediatistas. 
O império da lei é impossível sob o calor. Não havendo autodisciplina, só 
pela irrestrita repressão externa se dá o controle social. Para conter o desejo se-
xual das mulheres, é preciso trancá-las num harém e castrar os homens que as 
vigiam. No calor, governar é reprimir. 
O curioso é que nesse regime — mais uma caricatura que um retrato fiel 
dos sultanatos orientais — não há o tema da corrupção. Como se corromperia 
um regime cuja essência já é a degradação (a corrupção) do ser humano? Mesmo 
que os ministros saqueiem os cofres, não existe, no despotismo, uma regra da 
honestidade, uma medida do equilíbrio, um padrão da decência. Sem regra, 
medida ou grau, não há como falar em desregramento, em desmedida, em 
 
degradação. A corrupção só cabe quando o regime social e político valoriza o 
homem. Não é o caso do despotismo. 
Será o da monarquia? Nela, o princípio é a honra, e portanto uma 
valorização está presente. O nobre preza mais a honra que a própria vida. E isso 
o que limita o arbítrio do soberano. Mas há dois pontos a assinalar. Primeiro, 
poucos têm honra — só os grandes. Segundo, a monarquia é uma hábil 
construção para que de um princípio filosoficamente falso — a desigualdade 
natural entre os homens - decorram resultados socialmente positivos. A 
engenharia política aqui faz que o mal produza o bem. 
O preconceito é valorizado na monarquia. Dele resulta uma sociedade que, 
se respeita a lei, não é pela repressão externa, nem pela autodisciplina ou pela 
convicção de que é justo acatá-la. Em suma, na monarquia há um uso sábio 
daquilo que, em linguagem republicana, seria corrupção: ela dá bons frutos. Há 
privilégios, há desigualdade, há apropriação privada do que seria o bem público. 
Mas isso é da essência do regime, e é usado por ele para evitar males piores, que 
estariam no arbítrio do rei, tornado déspota. E por isso não é correto falar, aqui, 
em corrupção. 
Corrupção só pode haver, como nome, num regime que a vê como negativa, 
como má - num regime cuja existência é diretamente ameaçada por ela. E a 
república. Seus padrões são altos. Nela, o bem pessoal é requisito para produzir 
o bem social. Individualmente, tenho de agir bem. Só quem atinge esse nível de 
conduta é cidadão, na república. Ou, inversamente, apenas dos cidadãos se pede 
esse patamar de comportamento. Não se exige isso das mulheres, escravos, 
estrangeiros e de todos os que terão uma cidadania reduzida ou negada. Em 
outras palavras, a república é o regime da ética na política. 
 
 
A CORRUPÇÃO ANTIGA 
Há dois tipos de corrupção, na república, conforme ela seja antiga ou moderna. 
Na república romana, falava-se em corrupção dos costumes. O cidadão romano é 
o pater famílias. O nome pai de família não quer dizer que ele tenha filhos: seu 
significado é político e não biológico. Ele é o chefe da família, o varão que nela 
manda. Se um menino perder o pai e o avô, pode ser pater ainda bebê. Será 
“pai” de sua mãe, avó, tios e irmãos. 
O pater manda na casa. Costuma-se dizer que a lei romana lhe conferia 
direito a punir e até matar as mulheres a ele subordinadas, mesmo a mãe, a 
esposa, as irmãs. Não é bem isso. E pior. Nenhuma lei lhe dá esse direito, 
simplesmente porque o membro da cidade é ele, e não as pessoas suas 
subordinadas. Elas não são cidadãs, mal têm identidade pública. Punir quem 
pertence a sua família é direito privado do pater, e não público. 
 
