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2013-dis-smbcarneiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ 
CENTRO DE HUMANIDADES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS 
MESTRADO EM LETRAS 
 
 
 
 
SARAH MARIA BORGES CARNEIRO 
 
 
 
CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER NO 
UNIVERSO INFANTIL 
 
 
 
 
 
FORTALEZA 
2013
 
SARAH MARIA BORGES CARNEIRO 
 
 
 
CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER 
NO UNIVERSO INFANTIL 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Letras, como requisito 
para a obtenção do título de Mestre em 
Literatura. Área de concentração: Literatura 
Comparada. 
Orientadora: Profa. Dra. Fernanda Maria 
Abreu Coutinho. 
 
 
 
 
 
FORTALEZA 
2013 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SARAH MARIA BORGES CARNEIRO 
 
 
CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER 
NO UNIVERSO INFANTIL 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Letras da Universidade 
Federal do Ceará como requisito parcial para 
a obtenção do título de Mestre em Literatura. 
Área de concentração: Literatura 
Comparada. 
 
Aprovada em: 30 / 08/ 2013. 
 
BANCA EXAMINADORA 
_________________________________________________________________________ 
Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (Orientadora) 
Universidade Federal do Ceará (UFC) 
_________________________________________________________________________ 
Profa. Dra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira 
Universidade Federal de Pernambuco 
_________________________________________________________________________ 
Profa. Dra. Vera Lucia Albuquerque de Moraes 
Universidade Federal do Ceará (UFC) 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
A Deus, por ser meu sustento e minha alegria. 
A minha orientadora profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho, por ter vivido junto 
comigo as experiências dessas meninas, conjugando as tensões de suas moradas iniciais, 
junto à escrita de Katherine e Clarice, até o momento de situá-las em meu próprio texto: um 
percurso de aprendizagem. 
A profa. Kênia Fernandes por ter me apresentado à escrita de Katherine Mansfield de 
maneira tão apaixonante. 
As profas. Dras. Ana Maria César Pompeu e Vera Lucia Albuquerque de Moraes pelas 
contribuições feitas durante o exame de qualificação. 
Aos amigos Lidiana Barros, Joana D’arc Araújo e Vinícius Bezerra por terem me 
apresentado ao Grupo de Pesquisa Ateliê de Literatura e Arte, coordenado pela profa. Dra. 
Fernanda Maria Abreu Coutinho. 
Ao amigo Thiago Menezes por ter me estimulado a dar continuidade ao projeto e por ter 
compartilhado leituras pertinentes para a melhoria do trabalho. 
A minha família por compreender minha ausência. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Muito bem, Dicky”, disse ela em voz alta, 
“tenho de pensar em um meio de castigá-
lo”. “Não me importo”, ouviu-se a vozinha 
aguda. E, mais uma vez, a risada sonora. O 
menino estava inteiramente fora de si...” 
 
Katherine Mansfield 
 
 
 
 
RESUMO 
 
O presente trabalho tem como objetivo examinar comparativamente os contos “Felicidade 
Clandestina”, “Preciosidade” e “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, e “A casa de 
bonecas”, “A pequena governanta” e “Aula de canto”, de Katherine Mansfield. O problema 
se coloca no que diz respeito às estratégias desenvolvidas pelas crianças e adultos para 
circular entre as relações de poder que se desenvolvem associadas à infância. Mesmo 
ocupando espaços históricos e culturais diferentes, as escritoras se assemelham por 
destacarem a presença de personagens crianças em suas narrativas. Partindo da hipótese de 
que as tensões que ligam a ideia de poder e infância são instáveis, buscaremos verificar 
como as personagens dos contos selecionados circulam no universo da infância, rompendo 
com o paradigma da vitimização da criança. 
 
 
Palavras-chave: Infância. Poder. Estratégias. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The present paper aims to exam comparatively the short stories “Felicidade Clandestina”, 
“Preciosidade” and “Os desastres de Sofia”, from Clarice Lispector, and “A casa de 
bonecas”, “A pequena governanta” and “Aula de canto”, from Katherine Mansfield. The 
problem is concerned with the strategies developed by children and adults to move around 
the relations of power that are developed associated with childhood. Even though they 
belong to different historical and cultural contexts, the writers are similar because they 
point out the presence of children characters in their narratives. Working with the 
hypothesis that the tensions that connect the Idea of power and childhood and unstable, we 
intend to verify how the characters of the selected short stories move around the childhood 
universe, breaking up with the paradigm of child’s victimization. 
 
 
Keywords: Childhood. Power. Strategies. 
 
 
 
SUMÁRIO 
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................10 
2 ESTRATÉGIAS E JOGOS DE PODER NA INFÂNCIA................................. 15 
2.1 O universo infantil face ao poder................................................................... 15 
3 INFÂNCIA E LITERATURA.............................................................................. 27 
3.1 A criança na Literatura......................................................................................... 27 
3.2 Clarice Lispector e Katherine Mansfield: o fazer literário no Brasil do século 
XX e na Inglaterra do século XIX......................................................................... 47 
3.2.1 Clarice e Katherine: lugar comum......................................................................... 47 
3.2.2 A escrita de Katherine Mansfield: A Inglaterra Vitoriana.................................... 52 
3.2.3 A escrita de Clarice Lispector na Literatura Brasileira.........................................55 
4 A DINÂMICA DO PODER NA INFÂNCIA ......................................................61 
4.1 Crianças de “Felicidade Clandestina” e “A Casa de Bonecas”: algozes ou 
vítimas?.....................................................................................................................61 
4.2 “A pequena governanta” e “Preciosidade”: meninas, infância e 
violência.................................................................................................................. 85 
4.3 “Os desastres de Sofia” e “Aula de canto”: jogos de poder na instituição 
escolar.................................................................................................................... 102 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................116 
 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................119
10 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
 Ainda durante a graduação, numa aula de Literatura Inglesa, fui apresentada aos 
contos de Katherine Mansfield. Aquelas narrativas sobre o mais trivial (uma moça que 
encontra um antigo amante descascando uma laranja à mesa de um café, uma mulher que 
prepara um jantar para seus convidados exóticos, meninas que ganham uma imensa casa de 
bonecas e compartilham a novidade com as colegas de escola) acabaram revelando uma 
preocupação em desvendar a psicologia de suas personagens diferente dos contos lidos até 
então, geralmente centrados em acontecimentos. 
Descobri que a escritora teve um papel importantíssimo para a evolução de 
conto moderno, assim como Anton Tchekhov, por quem foi fortemente influenciada. As 
inovações na estrutura e na matéria da narrativa implementadas pelo escritor russo, dentre 
elas o abandono de um final surpreendente, de um enredo definido, e da narração 
sequencial dos acontecimentos, serviram de modelo para a escrita mansfieldiana. A ruptura 
com os padrões da narrativa clássica, focados na ação, proposta pela escritora, me causou 
um verdadeirodeslumbramento, me levando a investigar sua obra de forma mais 
aprofundada. Sua produção literária principal foi direcionada para o conto, envolvendo 
também textos críticos e confessionais, além de algumas poesias. 
Seus contos de atmosfera buscavam desvendar as personagens, em vez de 
simplesmente explicá-las. Nessa escrita, até mesmo através de os silêncios, e a dificuldade 
de comunicação contribuem para esse processo. A percepção das experiências dos 
indivíduos é construída por Mansfield de forma inovadora, rompendo com os mitos 
românticos da pureza infantil e da felicidade conjugal e familiar. A aparente perfeição 
inicial é substituída pela sensação de solidão ou sufocamento diante da adaptação às regras 
sociais. 
 Por que a escolha pessoal de Katherine Mansfield para a realização dessa 
escrita dissertativa? O primeiro contato com sua escrita despertou um verdadeiro 
deslumbramento que se potencializou a cada nova leitura. Não apenas as inovações 
estruturais descritas acima, mas também o aguçamento sensorial consequente das imagens 
presentes nas narrativas, repletas de cores, formas, sabores, me fez construir uma nova 
11 
 
concepção acerca da narrativa curta. A imagem e o cheiro da misteriosa Pearl, do conto 
Felicidade, descascando uma tangerina com seus dedos languidos, e sensação de 
abismamento ao final narrativa, que não corresponde à resolução da trama, nunca foram 
esquecidos. 
Mais tarde tive a oportunidade de me vincular ao Grupo de Pesquisa Ateliê de 
Literatura e Arte – infância e Interculturalidade, coordenado pela Profa. Fernanda Maria 
Abreu Coutinho. Nas reuniões do Grupo nos aproximamos de vários estudos voltados para 
a temática da infância, presente em diferentes áreas de conhecimento. 
As leituras do Grupo mostraram que a concepção de infância tem se 
transformado ao longo da história, caracterizando a criança ora como um pequeno adulto, 
ora como um ser lúdico, próximo de um ideal de perfeição alcançado através da ligação 
com a natureza. A Literatura também tem sido habitada por essas representações da 
infância nas obras voltadas para o público adulto, e, posteriormente, na elaboração de uma 
Literatura destinada às crianças. 
A escrita de Clarice Lispector se destaca nesse sentido por ser permeada por 
figuras da infância. Sua obra voltada para o público infanto-juvenil é composta pelos livros 
O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A Vida íntima 
de Laura (1975), Quase de verdade (1978) e Como nasceram as estrelas (1987). Apesar de 
limitados, se comparados a sua obra como um todo, os textos de Clarice para crianças 
trazem importantes inovações. Dentre eles, Quase de verdade se destaca por aludir ao 
processo de criação literária, levando o leitor a questionar os limites entre realidade e 
ficção. O pequeno leitor é chamado a participar ativamente do processo de construção da 
narrativa. Porém, as representações da infância em Clarice não podem ser delimitadas pelo 
público-alvo das narrativas. Chamou-me a atenção a escassez de estudos acerca da infância 
dentre a imensa fortuna crítica da autora, que inclui análises de pesquisadores renomados, 
como Antonio Candido, Benedito Nunes e Roberto Schwarz. Mesmo que a infância surja 
nas crônicas, contos, romances e cartas de Clarice, a ligação entre o tema e sua escrita 
ainda não parece ter alcançado uma repercussão considerável sobre a crítica, como destaca 
o pesquisador Nilson Dinis (2006): “Mas além da “literatura infantil” de Clarice Lispector, 
a constante presença de imagens da infância mesmo nos seus textos para o público adulto 
também passa despercebida” (DINIS, 2006, p. 6). 
12 
 