O eixo do controle que o pater exerce sobre os seus passa pela moral. Um 
homem que não controle as mulheres que dele dependem é infame e será punido 
pelos magistrados que cuidam da moral. Essa moral não é apenas sexual (a 
vitoriana será exagerada e centralmente sexual), mas em parte o é. Discrição, 
autocontrole, contenção são alguns de seus termos principais. 
É talvez em Roma que se elabora, ou se aprimora, um traço fundamental 
das sociedades mediterrânicas, que ainda perdura em alguma medida: a ideia de 
que a mulher não tem honra própria, mas porta a honra — ou desonra - do 
homem seu senhor. Violar ou desrespeitar uma mulher se torna assim a melhor 
via para infamar seu marido, irmão ou pai. Quem perde a honra não é ela, são 
eles.6 Daí que, ao se vingarem, eles às vezes matam também a mulher que — 
mesmo se foi violentada — serviu de veículo para eles serem desonrados. 
Portanto, na república antiga, o centro da corrupção são os costumes. É 
preciso as pessoas serem decentes, para que haja república. Nisso se inclui a 
contenção sexual, mas sobretudo a capacidade de fazer passar o bem comum à 
frente do pessoal. Evoquemos Múcio Cévola, que - estando Roma cercada - vai 
ao acampamento dos inimigos matar o general deles. Erra e é preso. Vão 
executá-lo. Mas ele queima o próprio braço numa chama, sem um gemido 
sequer de dor, dizendo que assim o castiga pelo fracasso de seu intento. 
Horrorizados, apavorados diante de gente tão resoluta, os inimigos debandam. 
Não há prova dessa história, que talvez não passe de lenda, mas o 
importante é que ela educou gerações de romanos na convicção de que o fim 
público passa à frente de qualquer elemento particular. Como escravos, mulheres 
e estrangeiros não sentem assim, é óbvio que não terão a dignidade de cidadão. 
Contrastemos a coragem de Múcio Cévola com a dos exércitos orientais, 
descritos por Montesquieu nas Cartas Persas (lembrando sempre que ele 
exagera em suas referências ao mundo islâmico).7 Os soldados do sultão se 
batem até a morte, mas — diz ele, na carta 89 — sua valentia não é a de quem 
preza a si próprio, e sim a de quem se despreza. E medo (ao sultão) tornado 
coragem (diante do inimigo). Não é o caso do romano. A cidade é o que o 
realiza. E o que dá sentido à sua vida. 
Daí, finalmente, que na república antiga a educação seja fundamental. 
Ninguém age — naturalmente— como Múcio. Pela natureza estamos mais 
perto da conduta feminina. As mulheres são os seres mais naturais. Querem 
satisfazer seus desejos. Desejam enfeitar-se, ter prazer. Precisam ser contidas — 
a fim de contermos nossa tendência natural a ser como elas. A educação do 
cidadão será permanente, pois em última análise pode fracassar. Não é uma 
educação como a moderna, que desde o Emílio de Rousseau (Emile, ou De 
 
6 Sobre esse tema, ver R. Janine Ribeiro, A Etiqueta no Antigo Regime (São Paulo: Moderna, 1999). 
7 Montesquieu, Cartas Persas (São Paulo: Paulicéia, 1991, trad. Renato Janine Ribeiro). 
 
l’éducation, 1762) acredita em transformar o ser humano em algo melhor e 
estável. A educação do cidadão antigo é interminável, porque não há como 
estabilizar seu produto. O homem pode — sempre — decair e corromper-se. 
 
A LIBERDADE PESSOAL 
 
A corrupção moderna é outra. É verdade que, quando a França institui sua 
Primeira República, durante a Revolução, muitos sonham com Roma, mais 
talvez que com Atenas. Mas isso não dura. E já os Estados Unidos, ou antes 
deles a Inglaterra monárquica, mas constitucional, haviam-se aberto para uma 
república de exigências aliviadas — como veremos com Mandeville (no 
capítulo 6). 
Benjamin Constant (1767-1830), político liberal franco-suíço de tanto 
impacto no século 19 que um re-publicano brasileiro foi batizado com seu 
nome, criticou aqueles, como Rousseau, que davam tal importância à 
Antiguidade que não conseguiam ver as reais características dos novos tempos. 
Esse foi, disse, o erro dos revolucionários que quiseram restaurar a sociedade 
antiga, na qual a coletividade era tudo e o indivíduo, nada. 
Para os antigos — explica Constant — a liberdade importante era a da pólis 
grega, da civitas romana. O cidadão aceitava sacrificar-lhe tudo. Mas nos 
tempos modernos a liberdade que conta é a do indivíduo, que não admite ser 
oprimido pelo coletivo.8 A coletividade para nós é um peso, um fardo. O 
convívio político e mesmo social se tornou custoso. Ampliou-se enormemente a 
vida privada, como área de produção econômica, como tempo de lazer e como 
espaço em que escolho os valores e fins mais preciosos de minha vida. 
Disso resultam duas coisas. Primeiro, aumenta incrivelmente nossa 
liberdade — insistindo: como indivíduos, como pessoas. Escolho minha 
profissão, minha religião, meu amor. Cada vez preciso dar menos satisfação 
disso. Mas, se isso passa a constituir minha liberdade, é porque se esvazia o 
alcance social das escolhas. Se antes do século 17 tantas sociedades puniam 
severamente quem adotava uma religião distinta da dominante, era porque 
passava pela religião o elo social. Quando um budista se abstém de carne, um 
muçulmano de vinho, um judeu de porco, ele dá à sua religião um alcance bem 
maior do que no mundo leigo que a modernidade cristã construiu. 
O que significa o casamento se tornar escolha pessoal? A justificação 
romântica é que assim escolho um cônjuge com o coração. Mas quer isso dizer 
que eu seja mais feliz? Não é óbvio. O casamento como contrato entre famílias 
tinha menor sentido sexual e sentimental, mas seu alcance social fazia dele um 
espaço de maior satisfação pública. Modernamente, estamos condenados a 
 