Alguns estudos importantes focam a temática da infância contribuindo para a 
elaboração de uma perspectiva da criança, espalhada na escrita clariciana, como Perto do 
Coração Criança: Imagens da infância em Clarice Lispector (2006), e o recente Um olhar 
de criança: a percepção infantil do universo adulto em Clarice Lispector (2013). Nilson 
Dinis e Vera Moraes nos apresentam a infância como um espaço de transgressão através de 
uma visão multifacetada da infância, revelando os aspectos contraditórios que permeiam 
essa fase da vida. 
Katherine Mansfield, por sua vez, não produziu nenhum texto para o público 
infantil. No entanto, sua obra tece um diálogo constante com a ideia de infância. Muitas de 
suas histórias, como “Prelúdio” (1918), “Na baía” (1922), “A casa de bonecas” (1922) e 
“Festa no jardim” (1922), acontecem numa atmosfera familiar, trazida à imaginação do 
leitor pelos sentidos, o frio dos corredores da escola, as brincadeiras de criança, os imensos 
jardins, o cheiro do mingau preparado pela mãe. As crianças de Mansfield quebram a visão 
romântica de infância. Elas duvidam, questionam, desejam, manipulam, causam 
sofrimento. 
Apesar da importância da escritora para a Literatura, mais especificamente para 
o conto, há poucos estudos sobre sua obra. Seus mais famosos críticos e biógrafos são 
Antony Alpers, Vincent O’Sullivan, Clare Hanson e Gillian Boddy. No Brasil, há alguns 
trabalhos críticos sobre sua obra, como a dissertações de Mestrado Epifania em Katherine 
Mansfield: imagens essenciais no espaço/tempo poético
 
(2002), Instâncias Enunciativas 
Sujeitudinais na Obra de Katherine Mansfield (2006), A Literatura Crítica e Confessional 
de Katherine Mansfield na Gênese do Romance da Nova Zelândia (2008). 
O presente estudo propõe uma análise comparativa dos contos “Felicidade 
Clandestina”, “Preciosidade” e “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, e “A casa de 
bonecas”, “A pequena governanta” e “Aula de canto”, de Katherine Mansfield. A escolha 
se deu pela proximidade das representações da infância construídas pelas escritoras que, 
mesmo separadas pela distância temporal, espacial e cultural, constroem personagens 
semelhantes, complexas, rompendo com o paradigma da criança inocente e vitimizada. É 
curioso que Clarice tenha sido leitora de Katherine e agora suas obras se encontrem nesse 
trabalho, cujo foco central é verificar como são organizadas as relações de poder que 
permeiam o universo ocupado pelas personagens crianças. 
13 
 
Partimos para uma leitura dos contos a partir do seguinte problema: quais são as 
estratégias desenvolvidas pelas crianças e adultos para circular entre as relações de poder 
que se desenvolvem associadas à infância? Buscaremos mostrar as diferentes posições 
ocupadas por esses atores numa espécie de jogo de tensão que permanece em constante 
mutação. As crianças de Clarice e Katherine não são passivas, mas questionam sua relação 
consigo mesmas e com o mundo. 
Nossas hipóteses são as seguintes: a primeira é a de que as tensões que ligam a 
ideia de poder e infância são instáveis, logo não há um lugar fixo a ser ocupado pela criança 
ou pelo adulto nas relações de poder. A segunda é a de que as personagens crianças da 
contística de Clarice Lispector e Katherine Mansfield subvertem as relações de poder 
estabelecidas pelas instituições voltadas para a infância, destacando-se, nesse particular, a 
escola e a família. A terceira é a de que a infância é um elemento essencial no fazer 
artístico das escritoras, mesmo quando o foco narrativo privilegia a perspectiva do adulto. 
No desenvolvimento do nosso estudo dialogaremos com a fortuna crítica das 
escritoras em questão. Utilizaremos, também, textos que trazem discussões teórico-críticas 
na área dos estudos literários e comparados e construiremos associações entre as obras 
selecionadas e os estudos do filósofo Michel Foucault sobre o biopoder e a sociedade 
disciplinar, tendo como referencial teórico principal as obras Vigiar e Punir (1975) e 
Microfísica do Poder (1979). 
Os livros História Social da criança e da família (1960), de Philippe Ariès, Um 
outro mundo: a infância (1971), de Marie-José Chombart de Lauwe, Uma História da 
Infância (2001), de Colin Heywood,A infância (2006) de Peter Stearns e História das 
crianças no Brasil (2008), de Mary Del Priore deram suporte teórico sobre a elaboração e 
transformação no conceito de infância ao longo da história. 
Com base no referencial teórico apresentado, buscaremos alcançar nossos 
objetivos, contribuindo para ampliar a fortuna crítica de Clarice Lispector e Katherine 
Mansfield. O interesse de Clarice por Katherine Mansfield enquanto leitora é anunciado em 
sua crônica O primeiro livro de cada uma de minhas vidas, publicada em 1973 no Jornal 
do Brasil. Pretendemos verificar as interelações estabelecidas entre essas duas escritas 
No capítulo “Estratégias e jogos de poder na infância”, apontaremos as 
mudanças no conceito de infância ao longo da história, desde sua não existência até o seu 
14 
 
suposto desaparecimento, discutido por Neil Postman (2011). Apresentaremos algumas das 
diversas relações de tensão que circundam a infância, enfatizando que elas não devem ser 
reduzidas a uma perspectiva bilateral dominador-dominado. Na verdade, a teia de forças 
que envolvem esse sistema é muito mais intrincada. Por isso, a análise que será feita no 
trabalho em questão se dará por uma perspectiva foucaultiana. Utilizaremos os estudos de 
Michel Foucault para problematizam as relações de poder desenvolvidas nas narrativas em 
questão. 
No capítulo “Infância e Literatura”, traçaremos um panorama sobre as 
representações da infância presentes na Literatura utilizando como principal referência a 
pesquisa de Fernanda Coutinho Imagens da Infância em Graciliano Ramos e Antoine de 
Saint-Exupéry (2012), que põe em evidência os personagens crianças em diferentes 
discursos, desde a mitologia greco-romana, passando pelo relato bíblico, até a atualidade, 
realizando uma análise comparativa da obra de Graciliano Ramos e de Antoine de Saint-
Exupéry. Em seguida analisaremos o contexto histórico e cultural que recebeu a escrita de 
Clarice Lispector e Katherine Mansfield, evidenciando as semelhanças e diferenças 
encontradas entre suas escritas , e também a maneira como o lugar e o momento histórico 
influenciaram sobre sua escrita. 
No capítulo “A dinâmica do poder na infância”, realizaremos a análise 
comparativa dos contos selecionados no corpus dispostos em pares da seguinte forma: 
Crianças de “Felicidade Clandestina” e “A Casa de Bonecas”: algozes ou vítimas?, “A 
pequena governanta” e “Preciosidade”: meninas, infância e violência e “Os desastres de 
Sofia” e “Aula de canto”: jogos de poder na instituição escolar. Tentaremos mostrar que as 
relações de poder que permeiam a infância são instáveis. As estratégias desenvolvidas pelas 
personagens para jogarem com essas tensões contribuem para a construção da narrativa. 
Desse modo, as representações da infância nos contos em questão são elaboradas com 
complexidade, rompendo com a visão maniqueísta da relação entre a criança e o mundo 
adulto, ou até mesmo entre as próprias crianças. 
 