8 Benjamin Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos (1819). Em: Filosofia Política, n. 2, 1985. 
 
buscar a realização, a felicidade, no plano privado, quase íntimo. Perdemos a 
dimensão pública e sofisticamos a particular, a pessoal. Não é uma crítica; é uma 
constatação. Houve ganhos, mas também custos, uns e outros enormes. 
A segunda consequência da modernidade é, assim, a redução do espaço 
público. Tornou-se exíguo. Os costumes passaram, de sociais ou grupais, a indi-
viduais. Surgiu a vida psíquica como campo cada vez maior de indagação, de 
perplexidade, de escolha. Ora, isso torna praticamente absurdo pensar em 
costumes como fiadores da república. Quando o valor básico é o da realização 
pessoal, como queimar a mão ou sacrificar a sexualidade a um ideal social? Ao 
contrário: se alguém nos propuser um ideal que passe por tais custos pessoais, 
provaremos que só pode ser um falso ideal, gerador de males sem fim e até de 
doenças. E provaremos isso tão bem quanto um antigo provaria o contrário. 
 
A CORRUPÇÃO DESPOLITIZADA 
Mas a ideia de corrupção dos costumes não desapareceu de um momento para o 
outro: provavelmente passou por duas fases. Para os antigos, ela ameaçava a 
república. Quando a França retoma uma república mais próxima da romana, em 
1792-3, a corrupção e seu antônimo, a virtude, voltam à cena. Mas isso dura 
pouco. Daí a dois anos, Robespierre, o Incorruptível, é deposto e guilhotinado. 
Na vitória dos moderados — ou corruptos, como outros os veem —, é 
interessante que as roupas femininas se tornem vaporosas e que em fins da 
década de 1790 mulheres da sociedade até exibam em público os seios nus. 
Poucas sociedades se dispõem a pagar, pela república, o preço da contenção 
dos costumes; talvez o último movimento a fazê-lo tenha sido o Khmer Rouge, 
que tomou o poder no Camboja em 1975 e chacinou um terço da população, 
querendo purificá-la. Alguns temas republicanos, reativados em nossos dias, 
correm o risco de resultar em crime contra a humanidade. 
Essa foi a primeira fase, tentando-se reciclar Roma em Paris. Mas não 
sumiu o tema da corrupção dos costumes. Não deu certo articulá-lo com a 
república, mas ele ressurgiu, fortíssimo, com os vitorianos. E curioso: Constant 
mostrou que não pagaríamos, pela república moderna, o sacrifício de nossa vida 
íntima. Mas se pagou esse preço, pela monarquia moral da rainha Vitória. A 
contenção dos costumes veio não com a república, com o regime da autonomia 
ou do autogoverno, mas com o da heteronomia, do moralismo, das reverências à 
realeza. 
Nessa segunda fase, a corrupção tornou-se tema exclusivamente moral. 
Sustentou, e claro, uma política — mas sustentou-a de maneira não clara e 
explícita, como na república romana, e sim implícita e indireta. Até porque a 
 
contenção dos costumes era apresentada não como a condição para uma política 
(se quiserem ser livres politicamente, abram mão da liberdade íntima), e sim 
como a única conduta decente. No século 19, quando alguns religiosos cristãos, 
chocados com o deboche sexual dos polinésios, procuraram ensinar-lhes um 
modo tido como decente de ter relações sexuais (o papai-mamãe, como 
chamamos, ou a missionary position, como ficou conhecido em inglês), o que 
faziam era transmitir essa moral única para toda a humanidade. A política — no 
caso, a destruição de uma cultura em proveito da ocidental — vinha a reboque, 
discreta, escondida. 
Enfim: a contenção e a corrupção dos costumes deixaram de ser tema 
explicitamente político e essencialmente republicano. Ocultaram a dimensão 
política e favoreceram a opressão. Nossos políticos da República Velha podiam 
ler Cícero e reprimir as mulheres de sua família: com isso nada efetuavam de re-
publicano. Temas romanos podiam ser repetidos, mas tinham-se tornado 
vitorianos. 
NOSSO PROBLEMA 
A corrupção continua, porém, sendo um tema republicano - só que com outro 
sentido, outro conteúdo. Ela ainda é o grande perigo para a república. Como esta 
valoriza o bem comum, todo desvio dele para o particular a ameaça. Mas nossa 
ideia de corrupção é mais fraca que a antiga. 
Chamamos de corrupção o furto do patrimônio público. Ora, isso faz 
esquecer que o bem público tem natureza distinta do bem particular ou da 
propriedade privada. Muitos se referem ao Estado como se fosse equivalente a 
um indivíduo ou empresa. Com isso, ficam na perspectiva patrimonialista, cujos 
problemas vimos no capítulo anterior. 
Uma saída para a pouca importância, hoje, do tema da corrupção seria 
apostar na educação. Diríamos: a corrupção ameaça a república, mas não se 
resume no furto do dinheiro público.O corrupto impede que esse dinheiro vá 
para a saúde, a educação, o transporte, e assim produz morte, ignorância, crimes 
em cascata. Mais que tudo: perturba o elo social básico que é a confiança no 
outro. Quem anda por nossas ruas, com medo até de crianças pequenas, e depois 
se espanta com a descontração das pessoas em outros países pode sentir o preço 
que pagamos por não vivermos numa república — por termos um regime que é 
republicano só de nome. 
A saída educativa é indispensável. Mas ela exige dar à educação dos 
costumes um sentido distinto do que teve no antigo pensamento republicano. 
Não se trata mais de conter a sexualidade, de promover a castidade e a discrição. 
 
Os costumes viáveis, a educação desejável em nosso tempo têm a ver com a 
realização pessoal. Será preciso combinar essa promoção de si com o respeito 
devido ao outro. E será necessário, mais que tudo, recuperar — ou reinventar — 
a ideia de que haja algo, no espaço comum a todos, que seja mais do que um 
simples arremedo social da propriedade privada. 
 
 
6. A REPÚBLICA FACILITADA MANDEVILLE 
 
Quanto mais o regime se aproximar da república antiga, mais difícil será para o 
homem moderno. O século 18 acertou ao entender a república como regime do 
passado ou da exceção — mas era que com isso ele entendia uma república 
diferente da nossa e modelada na romana. Esta, sim, é impossível em nossos 
tempos. Mas Bernard Mandeville (1670P-1733), médico holandês radicado na 
Inglaterra, mata a charada da política e, mais que isso, da sociedade modernas. 
Um século mais tarde, Benjamin Constant falará da diferença entre a liberdade 
antiga e a moderna. Mas Mandeville já tinha apontado o rumo que a sociedade 
capitalista tomaria. Antes de Constant ter formulado seu diagnóstico, Mandeville 
já tinha receitado o remédio. 
Entre 1705 e 1724, Mandeville escreve e reescreve um poema, a Fábula 
das Abelhas,9 ao qual agrega uma série de notas. Na fábula, uma sociedade de 
patifes se regenera, mas isso causa inúmeros problemas. Ele explica por quê: a 
desonestidade é motor do avanço econômico. Um ladrão que roube um obeso 
monge, por exemplo, põe em circulação dinheiro entesourado, paralisado, 
estéril. 
A ganância é pecado. Mas, se cada um de nós for ganancioso, tentará 
ganhar mais — e o melhor meio para isso é vender mais barato que o outro. O 
que no plano moral é vício, e no religioso é pecado — a avidez —, pode se 
converter em vantagem para a sociedade. Por isso, o subtítulo da Fábula é 
“Vícios privados, benefícios públicos”. A livre concorrência, o mercado 
capitalista, a expansão econômica que o capital vai promover, sem precedentes 
na história, tudo isso tem uma base — diz Mandeville — contrária à moral 
vigente. Mas essa não é uma falha, nem uma razão para condenar a sociedade 
em que vivemos. Ao contrário, sendo a moral tão difícil, o autor da Fábula 
mostra que podemos ter uma vida social positiva, vantajosa, sem pagar preço tão 
alto. 
São dois os grandes exemplos de Mandeville. O primeiro, na nota G à 
Fábula, é o da livre concorrência. O segundo, na nota H, é o da prostituição em 
Amsterdã. Esse porto é governado pelos calvinistas, que são severos em matéria 
 
9 Bernard Mandeville, The Fable of the Bees (Harmondsworth: Penguin, 1970). Não conheço tradução em português desse título. 
 
moral — mas toleram a prostituição, para evitar que marinheiros, privados de 
sexo há meses, ataquem as virgens e damas de boa família. O exemplo é 
engraçado, irônico. Mandeville poderia ser um moralista, desmascarando a falsa 
moralidade dos magistrados calvinistas, em nome de uma moral mais coerente e 
exigente. 
Mas a novidade de Mandeville é que ele não faz isso. Concorda com a ação 
dos calvinistas, que a um bem pequeno e aparente preferem um bem maior. Só 
que com isso ele reduz o alcance da própria moral, em nome de algo mais 
abrangente. A moral funciona para o indivíduo, mas não na escala social. Com 
isso ele abre lugar para a “mão invisível” do mercado, de que mais tarde falará 
Adam Smith: a ideia de que — para além de nossas intenções, consciência e 
deliberação — o jogo das forças econômicas se autorregula. Smith, porém, fará 
concessões à religião que não aparecem no iconoclasta Mandeville. 
O principal alvo de Mandeville é a moralidade cristã, desenvolvida ao 
longo da Idade Média. No seu século 18, ideais republicanos circulam, mas não 
são o que mais importa para ele. Contudo, o importante aqui é que Mandeville 
torne inútil, ou impossível, reativar os valores gregos ou romanos — que 
naquela época pareciam ser a condição para ter um Estado republicano ou 
democrático. 
Pode então haver uma sociedade — cuja forma política Mandeville não se 
preocupa em delinear — sem o custo moral dos romanos. Em vez de Múcio 
Cévola ou de Brutus, o mero interesse econômico deve sustentar as relações 
sociais. Não é preciso tanta força de vontade, tanta abnegação, tanta renúncia 
aos próprios interesses para existir uma boa sociedade. Ao contrário: a boa 
sociedade depende de intensificarmos nosso egoísmo e mesmo nossos vícios. 
O LUGAR DA ÉTICA 
Assim, um problema se desenha. Terminamos o capítulo anterior falando na 
corrupção, como o grande inimigo da república. Do que dissemos, decorre que a 
república é o regime mais ético que há. Quando ela renasce, em fins do século 
18, seja na forma norte-americana, estável desde então, seja na francesa, bem 
mais turbulenta, vem referida à tradição antiga. Esta diz que na república somos 
livres, mas que isso exige muito de nós. 
Ora, antes mesmo das duas grandes revoluções, americana e francesa, 
Mandeville já propunha o que se pode chamar de uma cidadania facilitada. E 
depois delas Benjamin Constant explicará, em 1819, que não há como voltar à 
cidadania antiga, com todos na praça como em Atenas, ou com as figuras 
exemplares de abnegação, como em Roma. Qual é, então, o lugar da ética nesse 
contexto? 
 