 
15 
 
2 ESTRATÉGIAS E JOGOS DE PODER NA INFÂNCIA 
 
“A senhora não se importa que eu diga isso? 
Tenho certeza de que comete um grande 
erro tentando educar as crianças sem surrá-
las. Não há nada igual. E eu falo por 
experiência própria, minha cara.” 
Katherine Mansfield 
 
2.1 O universo infantil face ao poder 
 
A concepção de infância disseminada atualmente tende a associar essa fase à 
dependência, à pureza e à necessidade de orientação moral. A se acreditar nessas 
postulações, a passagem para a vida adulta aconteceria com as crianças adquirindo 
paulatinamente o conhecimento antes monopolizado pelos adultos. Representada como um 
ser inocente e ainda em processo de construção, a criança requer, portanto, proteção contra 
a corrupção do mundo dos grandes. Daí a necessidade de um espaço reservado para elas, 
colocando-as quase que em um universo à parte, como um ideal de perfeição, distante dos 
episódios de violência física e psicológica que permeiam a vida adulta. Entretanto, não se 
podem ignorar as mudanças pelas quais o conceito moderno de infância tem passado, muito 
menos o que motivou seu surgimento. O sujeito infantil que conhecemos é, na verdade, 
produto das relações institucionais. Dentre elas, a que exerceu maior influência sobre a 
ideia moderna de infância parece ter sido, de fato, a escola, moldando os indivíduos tanto 
físico quanto intelectual e moralmente. A primeira tentativa de se instituir uma educação 
formal no Brasil ocorreu através do processo de catequização no século XVI. A ideia então 
vigente, e ainda hoje mantida, era a de que a educação seria a melhor maneira de se moldar 
os sujeitos, tornando-os obedientes à organização social. Educar as crianças representava 
uma possibilidade de se facilitar a relação com as gerações vindouras: 
Ocorreria, assim, algo que poderíamos chamar de “substituição de 
gerações”: os meninos, ensinados na doutrina, em bons costumes, sabendo 
16 
 
falar, ler e escrever em português terminariam “sucedendo a seus pais”. 
Para usar uma imagem do irmão Anchieta, constituindo “um povo 
agradável a Cristo”, ou, como sugeria o irmão Antônio Blázquez na Carta 
Quadrimestral de janeiro de 1577, para que ao menos sirvam de “exemplo 
aos que depois deles vieram.” (DEL PRIORE, 2008, p.60). 
A Igreja desempenhou um papel fundamental para a afirmação do sentimento 
de infância difundindo a noção de proximidade entre criança e pureza divina, presentes nos 
ensinamentos evangélicos, e, também, se preocupando em instruí-las. Mary Del Priore 
assinala que as crianças indígenas foram escolhidas nessa campanha de educação catequista 
por serem consideradas “[...] como o ‘papel branco’, a cera virgem, em que tanto se 
desejava escrever; e inscrever-se.” (DEL PRIORE, 2008, p.58). Escolher as crianças para 
disseminar uma ideologia reafirma a compreensão de infância imaculada e inocente. A 
criança era considerada tabula rasa por não ter sido ainda exposta ao pecado, ou seja, ao 
mundo dos adultos. A noção de infância como ideal de pureza é corroborada pela definição 
encontrada no Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant: 
Infância é símbolo de inocência: é o estado anterior ao pecado e, 
portanto, o estado edênico, simbolizado em diversas tradições pelo retorno 
ao estado embrionário, em cuja proximidade está a infância. 
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 302, grifo dos autores). 
Educar as crianças era, portanto, não apenas uma forma de garantir seus 
direitos, mas um instrumento das autoridades para assegurar o controle sobre as novas 
gerações. As crianças do Brasil dos jesuítas, semelhante às crianças de hoje, eram 
apresentadas como seres que necessitavam de cuidados, e também de vigilância e 
disciplina. Mas quando surgiu essa preocupação? A infância que conhecemos não é um 
dado atemporal, mas uma invenção da modernidade. Os filósofos gregos do período 
clássico, embora se referissem a uma infância diferente daquela que conhecemos hoje, 
manifestavam grande interesse pela educação dos jovens, objetivando acostumar as 
crianças às práticas da vida adulta. 
Os estudos de Platão voltaram-se para a elaboração de teorias políticas que 
contribuíssem para a construção de um Estado justo. Para tanto, tornava-se necessário 
investir nos indivíduos para que estes se tornassem cidadãos virtuosos. Platão acreditava 
que o homem virtuoso era aquele que possuía conhecimento acerca do bem e do belo. Para 
17 
 
alcançar a virtude, dever-se-ia prosseguir estudando a vida inteira, daí a importância dada 
pelo filosofo à educação, não apenas no início da vida. Já que a educação visava ao bem 
comum extensivo a toda a pólis, era considerada responsabilidade do Estado, ideia que 
repercute até os dias atuais. O pensamento de Platão no que concerne à educação também 
poderia ser considerado um avanço por defender a mesma instrução para meninos e 
meninas. Essa educação, em sintonia com a concepção platônica, objetivavatestar as 
aptidões dos alunos para que apenas aqueles com melhor desempenho recebessem a 
formação completa para ser governantes. O sistema educacional arquitetado pelo filósofo 
objetivava, portanto, não apenas preparar o indivíduo, mas proporcionar o bem a toda a 
comunidade. O importante não era apenas transmitir conhecimento para as crianças, mas 
prepará-las para a vida adulta em sociedade. 
As modificações ocorreram e ocorrem por mudanças estruturais na sociedade e 
não são homogêneas numa mesma época. Para a realização do presente estudo, 
consideramos que os significados da infância são construídos socialmente, ou seja, o 
conceito de infância é variável e se configurou ao longo do tempo de acordo com as 
diferentes tendências culturais, políticas e sociais. Na Idade Moderna, o adulto passou a se 
preocupar com a criança, realçando uma caracterização da idade pueril como sendo 
geralmente relacionada à debilidade e à fraqueza. Philippe Ariès, considerado um dos 
pioneiros na pesquisa sobre a criança, analisa o contexto de surgimento da concepção de 
infância em seu livro História Social da Criança e da Família (1981), publicado na França 
em 1960 e nos Estados Unidos em 1962. Segundo Ariès, apesar de estarem integradas ao 
mundo dos adultos, pois não havia uma distinção clara entre as fases da vida, as crianças 
eram impedidas de discursarem por si mesmas. Durante a Idade Média, elas se vestiam 
como adultos, trabalhavam e se iniciavam nas atividades sexuais mais cedo que a maior 
parte das crianças de hoje, mas, a despeito disso, permaneciam marginalizadas. Mesmo 
desempenhando papéis de relevância nas relações sociais como, por exemplo, trabalhando 
para auxiliar na renda familiar, a criança permanecia sem o direito de advogar por si 
mesma. Nesse período, segundo Ariès, a infância é caracterizada pela ausência da fala e por 
comportamentos irracionais. Portanto, apesar de não ser vista como sendo diferente do 
adulto até o século XVII, a criança não merecia ser ouvida. Ela vivia em um mundo no qual 
não era considerada protagonista: 
18 
 
[...] a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade 
começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que 
nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois 
nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas 
palavras. (ARIÈS, 1981, p. 36). 
 Para Ariès, o alto índice de mortalidade infantil, devido às condições de vida 
precárias, limitava o desenvolvimento do afeto em relação à criança. Essa relação muda a 
partir do século XVII, quando a criança passa a ser vista como um ser lúdico, capaz de 
fazer gracejos e entreter os adultos, assim como um animal de estimação. Após a fase de 
“paparicação”, definida por Ariès como o primeiro sentimento que é nutrido em relação à 
infância, surge a necessidade de formação moral através da educação. Essa nova 
necessidade faz com que a infância passe a ser considerada uma etapa diferenciada da vida, 
exigindo cuidados especiais. Ariès, através da análise da evolução das pinturas do século 
XIII ao XVI, atesta que, a partir do século XVI, a arte passou a representar a criança de 
modo diferente, enfatizando sua relação com a família e a imagem da criança engraçadinha 
que encanta os adultos.
 
A mudança substancial ocorrida nesse período, quando se constrói 
uma delimitação mais clara entre infância e vida adulta, leva a uma necessidade de 
restringir a participação das crianças no "universo dos adultos", criando-se, então, um lugar 
separado especialmente para elas. A educação surge como a principal forma de controle das 
crianças resultando numa forte repressão de sua fala com, repressão que abrigava um 
objetivo moralizador. Para o crítico social Neil Postman (2011) o fator que instituiu uma 
separação mais clara entre infância e o universo adulto foi a necessidade de aprender a ler e 
escrever, decorrente da popularização da prensa tipográfica. 
Postman acredita que os cinquenta anos que se seguiram à invenção da 
tipografia refletiram-se fortemente na Europa causando uma nítida divisão entre os que 
sabiam e os que não sabiam ler. Surgia então um novo tipo de adulto, o homem “culto”, 
aberto às novas experiências e com necessidade de construir sua identidade pessoal. Tal 
mudança repercutiu, também, sobre o conceito de infância. Tornar-se adulto então 
significava ter acesso ao código que guardava informações, ou seja, aprender a ler. Essa 
mudança acabou por fortalecer a importância da escola enquanto instituição responsável 
por moldar a criança, que, nesse novo contexto, encontra nos livros a principal fonte de 
aprendizagem. 
19 
 
 
Num mundo sem livros nem escolas, a exuberância juvenil contava com o 
campo mais vasto possível para se expressar. Mas num mundo de 
aprendizado livresco, tal exuberância precisava ser drasticamente 
modificada. Quietude, imobilidade, contemplação, precisa regulação das 
funções corporais tornaram-se extremamente valorizadas. (POSTMAN, 
2011, p.60). 
A construção da ideia de infância está diretamente ligada ao conceito de poder, 
pois houve, e ainda há um grande esforço para regulamentar o comportamento e o pensar 
da criança. O historiador americano Peter Stearns cita o estímulo do medo usado pelo 
cristianismo para controlar os pequenos: “De modo geral, o cristianismo estimulava o uso 
do medo da morte e da danação como instrumento regulador do comportamento das 
crianças, criando o que alguns historiadores veem como uma característica de profunda 
ansiedade.” (STEARNS, 2006, p.83). Os castigos eram comuns também no Brasil dos 
jesuítas, sendo, porém, aplicados por alguém de fora da ordem, de modo a evitar algum 
possível sentimento de revolta por parte das crianças indígenas: “[...] os padres tinham o 
cuidado de não o aplicar (o castigo) pessoalmente, delegando a tarefa, de preferência, a 
alguém de fora da companhia.” (DEL PRIORE, 2008, p. 63). 
A grande importância dada à educação depois das mudanças apresentadas 
esteve voltava à necessidade se exercer domínio não apenas físico, mas moral sobre as 
crianças. Estabelece-se então uma relação de tensão entre “eu” e o “outro”, ou seja, entre a 
criança e o adulto. A primeira permanece sem autonomia, mesmo quando sua história se 
torna o centro das discussões. Stearns enfatiza a circunstância de as informações acerca da 
infância serem relatadas, ou rememoradas por adultos. Mesmo enquanto sujeito, ela 
continua sendo o “outro”, já que a infância é “[...] definida pelos adultos e por instituições 
adultas.” (STEARNS, 2006, p.13). Apesar das ideias de sujeição e controle constantemente 
presentes na relação criança-adulto, seria ingênuo afirmar que a criança é sempre 
vitimizada. Essas relações de tensão não devem ser reduzidas a uma perspectiva bilateral 
dominador-dominado. Na verdade, a teia de forças que envolvem esse sistema é muito mais 
intrincada. Por isso, a análise que será feita no trabalho em questão se dará por uma 
perspectiva foucaultiana. 
20 
 