Resumindo a questão: a república é o regime por excelência da ética na 
política. O respeito à res publica significa que cada um de nós deve tratar o bem 
comum como sagrado. Deve até dar a vida pela pátria. Ora, pôr o coletivo à 
frente do indivíduo, os valores acima dos interesses e desejos, implica uma 
intensa moralização da vida humana. 
Mas isso é inviável numa sociedade como a moderna. Podemos explicar 
essa inviabilidade pelo capitalismo. Este emancipa o empreendedor das tutelas 
religiosas, morais e mesmo políticas. O lucro, e não mais o bem moral, se torna 
o motor de sua ação. É claro que para isso funcionar é preciso que o Estado 
controle a economia — o que acontece até nas sociedades mais liberais, mais 
adeptas do laissez-faire - de modo a canalizar a energia do empresário ou empre-
endedor para longe do crime e para dentro da economia legal. Mas, construído 
esse quadro de instituições, o sistema funciona. E sua maior qualidade é que, 
para ele dar certo, não se precisa apostar na bondade, e sim no interesse: o 
Estado e a sociedade controlam as ações e os sujeitos bem menos do que se a 
condição fosse a renúncia à vantagem pessoal. 
Ou podemos explicar o mesmo fenômeno pelo processo de individuação 
que ocorre na modernidade. A pessoa se liberta das tutelas grupais, tradicionais, 
externas, e desenvolve cada vez mais matizes próprios, numa combinação de 
traços que será apenas sua. A realização pessoal se torna um valor, um fim 
fundamental. Já vimos que isso muda o estatuto do sexo. Renunciar a ele era 
decisivo, na moralidade vitoriana. Hoje, porém, essa renúncia não faz sentido. 
Dificilmente conseguiríamos acreditar que ela pudesse ter efeitos positivos, 
adestrando o caráter: nossa atenção está toda voltada para seus maus efeitos, 
como as histerias relatadas por Freud — também ele, por sinal, começando suas 
pesquisas em plena era vitoriana. 
As duas explicações se complementam. Gostemos ou não do capitalismo, 
ele propiciouuma emancipação sem precedentes do indivíduo, o surgimento de 
uma nova autonomia da pessoa (de auto, si próprio, e nomos, lei: autônomo é 
quem legisla por e para si próprio). 
Mas o que importa é que a renúncia deixa de ser o grande valor. Tanto faz 
que seja a renúncia cristã e medieval, que serviu sobretudo às monarquias, ou a 
renúncia republicana, que fundaria novos regimes. E, reduzindo-se a renúncia, 
diminui o alcance da ética. Ela se torna secundária. Prioritário é o desejo, a reali-
zação pessoal. Aí está o fim de nossas ações, a meta de nossas vidas. A ética 
entra para tratar dos meios para nossa realização: ela condena uns, aprova 
outros. Mas, mesmo que respeitemos escrupulosamente os meios, os fins serão 
mais importantes do que eles. Até podemos sugerir que a ética assume em nosso 
tempo um teor cada vez mais negativo (como aliás já se expressava nos 
Mandamentos, que começavam por “Não...”). Ela diz quais ações não devemos 
praticar. Pouco indica o que devemos fazer, ou ser. 
 