Michel Foucault desafia o pensamento de que o poder é exercido por pessoas 
ou grupos através de atos de soberania, de dominação ou coerção. Para ele, o poder se 
apresenta de forma dispersa e difusa, diluído nas relações sociais. Nessa perspectiva, não é 
mais possível localizar uma pessoa, instituição ou autoridade que o detenha. A obra de 
Foucault marca uma ruptura radical face às concepções anteriores de poder, já que este é 
agora exercido e não possuído. O filósofo reconhece que o poder não tem apenas efeitos 
negativos e não é exercido apenas através de forma coercitiva ou repressiva obrigando os 
sujeitos a agirem contra sua vontade, mas pode ser uma força necessária e produtiva para a 
sociedade. 
Os estudos foucaultianos acerca do biopoder e da sociedade disciplinar 
apontam para a mudança ocasionada pela transição da sociedade feudal à modernidade. 
Tradicionalmentecentrado em estados feudais e utilizando métodos de coerção explícita 
dos súditos, o poder deixa de ser exercido de forma soberana. O autor aponta um novo tipo 
de poder disciplinar presente nos sistemas administrativos criados na Europa do século 
XVIII, como prisões, hospitais mentais e escolas. Essas instituições já não necessitam mais 
da violência física para controlar e disciplinar os indivíduos. Dessas considerações é 
possível depreender, portanto, que houve um aperfeiçoamento do exercício do poder, que 
deixou de recorrer a punições públicas para tornar-se mais sutil, sendo exercido através da 
aplicação da disciplina através da vigilância constante. 
É essencial compreender que esse poder não é exercido apenas de forma 
bilateral, mas é mantido pelos próprios sujeitos que integram a sociedade. Caso contrário, 
seria frágil e, portanto, poderia ser facilmente contestado. O poder disciplinar não recorre 
necessariamente a punições físicas, como o suplício apresentado na primeira parte de 
Vigiar e Punir (2010), de Foucault, mas atua de forma a controlar os corpos no espaço 
tornando-os dóceis. Novos mecanismos de controle são desenvolvidos substituindo-se a 
violência física com o intuito de eliminar no indivíduo a capacidade de questionar a 
disciplina. O controle passa a ser, dessa forma, imaterial, espalhando-se de forma mais 
rarefeita e mais eficiente. Ele é forte porque também produz efeitos positivos no nível do 
desejo e também no nível do saber. As novas relações de poder estabelecidas na sociedade 
moderna adquirem um nível bem mais elevado de complexidade. 
21 
 
É preciso, antes de qualquer coisa, conhecer o conceito de disciplina trabalhado 
pelo filósofo, a qual possui dois diferentes usos: um na ordem do saber e outro na do poder. 
Como esta pesquisa se debruça sobre as estratégias desenvolvidas nas relações de poder, 
iremos nos deter ao último uso. Nessa perspectiva, a disciplina é vista por Foucault como o 
conjunto de técnicas que permitem a normatização dos corpos. 
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do 
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem 
uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as 
“disciplinas.” (FOUCAULT, 2010, p.133). 
Essa nova organização política se apresentou inicialmente nos colégios para 
depois penetrar o espaço hospitalar, e, algumas décadas depois, reestruturar a organização 
militar. Os processos disciplinares aos quais nos referimos são métodos que permitem o 
controle minucioso das operações do corpo e lhe impõe uma relação de docilidade. Apesar 
de já terem sido utilizados anteriormente em instituições como conventos, exércitos e 
oficinas, foi apenas no decorrer dos séculos XVII e XVIII que vieram a se tornar fórmulas 
gerais de dominação. 
A instituição escolar é apontada por Foucault como uma das primeiras a 
praticar as disciplinas, buscando organizar não apenas o espaço ocupado pelo indivíduo, 
mas também seu tempo de aprendizagem. A própria distribuição dos alunos em “fileiras” é 
resultado de um sistema disciplinar. Essa organização espacial permite que o professor 
circule pela sala, monitorando todos os alunos ao mesmo tempo. Os professores “[...] 
marcam lugares que indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos” 
(FOUCAULT, 2010, p. 142). Porém, não se pode esquecer que os próprios indivíduos 
contribuem para a manutenção da ordem vigente. O professor supervisiona os alunos, mas 
as crianças em sala, por sua vez, supervisionam umas às outras e também ao professor. 
Nessa perspectiva, pretendemos contestar a visão de criança passiva diante dos 
adultos e analisar de que forma esta interage com os adultos e junto a outras crianças, seja 
questionando as relações de poder ou se adaptando a elas em diferentes contextos que não 
apenas o escolar. Foucault enfatiza as mudanças na disciplina dos séculos XVII e XVIII, 
que é diferente de todo tipo de massificação anteriormente aplicado. Ela fabrica corpos 
dóceis, submissos, altamente especializados e capazes de desempenhar inúmeras funções. 
22 
 
Ao passo que os corpos são fortalecidos, tornando-se mais eficientes, são, igualmente, 
controlados. É pela disciplina, a qual não deve ser vista de forma unilateral, que as relações 
de poder se tornam mais facilmente observáveis, pois é por meio dela que se estabelece a 
interação entre os indivíduos, ou entre esses e as instituições. 
O controle das minúcias contraria os grandes aparelhos do Estado, pois vai 
invadir e modificar as estruturas maiores de forma compassada e discreta. A determinação 
da regulamentação de horários, espaços, do corpo e da fala esmiúça as inspeções, fazendo 
com que o controle se estenda às mínimas parcelas da vida, a “microfísica” do poder, que 
gera sujeitos submissos. Essa sujeição, diferentemente do que ocorria na Idade Média, não 
é obtida apenas através de instrumentos de violência ou da ideologia, e pode muito bem ser 
direta, usar a força, porém, sem ser violenta. 
A grande eficácia da disciplina se dá pelo efeito do dispositivo panóptico
1
 sobre 
os indivíduos e consiste em tornar o poder visível e inverificável. Aquele que é observado 
tem a silhueta do observador constantemente diante de si, sem, porém, saber ao certo se 
está realmente sendo observado. Foucault exemplifica a utilização do panóptico no sistema 
carcerário, mas este serve para ilustrar o poder disciplinar desde o começo do século XIX. 
A visibilidade torna-se uma armadilha. Enquanto a masmorra servia para esconder o 
condenado e privá-lo da luz e da liberdade, o panóptico coloca-o sob a luz, sob eterna 
vigilância. A ordem é garantida através do isolamento dos sujeitos: “Se os detentos são 
condenados não há perigo de complô”, entre as crianças “não há “cola”, nem barulho, nem 
conversa nem dissipação.” (FOUCAULT, 2010, p. 190). Essa invisibilidade lateral, 
 
1
 Vigiar e Punir possui o seguinte subtítulo: “o nascimento da prisão”. Entretanto, a obra não objetiva analisar 
a prisão em si mesma, mas a nova organização política dos corpos. Foucault relaciona a organização do poder 
na sociedade moderna com a criação do panopticon, modelo arquitetônico pensando por Bentram visando ao 
controle dos prisioneiros isolando-os em celas e instaurando uma permanente sensação de vigilância. Trata-se 
de “uma construção periférica em forma de anel, e uma torre no centro do anel. O edifício periférico está 
dividido em celas, cada uma delas possui duas janelas, uma para o exterior, por onde entra a luz, e outra que 
dá para a torre central. Esta, por sua vez, possui janelas que permitem olhar através das janelas interiores das 
celas. Basta situar o vigilante na torre central para assegurar a vigilância dos que se encontram nas celas. O 
jogo da luminosidade assegura que esse vigilante possa ver sem ser visto” (CASTRO, 2009, p. 314-315). O 
panoptismo, esse controle permanente mesmo sem a certeza de existência de um observador, ultrapassa o 
sistema prisional e passa a permear a sociedade moderna nas mais diversas relações. 
 