Concluindo: aparece, na Revolução Francesa e depois na Russa, o projeto 
de uma cidadania intensamente participativa, ativa. Todos iriam às assembleias, 
todos atuariam na vida política. Essa ênfase teve intenso desdobramento ético. 
Por isso a moralização jacobina e a bolchevista estiveram entre as mais exi-
gentes, nos últimos 200 anos. Julgava-se não só a ação política de cada um, mas 
sua vida pessoal, para ver se a pessoa correspondia ou não aos elevados padrões 
éticos que inaugurariam a era da justiça. 
Mas isso não se realizou. Dos jacobinos ficou a lembrança do Terror, e dos 
Estados comunistas uma série de fracassos e até horrores. Os regimes que nestes 
anos deram espaço à liberdade devem algo aos jacobinos e aos bolchevistas, 
mas talvez devam mais a terem tomado um outro rumo. Por isso discutir a re-
pública, hoje, é entender como pôde renascer uma forma de governo morta 
havia quase dois milênios — uma forma de governo que promove eleições e 
separa o bem público da pessoa do governante mas com uma participação do 
povo bem menor do que haveria em Atenas e uma entrega de si bem inferior à 
que ocorreria em Roma. 
UMA CHAVE 
Voltemos a Montesquieu. Para cada um dos três governos, ele distingue a 
natureza e o princípio. A natureza é a descrição de suas instituições. O princípio 
é a paixão que o movimenta. Assim, a monarquia é o governo de um só, mas 
temperado por leis e contido por instituições, enquanto o despotismo é o 
governo de um só, porém sem leis nem contenção. E essa a natureza desses dois 
governos. 
Mas só entenderemos como eles funcionam ou o que lhes dá vida se 
lembrarmos que o princípio da monarquia é a honra, e o do despotismo o medo. 
E porque os súditos temem o sultão que há despotismo. Já a monarquia existe 
porque alguns súditos do rei, pelo menos, valorizam a honra mais que a vida. 
Finalmente, o princípio da república é a virtude - que exige colocar o bem 
comum acima do particular. 
Ora, se a república era impossível no tempo de Montesquieu, isso se devia 
a seu princípio e não a sua natureza. Um moderno não aceitará viver na virtude. 
A saída, então, é achar um novo princípio para a república. 
E o que acontecerá: uma república de natureza um pouco modificada (o 
exercício de seu poder será representativo e não mais direto), tendo por princípio 
algo que lembra o princípio da monarquia. Algo que lembra, porque não é mais 
a honra. No mundo que agora surge, o princípio é o interesse bem 
compreendido. E a honra desdenhava o interesse. 
 
Mas, descrevendo a honra, Montesquieu disse tratar-se de um princípio 
errado que, porém, dava ótimos resultados. Esta é a chave. Como fazer o errado 
dar certo? O imoral gerar moralidade? Essa é exatamente, sem Montesquieu o 
perceber, a solução de Mandeville: vícios privados, benefícios públicos. Subs-
titua-se a palavra honra por interesse ou mesmo ganância: eis a saída. 
Teremos a república, modificada. Mas, se ela foi modernizada, foi porque 
mudou o fator de nossa adesão a ela. Respeitaremos o bem público, separando-o 
da propriedade ou do patrimônio privados, mas o faremos por motivação 
diferente do amor antigo à pátria. Um lugar terá que haver para interesses e 
desejos particulares. E isso complica nossa análise do regime do autogoverno e 
do bem comum. 
 
 
7. A REPÚBLICA POSSÍVEL 
 
Até aqui foi enfatizada a oposição entre um ideal antigo, do bem comum, e uma 
prática moderna — que não é só política, mas tem base em nosso próprio modo 
de ser, em nossa formação social e psíquica - voltada para o egoísmo, ou melhor, 
bem melhor, para a realização pessoal. O conflito entre esses dois aspectos é 
forte, mas não nos impede de lutar por sua síntese, ainda que — sempre — 
precária. É o que vamos procurar, agora, nas páginas que faltam. 
Há dois tipos de regime em que se intensifica a ética. O primeiro, mais 
frequente na história, oscila entre a teocracia e a monarquia ligada à religião. 
Esse regime hoje se tornou exceção. O outro tipo é a república, que acredita em 
tornar decente o mundo em que vivemos, mas não por medo a Deus ou 
subserviência ao rei, e sim pela autodisciplina e por uma ética que não aposta 
mais só em castigos ou recompensas. A realização integral desse regime — que 
é o republicano — soa difícil. Mas não quer dizer que não valha a pena tentar. 
E, se a república — e a democracia — modernas soam diminuídas em face 
de Roma ou Atenas, pelo menos hoje afetam uma proporção sem precedentes da 
humanidade. Entre um terço e metade do gênero humano vive em Estados que 
pregam o respeito à coisa pública, lema republicano, e a igualdade dos cidadãos, 
tema democrático. Mesmo quando isso não passa de palavras, estas acabam 
servindo para criticar a prepotência e a mentira. A prazo médio ou longo, as 
coisas mudam. 
O ESTADO DE DIREITO 
A república está associada ao direito. A modernidade em política constrói duas 
 
grandes obras. Uma é a democracia. A outra, mais antiga, avançando desde a 
Renascença, é o Estado de direito - ou seja, a ideia de obedecer à lei e não ao 
arbítrio do poderoso. Em tese, o Estado de direito não precisa ser democrático. 
Uma aristocracia de magistrados honestos poderia aplicar imparcialmente a lei. 
E o que se chama o império da lei, rule of law. Mas essa consagração da lei 
acima dos interesses particulares já significa que ela é coisa pública e não 
privada. Há aí o princípio republicano da prioridade conferida à res publica. 
Contudo, para promover a coisa pública, é imprescindível que o próprio 
público a controle. Ele não pode ser só o beneficiário, tem que ser o 
responsável, o autor do bem comum. Confiar na bondade dos magistrados não 
basta. Uma república aristocrática tende a se esgotar. Veja-se a Revolução 
Francesa. Nos anos que a precedem, quem mais enfrenta o arbítrio do rei são os 
juízes do Parlamento de Paris, que, apesar do nome, é um tribunal e não uma 
assembleia eleita. Eles assinam documentos corajosos, são banidos, batem-se 
com denodo para o país ter uma Constituição. 
Em apenas dois anos, porém, sem terem mudado de ideais, eles passam da 
oposição radical para a retranca mais conservadora: em 1790 já está evidente 
que eles defendem seus privilégios, os cargos que possuem (por herança ou 
compra), a posição de interlocutores destacados do rei, de representantes não-
eleitos da sociedade. A medida que aumenta a liberdade de expressão e 
organização, a sociedade passa a falar por si, a organizar-se, e não quer mais a 
casta de juízes como seu porta-voz e tutor. Para que sacudir a tutela do rei e cair 
na do judiciário? A república, como coisa pública, só pode adequadamente 
resultar de eleições. Ela necessita da democracia. 
CANALIZAR A ENERGIA PRIVADA 
Nossa república precisará dispensar os cidadãos de serem intensamente 
virtuosos. Mas o interesse não basta como solução, porque ele privatiza. Uma 
saída é construir instituições que canalizemo interesse - agora “bem com-
preendido”, de longo prazo — em direções socialmente positivas. Por isso, a 
modernidade vai privilegiar o que na política é instituição, mais do que a ação 
política. 
Quando destacamos a ação política, o modelo é O Príncipe, de Maquiavel 
(1469-1527). O pensador florentino concebeu um príncipe capaz de enfrentar 
situações difíceis e modelá-las segundo a sua vontade. O exercício dessa vontade 
é o que ele chama de virtu, virtude, não no sentido clássico das virtudes em 
geral, nem no republicano da abnegação — mas no da capacidade de alguém 
tomar as rédeas do destino de seu 
Estado. Está assim, no eixo da política de Maquiavel, o heroísmo do governante, 
 
do estadista, do guerreiro. 
A outra vertente da política moderna é a da instituição. David Hume (1711-
76) é um de seus expoentes. Considerando o homem pouco apto ao heroísmo 
que aposta tudo na ação, ele pergunta que canais e instituições podem servir para 
que o egoísmo resulte em bem comum, a preguiça em disciplina — em suma, 
tudo o que vimos em Mandeville. 
Assim, se a ação vai ser excepcional, a instituição vai ser a norma da 
política moderna. Nosso problema é como construir instituições que protejam e 
promovam a coisa pública. 
Não é preciso repetir o que já foi dito sobre Mandeville. Ninguém teve tanto 
sucesso quanto o capitalismo, na tradução de impulsos privados, mesmo vicio-
sos, em benefícios públicos. Mas essa marca de origem não impede que 
sociedades democráticas de outro perfil se inspirem no mundo que o capital 
abriu. Assim como o cirurgião, sabe-se desde Freud, sacia de modo socialmente 
aceitável e mesmo elogiável impulsos que, em seu cerne, são até sádicos e 
homicidas, um dos principais segredos do Estado moderno está em aproveitar 
não só as qualidades humanas, mas também os seus defeitos. 
Construir instituições é isto: em vez de apostar num homem bom e ideal, 
lidar com ele como é — e daí, por um sábio trabalho de engenharia política, ge-
rar uma sociedade mais justa, melhor. Isso significa tornar o crime mau negócio 
e, ao mesmo tempo, proporcionar saídas para as tensões que se expressariam 
nele. Um exemplo bastante simples é, ao mesmo tempo que se reprime a 
grafitagem, oferecer muros e portas para os grafiteiros decorarem, como se está 
fazendo espontaneamente, desde o ano 2000, no bairro paulistano do Brás. É 
identificar novos desejos e, em vez de deixar que eles perturbem o social, abrir 
canais para que o enriqueçam. 
 