23 
 
resultante do constante monitoramento das minúcias, acaba por gerar uma fissura entre os 
indivíduos. Eles controlam uns aos outros, quebrando a ideia de poder exercido de forma 
hierárquica, e monitoram, também, seus superiores. Para Foucault, o temor constante de 
estar sendo observado faz nascer a sujeição. Como consequência, aquele que está, 
supostamente, submetido ao olhar do observador faz com que o poder limite a si mesmo, 
“[...] inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois 
papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição” (FOUCAULT, 2010, p.192). 
Ao investigar os regulamentos das instituições disciplinares, Foucault destaca o 
controle das minúcias que levará à construção de um complexo conjunto de relações de 
poder e saber.Dentro dessas relações, a escola funciona como instituição reguladora do 
comportamento e do saber da criança, mas não atua somente de forma repressiva. Ela 
funciona como produtora de saber e subjetividade, que vão além do espaço da escola, 
afetando o processo de constituição da identidade do sujeito. As disciplinas e o panoptismo 
ultrapassam o espaço escolar e se dissipam nas relações entre indivíduos, e, até mesmo, 
desses consigo próprios. Mas como a escola adquiriu um papel de tamanha relevância na 
formação das crianças? 
A Revolução Industrial contribuiu para o fortalecimento dos espaços 
institucionais reservados às crianças, alterando a organização da sociedade que passou de 
rural para urbana, fator que contribuiu para a modificação do conceito de infância. Com a 
necessidade de trabalhar por longas horas e recebendo baixos salários, os casais precisaram 
limitar o número de crianças, o que resultou em uma relação de maior proximidade entre 
pais e filhos. Esses, que antes ajudavam no trabalho no campo, agora geravam gastos. A 
nova organização social desse período ocasionou mudanças na estrutura familiar e na 
escola, que passa a se dedicar a disciplinar as crianças a partir de regras e valores morais. 
Como resultado dessas alterações, a necessidade de exercer controle foi o pensamento que 
caracterizou o segundo sentimento em relação à infância e influenciou fortemente a 
educação do século XX, tendo grande repercussão até os dias atuais. 
A expansão das grandes religiões também contribuiu para modificar a visão 
vigente sobre a infância fazendo com que se repensasse a morte das crianças, seja esta 
proposital ou acidental, assim como sua educação. Stearns menciona em sua obra Infância 
(2006) que “[...] a lei islâmica, nesse sentido, apontava uma série de “direitos” das crianças 
24 
 
que estivessem em situações vulneráveis.” (STEARNS, 2006, p.67). Mesmo que o conceito 
de lei seja moderno, o autor enfatiza a preocupação com o cuidado das crianças presente 
nas leis do Islamismo, a “[...] religião de maior expansão durante o período pós-clássico.” 
(STEARNS, 2006, p.67). Mesmo com o crescimento do interesse pela infância, o assunto 
ainda permanece um tanto obscuro, já que os registros que se têm sobre esse período são, 
geralmente, relatos de outrem, e não daquele que vivencia a infância. 
 
Crianças deixam relativamente poucos registros diretos. Justamente por 
isso, é mais fácil tratar historicamente da infância do que das crianças em 
si, porque a infância é em parte definida pelos adultos e por instituições 
adultas. (STEARNS, 2006, p.13). 
Stearns apresenta uma nova perspectiva acerca da obra de Ariès no que tange à 
falta de afeição com relação às crianças. Para ele, Ariès “sustentou que os europeus 
tradicionais não tinham uma concepção muito clara da infância como estágio separado da 
vida, e tendiam a marginalizar as crianças da atividade familiar” (STEARNS, 2006, p.74). 
Stearns, porém, chama a atenção para as interpretações confusas da visão de Ariès. 
Segundo ele, “Ariès não pensava que os pais deixassem de ter afeição pela criança – 
admitia que isso fosse uma manifestação natural –, mas que simplesmente não dedicavam 
muito tempo ou atenção especial a elas.” (STEARNS, 2006, p.74). O autor apresenta teses 
revisionistas que atestam o amor paternal através da análise de cartas nas quais os pais 
manifestam pesar diante da perda de um filho ou orgulho diante de seu nascimento. Até 
mesmo as representações artísticas são repensadas por ele: 
Mesmo a arte, contrariando a visão de Ariès, mostrava interesse 
centrado na criança: afinal, um dos temas artísticos mais constantes era 
Maria e o bebê Jesus, indicando que a Igreja ocidental privilegiava a 
família voltada para as crianças (embora talvez com certo 
constrangimento em encaixar os pais). (STEARNS, 2006, p.77). 
 
A concepção atual de infância é efeito de transformações ocasionadas pelo 
advento da modernidade. O autor destaca três dessas importantes mudanças: a passagem 
das crianças do trabalho para as escolas; o controle da natalidade, estimulado pela mudança 
das sociedades agrícolas para as urbanas; e a redução da taxa de mortalidade, causada pela 
25 
 
melhora na condição de vida da população, de modo geral. Tais mudanças ocasionaram 
uma diminuição no número de crianças. A consequente intensificação na relação entre pais 
e filhos mostra que “[...] o investimento emocional em cada criança aumentou” 
(STEARNS, 2006, p.92). O fortalecimento de espaços reservados para as crianças gera uma 
alteração na visão das crianças construída pelo mundo adulto. 
 
Ficou mais difícil ver a infância em conexão direta com os demais 
estágios da vida. É claro, as escolas estavam preparando para a vida e 
muitos o percebiam, porém as conexões podiam ser bastante abstratas, e o 
fato é que a maior parte do dia da criança se passava longe do mundo 
adulto – o “mundo real” como os americanos, de maneira reveladora, 
chamavam. Essa separação podia afetar as atitudes dos adultos com 
relação às crianças, que agora podiam parecer privilegiadas, e complicar 
esforços das crianças para encontrar sentido em suas vidas, estimulando 
novos tipos de estresse e desorientação. (STEARNS, 2006, p.93). 
 
Ocorreram, também, mudanças relacionadas às questões de gênero na infância. 
As meninas enfrentaram um longo período de silenciamento por serem crianças e por 
pertencerem ao gênero que historicamente teve seus espaços de atuação limitados. 
Entretanto, apesar da diminuição nas distinções de gênero e do aumento da liberdade das 
meninas, que passaram a poder frequentar a escola e se sair tão bem, ou até melhor, que os 
meninos, ainda persistia o raciocínio de que meninos e meninas deveriam estudar assuntos 
diferentes. Mesmo após meninos e meninas serem colocados nas mesmas salas nos EUA 
em 1920, divisões ainda eram mantidas com o intuito de enfatizar a diferença entre os eles, 
como a prática de esportes distintos e o uso de uniformes diferenciados. O comportamento 
das meninas recebia, portanto, monitoramento não apenas pela suposta fragilidade de sua 
pouca idade, mas também devido ao seu gênero, mesmo que as pequenas tenham 
conquistado espaços antes proibidos. 
É importante destacar que essas mudanças não ocorreram de forma homogênea. 
Segundo Mary Del Priore, organizadora e co-autora do livro História das Crianças no 
Brasil (2008), o capitalismo afetou o Brasil de forma tardia. “Sem a presença de um 
sistema econômico que exigisse a adequação física e mental dos indivíduos a esta nova 
realidade, não foram implementados os instrumentos que permitiriam a adaptação a este 
26 
 
novo cenário.” (DEL PRIORE, 2008, p. 10). Enquanto uma pequena parcela da elite tinha 
aula com professores particulares, à maioria das crianças, filhas de pobres, restava 
tornarem-se “[...] cidadãos úteis e produtivos na lavoura.” (DEL PRIORE, 2008, p.10). 
Priore explica que no Brasil do século XIX os pais consideravam o trabalho a melhor 
escola e até mesmo uma distração para as crianças. “Assim, o trabalho, como forma de 
complementação salarial para famílias pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em 
detrimento da formação escolar.” (PRIORE, 2008, p.10-11). Apesar de algumas 
disparidades entre culturas diferentes, podemos concluir que houve, de maneira geral, um 
esforço para controlar a infância através de instrumentos reguladores, dentre os quais se 
destacam a educação e os castigos. 
O presente trabalho propõe, portanto, analisar como as personagens crianças 
lidam com as relações de poder estabelecidas no seu cotidiano, desconstruindo o 
estereótipo da criança vitimizada e inocente. A partir de um olhar atento sobre essas 
relações, buscaremos perceber quais são as estratégias utilizadas pelas personagens crianças 
para resistirem em meio a esse complexo emaranhado de tensões, que tendem, geralmente, 
a silenciá-las e a limitarseu espaço de atuação. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
27 
 
3 INFÂNCIA E LITERATURA 
 
“Quando criança, e depois adolescente, fui 
precoce em muitas coisas. Em sentir um 
ambiente, por exemplo, em apreender a 
atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro 
lado, longe de precoce, estava em incrível 
atraso em relação a outras coisas 
importantes. Continuo aliás atrasada em 
muitos terrenos. Nada posso fazer: parece 
que há em mim um lado infantil que não 
cresce jamais” 
Clarice Lispector 
 
3.1 A criança na Literatura 
As representações da infância ao longo da História estiveram constantemente 
circundadas pela ideia de poder, mesmo antes da elaboração de um pensamento formal 
sobre o que significa ser criança. A figura iconográfica infantil, por exemplo, ilustra as 
mudanças na posição de poder ocupada pelas crianças não apenas nas artes, mas também na 
organização social de forma geral. Os estudos de Ariès, historiador que considera a 
“invenção” da infância um fenômeno da modernidade, apontam a ausência de 
representações artísticas da criança durante o período medieval. Quando esta aparecia, não 
possuía uma morfologia própria, mas surgia como um adulto em escala menor. 
Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não 
tentava representá-la; é difícil acreditar que essa ausência se devesse à 
falta de habilidade ou de competência. Parece mais provável que a 
infância não tivesse lugar naquele mundo. (ARIÈS, 1973, p. 23). 
É necessário considerar que a arte é também influenciada pelo poder vigente. A 
falta de representações das crianças nas artes plásticas destacada pelo estudioso revela não 
28 
 
haver necessidade de que sejam traçadas fronteiras entre o mundo adulto e o mundo infantil 
nesse período. Até os séculos XV e XVI, que preparariam o cenário da ascensão da 
burguesia europeia, a instituição clerical seria a grande fomentadora da produção artística. 
Dessa forma, a presença da criança na pintura e escultura nesse período propagava um 
modelo da infância influenciado pela iconografia religiosa através das figuras de anjos ou 
da virgem com o menino Jesus, tema constante durante a Idade Média, pintado 
principalmente por artistas italianos como Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Duccio di 
Buoninsegna, Giotto di Bondone, Giovanni Bellini, dentre outros. 
Posteriormente, a Renascença Italiana sinalizaria a mudança na concepção de 
infância do sagrado para o profano, a qual viria a se consolidar na modernidade. Passa-se a 
destacar as peculiaridades da criança, retirando-a da aura imaculada que predominava até 
então. Apesar da presença dessas figuras, ainda que ocupando uma posição de menor 
destaque, o estudo de Philippe Ariès no início dos anos 60, avaliado como um trabalho 
seminal, considera que o conceito de infância era ignorado pelo mundo medieval. De fato, a 
Idade Média não se esforçou por elaborar um pensamento sistematizado acerca dessa ideia, 
mas certamente havia interesse em estudá-la e representar suas particularidades, como nos 
mostra, por exemplo, a mitologia grega, repleta de personagens crianças. 
Ariès sublinha a movimentação na posição ocupada pelas crianças nas relações 
de poder. No século XVII elas deixam de ocupar um papel secundário na organização 
familiar e passam a ser consideradas figuras centrais, fator que sinaliza uma mudança no 
seu peso nas relações sociais. Tal alteração pode ser observada nos retratos de família, que, 
nesse momento, “[...] tendem a se organizar em torno da criança, a qual se torna o centro da 
composição” (ARIÈS, 1973, p.38). 
 