O VERDADEIRO INTERESSE 
Isso significa reconhecer o que é o interesse bem compreendido. Esse termo, que 
será utilizado por Tocqueville, já está pressuposto nos filósofos políticos dos 
séculos 17 e 18.Todos eles contrastam uma situação de degradação política, que 
seria a atual, e uma condição de equilíbrio, paz ou justiça. A passagem da 
degradação ao Estado, digamos, ideal exige — entre outras coisas — que os 
homens compreendam qual é seu verdadeiro interesse. Às vezes, a passagem 
está mais nessa compreensão e aceitação do que na criação de novas insti-
tuições: não se trata tanto de modificar o Estado, mas nosso modo de vivê-lo. 
O verdadeiro interesse não está na predação, nos lucros de curto prazo, 
porém num cálculo de longo termo, que nos faz perder certas vantagens 
imediatas, mas conquistar estabilidade. Bem compreendido, o interesse não é 
 
ganância; é o modo racional de construir o futuro. Interesse é um termo que 
remete à economia, mais que aos afetos ou aos valores; a economia, uma vez 
racionalizada, sairia da destruição predatória, para entrar na construção. 
É também isso o que faz passarmos dos desejos aos direitos. Se o que nos 
leva a investir na democracia são desejos — de ter e ser —, eles não bastam para 
formar uma sociedade. E preciso que sejam equilibrados — que se convertam 
em direitos. Isso limita meus desejos, ao mesmo tempo que lhes garante uma 
realização, menos integral do que talvez eu gostasse, mas mais segura do que 
então se daria. A república é o regime em que a democracia entra no Estado de 
direito. Convicções democráticas podem levar a uma revolução, mas o que a 
converterá em Estado e em direito, em duração, são princípios republicanos. A 
democracia precisa da república. 
 
 
A VIRTUDE DO AUTOGOVERNO 
A virtude republicana da abnegação é sobretudo uma virtude de quem está no 
poder. Quem mais precisa tê-la não é quem apenas obedece, mas quem manda. 
Talvez por isso o self-government, o autogoverno dos colonos norte-americanos, 
tenha sido uma escola tão notável de governo, forjando uma disciplina que 
súditos de uma monarquia absoluta não podiam — nem precisavam — ter. 
Governo, porém, não é o mesmo que poder. Na democracia, o poder é do 
povo, ainda que a administração ou governo se delegue a representantes. O im-
portante não é todos governarem, o que é impossível, mas o povo controlar seus 
representantes. Quanto maior o controle popular, mais democrático o poder. Isso 
porque, quanto mais as pessoas forem virtuosas - isto é, ciosas de distinguir o 
bem comum dos interesses privados —, maior será sua participação no poder, 
nem que seja de fora, verificando, discutindo, cobrando; ou seja, quanto mais 
republicanas forem as pessoas, participando, mais democrático será o poder. 
Um regime democrático não pode apenas satisfazer desejos; precisa 
respeitar esse espaço público, o do bem comum. A república foi a admirável 
invenção romana para resolver um paradoxo, uma enorme dificuldade teórica e 
prática, que é as mesmas pessoas mandarem e obedecerem. É fácil entender que 
um mande e outros obedeçam; muitos aceitam que quem manda esteja fora e 
acima da lei. Confira isso pela sua experiência: em nosso país, sobretudo nas 
regiões com piores índices de desenvolvimento humano, o poder de alguém se 
mede pela capacidade de isentar-se da lei comum. É o caso de quem, graças a 
sua posição social, fura a fila ou tem um atendimento preferencial. Ou o caso da 
pessoa que o atenderá melhor se você lhe pedir um favor do que se você 
reivindicar um direito. Quantos não se irritam, até no trânsito (essa metáfora 
brasileira para a classe média), porque alguém reclama que estejam em fila 
 
dupla ou em lugar proibido — mas cederiam a vez, de melhor grado, se o outro 
renunciasse a seu direito para pleitear um obséquio, uma gentileza... Aí está um 
dos sinais mais constantes de nosso déficit republicano. 
Mas esse saldo negativo de nossa república também temos em nossa 
democracia. Se a república cobre o caso em que os mesmos mandam e 
obedecem, o único regime em que todos mandam e obedecem é a democracia. O 
problema é que milênios de formação adestraram nossa espécie a opor o que é 
mandar ao que é obedecer. O autoritarismo nasce disso. Romper com ele exige 
uma ênfase nos deveres de quem manda. Se sou investido de um poder, nem por 
isso ele é minha propriedade — é o oficio, o serviço, que presto à sociedade.10 
Daí que seja tão importante a contenção, a autodisciplina, o controle da 
vontade. O republicano sabe que, para viver em sociedade, precisa haver - mais 
que isso, é bom haver - uma esfera comum, um espaço público, um patrimônio 
coletivo que sirva de elo entre nós. Devemos cultivar e respeitar esse lugar que é 
de todos. Isso exige refrear desejos e caprichos. Assim, seja jogando lixo pela 
janela do carro, seja desviando dinheiro público, eu destrato o que nos une a 
todos. E, se conseguirmos que essa coisa pública nos dê prazer ou realização 
pessoal, teremos resolvido ou pelo menos atenuado o problema de Constant: o 
antagonismo da república com nossa natureza, com o desejo ou com o princípio 
democrático de ter e ser mais, se tornará menor e mais administrável. 
A EDUCAÇÃO 
A chave para reduzir o conflito entre ideal e psique é a educação. Ela é uma das 
principais instituições, se não a principal, na socialização humana. E nela pode-
mos detectar um erro de Constant, que tanto criticava — embora