 
 
 
 
 
 
 
29 
 
Figura 1 – Mulheres rindo. DURAN (1828). 
 
PERROT (1991). 
 
A historiadora Michelle Perrot (1991) também enfatiza a atenção especial 
dedicada aos pequenos. Para ela, a criança passa a ser considerada objeto de investimento 
não apenas afetivo, mas também econômico, educativo e existencial. “O filho no século 
XIX, ocupa mais do que nunca o centro da família [...] Como herdeiro, o filho é o futuro da 
família, sua imagem sonhada e projetada, sua forma de lutar contra o tempo e a morte.” 
(PERROT, 1991, p. 146). Seria essa nova organização familiar em torno da criança uma 
tentativa de representá-la enquanto indivíduo, admitindo a existência de um universo 
distinto daquele regido pelos adultos? Para Perrot, a resposta é negativa, uma vez que o 
filho ainda era visto como “[...] o futuro da nação e da raça, produtor, reprodutor, cidadão e 
soldado do amanhã” (PERROT, 1991, p. 148), e não como indivíduo. A relação entre pais e 
filhos ultrapassava o ambiente familiar, refletindo o desejo do homem de vencer a morte, 
continuando seu legado em sua prole. Daí a necessidade de instituições voltadas para a 
preparação desses herdeiros do futuro, prontas a educá-los e discipliná-los, preservando os 
valores vigentes. Após o fortalecimento do modelo familiar burguês proporcionando o 
estreitamento das relações entre pais e filhos, a criança vai, pouco a pouco, “assumindo 
rosto e voz”, como afirma a historiadora. Para ela, é no século XIX que, finalmente, se 
consolida uma visão da criança como indivíduo. 
30 
 
 
Sua linguagem, seus afetos, sua sexualidade, suas brincadeiras são objeto 
de anotações que dissipam os estereótipos, em favor dos casos concretos e 
desconcertantes. A infância, a partir de então é vista como um momento 
privilegiado da vida. Toda autobiografia começa e se demora nela, 
enquanto o chamado romance “de formação” descreve a infância e a 
juventude do herói. (PERROT, 1991, p.162). 
 
O chamado Romance de Formação
2
, ou Romance de Educação, gênero 
narrativo mencionado pela pesquisadora, narra os caminhos percorridos pelo protagonista 
desde o início de sua vida até um estado de maior maturidade. De acordo com a estrutura 
narrativa em questão, as intempéries enfrentadas pelo herói desde seus primeiros anos 
contribuiriam para a formação do indivíduo adulto, já que este procura conhecer não apenas 
o mundo, mas a si mesmo. O desejo de autoformação é a força que impulsiona o 
protagonista. Há, portanto, uma visão da infância como um momento de preparação, como 
o início de uma jornada cujos resultados serão colhidos na vida adulta. A ideia de vir-a-ser 
presente no gênero em questão faz parte do momento histórico no qual ele teve seu início. 
A Alemanha do final do século XVIII valorizava a educação como uma maneira de moldar 
o caráter dos indivíduos, dessa forma, o Bilgunsroman traz um ideal pedagógico em suas 
origens. A formação intelectual, porém, não acontecia apenas por meio da educação formal, 
mas também era resultado dos acontecimentos e conflitos enfrentados ao longo da jornada 
percorrida pelo herói. O projeto pedagógico iluminista e pós-iluminista permeia a estrutura 
do romance. 
 
[...] pode-se iluminar uma das mais determinantes configurações 
históricas que atuaram na origem do Bildungsroman: o desejo do burguês 
culto e esclarecido pela ampliação dos limites de suas possibilidades de 
atuação, pelo auto-aperfeiçoamento, pela formação universal. (MAAS, 
2000, p.46). 
 
2
 O termo “Romance de Formação” é originário do alemão Bildungsroman, tipo de romance que narra as 
aventuras e desventuras do herói desde sua infância rumo ao processo de construção de sua personalidade e 
formação individual. Tendo como modelo a obra de Goethe Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, 
publicada em duas partes, em 1795 e 1796, o Bildungsroman trata da formação do indivíduo inserido em um 
recorte histórico concreto, mantendo a ligação entre subjetividade e contexto social. 
31 
 
 
A aprendizagem do herói opera como modelo para a formação humanista dos 
próprios leitores dessa modalidade romanesca. 
 
As mudanças por que passa o herói adquirem importância para o a enredo 
romanesco que será, por conseguinte, repensado e reestruturado.O tempo 
se introduz no interior do homem, impregna-lhe toda a imagem, 
modificando a importância substancial de seu destino e de sua vida. Pode-
se chamar este tipo de romance, numa acepção muito ampla, de romance 
de formação do homem. (BAKHTIN, 2000, p. 237). 
 
Construída em torno de uma ligação entre o indivíduo e as relações sociais, a 
narrativa se torna, então, um encontro do indivíduo com a coletividade. Seu aprimoramento 
não envolve apenas o desenvolvimento do intelecto, mas também o comportamento diante 
das regras sociais. Georg Lukács contrapõe a narrativa épica ao romance, evidenciando os 
“[...] dados histórico-filosóficos com que se deparam para a (sua) configuração” 
(LUKÁCS, 2006, p.55). Enquanto o herói épico não busca uma aventura da exterioridade, 
pois seu destino já está escrito, o protagonista do romance burguês experimenta o que o 
escritor chama de “romantismo da desilusão”, uma ficção marcada pelo fracasso do 
indivíduo em sua busca por um lugar no mundo. Lukács considera a obra de Goethe, Os 
anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, publicada entre 1795 e 1796, o marco entre os 
valores estéticos da narrativa épica e da moderna. As aventuras de Wilhelm são motivadas 
por uma busca universal, o que torna a obra um modelo pedagógico do Humanismo por 
representar a harmonia entre ação e contemplação nas atitudes de seu protagonista. Tal 
fórmula não seria mais passível de imitação no período “pós-goetheano”, permeado pela 
decepção causada pela impossibilidade de equilíbrio do indivíduo. O romance de Goethe 
representaria, portanto, o último esforço literário para expressar simetria entre o indivíduo e 
a realidade social, reafirmando a concepção de infância como um momento de 
aprendizagem e de preparação para o devir adulto. Contudo, o personagem criança se 
recusa a assumir uma atitude passiva diante do conflito com o exterior. Ao contrário, ele 
percorre a jornada de aprendizagem para a vida adulta com uma postura questionadora, 
mesmo que a narrativa fosse norteada pelo projeto pedagógico humanista que objetivava o 
aperfeiçoamento das suas qualidades. 
32 
 
O sentimento de valorização da infância como força de energia e vitalidade 
retornaria mais tarde com o Romantismo através da representação de um ideal de infância 
pura, quando o homem experimentaria uma ligação com o estado primitivo da natureza. A 
leitura romântica do mito da infância enxerga a criança como um ser que evoca as 
características mais nobres do homem, propagando o pensamento primitivista proposto por 
Jean-Jacques Rousseau, proposto não apenas em seu Emílio, ou da educação (1762), mas 
disseminado em sua obra de forma geral. Rousseau critica a cultura moderna que associa o 
progresso da civilização humana à comodidade proporcionada pelos bens materiais. O 
pensador defende um estilo de vida contrário ao artificialismo e à futilidade da sociedade 
moderna através da valorização da conexão entre o homem e a natureza, engendrada no 
“bom selvagem”. 
Rousseau não pretendia alcançar esse estado de integração ao primitivo com um 
retorno ao passado, mas questionando a formação da criança em seu tempo orientada pelo 
racionalismo e pelo desenvolvimento técnico-científico. A proposta pedagógica de Emílio 
defende que os conhecimentos transmitidos às crianças preparassem-nas como cidadãos 
cumpridores de seus deveres cívicos. Porém, a perspectiva adotada na obra preserva a 
individualidade da criança, já que tenta construir conhecimento de forma natural sem impor 
valores morais, e respeita as peculiaridades do mundo infantil. Dessa forma, a criança não 
seria guiada ao mundo adulto através da mera reprodução dos valores estabelecidos pelas 
gerações mais velhas, mas se descobriria com prazer a construir escolhas críticas que 
resultariam em um adulto aprimorado. “Com esta obra de Rousseau, não somente a infância 
conquista o direito à alteridade, como se instaura uma nova epistémê com relação às etapas 
do viver.” (COUTINHO, 2012, p.32). 
O gozo da infância como um caminho para despertar as potencialidades da 
criança resultando na formação de um adulto maduro, como pode ser verificado em Emílio, 
está presente no poema de William Wordsworth (1988) “My Heart Leaps Up”. “No verso 
‘O menino é pai do homem’, Wordsworth (1988) configura um ideal: a permanência do 
espírito infantil entendido como seiva vital, capaz de proporcionar a comunhão anímica 
com o cosmos.” (COUTINHO, 2012, p.33). As mudanças nas representações artísticas das 
crianças mostram que elas adquirem características próprias que as diferenciam de uma 
simples miniaturização do adulto, e passam a ocupar uma posição central, tornando-se tema 
33 
 
constante do fazer poético romântico. A Literatura figura entre os vários produtos culturais 
que contribuem para aprofundar sua subjetividade, levantando a problematização de seu 
lugar no mundo. Como apontado no capítulo anterior, a representação de personagens 
crianças surge como uma tentativa de compreendê-las através das narrativas, porém seu 
lugar nas relações de poder não é estável. 
Até mesmo o surgimento de uma Literatura de cunho didático voltada para 
crianças denota a condição de fragilidade ainda imposta a elas em alguns contextos, mesmo 
que a história e a produção cultural tenham reconhecido sua relevância. Composta a 
princípio por contos populares, a Literatura Infantil objetivava transmitir as normas de 
conduta do universo adulto aos seus leitores. Essas narrativas de origem popular não eram, 
inicialmente, destinadas em especial ao público infantil. Na obra O grande massacre de 
gatos e outros episódios da história cultural francesa (1986), o historiador Robert Darnton 
examina várias versões de contos populares e critica os caminhos seguidos por psicanalistas 
renomados como Erich Fromm e Bruno Bettelheim ao empreenderem suas análises dos 
aludidos relatos. 
Darnton destaca que os símbolos tomados como base para a interpretação, na 
verdade, “[...] não existiam nas versões conhecidas dos camponeses, nos séculos XVII e 
XVIII.” (DARNTON, 1986, p.23). Fromm utiliza todo um aparato de construções 
simbólicas para se referir à sexualidade em “Chapeuzinho Vermelho”: a menstruação seria 
representada pelo capuz, a garrafa levada pela menina seria uma referência à virgindade 
enquanto o caçador faria alusão à punição por infringir um tabu sexual. O problema, 
observa Darnton, é que nenhum desses elementos estaria presente nas versões anteriores 
dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, de onde o psicanalista provavelmente retirou o texto 
da seu estudo. O universo simbólico, tão importante para Fromm, não assume uma posição 
de relevância já que “[l]onge de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de 
histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.” 
(DARNTON, 1986, p.29). 
Pretendessem elas divertir os adultos ou assustar as crianças, como no 
caso dos contos de advertência, como “Chapeuzinho Vermelho”, as 
histórias pertenciam sempre a um fundo de cultura popular, que os 
camponeses foram acumulando através dos séculos, com perdas 
notavelmente pequenas (DARNTON, 1986, p.32). 
34 
 
 
Não havia uma distinção clara entre o universo infantil e o adulto, portanto, não 
era necessário censurar nenhum assunto para as crianças. Elas não eram vistas como 
criaturas inocentes e compartilhavam a rotina de trabalho dos camponeses, os maus tratos e 
a falta de recursos, assim como a cultura popular transmitida por esses povos ao longo dos 
tempos. Mesmo que os contos populares sejam considerados parte da gênese da Literatura 
para crianças, deve-se considerar a circunstância de serem eles voltados para o público 
adulto e contados por eles como escape às dificuldades potencializadas pela explosão 
demográfica e a exploração da burguesia ascendente. Os contos oferecem uma resposta à 
crueldade do mundo através de personagens, dentre elesum número crescente de crianças, 
que mesmo fracos e oprimidos se utilizam da patifaria para lograr os mais poderosos. Essa 
relação não se constrói apenas entre adultos e crianças, cujos casos de abandono se 
multiplicavam a cada período de calamidade, mas dramatiza também o embate entre os 
pobres, petit gens e os ricos, les grands. João e Maria, inclusive na versão atenuada de 
Perrault, retrata a perigosa condição enfrentada pelas crianças na França do século XVIII. 
Nesse período de crise demográfica, a temática do abandono dos filhos se torna comum, 
aparecendo em vários contos juntamente com outras formas de maus-tratos infligidos a 
eles. 
 
Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses 
demonstram que o mundo é duro e perigoso. Embora, na maioria, não 
fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela. Como se 
erguessem letreiros de advertência, por exemplo, em torno à busca de 
fortuna: “Perigo!”; “Estrada interrompida!”; “Vá devagar!”; “Pare!” 
(DARNTON, 1986, p. 78). 
Charles Perrault se destaca não apenas por ter recolhido e reescrito essas 
narrativas, mas por ter tido também a preocupação de apresentá-las como Literatura 
específica para crianças, reunindo a coletânea intitulada Contos da mãe ganso, ou Contes 
de la mère l'oye (1697). Após serem consagrados pelas versões de Perrault (1628-1703) e, 
posteriormente, pela dos irmãos Grimm (Jacob, 1795-1863 e Wilhelm, 1786-1859), os contos 
populares passaram a constituir a base daquela que seria chamada Literatura Infantil, fator 
que sinaliza a criação de um espaço literário reservado para os pequenos. 
35 
 
Não se podem ignorar as mudanças nas versões dessas narrativas motivadas 
pela transição dessas histórias da classe camponesa para a burguesia, nem mesmo a 
passagem do tempo que separa a primeira versão de Perrault do presente. O momento 
histórico vivido pelo autor certamente influenciou na escolha de um toma mais suavizado e 
moralizante na reescrita. A França do século XVII estava passando por um momento de 
grande progresso e transformações político-sociais, portanto o cenário em que Perrault 
escreveu os contos requeria uma maior preocupação em propagar ideais de comportamento 
para as gerações vindouras em vez do simples entretenimento. Somente um século mais 
tarde, na Alemanha no século XVIII, as pesquisas dos irmãos Grimm resultariam na 
consolidação dos contos na Europa e nas Américas. O tom prescritivo torna-se um ponto 
chave das narrativas, utilizadas como instrumento educacional, como destaca o psicanalista 
Bruno Bettelheim (2004): 
 
Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e 
favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em 
tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos 
modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de 
contribuições que esses contos dão à vida da criança. (BETTELHEIM, 
2004, p. 20). 
 
 O estudioso afirma que os contos de fadas ensinam as crianças a lidar com 
os problemas interiores e encontrar soluções no contexto social em que estão inseridas. Elas 
aprenderão a enfrentar e aceitar sua condição como seres atuantes da sociedade. Apesar da 
relação inicialmente normatizadora construída entre a criança e a Literatura, as obras às 
quais ela tinha acesso não se limitavam àquelas impostas por instituições ou indivíduos 
adultos. Havia também a leitura de títulos escolhidos livremente, uma leitura não funcional, 
voltada exclusivamente para a fruição. 
Mas como as personagens crianças são construídas nas obras não 
especificamente voltadas para o público infantil? A Literatura esteve interessada nas 
crianças desde seus primórdios. É o que nos mostra a obra Imagens da infância em 
Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry (COUTINHO, 2012). Na obra, é elaborado 
36 
 
um estudo panorâmico que põe em evidência os personagens crianças em diferentes 
discursos, desde a mitologia greco-romana, passando pelo relato bíblico, até a atualidade, 
realizando uma análise comparativa da obra de Graciliano Ramos e de Antoine de Saint-
Exupéry. Segundo a pesquisadora, as representações da infância constituem uma temática 
constante ao longo da história, presentes não apenas em investigações históricas, mas 
também nas artes, em especial na Literatura. 
A mitologia greco-romana exemplifica a impossibilidade de precisar um início 
para a importância dada aos novos descendentes. Os personagens crianças ocupam uma 
pluralidade de lugares nas relações de poder que se entretecem entre elas e os adultos ou 
entre as próprias crianças, fator que ilustra sua multiplicidade de representações. Alguns 
desses personagens surgem como responsáveis pela salvação ou destruição de seu núcleo 
familiar e social. Édipo Rei, de Sófocles, considerada a mais representativa das tragédias 
gregas, envolve o abandono de um recém-nascido numa tentativa de evitar o cumprimento 
de uma profecia maldita trazida por ele. Os infortúnios que circundam o adulto são 
determinados desde seu nascimento. 
Homero e os tragediógrafos gregos fixaram a máscara adulta destas 
personagens (Perseu, Édipo, Páris e Télefo) na memória do sistema 
literário, não sem deixar implícito, no entanto, que o peso de sua 
dramaticidade advém, em primeiro lugar, das sombras que lhe rondam o 
berço. (COUTINHO, 2012, p.48). 
Outro personagem da mitologia abandonado após o nascimento é Atalanta. 
Rejeitada por seu pai, que desejava filhos homens, sobrevive sendo alimentada por uma 
ursa. O mito de fundação de Roma, assim como o de Atalanta, aproxima as crianças 
rejeitadas da natureza, que as acolhe através de animais. Os gêmeos Rômulo e Remo, 
jogados no rio Tibre por ordem de Amúlio, numa tentativa de proteger o trono, são 
amamentados por uma loba e, mais tarde, fundariam a cidade de Roma no mesmo local 
onde haviam sido deixados. 
 A criança como figura ameaçadora do poder estabelecido também faz parte da 
narrativa bíblica. O rei Herodes reage de forma semelhante aos líderes gregos diante da 
ameaça da perda do trono. O monarca ordena que os meninos nascidos na cidade de Belém, 
cidade que, segundo fora profetizado, seria o berço do novo rei, sejam executados. 
37 
 
Conhecido como “massacre dos inocentes”, este é um dos vários episódios bíblicos 
envolvendo a execução em massa de crianças. Numa vertente oposta à ideia da criança 
maldita ou ameaçadora, Isaac é o filho desejado de Abraão. Promessa divina ansiada por 
toda uma vida, seu nascimento é motivo de extrema alegria, assim como o do filho de 
Zacarias, visto como a esperança de continuação de seu legado. 
É importante destacar que as personagens crianças também ocupam a posição 
de protagonistas no discurso bíblico. No Novo Testamento, Davi confronta a representação 
da criança como um ser frágil e desprotegido, livrando seu povo do gigante Golias, capaz 
de derrotar os mais fortes homens de sua tribo. Por ser o mais novo dentre oito irmãos, 
Davi guardava os rebanhos de seu pai. Menosprezado por sua pouca idade, seus feitos 
extraordinários têm início antes do embate que o tornaria conhecido pelas futuras gerações. 
O pequeno pastor mata um leão e um urso que haviam atacado as ovelhas de seu pai, sem 
receber, no entanto, crédito por seus prodígios já que era o menor de sua casa. 
Ora maldita, ora redentora, a criança é capaz despertar as mais diferentes visões 
que têm sido representados na Literatura, como temor, ira ou empatia. Além das narrativas 
míticas, o interesse pela infância tem suas raízes, também, no discurso filosófico. Platão, 
por exemplo, mesmo não tendo utilizado uma nomenclatura que designasse a criança de 
forma mais específica, demonstra uma preocupação com essa primeira etapa da vida. 
O discurso sobre a infância apresenta uma grande versatilidade de gêneros, 
temas e personagens, ilustrando a complexidade de delimitação de suasrepresentações no 
sistema literário. Presentes desde a mitologia e o teatro greco-romanos, da narrativa bíblica, 
e até mesmo anteriormente, as representações da criança na Literatura têm se transformado 
através dos séculos. Ela não é mais vista apenas como um ser em desenvolvimento, mas 
“[...] possui uma natureza específica.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p.3). No estudo 
intitulado Um outro mundo: a infância (1991), Chombart de Lauwe traça um painel de 
produções artísticas relacionadas às crianças. O recorte feito pela escritora engloba “[...] um 
conjunto vasto de trabalhos relativos às imagens, às representações e aos estudos da criança 
na sociedade francesa.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. XV). Dentre elas destacam-se 
a Literatura e o cinema. A pesquisadora não ignora a relação de alteridade com o adulto, até 
mesmo porque quase todas as narrativas literárias têm sido produzidas por eles, e é através 
da relação com o “outro”, seus pares, e o meio, que se forma uma identidade. 
38 
 
 
A criança e a infância são também delimitadas pelos códigos que 
concernem às relações da pequena personagem com outrem: seus 
parceiros crianças ou adultos, e seu ambiente. A comunicação supõe dois 
polos e relações mais ou menos hierarquizadas e valorizadas. 
(CHOMBART de LAUWE, 1991, p.21). 
 
Através de seu abrangente estudo, Chombart de Lauwe conclui que as 
representações da infância contribuem para a construção de uma imagética da criança na 
sociedade por meio de uma visão crítica do universo adulto. A relação dessas personagens 
com o sistema social é múltipla, mas, segundo a escritora, “[...] são variações de um ser 
único: ‘a criança autêntica’” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 448), espectro de uma 
misteriosa ligação com a natureza e uma sabedoria sobrenatural. Elas estão, portanto, 
inseridas numa dinâmica do poder na qual ocupam diversas posições, o que contradiz a 
noção limitada de criança como um ser frágil. Essas personagens podem também adquirir 
maior poder nas relações por seu estado de infância. “Os escritores criam, com elas, uma 
outra maneira de existir, e as ficções fantásticas contribuem, sem dúvida, para levar a seus 
extremos as características atribuídas à infância.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 
449). Mesmo que não haja um lugar fixo reservado para a criança nas relações de poder, 
Chombart de Lauwe percebe a permanência de uma oposição entre o mundo da infância e o 
mundo adulto. Enquanto o primeiro adquire caráter mitológico, remontando a um tempo 
maravilhoso e efervescente, o último é “[...] criticado através dos indivíduos aprisionados 
em seus papéis e em suas normas ou através das instituições e da sociedade global, é 
simplesmente mostrado sob seu aspecto mais sombrio.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, 
p. 452). Diante do rigor do universo adulto, os pequenos enfrentam um sentimento de 
inadequação. 
Mais tarde, vimos tais personagens chocando-se com o mundo dos 
adultos: com seus pais, com seu meio, com as normas, com a escola que 
sufoca o imaginário e a criatividade, com a religião que adota leis rígidas 
e uma moral que impõe de preferência a incitar a comunicação com os 
outros a abrir o acesso a um deus de amor e de vida. As pequenas 
personagens, dotadas de um poder misterioso, observam este mundo com 
39 
 
indiferença, ou o percebem diferentemente ou se refugiam no imaginário. 
(CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 453). 
 
Presença constante nos livros, quando a criança passa a ocupar uma posição de 
relevância também enquanto leitora? O fomento de uma produção literária direcionada 
especificamente para a criança ocorreu de forma moralizadora, portanto, os livros voltados 
para esse público não tinham, a princípio, o objetivo único de proporcionar prazer. Colin 
Heywood (2004) reforça a publicação de obras protestantes inglesas como exemplo de uma 
literatura de cunho normatizador destinada às crianças, preocupada com sua conversão 
através da educação. Não apenas os protestantes, mas os jovens católicos tinham leituras 
direcionadas para a temática religiosa, dentre elas a própria Bíblia, assim como manuais de 
comportamento como o Token for Children (1671-1672) e a obra The divine songs 
attempted in easie language for the use of children (1715). 
 
Os pais poderiam dar livros a seus filhos, cuja maioria, até meados do 
século XVIII, estavam na categoria daqueles procurados para ensinar as 
crianças e aprimorar suas mentes, diferentemente de livros infantis 
propriamente ditos, definidos por Harvey Darton como aqueles elaborados 
basicamente para dar prazer. (HEYWOOD, 2004, p.126). 
 
Na Inglaterra, o aumento do número de periódicos destinados ao público 
infantil ocorreu simultaneamente ao crescimento da alfabetização. Os avanços na 
tecnologia de impressão e distribuição resultaram numa expansão do mercado editorial 
voltado para esse grupo específico no decorrer do século XIX. Segundo Diana Dixon
3
 
(1986), as revistas infantis saltaram de cinco, em 1824, para 160 em 1900. Não apenas a 
quantidade, mas também a qualidade do design, com a proliferação dos livros ilustrados, 
assim como de seu conteúdo, melhorou consideravelmente durante o período vitoriano 
inglês. 
 
3
 “From Instruction to Amusement: Attitudes of Authority in Children’s Periodicals before 1914”. Victiorian 
Periodicals Review. 19. 63-7. 
40 
 
Contrastando com as obras pensadas para o ensinamento do evangelho, surgem 
os antididáticos Alice no País das Maravilhas (1865) e Aventuras de Alice através do 
espelho (1871). A curiosidade da menina Alice, personagem subversiva e desafiadora, 
contraria o olhar normativo arraigado no puritanismo vitoriano ridicularizando a 
incoerência que rege as normas sociais e até mesmo a linguagem. Lewis Carroll oferece 
uma visão transgressora da sociedade, recriando o real de forma absurda, ao revelar a 
crueldade e falta de lógica das convenções sociais. 
É através de constantes questionamentos sobre a rigidez imposta às crianças 
que a menina Alice pode compreender sua própria relação com a infância, o mundo, e a 
transição para a vida adulta. Desafiada pela pergunta da Lagarta sobre sua identidade, Alice 
percebe a efemeridade de seu estado. “Eu... eu... nem eu mesmo sei, nesse momento... eu... 
enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me transformei 
várias vezes desde então.” (CARROLL, 2006, p. 50, tradução nossa). Ressignificando seu 
diálogo com o “outro”, e consigo mesma vertiginosamente Alice metaforiza as constantes 
transformações pelas quais passamos até entrarmos na idade adulta e a incoerência de 
certas regras de conduta que nos são impostas. A imagem de uma lagarta que constrói o 
casulo do qual sairá como borboleta, um ser que já não é o mesmo, valida uma alegoria 
dessa transformação. Ao participar do julgamento do Valete de Copas, Alice questiona a 
autoridade do Rei, representante do poder que beira a estupidez, caricatura de déspota 
subordinado à Rainha. A notória falta de inteligência e lógica no discurso adulto, tão 
insólito quanto os padrões que regem a sociedade vitoriana, são parodiadas pelas regras 
absurdas dos detentores do poder no País das Maravilhas. 
A referência ao momento histórico do primeiro livro torna-se ainda mais 
evidente em Aventuras de Alice através do espelho. “O que reflete o espelho? A verdade, a 
sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência... Além disso, o espelho dá uma 
imagem invertida da realidade.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 302). O objeto 
assume um caráter lúdico na narrativa, assumindo não somente a noção de verdade, mas 
também a de inversão da organização social estabelecida. Dessa forma, pode-se perceber 
que a Era Vitoriana instaura uma inovação no que concerne à função da Literatura para 
crianças. Antes voltada para a formação, doutrina acerca dos princípios morais e éticos que 
serviriam

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